Projeto Memórias da Zona Norte
Depoimento de Eva da Silva Ern
Entrevistado por Sandro Silva e Ismael Toledo
São Paulo, 15/08/2019
PCSH_HV_790
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Beatriz Cunha (Solis – Transcrição e revisão de texto)
P/1 – Qual é o seu nome e onde você nasceu?
R – Bom, eu nasci Eva Pacheco da Silva, Paraná, em 1956. Meus pais chegaram no Paraná e ainda era muita mata, em 1954, e dois anos depois eu nasci. A mais nova das mulheres, a penúltima filha do casal. E bem no Norte do Paraná, lá onde tem a divisa de Paraguai, Uruguai e Argentina, bem ali naquela paranaense.
P/2 – Que dia e mês?
P/1 – Dia de nascimento? Qual foi o dia e mês em que você nasceu?
R – Eu nasci de 22 de outubro de 1956. Meu avô registrou errado, dia 30 de outubro de 1956.
P/1 – Você sabe o porquê da sua família ter migrado?
R – Então, minha família… Morávamos em Lupionópolis, e meu pai recebeu um convite de um grande… cara da Ebraim, para ajudar abrir o Paraná. O Paraná era mato. E a família dos Pereiras que meu pai era genro do meu avô -, recebeu a oferta, "são 12 filhos, vamos para o Paraná, vamos abrir o Paraná". O meu avô topou e trouxe os genros, as filhas, as noras, levou para o Paraná, e chegou lá, meu avô comprou 80 alqueires, comprou, ganhou e ficou a família Pereira lá. Era quase que uma gleba só deles, 80 alqueires eram só da família Pereira. Abrindo desde o mais velho, foi e meu avô levou os filhos para lá. Então, para abrir mesmo o Paraná, limpar as terras, que dó, né? (risos)
P/1 – Você chegou a viver nesse lugar?
R – Vivi.
P/1 – Tem lembranças?
R – Sim. De 1956 até 1976. Eu cheguei em São Paulo em 2 de janeiro de 1976, exatamente quase fazendo 20 anos, mas vivi toda minha infância e toda minha juventude lá. Porque eu vim para cá já para casar. Tenho doces lembranças do Paraná, principalmente da roça, do grande frio de lá, e do calor também (risos). O que eu mais me lembro de lá é das chuvas, dos trovões, dos relâmpagos, do telhado que voava na chuva. Então… mas lembro bem, terra bonita, tudo d'água, né? Mas eu gosto mais de São Paulo.
P/1 – E quais são as lembranças mais fortes que você tem da sua infância?
R – Meu avô. Meu avô era um homem muito forte. Meu pai era um homem que vivia sempre doente, e eu tinha um avô que tinha 12 filhos e criou mais um, 13, e ele era muito carinhoso com a gente. Ele fazia as festas para família e reunia todo mundo, na Páscoa, no Natal. E eu me lembro assim, tão bem dos pratinhos de porcelana da minha avó que eram brancos. Não era nada daquelas porcelanas caras, eram aquelas porcelanas simples, mas aquilo era servido ali para todo mundo, a gente comia, brincava, brigava… Numa época, eu estava de bem com um, de mal com outro, que família grande é assim. Era muito bom. Tinha os bailes, os casamentos, então, era uma família assim, grande, mas enquanto estivemos nesse sítio, foi muito unida.
P/2 – Como eram os almoços, as festas, as comidas que você diz que serviam nesses pratos…
R – Eu me lembro assim, na Páscoa o meu avô… Meu avô tinha uma casa muito bonita. Ele botou troncos de madeira assim, fez bem alta, bem alta, tinha subir a escada para chegar… para entrar na casa do meu avô. E depois, como não tinha serraria, era serrada naqueles… Então, a madeira era muito grossa e formava o piso, e debaixo daquilo guardava os carrinhos de boi, os negócios, que ele tinha carro, então, os carros de boi. E em cima, a casa, uma casa bem alta e muito bonita. Abaixo disso, tinha também feito com madeira assim, tinha também o engenho de açúcar. Então, acordávamos de madrugada… E tinha também um Manjolo lá embaixo na mina, tinha onde fazia a farinha de mandioca… Então, todas essas coisas são coisas que eu tenho muita lembrança. Guardei muita lembrança disso. Quando chegava na Páscoa, meu avô matava um boi, e esse boi era dividido entre todos… quem queria estar comendo. Ele fazia churrasco, enfim. Naquele tempo não tinha a tal da cerveja, não lembro, não sei se tinha, eu sei que era mais usual a pinga. E a gente reunia, comia, assava, cozinhava… E fazia aquela… Mas não era aquela coisa de… Meu avô era muito religioso, minha família… Então, não podia fazer muita farra como se faz hoje, aquela churrascada com "pingaiada" e todo mundo ficar bêbado, não. Meu avô dançava catira com os genros, eu me lembro que isso balançava toda a casa, era muito legal. Eu tenho muita saudade, quando eu ouço, me vem. Meu pai, meus tios… todos dançavam catira com ele. E os bailes e casamentos, era aquilo lá do Paraná, aquele arrasta pé, porque os nortistas gostam mas de chacoalhar, o paranaense e o Sul lá gosta mais de arrastar o pé. Então, eu me lembro dessas coisas… Muito legal, muito boa a infância… Aí, fazia o que? Fazia doce de laranja - laranja brava, aquela laranja do Mato que tinha casca bem grossa, fazia o doce dela -, fazia doce de cidra, doce de abóbora, fazia pão no forno - forno de barro bem grande -, passava esse pão e a gente comia. Isso, a gente passava ali… A gente, não, que eu era criança, mas as tias, a mãe… passavam ali dois, três dias preparando essa comida toda. Fora quando ia fazer… Eu cresci comendo tudo quanto é tipo de rapadura, porque isso também podia pôr na rapadura, então… Meu avô chegava a fazer pinga também, mas era mais quando estava em Lupionópolis, então, lá no Paraná mesmo, ele não chegou a fazer pinga. Se chegou, eu não me lembro. Mas assim, uma família… A forte lembrança minha, o meu avô representa mais o patriarcado da família do que meu pai, porque meu pai vivia doentinho. Naquele tempo chamava de "louco", mas era esquizofrênico, ele sofria, ficava internado, e era tratado como louco, então, levou muito choque. A minha tia, irmã dele está vivendo há 106 anos, ele viveu menos, o coração ficou fraco, mas assim, um homem muito inteligente, muito bom, muito religioso. Ensinou muito a religião para gente.
P2 – Seu pai?
R – Muito. Ele era bastante católico fervoroso. Eram benzedores também, eles benziam. Meu pai e minha mãe benziam, os dois. Ele chegou a salvar a vida de uma criança - que sempre as pessoas contavam isso para gente -, uma criança que estava com anemia profunda. E eu me lembro tão bem quando ele contou assim, foi tão simples curar essa criança. Ele passou o óleo de oliva na cabeça da criança, mandou esquentar o forno de barro um pouquinho, colocou a criança lá dentro… Tirou, e diz que foi tentando, tratando, benzendo a criança… E a criança tinha sido desenganada do médico. A minha mãe também benzia. Então, eram pessoas muito fortes. Minha mãe era uma mulher, assim… Meu pai tinha um pouquinho mais… Meu pai escrevia com a letra tão linda, ele fazia o que naquele tempo chamava "manuscrito" - acho que existe isso -, ele fazia uma letra muito bonita. Minha mãe, já escrevia muito mal, ela mal chegou ao segundo ano, mas ela lia e escrevia. Mas ela era muito sábia. Todas essas coisas que eu aprendo, que estou vendo na Apicultura eu vejo… Picada de abelha para reumatismo, eu ria quando ela falava, hoje eu vejo que, né? Então, todos os remédios, essas coisas que ela ensinava e fazia para gente, eu vejo que isso é verdade, mas naquele tempo, eu duvidava. Eu era ruim para tomar remédio, eu só tomava remédio com uma cinta do lado. (risos) Então, era assim, uma coisa bem…
P/1 – E quando criança, qual era a sua relação com a escrita, com a leitura…
R – Eu sempre fui doente por leitura. Leitura era uma coisa… A minha mãe dizia assim "ler demais, estraga a vista", e ela morreu falando que eu estraguei a vista porque eu lia. Não tem nada a ver, porque o meu é hipermetropia e astigmatismo, um defeito de nascença, né? Ela mesma que passou para mim. Então, eu ia passar as férias na casa de uma tia, que ela tinha um monte de gibi. A gente não tinha essas coisas, não tinha dinheiro para comprar. E eu ficava na casa dela nas férias de julho inteirinha só para ler aqueles gibis. Então, adorava leitura, sempre devorava tudo. Tive as fases. Primeiro, gibi - foi a primeira fase -; depois, passei para fotonovelas; depois, eu me lembro "Pais e filhos", direitinho depois de "Pais e filhos", aí comecei quando vim para São Paulo. Comecei a mexer com… porque eu mudei para cá, casei, não podia trabalhar tive os filhos. E comecei a me interessar pelas coisas de beleza, maquiagem, depilação, estética, massagem… Fiz tudo isso, mas não era o meu caminho, não era o que eu queria, mas estudei, fiz Senac, fiz muitos outros… todos cursos profissionalizantes. Cheguei a trabalhar um certo tempo em salão e depois passei… Depois comecei, não, é a educação. Porque lá no Paraná, eu dei aula, com 16, 17 e 18 anos. Como meu pai foi um dos que chegaram primeiro na cidade, então a gente sempre, assim, estava mais velho ali, então o pessoal… mesmo que não tivesse idade, mas se tivesse maturidade naquele tempo, o diploma não era tão importante. "Não, é educação mesmo que eu quero", aí fui fazer magistério, terminar… Eu tinha feito só o primeiro ensino médio lá, e aqui, fui tentar o colegial. Aqui, eu terminei, fiz o magistério, depois pedagogia e um ano e meio de mestrado, mas não concluí. Entre as filhas estudarem e a mãe, era melhor as filhas. O marido não aguentava pagar uma dentista e uma fisioterapeuta. Eu tive que abrir mão do meu… Não ganhava para me sustentar, né? (Risos). Tive que abrir mão do meu mestrado.
P/1 – O seu primeiro trabalho, assim, você tem alguma lembrança muito forte? Algum lugar que te marcou?
R – Olha, o que mais me marcou no trabalho que eu fiz assim, foi como professora… Professora seria estagiária, um contrato que o governo do Estado fazia por dois anos, e esses dois anos, eu fiquei na escola bibliotecária, que fica na Ushikichi Kamiya. E nós tínhamos como diretora, a dona Vera Curriel, ela é uma supervisora de ensino aqui na Guaratã, em Guarulhos, e uma mulher muito dedicada, uma professora muito dedicada, era uma diretora muito dinâmica, então, tudo aquilo… Como eu estava retomando e começando a minha vida profissional - que foi um contrato de dois anos -, eu fiquei um ano em contato com ela, e isso serviu para ver a garra, a vontade e a educação como pode ser melhorada e ela sempre estava lutando muito. Até hoje ela está nessa área, então, eu guardei muito isso…
P/3 - Se a senhora puder voltar um pouquinho só…
P/2 – Quando terminar o barulho.
R – Essas motinhas são fogo (risos). Então, a dona Vera Curriel da escola bibliotecária, era diretora. Então, em 1996, 97, se eu não me engano, mas nessa época assim, foi que eu fiz esse contrato com o governo do Estado e daí fiquei dois anos lá. Então, um ano foi com a dona Vera Curriel. Hoje, ela é supervisora da educação lá em Guarulhos. Ela estava aqui na nossa diretoria. E ela me colocou em muitos cursos, e aí nasceu a sementinha. A sementinha, que ela me botou para fazer um curso na Faculdade de Santana, e nessa Faculdade de meio ambiente por seis meses com outras duas professoras. Como eu gostava muito de aprender, gosto muito de aprender e fazer curso, o que aconteceu? Comecei a ter um básico de meio ambiente. Aprendi a escrever projetos e o professor… É um professor muito falado ali da Faculdade de Santana, agora me fugiu o nome dele. Inaldo, não… Então, ele começou a ensinar, e eu comecei a escrever o projeto e comecei a ser picada pelo bichinho do meio ambiente. Até então, eu fazia mas não sabia. Porque quando eu mudei aqui na Vila Albertina, em 1980, passava caminhão de lixo noite e dia para o aterro sanitário, e aqueles caminhões enormes, um cheiro forte… Aquilo para mim, tenho toda rinite, tudo quanto é coisa por isso…
P/1 – Qual era o nome do seu avô?
R – Carlos Pereira da Silva.
P/1 – Qual era o nome do seu pai?
R – José Pacheco da Silva.
P/1 – Da sua mãe?
R – Maria Pereira Silva.
P/1 – Tá. A gente pode voltar na história do caminhão.
R – Então, em 1980, quando eu cheguei aqui, esse lixão… Chamava de lixão mas é um aterro, um aterro normal, não tem nada de irregular. E eu não aguentava aquele cheiro forte, o lixo, o pó muito grande, então, ficamos um certo tempo, enquanto o Jânio entrou como o prefeito da cidade de São Paulo - eu não me lembro o ano, só lembro quem era o prefeito. A gente foi é resolveu fechar a rua, porque não queria mais que o lixão passasse aqui a noite inteira, que era difícil dormir com esse barulho. Fomos, juntamos os moradores aqui da rua e fomos fechar a rua. Apareceu um monte de Polícia - isso eu não tinha estudado ainda. Eu estava ainda como mãe, dona de casa. Foi, fechamos, e aí foi negociação para lá, negociação para cá… E isso deve ter sido um dos fatores que eu não consegui fazer a cooperativa, espaço para a cooperativa, porque eu… Aí, ficou muito forte para eles que eu era uma pessoa que participava dos movimentos na comunidade e poderia influenciar muitas pessoas, então, era um pouco difícil. Quando eu fui mexer com a coleta seletiva e eu já tinha nível superior, piorou. Então, têm certos… Quando eles não podem levar a pessoa a fazer o que eles querem, eles não querem. Eles querem dominar, gado. E eu como não faço isso, não tem negociação comigo, então, não tem jeito. Aí, eu fechei… Fechamos a rua, eu e um grupo de moradores. Não tivemos medo da polícia, não tivemos medo de nada, e acabamos fechando à noite (parava 10 horas e voltava só 6 horas da manhã), e ficou um pouquinho melhor, mas por pouco tempo, logo eles passaram pelo lado de lá, lá pela Sezefredo, preencheu lá em cima, e depois parou. Porque já estava saturado muito, porque isso aqui é um berço de pedra, e isso era um perigo escorregar para a Vila Albertina. É um berço de pedra, então… Muito perigoso. Não aconteceu por sorte mesmo.
P/2 – Já era aterro nessa época?
R – Era pedreira.
P/2 – Mas era o aterro sanitário ou ainda era o lixo só à vista?
R – Aterro…
P/2 – Já era…
R – Era uma pedreira que fez e aí ficou um lago. Esse lago morreu muita gente ali que ia brincar na água. Então, eles começaram a fazer daquilo ali, o aterro, mas onde tem o berço de pedra, essa água não tem saída… Onde era o lago. Preencheu com terra, então, isso ficou fechado, bastante fechado, mais do que quando eles vedam. Porque a vedação com o tempo desmancha, e a pedra, não. Então, eles acabaram… Com o tempo, se não tirasse, se não parasse, poderia escorregar. Isso, os engenheiros falaram para gente. Se não parasse, esse lixo todo poderia escorregar para a Vila Albertina.
P/2 – Porque o lixo é que acabou cobrindo, trampando aquele…
R – Cobriu tudo… Subiu, né? Porque até no mapa da cidade de São Paulo, isso tudo é um parque. Você tem vários parques. Essa borda todinha aqui, até… É parque. Isso aqui é um parque também, onde está esse aterro, vai ser um parque futuramente.
P/2 – Como chama essa área que tem o lixão, que tem o aterro?
R – A gente chama Vila Albertina, mas não é Vila Albertina. Tem Jardim Daisy, um monte de nome, Jardim Santo Alberto…
P/1 – Aqui é Ramos Freitas…
R – É, a gente não sabe, mas como tudo para nós é Vila Albertina, isso tudo para nós, é Vila Albertina.
P/2 – E o parque tem um nome esse que tem o aterro? Tem o nome do parque?
R – Não falaram… Quando fala para o pessoal que vai ter isso, eles vão lá na prefeitura perguntar e eles falam que é mentira, mas como a gente ajudou a construir todos os conselhos do meio ambiente e eu sentei dois anos lá dentro da secretaria do meio ambiente, participando como conselho regional e não como conselho da subprefeitura, representando a subprefeitura lá… Na época do Eduardo Jorge, a gente foi vendo como as coisas caminhavam e a gente fala para a comunidade e a comunidade não acredita, mas a gente sabe… Inclusive até na época, eu tinha esses mapas. Eu não sei se tenho. Eu devo ter guardado esses mapas todinhos falando do… Deve ser outra Fazenda Santa Maria, porque aqui tudo é Fazenda Santa Maria. Aí, ela deu essa parte aqui para fazer o CDC e fez aquela parte do parque. E depois sobe, têm todos uns espaços para cima na Sezefredo e têm os parques também. Então, vem desde lá do horto a formação de vários parques. Então, você vai trabalhando, né? (Risos)
P/1 – E conta mais sobre a sua cooperativa…
R – Então, quando eu me formei, em 1996, 97, e fui trabalhar nessa escola… Quando passou… Quando eu fiz alguns concursos e passei também como… seria monitora, não professora na penitenciária feminina. Fui para lá mais ou menos em 1999, 2000. Cheguei na penitenciária feminina e comecei a ver a precariedade dentro de uma prisão, e comecei a ensinar para as meninas a separação do material, como separar o material e não sei o quê… E comecei a ver que lá não tinha dicionário. Comecei… "Vou fazer uma campanha de recicláveis para que essa penitenciária tenha dicionário". Comecei a fazer numa avenida aqui na Vila, botei uma caixa e comecei a pedir. Ali passava muita gente da Serra, e aquilo sempre enchia - enchia tanto de livro, quanto de papel de tudo ali. Eu fazendo essa campanha, comecei a vender, vender, juntar, juntar… Falei "vou fazer isso para…", e realmente deu para… Quando eu terminei a campanha, que eu parei que eu vendi tudo, o governo me mandou os dicionários lá para a penitenciária feminina. Eu falei "e agora?". Fui lá na 25, comprei os panos - porque era para isso o dinheiro -, e dei os panos para fazer as cortinas da escola. Tinha a biblioteca… Não sei se fizeram. Eu dei o pano lá e deixei para que eles fizessem. Só que com essa campanha… O pessoal da Vila me viu fazendo essa campanha, aí a liderança - a Maria Cristina e a Lobelo me chamou para que eu conhecesse… Eu morando aqui, negociava com os homens ali embaixo, mas eu não subia. Eu não conhecia aquele espaço lá em cima, nada, não conhecia. Isso foi mais ou menos em 1999. Olha o tempo que eu já morava aí. Me levou para conhecer e falou "dá para gente fazer esse projeto de coleta seletiva, uma cooperativa lá". Eu fui conhecer o espaço.
P/2 – Era um balcão?
R – É. Está até hoje lá, um galpão, um espaço lá assim, que dava um campo de futebol. Não era CDC na época. E eu falei para ela "vamos?", e fui lá ver. Gostei do espaço, comecei a fazer nas férias - em 1999, foi a época que conheci o Raí -, e comecei a fazer os projetos, encaminhar… Sem nada. Comecei a fazer o projeto assim, sem…
P/2 – Como que você fez esse projeto? Sem nada, mas assim, como que você organizou? Como que acontecia?
R – Eu escrevi, porque eu tinha aprendido no curso escrevendo projeto, e eu tinha uma caminhonete - peguei meu carro de passeio e troquei por uma caminhonetezinha, uma dessas… Porque, na verdade o meu irmão, tinha um irmão que também tinha ido preso e eu queria ajudá-lo, queria que ele saísse da cadeia e pudesse ter um lugar onde pudesse recomeçar a vida dele.
P/1 – Qual era o nome do seu irmão?
R – Do irmão do meu marido: Edson, mas também não consegui muito, porque é muito difícil, porque ele era viciado, e eu não sabia lidar com essa situação antigamente. Eu fui e comecei… Ele como motorista, essas coisas, e eu ia na penitenciária dar aula, e voltava coletando as coisas. Me juntei com outras pessoas, também da comunidade e falei "então, vamos fazer", e fui sem nada.
P/2 – Você ia junto na caminhonete?
R – No começo, não, porque no começo, alguém tinha que trazer o recurso… Então, eu dava aula de manhã. Eu fiz o Jovem Cidadão por dois anos e dei aula para o Sebrae também, o aprendendo a empreender. Eu ia para Brasilândia, tinha um grupo de jovem cidadão lá; aí eu ia para Jova Rural, e tinha um grupo de jovem cidadão lá; depois, eu ia trabalhar a noite, dar aula, que eu passei no concurso da prefeitura lá. Depois, quando eu parei o Jovem Cidadão, comecei a dar aula do Sebrae.
P/2 – Você dava aula de empreendedorismo?
R – É, aprendendo a empreender, mas junto com esse projeto… Quando nós conseguimos, que nós começamos com a cooperativa, o que nós fizemos? Fomos atrás da secretaria de emprego e relações do trabalho. Naquela época, era o Walter Barelli o… como chama o cara que cuidava da secretaria? O secretário. Pedimos para ele que a gente queria fazer um projeto aqui. Então, ele trouxe um grupo de professores para ensinar para gente tudo. Nós ficamos três meses tendo aula de tudo quanto é coisa: empreendedorismo, educação ambiental. Eu fiz papel reciclado muito tempo, sabe? E ensinando tudo. Naquele tempo, nem dono de empresa falava em plano de negócio, e a gente já sabia fazer o plano de negócio. Tanto é que quando falava isso no meio dos catadores, eles falavam "você não tem uma cooperativa, você tem uma empresa", eu falava "calma, plano de negócio a gente faz até da vida. Até da vida a gente faz porque tudo é um negócio". Nós aprendemos tudo isso… Mas na época, a Cristina se desentendeu, porque a Folha de São Paulo veio fazer uma entrevista, e a Folha de São Paulo veio bem quinta-feira. Porque eu ficava mais preocupada em coletar e colocar a mão na massa. E ela era mais do corre atrás dos políticos, das coisas, porque eu não tinha muito esse conhecimento. Eles foram, e a Folha de São Paulo veio bem no dia, na quinta-feira em que ela não poderia estar no espaço. Eu falei para o rapaz "mas não podemos fazer essa entrevista, ela não está aqui", "eu volto depois". Eles não voltaram e puseram na Folha de São Paulo… Me colocou na Folha de São Paulo e o que aconteceu? Ela achou que foi traída, achou que tinha sido passada para trás e a partir daí, ela começou a mover contra. Se afastou e começou a mover contra. Tentei de todas as formas pedir perdão, falar "não foi culpa minha", e as pessoas também diziam para ela, mas não adiantou, ela ficou irredutível, não teve jeito. E o tempo todo, o tempo todo lutando contra, lutando contra…
P/2 – Ela era da comunidade?
R – Era da comunidade. Uma pessoa que no trabalho de saúde, na Vila Albertina, o posto de saúde era um trabalho muito forte dela. Uma liderança assim, que fez bons trabalhos na Vila Albertina e tem uma história de vida muito… Apesar de eu não aprovar muito essa… E justamente por isso, eu tenho um pouco de aversão com político, por conta de estar vendo o trâmite dela, eu nunca gostei muito. Então, você fica com isso que eu vou pôr a mão na massa, mas ficar ali também não pode, porque você tem que entender como funciona o negócio. Só fazer, não adianta. As negociações têm que ser grandes. Mas seu continuei fazendo, fazendo… Foi de 2000… Até que chegou 2006, que foi a época que a gente foi mais atacado, que eles tiraram a gente do espaço. Mas nós chegamos em 2006… a gente coletava… A gente tinha feito educação ambiental. No início, a gente lutou para fazer a rede Vila Albertina. E nós fizemos uma atuação muito forte, porque a fundação Gol de Letra, estava sempre… Um grupo assim, forte e fazia o "dia de fazer a diferença". E nesse "dia de fazer a diferença", se fazia a coleta. A educação ambiental, uma semana antes. A gente passava nas casas, falando… Aqui na Vila Albertina, três mil moradias foram educadas para separar o material, e nós fizemos essa coleta aqui na Vila, nesse dia veio bastante material, e assim foi crescendo, crescendo… 2001, 2002… E assim foi crescendo. Chegamos ao ponto de 2006, a gente tinha - mais ou menos 2006, 2007 -, 1000 moradias. Nisso, a gente coletava, mais ou menos, 1 tonelada/dia. Era um caminhão 608, cheio de todo tipo de material. Ali tinha: plástico, papel, vidro, metal, e lara brechó, eletrônicos também… E a gente trazia isso, selecionava, vendia… Até 2006, eu não me lembro qual era o valor do salário mínimo, mas eu sei que cada um de nós, tirava o suficiente para… um salário mínimo, dava para tirar. Só que eu tinha que trabalhar fora e eu deixava outras pessoas fazendo, porque alguém tinha que sustentar o projeto. Foi na época em que eu fui operar de vesícula, que eu fiquei internada - me deu duas vezes pancreatite e eu não morri em nenhuma, até agora, estou bem forte. Uma mata e eu tive duas. Eu fiquei dez anos com ela e foi quando deixou o corpo estranho, ali no Hospital São Paulo e eu dei uma segurada. A partir daí, eu resolvi… 2007 eu resolvi que iria parar de dar aula, ia parar de fazer as coisas com educação, assim, na escola, e que iria me dedicar exclusivamente para a cooperativa. E eu comecei a trabalhar. Foi a época que nós compramos um caminhão, compramos outro caminhão… Porque o caminhão que a gente tinha, foi uma amiga da padaria que tinha dado para gente. Deu para usar, emprestado e depois, deu para gente mesmo. Nós trouxemos, aqui na época o Padre Tomás mandou 20 moradores de rua. Desses 20 moradores de rua, quatro saíram da rua, dois estão por aí, dois morreram naquela chacina embaixo da ponte da Fernando Dias. Então, esses moradores de rua… Eu tenho uma história assim, uma gratidão muito grande pelos moradores de rua, tanto é que eu não gosto nem de passar muito perto, não gosto muito de ver o sofrimento, porque eu sempre desenvolvi esse projeto e chegavam pessoas que "ah, que lindo o seu produto, eu quero te ajudar". E porque eu tirei aposentadoria Bradesco, eu tirei dinheiro de poupança, eu peguei meu carro de passeio, eu coloquei tudo a serviço disso, porque eu acreditava muito. Ingenuidade por não saber como era esse trâmite com políticos. Ninguém faz uma cooperativa numa área particular se isso não for uma área muito grande.
P/2 – Entendi…
R – Menos de 1000 metros, não dá para ter uma cooperativa. E esse espaço lá em cima, era um espaço preservado. E o único de lazer da Vila, único. Não existia na Vila espaço de lazer. Então, não poderia tomar isso tudo… Só se fosse só para a Vila Albertina, porque o sonho, era uma EcoVila. Porque olha, Vila Albertina, tem 5000 moradias, 35000 moradores ou mais, 90 e poucas ruas, nisso tudo, daria para se coletar 100 toneladas/mês, e sustentava facilmente 20 pessoas numa cooperativa. Então, o espaço lá que tem a quadra, daria para fazer ali sossegado um galpãozinho pequeno, e isso funcionar só aqui, sem precisar poluir para longe. Mas em 2000, quando nós fomos atacados e eu decidi que ia estar saindo de lá… Como na Vila, nós estávamos sendo muito atacados, nós fomos para o Tremembé. Só que o Tremembé, é um pessoal assim, muito legal, muito consciente. E esse pessoal começou… Aí, ficou bom mesmo, porque as coisas ficaram excelentes… Porque eles começaram a trabalhar e doar muitas coisas para gente. Muitas coisas boas.
P/2 – Eu ia… Assim, quando você fala "cooperativa", Eva, você fez o projeto. Veio algum recurso de algum lugar para… Porque, eu estou perguntando… Quanto mais detalhes, isso ajuda outras pessoas. Veio algum recurso de algum órgão para começar?
R – Então…
P/2 – Dinheiro.
R – Nós tivemos a ajuda da formação, em 2000, pela Secretaria de emprego e relações de trabalho, com o secretário Walter Barelli, depois, tivemos na época em que a gente começou a participar de toda essa discussão, essa conversa na cidade e a Marta entrou como prefeita e começou a ver que isso poderia… Pediu pra ela fazer alguma e ela disse "não, isso dá para fazer na cidade inteira". E ela abraçou a causa das centrais de triagem. Então, a gente começou o grupo, e aí, já era a cidade toda envolvida. Então, a gente começou a verificar que isso poderia… Cada prefeitura ter a sua cooperativa. Então, a gente começou… Recebemos uma prensa e uma balança.
P/2 – Entendi.
R – O único recurso que nós ganhamos, a formação de 2000. E depois, quando a Marta foi prefeita, uma prensa e uma balança. Só.
P/2 – E você… Vocês chegaram a ocupar o galpão para fazer a triagem…
R – Seis anos.
P/2 – Seis anos?
R – É.
P/2 – E vocês coletavam na Vila Albertina ou mais além…
R – Até 2006, Vila Albertina.
P/2 – Então, você ia com o seu cunhado…
R – É, por um certo tempo. Depois, não deu muito certo, porque ele não se adaptou, por conta das dificuldades psicológicas, emocionais e tudo. A gente acabou ficando sozinho e ele tocou a vida dele. Ele era um mecânico.
P/2 – Certo…
R – Tocou a vida dele. Vieram outros motoristas. Em 2002, vieram os moradores de rua de Santana.
P/2 – Então, antes de chegar nos moradores - que moravam na rua -, quando você diz "nós", quem eram essas pessoas que formavam a cooperativa junto com você?
R – Nós fizemos esse curso aqui na comunidade. Nós fizemos com mais ou menos 26 pessoas. Terminamos mais ou menos com umas 21, mas aquelas interessadas a ficar na cooperativa… E quando começa o caminhar, é muito difícil as pessoas aprenderem a cooperar. As pessoas querem fazer as coisas para sobreviver. Quando elas começam a reparar que primeiro elas têm que se dedicar, elas não… Estão acostumados a ser empregados e não a produzir para si e fazer as coisas para si. Ainda mais quando tem uma pessoa com um pouquinho mais de estudo na frente, elas acham que são empregados daquela pessoa. E professor como tem aquele jeito mandão… Você sabe como que é. Então, acham até que ela e minha patroa. Essa dificuldade que a gente tem de estar ensinando, mesmo tendo essa formação… Desse grupo de pessoas lá no início, ficaram alguns, até… E foi diminuindo, foi diminuindo conforme a dificuldade. Na hora da separação do dinheiro, era pouca quantidade. Então, até tudo encaixar…
P/2 – Ficaram quantas pessoas por mais tempo, assim?
R – Mais tempo, dez pessoas. Era normalmente isso. Aumentou um pouquinho mais quando o padre mandou os moradores de rua em 2002, 2003, mas geralmente eram dez pessoas.
P/2 – O núcleo eram dez?
R – Dez pessoas.
P/2 – E essas dez pessoas que conseguiram chegar num ponto de ganhar o equivalente a um salário mínimo?
R – Sim.
P/2 – Foram elas…
R – Essas dez pessoas.
P/2 – E vocês voltavam, depois levavam para o galpão…
R – Isso.
P/2 – ...e faziam a triagem?
R – Fazia a triagem.
P/2 – Todos os dez trabalhavam na triagem, ou dividiam…
R – Trabalhavam na coleta e na triagem. Então, tinha um grupo que trabalha na coleta e outro grupo que trabalhava na triagem. No próprio espaço, a gente ganhava alimento também, que a gente buscava material no Sonda. O Sonda tinha um espaço onde recebia os recicláveis - o Supermercado Sonda. Foi bastante tempo que eles… Uns quatro ou cinco anos que eles colocaram. Só pararam quando a gente falou "não, não vamos fazer mais". Então, recebia aquele alimento também que estava ali. Eles davam para gente. A gente fazia comida lá em cima e eu reparei que algumas pessoas às vezes, comiam só salgadinho, as coisas assim. Não comiam… Eu falei "não, nós vamos fazer uma comida para ensinar eles…". Ensinamos a eles como tinha que comer, comer um pouquinho melhor. Às vezes, a pessoa comia um salgadinho com um copo de leite com café. Eu fiquei abismada, "pera, isso é seu almoço? Então, para aí". Nós começamos a fazer a comida, e com o dinheiro do brechó… Acabei pegando o dinheiro do brechó, só para comprar a comida. Na época, era mais ou menos… Dava por mês uns 1000 reais. Dava para fazer a comida de todo mundo e dava até para comer bem. A gente ganhava algumas carnes, algumas coisas do mercado, a Júlia, dava muita carcaça de frango, pé de frango e a gente fazia. Então, era isso.
P/2 – E para vocês venderem esse material, como vocês começaram? Porque separa, e depois para…
R – É. Era uma dificuldade grande e era isso que às vezes, desanimava as pessoas, porque o preço era muito baixo. No governo Marta, ela foi… ela levou alguns grupos mais fortes - que encabeçavam e a gente fazia parte de um desses -, e apresentava cada região. Porque eram levados cinco grupos - Norte, Sul, Leste, Leste e Centro -, para estar participando de reuniões e conhecer as empresas de plástico, de vidro, de papel… Nós fomos conhecer essas empresas, conversar e negociar, mas eram todas pequenininhas, catadores… Então, estava negociando para ver a possibilidade de um apoio de poder estar vendendo. E nós começamos a discutir e criamos assim, vamos formar grupos. A Zona Norte vai formar, juntar todo mundo dessa região e vender o material. A gente levava o nosso material lá em Perus, ali na cooperativa. Quando tiraram a nossa prensa e a nossa balança, tiraram a luz e a água, a gente levava para Perus, para prensa e vender junto. E aí, melhorou o preço, por isso que conseguimos chegar ao salário mínimo. Mas eu me lembro que no começo do ano, nem jornal ninguém comprava. Nem jornal. Nem cinco centavos, nem dez centavos… não podia falar em jornal que o cara não queria o papel, não queria. Hoje, a gente vende em qualquer época. Desce o preço, sobe… É com o dólar. E no entanto… Foi uma articulação de toda cidade, de negociações, de grupos e reuniões, e reuniões, e reuniões… Houve o movimento nacional dos catadores com outros catadores. Aqui na nossa Zona Norte, o movimento não tem tanta força. Só ficava a gente aqui. Por isso que a gente tem uma cara de esquerda, porque a gente acabou representando um grupo. Mas nós conseguimos bastante experiência nessa época porque a gente aprendeu essa questão do óleo de fritura, o biodiesel, a gente aprendeu muito, muita coisa boa. Visitamos a Coca-Cola, visitamos essas empresas. Eu tive a Coca-Cola visitando a gente. Não tinha espaço e ela queria até fazer aqui em cima da minha casa para… Eu não deixei, porque ali é um espaço… eu não iria misturar as coisas. "Não, mas não tem problema". Eu falei "não, se eu faço um trabalho na comunidade, é lá". Agora, é diferente. Eu estou ganhando para isso, mas no trabalho de reciclagem onde eu trago pessoas, não poderia ir. Não dá. Ia prejudicar a minha família e tudo mais. Nem caberia… Nem cabe.
P/2 – É, do que você… Isso eu entendi. Quer dizer, o que faltou muito para vocês foi um espaço físico?
R – Tinha um espaço físico, a comunidade entender o projeto em si, por conta de quando houve o desacordo e a Cristina começou a combater, ela começou a falar coisas negativas. Na Vila Albertina, o pessoal, muitos me chamam de ladrona, me chamam de um monte de coisa, mas eu não fico preocupada e nem quero desmentir isso. Cada um pensa o que quiser e eu não vou perder o meu precioso tempo e fazer tantas coisas boas para estar lidando com quem acredita em besteira. Porque era a ideia dela de poder estar mexendo comigo.
P/2 – Sei.
R – Tanto é que ela preferiu entregar para o PCC do que entregar para mim. Então, ela preferiu isso. E eu não combatia a Cristina por respeito. O pessoal… Eu fui na Edif e vi que naquela área não tinha nenhum projeto. Não tinha o projeto do CDC - tinha mas era bem fraquinho. O deputado falou bem assim para mim… Ele vivia ali, esqueci o nome dele. Ele era advogado. "Traga o seu projeto e apresente. Se você apresentar o teu projeto, você ganha, porque o seu é muito maior do que o dela, e tem… preferência." Mas não adianta, quando você não acostuma… Eu não passo em cima de ninguém. Ela chegou primeiro.
P/2 – Entendi.
R – Ela chegou primeiro. E eu acho que eu posso ter perdido para ter feito a cooperativa, mas eu vou deitar com a minha cabeça tranquila no travesseiro. Eu não passei por cima de ninguém. É o trabalho dela e tem que ter respeito por isso. Então, não é porque ela me prejudicou tanto, que eu vou dizer assim… Como muita gente pode… "Vamos processar", não. Não. Deixa. Se ela não entender… Com isso, começou aquela revolução de falar mal da própria comunidade. Que até hoje… Toda vida ela foi até um pouco… Toda vida ela… Quando o Raí pegou a escola, ela também foi contra e ficou não sei o quê. Junta Eva e fundação Gol de Letra dando sempre apoio para Eva, aí piorou.
P/2 – Entendi.
R – Eu até me afastei um pouquinho da fundação para ver se ela parava de… mas não adiantou. Com ela, não teve negociação. E ela por trás - ela tem um poder político muito forte, que eu não tenho.
P/2 – Político partidário.
R – Político partidário mesmo. Gente antiga de São Paulo, que eu não vou citar nome aqui agora, mas político antigo de São Paulo que tem muito poder de decisão na cidade de São Paulo. Não só aqui na Zona Norte, mas em toda cidade, que chega e quando ela chega nele, beija a mão dela e tudo mais. Então, eu não tenho político de estimação e não vou ter nunca, porque eu não acredito neles. Então, isso tudo acabou atrapalhando todo o processo que a gente fez na própria comunidade e acabou botando algumas pessoas sem entender, contra esse trabalho. Porque, o que que era o trabalho? Era a EcoVila, tudo que se pruduzia, aqui mesmo fazia, aqui mesmo teriam 20 empregos, 20 operados se sustentando. Não precisaria poluir muito, só quando fosse para tirar aqui dez toneladas de material. Geraria dez toneladas, levava embora e pronto. Então, a Vila seria uma Vila ecológica. A gente chegou até a olhar lá em cima e eles prometeram… Eu não lembro mais o nome do secretário, era "não sei o que" Mendonça. Ele viu assim e "dá para fazer lá em cima a cooperativa". Eu falei "melhor ainda, ________ [43:45]", mas não caminhou.
P/2 – As empresas comprariam o material…
R – Sim.
P/2 – Como a Coca-Cola…
R – Não, depois foi todo processo negociação e tudo, e hoje… Inclusive, a cooperativa que nós formalizamos… Que em 2006, 2007, a gente fez o papel. Até então, as coisas eram feitas assim, sentava, "ah, não vai…". Porque eu não podia sentar e fazer um documento sem que eu tivesse junto 20 pessoas. Então, Quando eu consegui juntar essas 20 pessoas em 2007, nós documentados a cooperativa. Essa cooperativa hoje, está com o Movimento Nacional dos Catadores e é uma central de vendas do material do Movimento Nacional dos Catadores. Eu dei para eles com CNPJ, tudo prontinho, tudo certinho. A nossa foi feita bem documentada, porque nós entramos dentro de OCESP e aprendemos além…
P/2 – O que é OCESP?
R – Organização das cooperativas do Estado de São Paulo. A gente aprendeu desde a abertura até o fechamento de uma cooperativa. E eu sempre mostrava para eles, que o modelo de cooperativa de coleta seletiva, eu sempre colocava como uma cooperativa de trabalho. Não funciona. Com todos esses impostos, não tem como pagar.
P/2 – Entendi.
R – Só daria para ser de produção. E a de trabalho, o outro produz só um pouquinho; e aquele outro que produz bastante, desanima porque aquele produz pouco. Mas você não pode eliminar aquele que produz pouco, porque produz pouco, mas aquilo que ele produz, já ajuda no sustento dele. Então, não daria para ser uma cooperativa de trabalho. Tinha que ser uma cooperativa de produção.
P/2 – E vocês fizeram, conseguiram.
R – Tivemos que fazer de trabalho, mas então, no papel é uma coisa. Não vamos fazer ali no dia a dia com os impostos… Porque uma cooperativa em nada diferencia de uma empresa, muito pouco, só a forma de gerenciamento, mas os impostos são os mesmos. Você pega um produto que já pagou imposto e aí você vai pagar de novo para fazer a venda. Então, não está no ponto de equilíbrio, não está. O ponto de equilíbrio de uma cooperativa que faz menos de 100 toneladas/mês, existe. 20 toneladas, é nada.
P/2 – E você passou então, essa documentação que é uma cooperativa para o Movimento…
R – Movimento Nacional dos Catadores, porque para a gente fazer nosso… Eu sentei junto com um senhor e ele falou "não, eu quero ajudar a fazer isso aí", mas sem muito entendimento e sonhando com o negócio. Ele foi… Porque pôr a mão na massa mesmo, é outra coisa. Ele foi, sentamos, fizemos assembleia, fizemos tudo e ele documentou. Só que ele pagou tudo, e depois, nós tínhamos que dar esse dinheiro para ele. Como eu sei da dificuldade dos catadores e o pessoal foi conseguir arrumar local para um, local para outro e foi conseguindo se ajeitar… Peguei esse documento, ele pagou para o senhor o que ele tinha gasto e ficou com o documento da cooperativa. Alguns vendem CNPJ, mas eu acho que não faz sentido nisso, Porque ele já pagou a conta do outro, deixou a gente sem nenhuma conta…
P/2 – E os moradores, como eles participaram? Os moradores de rua nesse processo. Você falou que eram quantos? Oito?
R – O padre mandou 20.
P/2 – Para trabalhar…
R – Antes de entrar para esse trabalho, quando eu terminei pedagogia, em novembro antes de 2000, eu fui voluntária na Igreja de Santana, com moradores de rua com o padre de lá, o padre Tomás. Quando e era vivo, ele fazia um trabalho muito lindo na comunidade lá em Santana. Até hoje, a Igreja tem essa tradição. E aí, o que falta para os moradores de rua? Trabalho. Ele falou "Eva, eu vou te mandar 20 moradores de rua, vou mandar cesta básica para eles comerem e vou mandar também a condução." Eu ia todo dia de manhã e buscava. Fiz isso por três meses. Então, desses três meses que ele os sustentou, eu falei "agora acabou o sustento do padre e nós vamos ter que verificar quem vai ficar e quem não vai".
P/2 – E os 20 trabalhavam?
R – Os 20 começaram a trabalhar. Ali, tinha problema de bebida, de droga, de um monte de coisa, trauma de vida mesmo, porque têm umas histórias ali bem… Eu sentei com eles e falei "olha, a cooperativa está aí, eu coloquei um monte de coisa". Quando eu falava que as pessoas achavam lindo o projeto e queriam me ajudar, eu falava "olha, eu peguei meu carro de passeio, meu dinheiro… Eu tenho 11.000 reais aí." A pessoa pegava a malinha e ia embora, não queria nem saber. Conta? O que é isso? Bonito, mas…
P/2 – 11.000 reais de conta para pagar?!
R – De conta para pagar, porque eu tinha tirado do meu bolso. Fora, que isso eu não contei o que eu ganhava em Guarulhos, ganhava lá, ganhava cá e, botava. Eu estava contando só com aquilo que eu tirei da poupança, do meu carro de passeio e a aposentadoria Bradesco. Os moradores de rua foram interessantes. Acabou a ajuda do padre, sentei com eles numa sala que a gente tinha lá, contei "olha, eu tenho"...
P/2 – Espera um pouquinho só… Começa de novo. É uma história que… Começa para gente tentar gravar inteira, de onde eles vieram e tal…
R – Então, esses moradores de rua de Santana que viam para cá para a comunidade, eles ficaram três meses com o padre dando alimento e a condução. Depois, eles tinham que decidir se ficariam ou não. Lá tinha espaço. No próprio espaço tinha, eram sete salas. Eu falei para eles "olha, agora eu vou contar para vocês", e contei para eles, "esse dinheiro…", quando eu falei assim, eu pensei que eles iriam fazer igual às outras pessoas, "não dá, não". Seis decidiram ficar. Seis moradores decidiram ficar. "Não, nós vamos ficar".
P/2 – Você fez como? Uma reunião com eles?
R – É, uma assembleia, uma reunião. E eles foram e "não, nós vamos ficar". A gente tinha esse caminhão emprestado da moça da padaria, e o que acontecia? Faziam uma assembleia e eles vendiam esse caminhão. Fazia uma outra assembleia, e eles compravam esse caminhão.
P/2 – Como assim?
R – Eu não podia fazer nada, porque eu era uma. Eles eram maioria. Juntava os outros da comunidade mais aqueles seis e eu tinha que aceitar. Eu estava ensinando como é que fazia cooperativa, então, estava ali e eu tinha que aceitar. Eu era voto vencido. Enfim, mas só que quando fez… Depois a Marta fez a cooperativa lá no Jaçanã, fez lá todo o processo da cooperativa, e eles decidiram que iriam para lá, mas eu não quis parar o meu trabalho aqui na Vila, eu quis continuar aqui. Eles foram para lá, e ficaria um núcleo aqui na Vila, mas parece que quem ficou na cooperativa lá, não entendeu muito, e eles com problema de drogas e essas coisas, acabaram não entendendo. E esse que está vivo até hoje na Vila Albertina, ficou com a gente aqui no núcleo, ele não quis ir para a cooperativa.
P/2 – Entendi.
R – Então, é… Mas eles não me deram os 11.000 reais. Eles entregaram 8.000 reais na minha mão.
P/2 – Esses moradores?
R – Eles chegaram com a roupa do corpo... Eu até me emociono muito quando falo isso. Chegaram com a roupa do corpo e sem nada, uma história de vida triste, bebidas, drogas e problemas de família. Tinha um - o Fred -, ele chorava muito porque a casa dele pegou fogo e morreram todos, só sobrou ele. Então, não podia nem brigar perto dele, que ele se desesperava. E me entregaram, 8.000 reais na minha mão. 8.000 reais. Chegaram e entregaram assim na minha mão. Outros foram para a cooperativa, outros foram embora, e ficamos só eu, a Sônia e mais a comunidade ali. Depois, de pouco a pouco foi crescendo e assim era: minguava, depois ia. E assim ia… É um trabalho assim, muito… Eu não podia ficar ali direto. Eu decidi ficar direto a partir de 2007 que eu parei de dar aula no Izac Silverio, que eu substituía ali, reforço, e falei "agora eu vou me dedicar para cooperativa". Porque eu estava… Porque Guarulhos, eu ia daqui até lá e era muito difícil pegar todo dia a Dutra. "Não, não vale a pena, eu não aguento trabalhar tanto. Vou me dedicar para isso daqui". Saí da educação. Da educação assim, da educação formal. Foi aqui que a gente cresceu, comprou dois caminhões, coletamos bastante, mas só que como a gente não tinha o espaço, era o caminhão. Tinha que levar esse produto todinho do jeito que separava, do jeito que pegava na rua levava para o Silvio lá em Guarulhos. Ele tem uma empresa grande lá, a Multilixo. Ele comprava o material da gente, sem separar. ________ [53:19] praticamente, era barato, mas ele ajudou a gente a comprar outro caminhão. Eu tinha só a metade do dinheiro e ainda me lembro de uma coisa incrível, que a gente tinha um pouco do dinheiro e faltava. Desde que iniciou o projeto, eu tinha um carro de passeio. Não tínhamos com o que coletar. Eu peguei o dinheiro que eu tinha na aposentadoria Bradesco, fui lá e comprei uma caminhonete. Paguei R$3.500,00. Eu tinha esse dinheiro lá. Essa caminhonetinha fazia a coleta, mas seria o que? Essas caminhonetinhas pequenas da Fiat. Não dá para nada, né? Porque foi crescendo e não cabia. Tinha que fazer quantas voltas, né?! Eu tinha um Premium e fui trocar esse Premium com mais esse dinheiro da caminhonetinha que eu vendi por uma "caminhonetona", que comia uma gasolina danada, era uma C10. E quebrava… Para subir aquela "subidona", era difícil. Então, troquei por essa daí. Ali já juntou R$3.500,00 mais o Premium, que na época valia mais ou menos uns… Não sei se era 8… Eu só sei que juntando tudo… Depois, juntou mais um dinheiro que eu tinha na poupança, que era R$2.500,00, então, juntando tudo isso, dava R$11.000, que eu loucamente fui pondo.
P/2 – Mas você disse que entregou para os moradores. Essa parte que eu não entendi.
R – Não, eu entreguei nessas coisas que eu fui pondo. Quando os moradores de rua chegaram, eu já tinha essa dívida, porque para o projeto sair do lugar e caminhar, eu tinha colocado tudo isso. Então, eu sempre falava "nós vamos trabalhar e eu pego esse dinheiro de volta", porque o carro era do meu marido. Eu não trabalhava fora para ter esse dinheiro suficiente, então, eu tinha que devolver esse dinheiro. Eu fui e falei para eles "nós temos que devolver esse dinheiro para o meu marido, a gente consegue quando trabalhar". Esses moradores de rua, não se assustaram com a ideia. "Tem dívida? Nós vamos pagar". E o que a gente tinha mão? A caminhonete, a C10, que na época, estava valendo… Na época, ela foi vendida por uns R$5.000,00. Depois, teve uma venda de um negócio que foi feito, - eu não lembro mais o que era -, que deu R$2.000,00. Deu oito. O que eu achei lindo foi que eles viram que eu tinha posto aquele dinheiro, chegaram e disseram para mim "Olha, dona Eva, aqui está o seu dinheiro. Nós vamos para a Central e aqui está o seu dinheiro". E me entregou R$8.000,00. Porque eu tinha que fazer o que eles mandavam, então, tinha que fazer assembleia, tinha que fazer reunião… Não tinha o documento de cooperativa na mão, mas tinha que agir como. A PUC Júnior também, há pouco tempo eu contratei a PUC Júnior para ela poder estar ensinando. Ele foi, entregou… Eu chamei a PUC Júnior para estar ensinando, fazer uma auditoria, alguma coisa, porque eu não conseguia fazer com que a Sônia entendesse algumas coisas e eu tinha que estar trabalhando, não podia parar. Ela foi e… eles pegaram aquilo, pegaram o dinheiro e: "vendemos". Vendeu a caminhonete, vendeu os negócios, pegou e falou "pode pegar esse seu dinheiro". Eu pude chegar em casa e falar para o meu marido "aqui está o dinheiro do Premium", porque na verdade, ele representava só o Premium, porque a aposentadoria era minha e a poupança também, então, não tinha tanto problema. Aí, ficou livre. Então, eu me emociono muito quando eu falo dos moradores de rua porque imagina uma pessoa que não tem nada, só a roupa do corpo, que ouve falar de uma dívida de 11.000 reais, e paga. Oito para onze, falta pouco. Então, são pessoas que só não têm chance e não são compreendidas, mas eu tenho um amor muito grande. A partir daí… Eu era uma pessoa que gostava muito de me vestir muito bem, vivia em salão me cuidando, gostava de estudar e ler… Não gostava muito de beber no meio da comunidade, no meio das coisas, não. Eu vivia ali trabalhando e eu era a Eva e o projeto. A partir daí, eu tirei meu salto alto e comecei a cooperativa, "vamos lá, agora vamos ajudar", mas foi pior porque o combate… O combate, os interesses começam a chamar para fazer campanha de cá, campanha de lá e eu cheguei a fazer campanha de graça para político. Para o ___ [58:04], eu fiz duas vezes a campanha dele de graça.
P/1 – Por que?
R – Porque ele era uma pessoa que… A gente conheceu ele e tudo mais. Ele fez um centro de referência de educação ambiental ali, então, quando tinha campanha dele, eles não chamavam a gente nem para fazer. Porque ele me oferecia emprego nas ______ [58:24] três vezes. Eu não quis de jeito nenhum, falei "eu não vou, não sirvo para viver no meio desse povo de prefeitura". E ele foi… Quando ele pedia para fazer campanha, eu fazia, porque era só entregar papelzinho nas casas, conversar com as pessoas... Na época, ele era muito querido, ele fazia umas coisas legais no meio ambiente. Então assim, eu nunca fiquei sabendo de nada podre dele, nada sujo, então, não sei… Também não fico pesquisando muito, porque eu acho que depende muito da intenção da pessoa, da ideia. Muita gente fala muitas coisas que não são verdadeiras. A gente se baseia mais ou menos na história da gente. Depois, enfim, alguns políticos me procuraram. O Anibal de Freitas Filho mesmo foi engenheiro e hoje está vereador. Não faço campanha para ele mesmo que ele me pague milhões, de jeito nenhum, e foi um dos que me combateram, que quiseram acabar com o projeto.
P/2 – O critério é quem está alinhado com o projeto, e com que pode contribuir aqui com a comunidade, né?
R – É, porque a ideia era da gente fazendo esse projeto, se eles apoiassem, não precisava nem injetar dinheiro. Era só o espaço. O que precisava, era do espaço. Como eu era uma mulher assim… Até hoje eu não tenho muito juízo e também não tenho muito medo das coisas, não. Não tenho medo de morrer. Quando a gente não tem medo de morrer, não tem nada que perigo para gente. Então se vinha, eu conversava, como diz o povo da comunidade: "peitava a pessoa". E por que isso? Eu me lembro tão bem de um dia em que eu estava lá em cima numa agonia, porque eu tentava passar as coisas e não aprendia, e era com os moradores de rua mesmo. Chegou um casal e começou a conversar comigo, e eu comecei a contar tudo para eles, da agonia… Sabe, que delícia, me desabafando, falando - como eu gosto muito de falar -, contando toda a história para eles, e eles deixavam eu falar tudo e não perguntavam nada, nada, nada. E quando você fala, fala e cai a ficha, "desculpa, o que vocês vieram fazer aqui? Eu tô contando tudo isso para vocês e nem sei se vocês querem ouvir… Eu tô falando e… Meu Deus do céu, o que vocês vieram fazer aqui?", "Olha, dona Eva, é exatamente isso. Denunciaram que a senhora tem um ferro velho aqui em cima em área pública, onde explora as pessoas. Já vi que não é nada disso, é um projeto… Então, a senhora só precisa ir ao Ministério do trabalho. A senhora vai lá, leva para gente o projeto, as fotografias, leva tudo… Pronto.". Esse projeto tem muitas fotografias. Fui, mostrei para ele, e ele disse "ninguém pode fazer nada contra a senhora". No fim, eu estava contando justamente para a pessoa certa.
P/2 – Sem saber quem era…
R – Sem saber.
P/2 – A gente vai…
R – Então…
P/2 – Fala.
R – Isso acontece muito. Porque, eu sou muito assim, eu sei que sou bastante ingênua, porque eu não sei passar por cima de ninguém e eu não gosto de… Eu gosto sempre assim… Eu acho que a gente planta hoje para colher, não que tenha um Deus que castiga - apesar de ser missionária, religiosa e tudo -, não que tenha um Deus que castiga. Minha fé tem limite. Eu sei que essa força é universal. Eu não sou ingênua de achar que tem um Deus no céu que está fazendo tudo para mim. Isso para mim é uma fé cega que não… Eu acho que está aqui dentro a força, de você poder estar recebendo aquilo que você plantou. Se eu plantei o bem, é claro que vai ter um monte de gente que vai pensar no bem da Eva e isso tem troca, isso tem um canal de ligação. Então, é muito melhor você deixar canais bons do que deixar canais quebrados, de ódio, de raiva… Eu procuro ir sempre nessa linha, um pouco diferente daquela em que fui criada, porque meu pai foi de uma religião mais cega, um católico cego, tinha muita fé mas era uma coisa… Quando eu era mocinha, eu queria ser freira. Mesmo que te do ser freira, eu acho que teria sido expulsa de lá (risos). Mas eu tenha uma coisa mais da força interior, tanto é que hoje em dia eu sou praticante, estou aprendendo e vou se instrutora do _____ [01:03:22] que é a medicina… Na escola, eu já estou testando e está sendo muito bom.
P/1 – A senhora lembra de algum professor que te marcou, durante seu ensino fundamental, na sua cidade natal?
R – Os professores que me marcaram… Eu tenho dois professores. Foi um, quando eu fiz pedagogia, que foi o professor Roberto Silva, aquele morador de rua, aquele que foi abandonado pelos pais e hoje é doutor na USP. Ele me ensinou administração escolar. Roberto Silva. Eu nunca me esqueço, porque eu pensava que ele era mauricinho. Um dia ele estava explicando administração escolar e ele falava uma linguagem tão difícil, muito rebuscada. Terminou a aula, eu cheguei nele e falei: "professor fala a nossa linguagem, nós não estamos entendendo o que o senhor está falando", e ele sempre… Naquele tempo ele se vestia muito bem, sapato e roupa tudo combinando, eu falava "mauricinho, bonito, um negão lindo". Não deu… Final de semana eu recebia a Folha de São Paulo, quando eu vejo, três páginas. Falei "Meu Deus, é bem ao contrário do que eu imaginava". Ele aprendeu tudo isso sozinha, autodidata, na cadeia e tudo… Uma história de vida maravilhosa. Depois, quando eu me formei que fui trabalhar lá, que eu fui fazer esse curso na Faculdade de Santana, com o professor Ronaldo. Roberto Silva e professor Ronaldo. Esses foram os professores que marcaram. O professor Roberto falou muito de comunidade, falou muito da dificuldade. Eu assisti a defesa de tese de mestrado dele. O professor Ronaldo falou muito de meio ambiente, muito, muito, muito. Me ensinou muito, ensinou a escrever projetos, foi meu primeiro professor de projetos. A gente foi conhecer onde nasce o Rio Tietê… Então, esses dois professores marcaram muito. De infância mesmo assim, eu não tive grandes marcas, não. Foi um tempo um pouco precário. No primeiro ano a ________ [01:05:44], que foi a do primeiro ano e o primeiro a gente sempre marca, mas não fiquei muito tempo com ela (foi de janeiro só até outubro), depois veio outra professora no outro ano. Perdi aquele ano. Então, primeiro a ________ [01:05:58], depois o professor Roberto Silva e o professor Ronaldo. Do professor Ronaldo foi o que ficou, o vício do meio ambiente. Esse é o culpas de tudo.
P/1 – E você lembra como era o transporte naquele tempo, quando você era criança? Como você ia para a escola, se você ia a pé…
R – Eu contei essa semana para as crianças que eu substituí uma sala e eu fiz uma tática de meditação de Tai chi pai lin e falei bem assim para eles: "quando eu ía para escola, no primeiro ano que eu estudei, era tão longe, tinha que andar seis quilômetros na ida e seis quilômetros na volta. A gente saía tão cedo, que a gente via a lua no céu", mas eu não aguentei ir até o final, fui só até julho. Julho é aquele frio danado no Paraná e minha mãe não deixou mais. E aí, fizeram uma escola próxima, onde teve essa dona Neuza Lúcia e essa dona Neuza foi a minha primeira professora de primeiro ano. Eu também ia a pé, tudo a pé. Eram uns dois ou três quilômetros, mas o primeiro ano, meio ano era andando - seis quilômetros de ia e seis quilômetros de volta.
P/2 – Eva, você lembra se aconteceu alguma coisa assim, nessa caminhada de ida e volta, que você até hoje lembra? Ou porque foi engraçado, ou porque deu medo, enfim algum causo de vocês…
R – Eu lembro muito do céu estrelado, da lua… Eu me lembro desse… Eu era a melhorzinha de todas, com certeza devia perturbar muito os meus irmãos… Eu era muito chorona e sou até hoje, né?! (risos). Então, eu me lembro assim, que eu gostava muito de observar o céu. No interior, a gente observa muito. Quem vive no interior, observa a lua, observa as coisas… Então, eu me lembro desse… Indo para a escola, não, mas como a gente fazia essa caminhada também para ir à cidade fazer compra, eu tenho um caso que me lembro tão bem. Eu a minha mãe estávamos indo na cidade fazer compras um dia. Estava eu e mais duas irmãs. Tinha um senhor que morava mais abaixo do nosso sítio e em queria que minha mãe pegasse carona na carroça. Os dois brigavam muito, ele xingava muito a minha mãe. Ele xingava minha mãe de "magrela", minha mãe xingava ele de "preto nojento" e ficava aquela briga danada, assim, vizinhos brigando muito. E ele "entra aqui, Maria", e minha mãe "vou não, eu tenho medo desses seus cavalos, "tudo" novo"... E ele teimou tanto, que minha mãe entrou com a gente, nós fomos atrás e ela sentou lá na frente. Quando chegou quase perto da cidade - uns dois quilômetros -, esse cavalo resolveu assustar e saiu correndo, correndo, correndo. Eu nunca me esqueço dessa história, parecia assim… A minha mãe grudou na carroça, pegava a gente e jogava. Jogava a gente da carroça, com medo de deixar dentro da carroça, porque o cavalo fazia assim para cima e para baixo, para cima e para baixo… E aí a galinha choca cantando os pintinhos e jogando. Tinha uma irmã, a Luzia, que era muito chorona e medrosa - que era uma das mais velhas, a _____ [01:09:25], a Marta e a Luzia. E eu acho que o mais novo também estava -, e ela grudava no banco da carroça e não soltava. A minha mãe ralou todo o joelho de tanto ficar arrastada pela carroça, porque não conseguia tirar a Luzia, e enquanto ela não tirou a Luzia, ela não sossegou. O joelho dela ficou todo ralado e daí, ele podia passar e dar carona, mas ela não ia de jeito nenhum. Isso é um fato que ficou. Foi terrível, mas foi uma coisa que ficou gravada na minha memória. Eu nunca me esqueço do cavalo erguendo as patas e abaixando… E ela sem medo foi jogando a gente: jogava no pasto, no meio das coisas, nos capins… Isso foi uma coisa que ficou bem forte na minha memória. É isso.
P/1 – Quando você era criança, o que você queria ser quando você crescesse?
R – Freira (risos). Não sei como. No interior… Só que quando os frades chegavam lá, eu corria de medo deles com aquela roupa marrom. Eu tinha tanto medo. Caipira, imagine como deveria ser a minha cara, lá naquele mato sendo a mais nova das irmãs - e depois só tinha aquele pequeno. Eu me lembro tanto que eu me escondia no pomar com medo dos frades, mas crescendo um pouquinho mais, com meus… Comecei a estudar e inventei que queria ser freira, porque eu tinha muita vontade de ir para a África - teria morrido com Ebola -, trabalhar com os africanos. Existe uma paixão muito grande na minha vida: eu amo negro. Eu acho a raça mais linda que existe no mundo. Eu acho que eles são pessoas que apanharam tanto, sofreram e sofrem tanto pelo mundo e têm uma alegria muito grande dentro de si. Os negros teriam todo motivo para chorar a vida inteira, ser revoltados e tudo, e no entanto, onde a gente vê uma festinha que tem negro, só tem alegria. Então, isso eu acho muito bonito nessa raça, de estar ali…
P/2 – E você fez alguma coisa para tentar ser freira?
R – Eu fiquei… Em 1972, estudei no colégio de Londrina. Hoje eu sou missionária dessas irmãs do Colégio Mãe de Deus, em Londrina. Ali que eu aprendi, assim… Eu fui criada na roça, e era muito simples. Lá no colégio que eu aprendi como limpava uma casa, como cozinhava, como lavava uma roupa, porque a minha mãe para criar sete filhos, não tinha esse tempo de ensinar. Ela trabalha na roça e trabalhava em casa. Então, ali eu aprendi o que uma moça da cidade faz - porque eu era moça da roça -, aprendi a cuidar das coisas.
P/2 – Você tinha uns 16 anos?
R – 15 anos.
P/2 – E lá você estudou para ser freira?
R – Então, só que para ser freira neste colégio Santa mãe de Deus - colégio de freira é muito forte -, eu tinha que ter até a oitava série, e eu saí do Paraná de uma escola um pouquinho fraca, cheguei lá e não acompanhei. Falei para a irmã "eu volto para casa, estudo e formada, eu venho", mas nesse caminho, eu conheci um alemão. Não fiquei no colégio alemão, e casei com um alemão (risos). Esse alemão me enrolou e pronto, acabei casando com ele.
P/2 – Saiu do caminho da freira.
P/1 – Isso aos seus 20, por aí?!
R – Hã?
P/1 – Isso aos seus 20 anos, por aí?!
R – Não, 15 para 16.
P/1 – Ah, tá.
R – Com 16, eu voltei para casa. Fiquei em 72 com 15 e fiz 16 anos em outubro de 72. Depois, fiz 73, 74, 75… Nesses três anos, foi quando comecei a namorar o meu marido. A gente estudava na mesma sala, ele era o coordenador da União dos estudantes - ainda bem que lá e não aqui em São Paulo, se não estaria morto -, e eu era a coordenadora da sala de aula. Então, os dois ali juntos… Se fazia toda festa. Lá não tinha o ensino médio ainda, então, tinha um baile de formatura muito grande de quem chegava até a oitava série. Para fazer esse baile, a gente fazia pedágio nas estradas, fazia festa, vendia bolo na escola, fazia pipoca para vender… "Inventadeira" desde pequena. A gente se conheceu e fazia as coisas juntos. Os professores brincavam "por que vocês não namoram?", "eu quero ser freira". Que ser freira, Eva? Casa logo! (risos). E acabei casando. Viemos para São Paulo. Chegando aqui, ele colocou laboratório e deu tudo muito certo.
P/1 – Então, só para esclarecer, ele foi seu primeiro namorado?
R – Não. Paquerei outros, mas namorado sério mesmo, foi ele. Antes de namorar, a gente vivia junto para lá e para cá. Os namoros de antigamente eram diferentes dos de hoje. Nessa época de 73, 74, 75 era diferente de hoje. Hoje, a gente namora e já fica; naquele tempo não ficava. A gente vivia muito junto. O primeiro dia em que a gente começou a namorar oficialmente foi dia 15 de outubro de 1974, eu namorei quase dois anos com ele.
P/2 – Como foi esse momento?
R – Então, nós fomos lá conhecer as Sete quedas - hoje não existe mais. Fomos nesse dia e tinham três colegas, eu e ele. Chegamos, passeamos e fizemos um piquenique. Era perto Guaíra, 20 minutos. Nesse dia, elas começaram, as meninas todas… Todo mundo colocava fogo para gente namorar. "Não, eu não quero, vou ser freira", que freira nada. Acabamos casando. Eu vim para São Paulo para trabalhar e estudar, daqui a pouco, dia 20 de janeiro, estava ele aqui também. Então, não teve jeito.
P/3 – A senhora veio primeiro?
R – Eu vim primeiro, cheguei dia 2 de janeiro de 1976.
P/3 – E onde a senhora chegou aqui primeiro em São Paulo?
R – A Rodoviária era aquela perto da _____ [01:16:12]. Eu fui para Santo André numa casa de uma tia minha passear; depois, comecei a articular com os conhecidos daqui para arrumar um lugar para ficar. Tinha uma coisa que eu me lembro tanto desse dia que eu cheguei, nunca me esqueço essa imagem, ficou na minha mente. Eu cheguei, e de lá, a gente tinha que vir na Estação Júlio Prestes a pé, assim era um espaço pequeno de onde era a antiga rodoviária. Eu lembro que eu peguei a mala e estava andando. Eu não me conformava com aquele monte de lixo na rua, peguei tão firme na minha mala e, "Meu Deus, acho que vou voltar, é muito sujo esse lugar", pensei comigo. "Onde eles põem todo esse lixo todo jogado na rua? Como que pode uma coisa dessa?". Aquele lixo me impressionou e eu não sei se foi isso que talvez ficou… A gente não sabe o que o subconsciente da gente trabalha, mas o que me chamou muita atenção em São Paulo foi o lixo na rua. Isso era uma coisa, assim… Não existe isso hoje, de tão feio. Lixo mesmo, sacos, sacos rasgados… Assim, não tinha sacos rasgados como a gente tem hoje, era uma "montoeira" de lixo mesmo. Ali na Estação da Luz até onde hoje é o shopping, naquela rodoviária que tinha lá. Isso me impressionou bastante. Eu me lembro que segurei bem firme na minha mala e pensei "não, esse lugar é muito fedido, muito feio", e hoje, para mim, é o melhor lugar do mundo, eu amo São Paulo. O melhor lugar do mundo, eu acho que é São Paulo, tem tudo aqui.
P/3 – E como a senhora descobriu a Zona Norte, Vila Albertina?
R – A Zona Norte… Ali de Santo André, acabei arrumando lugar para morar na Hípica paulista, ali tinha uma pensão e fui morar lá. Depois, casamos, alugamos um quartinho, e fomos morar lá perto da Hípica. Meu marido trabalhava na Liberdade. Aquele quartinho que a gente morava que era uma pensão, foi desativada e nós ficamos um mês em Pinheiros. De Pinheiros; A gente passou a morar no Imirim; morei no Imirim do começo de 78 até 80, no Vila Roque. E aí, nós compramos aqui, construímos e em 80 eu vim para cá para a Vila Albertina.
P/3 – E como era a Vila Albertina quando a senhora chegou?
R – Era um lugar bem feio, de verdade. Feio, esse morro era feio demais, meu Deus, como era feio. Você olhava assim é eram só aquelas casinhas de madeira, aquelas coisas. Não tinha nada de alvenaria, muito pouco. Fedia por conta de caminhão de lixo, muito caminhão de lixo e tinha um pó terrível, mas podia deixar… Não tinha muro, só tinha a casa e podia deixar tudo ao lado de fora que nada sumia, nada… Ninguém mexia em nada. Depois que começou a piorar, mas antes, podia deixar roupa no varal que não sumia. Depois, nós fizemos um muro, fizemos as coisas. Nós demoramos uns dois ou três anos para fazer o muro.
P/2 – O pó era da terra?
R – Caminhão… Era terra isso daqui. No ano em que a gente fechou a rua no governo Jânio Quadros, os engenheiros asfaltaram a rua para… E nós, moradores, asfaltamos essa aqui, que sobra. Quando chovia, descia toda terra lá de cima na porta da minha casa. Eu ficava quase o dia inteiro puxando com a enxada, e com a mangueira, lavando. Era terrível, muito difícil mesmo, mas eu era só dona de casa, então…
P/2 – Os moradores asfaltaram como? Vocês pegaram…
R – Pegamos uma empresa, contratamos e ele dividiu o carnê para cada um. Cada um pagou essa rua, eram esses paralelepípedos que nós colocamos. Agora, essa daqui já foi a prefeitura que fez.
P/2 – Eva, quando vocês fecharam a rua, você lembra da… Se você puder descrever com mais detalhes se você lembra daquele momento, você, os moradores… Como foi?
R – Lembro. A gente estava muito cansado porque além do cheiro forte, a gente não conseguia dormir direito porque passava noite e dia um caminhão Scania - aquele que pesa toneladas -, era estrada de chão com bastante pedra e aquelas pedras voavam quando o caminhão passava. Era um perigo acertar uma criança ou alguma coisa. "Vamos parar com isso, não tem mais quem aguente esse lixão, não", e reunimos os primeiros moradores, dona Eulália, eu lembro muito bem, a filha da dona Lúcia, a dona Alzira... Então, juntamos ali, "vamos fechar", e fechamos. Só que quando a gente fechou lá, nós pegamos uma corda bem grossa, fechamos a rua e então, vieram cinco viaturas da Polícia. Chegou assim e falou "não, vocês não vão fechar, vocês não podem fechar, de jeito nenhum". Essa aqui a gente não se preocupou, nenhum doido iria descer ali. Ele foi e falou "vocês não podem fechar, vocês podem ir tudo preso", "vamos todo mundo preso então, porque o senhor vai ter que levar tudo". Falaram "essa corda não pode ficar aí", "então vamos tirar a corda" e nós fomos e fizemos uma corda humana segurando o bravo uma da outra e fechamos a rua.
P/2 – Só mulher?
R – Só mulher… Tinha homem, mas assim, os homens ficavam mais na retaguarda. Mulher… "Então, vamos segurar", fizemos uma corrente e "então, o caminhão vai ter que passar por cima da gente". A polícia não teve o que fazer… "Então, vamos fazer assim, você tem que ir comigo na delegacia para fazer um B.O", "mas para quê se isso não dá em nada, não resolve nada?", e eu e Neide que sempre duvidávamos de tudo, né?! Mas eu era a mais fácil de lidar, as outras eram piores. A Neide disse "não, não adianta nada Capitão, não vai dar em nada", e ele falou assim "vamos lá, se você ligar para mim e não resolver, daí você pode falar que não adianta". Fui eu e Neide fazer o B.O e ficamos lá na delegacia. Acho que ele imaginou que se a gente saísse, o povo se dispersava, mas ficou a atentada da dona Eulália. Ela pegou até um banquinho na casa dela e colocou lá para ficar vigiando. Foi uma farra danada, passamos a noite inteira lá. Voltamos da delegacia, era mais se meia-noite, sentamos e ficamos lá juntos. E no outro dia, vieram os engenheiros para negociar. Doutor Renato Mendonça, agora lembrei, ele já morreu. A filha dele está lá. Ela foi e… - ela que deve ter contado essa história. Sentamos lá - ali embaixo tinha um galpão -, e conversamos com os engenheiros. Eu me lembro tão bem, a Neide, filha de artista, gente assim, bastante energética… Nós falamos para o engenheiro assim: "olha, vocês têm que parar dez da noite e ao começar seis da manhã", e o advogado que estava com essa turma, um senhor de cabeça branca de idade, falou bem assim "nós falamos com o prefeito e ele não aceitou", mentira. A Neide virou para ele e disse "então, me dá esse papel que o prefeito assinou que vou tirar uma cópia para eu guardar, porque nós vamos acampar lá na frente da prefeitura", e ele morriam de medo do Jânio. Quem iria enfrentar o Jânio? Ninguém. Ele pegou e falou assim "não, eu não posso entregar esse papel, isso é um documento", "mas nós não vamos ficar com ele, vamos tirar ao uma cópia", "não, não vou dar esse papel", "olha doutor, o senhor me desculpe mas o senhor é um mentiroso". Ele falou para a Neide "a senhora não está respeitando o meu cabelo branco", "os canalhas envelhecem também", ela falou para ele. Ele juntou a mala dele e saiu, foi embora, nisso, a Neide pegou a mão de gente e falou "vamos embora, porque se um canalha fala e não quer dar o papel, ele é um canalha mesmo, e agora, se vocês quiserem estar negociando, amanhã a gente vai estar lá na prefeitura". Ah, não deu nem dez da noite e já tinha resposta dos engenheiros dizendo "não, pode deixar, vai para dez horas e voltar só seis horas da manhã", então, era mentira do cara. A Neide enfrentou e era mentira do cara. E eles fizeram isso, asfaltaram a rua e canalizaram até o esgoto que tinha desde lá de cima até aqui no riozinho. Canalizaram o esgoto para gente porque ficava a céu aberto.
P/2 – E conseguiram, então.
R – Sim. Muita luta, mas assim, eles põem medo mesmo no povo. Mas quem não tem medo, não adianta. Eu não vou muito nesses enfrentamentos, porque eu não corro. Então, não posso ir não, porque se eu for, é morte na certa ou vou presa. Meu marido não vai tirar, não. Ele fala "você que inventa, se vira" (risos).
P/1 – Dona Eva, a senhora como mediadora, qual é a sua maior dificuldade e se onde você tira sua maior força?
R – Olha, eu sou uma pessoa que sempre acredita que o conhecimento E a verdade prevalecem sobre o mal e sobre… É mais forte que o mal, e o conhecimento é muito maior. Chega um momento que a minha mãe… Às vezes eu era muito chorona, e ia fazer uma coisa mas não estava certa porque aquela pessoa estava prejudicando e minha mãe falava "não tenta provar nada para ninguém, o tempo mostra quem está certo e quem está errado, o tempo mostra. O tempo é o melhor remédio". Depois, eu reparei que isso na vida, é Eclesiastes. Então, eu cresci ouvindo isso é hoje utilizo muito isso na minha vida. Então, quando uma pessoa chega assim, pode acabar comigo, pode falar o que quiser - que eu sou isso, que eu sou aquilo -, eu deixo a pessoa falar, ir embora… Só que depois eu penso "o tempo vai te mostrar quem é você e se o que você falou é verdade ou não". A força, é a força interior, é você estar fazendo as coisas certo de que você está certo e de que você está fazendo o melhor. Porque se você não quer que alguém faça isso para você, você não faz para o outro. E a gente só se mantém vivo quando mantém força e energia para viver. Perdeu isso, o sentido acabou. Então, eu gosto muito de fazer experiências, eu gosto muito de conhecer outras coisas, gosto muito de ler… Então, vou sempre buscando, buscando. Por último agora, estou muito envolvida com ______ [01:27:58], então, isso mostra muito dessa energia da terra, mas uma coisa que a gente busca para… Porque está aí na natureza, representa a força maior que existe. Eu não me desanimo fácil. Hoje você me derruba e amanhã eu levanto com mais força ainda e vou em frente. Como a água, não deu certo ali, vai aqui, a gente vai fazendo e chega lá. Então, não desanimo nunca. A depressão não teve muito espaço dentro de mim. Só tive depressão quando perdi o pai, perdi a mãe e perdi minha bolsa de mestrado: três quadros de depressão. Hoje, eu não tenho espaço para ele. Cada dia eu sonho mais, eu quero viver intensamente rodo esses restos de tempo que eu tenho da minha vida, seja um dia ou meia hora, mas com intensidade, fazendo o que eu gosto e estando no meio de pessoas que valem a pena. Hoje, eu não brigo muito para estar fazendo uma coisa com quem é desagradável, não, vamos fazer coisas boas. Para quê perder tempo?
P/2 – Você queria perguntar sobre essa ação dela…
P/3 – Desses tantos sonhos…
P/2 – Da filosofia de vida dela? Você tinha feito uma pergunta sobre ela contar um pouco sobre isso, né? Não da filosofia, mas alguma coisa sobre isso, mais para descrever ou… Se você quiser perguntar…
P/3 – Bom de todos os sonhos que a senhora relatou para gente - inclusive o da cooperativa, de reciclagem -, eu sei que a senhora tem outras ações que a senhora tem uma relação muito forte, que é a da leitura, dos livros doação de livros… Eu gostaria que a senhora relatadas um pouquinho para gente como é essa…
R – Então, nesse processo todo de 2000 para cá, a gente teve a Rede Vila Albertina, que era um envolvimento mais com as questões de meio ambiente e reciclagem. Depois, bem mais tarde, veio a Rede social Zona Norte que o SENAC ajudou a implementar na Zona Norte e que existe até hoje - tem oito, nove anos, ou um pouco mais. Nessa formação, nós começamos a pensar nos livros, a ideia, o projeto nas estantes da Zona Norte. Porque eu sempre tive um problema: na cooperativa eu conseguia reciclar tudo…
P/1 – Menos…
R – … Coletar e vender para reciclagem. Os livros, não. Eu comprava uma briga feia com os operários. Eu já cheguei a pôr no canto da minha garagem três mil livros. Tinha uma que… Eu falava assim para os operários "eu levo, tenho outros em casa e trago", mas eu não conseguia levar de volta porque eles rasgavam. Então, eu trazia e não levava. Chegava uma hora que a ficha caía" "você está levando mas você não está trazendo", "mas trazer para quê?". Eu pesei um livro e mostrei para eles: um papel branco custa 40 centavos o quilo. Este livro, vale 30 reais. Se você rasgar… Se eu vender a 1 real, você está ganhando mais do que… Mas eu não conseguia vender e ficava aquela… Então, fui juntando livros, livros, livros… Vocês viram a estante como está, fora o que está na caixa. E começamos a fazer o projeto na estante da Zona Norte. As bibliotecas envolvidas… E foi o primeiro projeto… Foi a biblioteca mesmo, a Nuto Sant'Anna encabeçando. A menina que estava na Nuto Sant'Anna como dirigente, foi. Foi um projeto lindo. Depois, foi caminhando com certas dificuldades e eu entrei com o meu jeito de fazer a reciclagem, pegando aqueles que estavam contaminados e trazendo a um certo recurso. E agora, por exemplo, encaminho alguns para… Levo para a associação de moradores da Zona Norte. Levei agora dez dicionários para as professoras, porque vêm e vai rasgar? Não dá! Então, em até livro um para cada um. Assim a gente vai… Porque as pessoas levam na biblioteca. E aqueles bons de leitura, são guardados dentro da empresa _______ [01:32:31]. A leitura é paixão desde sete ou oito anos, quando eu aprendi a ler. Eu lembro que eu perturbava muito a minha mãe perguntando "qual é o nome daquilo?", "o que está escrito lá?" e ela falava "menina, para de me encher o saco". Era bem ruim a leitura dela mas eu ficava perturbando. Era uma paixão. A gente distribui - esse eu acho que já vai ser o oitavo ano - e nós vamos fazer isso no aniversário da fundação _____ [01:33:01], de 25 mil a 35 mil livros nas estações do metrô: Tucuruvi, Parada Inglesa e a estação Jardim São Paulo. Jardim São Paulo, a Cida toma conta; o Parada Inglesa, fica mais por minha conta; e o Tucuruvi, ficam mais as meninas das bibliotecas. Eu fazia mais a Tucuruvi mas passei para a Parada Inglesa por conta do suporte que tem que estar dando. Então, isso é uma coisa que fica durante o ano. Eu costumo muito repetir "se do livro não me livro…", porque ano passado eu me despedi de todo mundo falando que eu não voltava mais, "chega, chega". E eu olho a Cida sozinha lá "ai, meu Deus" e mexendo… Ela é muito competente em tudo que faz e organiza de uma forma… Papel, para ela, é uma maravilha e eu já gosto de pôr a mão na massa e fazer. Então, ir lá na biblioteca, buscar os livros, separar, fazer, pôr o negócio… Eu fico namorando o livro, né?! Vocês não imaginam o tempo que eu demoro para separar, porque eu fico lá olhando e tudo mais, e sempre acho que vou ler mais aquele. Vou pondo, vou pondo, depois, junto na caixa e levo. E antes que tenha o perigo de trazer de volta, eu deixo lá. E assim, esse projeto está indo na sua oitava ou nona edição - eu já perdi as contas já. Para você ter uma ideia, nessa última semana de julho, eu levei mil livros lá na empresa para guardar. Agora, eu estou contando esses daí que seriam meus mas não são meus porque não cabem. Vão ficar aquelas caixas ali daquele jeito? Vou contar, recontar e colocar lá. Estou separando os de educação. E assim, esse projeto é muito gostoso, apaixonante, é uma coisa assim... É tão bom estar na estação do metrô e ver as pessoas escolhendo. A gente ri tanto, porque é tão engraçado, porque por conta dessa loucura minha por livro, eu dou risada dos outros que são assim, porque você vê sua história ali. Tinha uma senhorinha que escolheu, escolheu e tal… A gente fala que pode levar só um, mas tem gente que pega três, quatro, cinco. E ela ali "segura para mim, que eu tenho que escolher mais", e a outra lá "Meu Deus, olha aqui…" E eu fiquei bem quieta, pensei "acho que seria eu aqui, imagina se eu passasse com esse monte de livro na mão". Então, além desse do livro, em 2007 a gente começou a construir aqui na região - porque esse do livro acaba tendo vários vieses: a questão de aproveitar para o papel aquilo que não serve, aproveitar para a distribuição para o projeto "Nossa estante", e aproveitar para levar para aqueles que não têm livros didáticos ou não tem.. Então, em 2007 a gente começou a ajudar a montar os conselhos: o Conselho do Tucuruvi e o Conselho do ______ [01:36:10]. Para isso, foi chamada para a reunião a Silmara e a gente começou a discutir e montar… E isso foi muito rico também a Rede social do Jaçanã. A gente fez uma exposição de materiais, falamos muito da cooperativa, ajudamos a discutir vários processos - inclusive essa questão da cooperativa. Porque na época, a Dilma era a ministra da cidade e mandou para a cidade de São Paulo dez milhões, sei lá, muito grande essa quantia, eu nunca… Eu sei que esse dinheiro ficou, ficou, ficou… O Serra não usou, ninguém usou. Quando o Haddad entrou, ele tentou recuperar esse dinheiro, mas não dava mais para construir as cooperativas. Com esse dinheiro dava para construir dez cooperativas, mas esse dinheiro não foi… Por conta disso, nós fomos proibidos de entrar até em _______ [01:37:00], porque a gente quero saber onde que estava esse dinheiro e íamos lá cobrar. Enfim, nós fomos proibidos, não abriam mais a porta. A gente chegava lá e identificavam: a gente não podia entrar. Porque… O governo… A gente sabe o que está passando aí.
P/2 – Você falou que vocês estão retomando conselhos…
R – Não, em 2007, começou na região… A Silmara trabalhava na secretaria do verde, do meio ambiente - e deve trabalhar até hoje nessa questão ambiental -, e veio para ajudar a montar esse conselho. Ela nos procurou e nós fizemos as quintas ambientais até um ano aqui na garagem de casa, porque quando entrou o Kassab, ele não aceitou mais as reuniões na subprefeitura. Nós fizemos um ano aqui, e depois, fomos de novo para lá. Nós começamos a montar os conselhos e na época, o Eduardo Jorge era o secretário. Além de ser o Conselho Jaçanã Tremembé, eu como representante do "Amigos do Tremembé", fui como representante da região - o que seria um conselho não local, mas regional do meio ambiente.
P/2 – Quantos anos…
R – Foram dois anos de muito aprendizado, porque uma vez por mês tinha a reunião com o secretário e todos os conselheiros de São Paulo todo - de todas as regiões. Isso era muito bom. Eu fiz esses contatos, amizade com muita gente, que agora eu não me lembro direito o nome, mas eu sei que muita gente mexe na Zona Norte e em todas as regiões. Então, montamos isso. Não sei como estão os conselhos hoje, porque eu estou um pouco cansada desse negócio de Poder público, então, eu estou acreditando mais numa ação local do que estar negociando. Porque eu não ganhei, assim… Nenhum avanço em todas as ações que fizemos até hoje… Eu nunca ganhei nenhum avanço vindo do poder público, pelo contrário: só ataque. Então, Vou perder o meu tempo para quê?
P/2 – Mas os conselhos… Só isso para fechar essa parte. Os conselhos você acha que tiveram alguma, nesse caso, utilidade?
R – Assim, eu não vi muita coisa acontecer. A gente era até debochado pelo subprefeito, eles debochavam a gente na época do Haddad… Na verdade, do Kassab - eu troco esses nomes, não têm nada a ver. Os subprefeitos até debochavam da gente, "para quê serve o Conselho?", eles diziam.
P/2 – Que tinham sido formados na gestão anterior...
R – Que tinham sido formados na gestão…
P/2 – … Do Eduardo Jorge?
R – Isso. É.
P/2 – Que a Marta era prefeita?
R – Isso, mas quando trocou para… Não deu para…
P/2 – Não tinha força?
R – Não, não tinha força, porque os conselhos eles… Agora eles estão desfazendo tudo, estão tirando até… E não é um conselho deliberativo, não é. Discute muitas coisas mas eu nunca vi nenhuma ação que dissesse assim "vai mudar porque o Conselho pediu". Nunca fui atendido, nunca. Essa questão ambiental, ainda é muito distante da população, a população ainda pensa que essa questão ambiental é uma coisa de gente tonta que fica defendendo alguma coisa. E não é. A gente não está defendendo nada que seja do nosso interesse, é do interesse comum. Hoje mesmo eu li um texto para as crianças na escola falando sobre do lixo à energia, e estava contando para eles a história da Alemanha e do Japão. A Alemanha queima 70% do lixo e o Japão queima 90%, mas são duas nações que são sérias e colocam filtros muito bons, para não entrar no ar de _____ [01:41:16], porque quando queima plástico, a gente se envenena. O Brasil, se nem o nosso dinheiro - e eu uso com eles "seu pai e sua mãe trabalham e estão pagando impostos" - eles respeitam, eles roubam, imagina se vai comprar um filtro caro para colocar para a queima de alguma coisa. O Brasil não precisa de queima, porque ele tem luz solar, tem as ondas do mar, uma costa rica que dá para fazer energia também, ventos que lá no Nordeste tem… A gente sabe que tem aquela experiência lá de luz solar, ventos e tem também a experiências das ondas. Eu estava contando para as crianças que o meu marido tem um tio - o maior novo de todos eles -, que viveu na segunda guerra, fez um monte de coisa lá e aprendeu... Quando eu ia passar lá em Santa Catarina muito antigamente, no sítio dele, ele construiu uma hidrelétrica pequenininha, para fazer a serraria dele. Ele fala muito assim, aqueles alemães assim… "O Brasil não aproveita as ondas do mar para fazer energia". Eu não tinha conhecimento nenhum e pensava "mas alemão é louco mesmo, né? Tá louco, onde já se viu uma coisa dessa?", e eu falava "puts, mas seu tio viaja, né?". E ele também não entende nada disso, meu marido nem um pouquinho preocupado em defender o meio ambiente, não está nem aí, ele não liga. Está preocupado em sobreviver. Agora, o que é o negócio? A gente veio falar sobre isso e eu falei "mas que diabo de homem"... Quantos anos A frente da gente ele estava? E não tem faculdade, era um alemão que sobreviveu da guerra.
P/2 – Vou fazer um… A gente está voltando e está meio confuso, mas só uma pergunta sobre… Você diz que seu marido foi coordenador da Une, representando a Une (União Nacional dos estudantes)...
R – Naquela escola…
P/2 – … e era época da ditadura.
R – Era.
P/2 – Teve alguma situação que você acha importante contar dessa época ou não teve nada assim…
R – Não, porque…
P/2 – … que chamasse atenção? Você sendo assim… Vocês fazem um movimento na escola. Teve alguma situação ou não?
R – Então, eu me lembro de uma situação, só que a gente não… Eu por exemplo, não tinha televisão na minha casa, eu ia assistir televisão na casa da minha tia, mas quando os adultos deixavam. E era só mesmo novela, alguma coisinha assim. Com jornal, essas coisas, a gente nem se preocupava muito. Eu lia revistas mas também era tudo censurado. Lá no Paraná, você vê que engraçado, eu sou de extrema, quer dizer, de extrema não, mas eu sou uma pessoa de esquerda, mas meu pai era totalmente a favor dos militares. Eles achavam que os militares eram os salvadores da pátria. Eu nunca acreditei nisso, mesmo vivendo ali pequenininha, sem entender nada. Então, na época lá, a gente não assistia muita televisão e a gente não sabia muito o que estava acontecendo. Eu me lembro que os professores tinham combinado da gente fazer uma viagem para Curitiba (os coordenadores de sala e os coordenadores da Une). E então, esses professores… A gente fez uma festa para angariar dinheiro e de repente esses professores… pararam. Não tocaram mais no assunto e não teve essa viagem. Não sei se ficaram com medo. Agora, passado todo esse tempo e conhecendo a História, a gente fica imaginando "será que aconteceu alguma coisa ou ficaram sabendo de alguma notícia?", então, nos protegeram.
P/2 – Mas vocês iriam para Curitiba sabe para quê?
R – Devia ser algum ato, alguma coisa assim, contrária, né? Mas os professores não levaram a gente. Nós chegamos até ter o recurso, era só alugar o ônibus e ir, mas eles não levaram a gente e não deram satisfação nenhuma, não falaram nada. Na nossa cabeça, a gente achava que os professores tinham comido o dinheiro, pensamos "puxa, pegaram todo aquele dinheiro para eles e não deram satisfação". Também, agora conhecendo a História, a gente sabe, eles ficaram bem quietos para não… Porque não era um professor só. E eram pessoas da comunidade que tinham posses, tinham tudo, não iriam estar roubando o dinheiro para eles, mas acho que eles não queriam falar da história, então, não incitaram, porque viam como a gente era bem… Ainda bem que não foi, porque se não… Se eu tivesse ido para São Paulo antes, eu acho que o negócio tinha pegado fogo.
P/1 – Você quer finalizar?
P/3 – Então, é para finalizar?
P/2 – Não, pode perguntar outras coisas…
P/3 – Sim, sim…
P/2 – Pode assumir…
R – É!
P/3 – Eu tenho medo de ser repetitivo, mas…
P/2 – Se for a gente fala "não, já foi".
P/3 – Você dona Eva, tinha um lixão aqui - não sei se já comentou sobre isso agora -, e eu queria saber como que foi, porque eu sei que agora parece que teve um aterro… Eu queria entender um pouquinho como foi esse processo, se teve alguma participação…
R – Então, junto com a fundação, nós fizemos um levantamento da Vila, um mapeamento da Vila e fomos conhecendo a História. Inclusive a fundação chegou…
P/2 – Qual fundação?
R – _____ [01:46:58]. E aí, o que a gente fez? Descobrimos algumas fotos, algumas coisas… Isso aqui antigamente, muito antigamente, inclusive essas casas aqui perto da minha casa, são pessoas que trabalharam na pedreira aqui no espaço. Depois, quando acabou essa pedreira, com o tempo desativado, ficou um buraco e aquilo formou um lago. Morreu gente ali, porque ia brincar na água e acabou morrendo. Aquela água não tinha como dar vazão, só quando transbordava. Então, inventaram de fazer o aterro sanitário. Quando eu cheguei aqui, em 1980…
P/2 – Aqui onde? Desculpa.
R – Nessa casa. Nesse local.
P/2 – Mas que bairro?
R – Aqui, Vila Albertina, nessa casa.
P/2 – Sim.
R – Aqui, a gente chama de Vila Albertina, mas na verdade, tinha o Jardim Deise, não sei, a gente nunca usou isso, porque…
P/2 – Certo.
R – Já estava em uma boa caminhada. Depois, só funcionou mais doze anos, em noventa e pouco parou. Então, foi preenchendo todo o espaço, depois eles colocaram, cobriram tudo e continuaram enchendo lá por trás, mas na verdade, o que eles queriam - que do lado de lá, tem outro buraco maior, que até passou o _______ [01:48:30] -, era preencher lá. Mas houve um movimento na Vila falando que não. Inclusive, quando começou o ataque para o meu trabalho na Vila, eles diziam que eu queria trazer o lixão para a Vila Albertina de novo. Tinha parado e queria preencher lá. Porque quando vai perguntar para o Poder público, eles falam "não, não, nós vamos fazer lá", mas ninguém ia deixar, inclusive eu não ia deixar. Ia pegar de novo esse cheiro horrível para a Vila Albertina? Não tinha condições. Aqui é uma área de proteção, então, não dá. E aí, acabou…
P/2 – E esse lixo que está lá…. Eva, ele está lá. Tem alguma coisa que tampa, que deixa sair gás? Como é?
R – Têm as bocas ainda de onde saía fogo noite e dia, mesmo que chovesse, não apagava, mas não tem mais fogo. E tem aquele processo todo de onde a água escorre quando chove, vai e escorre… Ela deveria escorrer para o rio, mas… Quer dizer, já daria para escorrer para o rio, mas escorre numa piscina que tem lá. É um tanque grande, cai lá dentro e vem o caminhão uma ou duas vezes buscar - um caminhão tanque - quando chove bem mais. Eles vêm buscar e…
P/2 – Não chega a poluir?!
R – Olha, antigamente, quando eles soltavam a água daquilo ali, fedia muito. Hoje em dia como não solta, só solta no caminhão, a gente não sente nada. Como o rio já é poluído, já é bem…
P/2 – Qual é o rio?
R – Esse córrego aqui que passa aqui em baixo, e ao lado de lá, tem outro córrego que sai lá praticamente debaixo de… Nasce por trás de onde era a empresa Valeo, e o aterro passa pela parte baixa, sai e eles se encontram ali na rua. Os dois se encontram ali embaixo, na rua. Então, são os córregos. Lá para baixo eles já chamam de "esmaga sapo", antigamente o nome que deram… Porque aqui, na Vila Albertina, a história da Vila que a gente ouve muito… O Nunes conhece bem e chama até de "esmaga sapo". Isso tudo aqui era muito barro, então, quando eles iam andar, diziam que pisavam até em cima de sapo, por isso chama "esmaga sapo". Porque isso aqui na verdade é um… Vale. É vale, né?! Então, o Nunes era um dos caras que nasceram aqui. A Cristina também é muito antiga aqui com a luta dela com posto de saúde, hoje em dia, está um pouco mais parada mas ela sempre lutou muito por esse posto. Esse posto existe por luta dela.
P/2 – Tem a EJA, né?
P/3 – Sim. Atualmente, a senhora está trabalhando com a EJA, né? Formação de…
R – Então, hoje eu sou uma monitora do MOVA - o Movimento da Associação dos Moradores da Zona Norte -, esse daqui é um lucro. Esse espaço - quando eu faço evento e essas coisas - da sala de aula, quando utilizo a minha garagem, eu chamo de "AlfaEco". Alfa, que seria um aprendizado; e eco, eu uso esse eco mais como uma ousadia, dizendo assim "educo em casa". Só que dentro desse processo do MOVA - eu vou até fazer mais uma sala -, eu ensino para eles a questão do óleo. É foi muito legal porque eu expliquei para eles do óleo, quanto que suja tantos litros de óleo em milhões de litros de água… Eles trouxeram óleo para mim, eu vendi esse óleo e com isso, deu para fazer uma apostila para cada um. Então, eu mostrei para eles "estão vendo? Seria um óleo para contaminar um rio e hoje está na sua mão, você está estudando. Essa folha que vocês têm aí, estão vendo? Deu para fazer a cópia e uma apostila para cada um". Essa semana eu fiz um brechó e falei "vocês trabalham em casa de família e ganham muita roupa. Peguem o que precisam dentro de casa e o que não utilizarem, tragam para fazermos o brechó". Fizemos o brechó e dessa ideia, já deu para comprar uma caixa de lápis para cada um - daquelas caixas maiores -, deu para comprar uma cola e deu para comprar borracha - uma borracha maior, porque a prefeitura manda umas coisas muito ruins, quando manda. Então, eles ficaram numa alegria danada. E vai dar para comprar a tinta da impressora, que é R$210,00. Então, eu estou educando de uma forma. Agora, eu tenho o negócio da planta, então, eu gosto demais, sou apaixonada pelo açafrão e pelos efeitos dele no nosso corpo. Idoso tem muita dor nos ossos, sente muita dor, e o açafrão é excelente, muito bom. Eu planto o açafrão. Então, eu mostro para eles como que é para fazer a colheita dele e dou também um pedacinho para eles utilizarem. Eu acabo fazendo com eles o do livro, dando também um kitzinho onde vem cinco livros da ______ [01:53:57] que é uma das que mais ajudam a gente nisso. Passo livros também, esses dias dei dicionários para eles. "Ah, professora, eu não tenho isso daí", e aí, vem um monte de Bíblia também. A Bíblia evangélica eu dou para o evangélico, a Bíblia católica, dou para o católico, e assim eu vou fazendo, porque vai enchendo muito de livro. Então, dentro desse processo do MOVA, acaba tendo a educação integrada, onde as pessoas aprendem. Fora que eu ensino para eles a questão do Tai chi pai lin, a questão de uma alimentação saudável, ensino que a maior fonte de vitamina D é o Sol, "então, não corra do sol"… E fico ensinando para eles, porque idoso tem a autoestima muito… A família não tem muita paciência. Eu tenho uma aluna de 74 anos e tenho aluno de 20, 23, 24 anos… Então, a gente tem que passar essa força, tem que passar para eles que a cura está dentro da gente, todos nós temos esses recursos, então, não precisa ser rico, não precisa ter muito dinheiro, precisa ter amor próprio. Eu gosto muito de ler texto para eles. Eu gosto muito da Louise Hay, que já morreu mas foi uma grande pensadora, e tem uma história muito linda de uma mulher que passou por um câncer, venceu um câncer, estupro e tudo mais… E disso, ela não fez da vida dela um caos, ela fez da vida dela um trabalho. Então, quando eu fiz terapia há muitos anos, a psicóloga me deu para ler, "Você pode curar sua vida", e a partir daí, eu comecei a pesquisar. Eu deparo esses livros de autoestima e passo para eles, procurando fazer… É uma aula assim, que a gente trabalha não somente a questão de ler e escrever. O Ítalo também tem algumas formações - esse menino que faz comigo -, e ele aprendeu a fazer administração. É ele falou "uma hora eu vou fazer uma aulinha só disso". E como ele é novo, tem 17 anos, ele gosta muito de brincar, de falar… Elas gostam de… nós gostamos de olhar para a juventude. Eu pelo menos sou assim, olha para um jovem e "meu Deus, que coisa mais linda, eu fui assim". Só que hoje eles têm tanto recurso na mão e fazem tanta coisa linda, que a gente fica babando, porque a gente já fazia sem recurso, imagina… No interior, mesmo não tendo nada, a gente fazia alguma coisa, tirava leite da pedra. Então, eu estou mostrando para eles que em tudo, eles podem. Muitos chegam para mim e falam "às vezes eu não estou legal, venho para a aula e fico bem". A gente ri muito, brinca bastante e fala… Eu falo para eles "se você não quer aprender, se não consegue, então, pelo menos, vem rir", "então, tá bom, vamos rir". Essa aula está sempre cheia, são 26… 30 matriculados… Acho que 29 matriculados e 26 frequentes.
P/2 – E não faltam?!
R – Não, e são trabalho igual às crianças, é a mesma coisa. Falam mais do que não sei o quê, meu Deus, e ainda com uma professora que fala "pouco" e o Ítalo que fala mais ainda, olha, é uma festa aqui, só vendo.
P/2 – Mas eles não faltam?
R – Não, não, eles vêm sempre. O mínimo que vem é 18. Eu estava falando para eles "vou fazer uma sala de dia, quem é que vai querer estudar de dia?", falei "não, mas alguém tem que passar para de dia". "Não, não, eu vou ficar de noite mesmo, porque a noite tem o Ítalo, de dia não vai ter, não é?". E ele é festeiro, faz uma bagunça danada com elas. Elas chegam assim e ele fala "Cruz credo, que coisa feia, meu Deus, já se olhou no espelho hoje?" e elas começam a rir, vai tudo na brincadeira. Assim a gente vai levando, ri, se diverte, aprende… O adulto tem uma dificuldade muito grande de gravar. Tem uma aluna aqui que começou desde o primeiro projeto que eu montei de alfabetização, foi bem no comecinho mesmo, a gente estava lá em cima ainda, foi antes de 2006. Ela está começando a ler agora e é o quinto ou sexto ano que ela está na alfabetização. Eu falei "por que vocês têm pressa se a Maria não tem pressa? Então, vamos lá, vamos fazer", chega uma hora que você vai repetir tanto para a sua mente que ela vai gravar. E agora, ela está lendo, soletrando as coisas… Ela estudou lá em cima na fundação, estudou na igreja dois anos, estudou ali e estudou na João Rios e agora que ela está soletrado. No começo, ela ficava "eu não aprendo, não aprendo, não aprendo" e agora eu falo "está vendo? Se a Maria tivesse desistido no primeiro ano, já era, não teria chegado a lugar nenhum. Agora, está lendo". A vizinha veio contar correndo para mim "Eva, que bonitinho. O pedreiro veio aí é você acredita que a Maria leu e marcou o telefone dele?", ela até chegou na sala contando. Eu tenho uma que se chama Claudete, que não consegue escrever direito porque a mãozinha dela tem artrite e artrose para todo lado, mas ela assiste a aula, escreve só um pouquinho, leva a atividade para a casa dela e volta no outro dia com toda a atividade pronta e assim, ela tem o dia inteiro para fazer. Mas ela vai ao médico e consegue ler, vai à feira e consegue ler o papelzinho. Então, está aprendendo, só não está conseguindo escrever totalmente, mas vai para casa e escreve também. Essas experiências são muito ricas. Já era para eu ter começado essa sala de dia mas eu estou com muita dó de deixar o Maria Paula, que eu fiz uma horta lá e agora eu tenho que fazer uma horta no Doutor Sócrates também. Tem ali aquelas coisas, telha ali, está vendo? Vou fazer lá, e assim eu inventar mais uma horta lá. Amanhã, vou estar falando com as meninas para gente ver como vai fazer. Nós vamos fazer a do livro também com as crianças da escola, mas nós vamos fazer no dia do aniversário da Fundação "A troca", que são 20 anos e parece que foi ontem.
P/2 – Doutor Sócrates é uma escola?
R – Onde era a fundação, onde é a fundação Gol de letra, não saiu, né? Fazem o trabalho lá ainda, então…
P/2 – Há quanto tempo você trabalha com o MOVA, Eva?
R – Com o MOVA, é o segundo ano. Eu fiz um ano de graça, um ano inteirinho de graça. Depois, chegou em setembro e eu consegui o convênio com essa associação que conseguiu o núcleo aqui. Depois, foi… Setembro, o ano passado inteirinho e esse agora que estou fazendo. Então…
P/2 – Muito bom.
R – Eu fiz um ano com eles e falei "vamos fazendo". Eu fazia terça, quarta e quinta; e quando consegui o convênio, foi segunda, terça, quarta e quinta e sexta-feira, tem reunião pedagógica. Nós temos formação pela prefeitura também. Na última sexta-feira do mês, a prefeitura dá formação, lá no Otávio Pereira, lá no Jaçanã.
P/2 – Tem mais alguma coisa das ações?
P/3 – Não, acho que foram todas…
P/2 – Você quer perguntar alguma coisa das ações?
P/1 – Acho que a relação dela com os filhos, como foi ser mãe para ela. Eva, você tem três filhos…
R – Três filhos e quatro netos.
P/1 – Como foi ser mãe para você?
R – Olha, maravilhoso, como todo… Ser mãe de três filhos - é um menino no meio das duas-, foi muito bom. Eu não vim para São Paulo para casar, eu vim para estudar e trabalhar e acabei casando e sendo mãe. Meus três filhos não têm muita distância um do outro e eu tive que me dedicar 16 anos a cuidar desses filhos primeiro, mas nesse tempo que filho ia para escola, eu ia fazer curso. Fiz muitos cursos: estética, depilação, limpeza de pele, maquiagem, artesanato, comida… Fui fazendo, fazendo, fazendo vários cursos. Cheguei a trabalhar escondido num salão lá em Santana: ia levar as crianças para a escola, trabalhava nesse salão e depois voltava. Meu marido nem ficou sabendo, porque ele não aceitava. Eu era uma mãe coruja, que vivia fazendo tudo para os filhos. Quando a Camila chegou nós dezesseis anos, eu acordei e falei "não, eu quero estudar, eu vim para São Paulo para estudar e trabalhar, eu quero fazer isso". Fui, me matriculei no magistério e comecei. Então, esses filhos para mim, são a maior riqueza que eu tenho. Às vezes, eles têm um certo ciúme dessa minha caminhada na comunidade, eles têm orgulho mas tem ciúmes. Primeiro, tinha medo, porque existia muito ameaça, que eu nunca acreditei e nunca dei bola. Eu só acreditei bastante nessas ameaças, quando eu fui fazer um encontro na FGV. O professor Dolabella lá do Rio de Janeiro veio fazer uma palestra com os catadores e conversar com a gente. E eles têm muita vergonha desse nome "catadores". Eu nunca tive vergonha de dizer "eu cato mesmo", e eu cato mesmo, se chegar ali na esquina e tiver, eu cato, não estou nem aí, não tenho vergonha. Eu contei a história de vida, tudo que eu passei para esse professor Dolabella do Rio de Janeiro e ele falou assim para mim "sai, larga rapidinho, eles vão te matar".
P/2 – Quem seriam eles?
R – O pessoal, os empresários fortes do lixo, políticos, porque você não vai fazer, não vai se curvar, não vai fazer porque sabe a fórmula de como chegar lá. Você só precisa do espaço, e eles não querem assim, eles querem pessoas que se curvam a eles e falem assim "ah, o político está estudando", ajudando onde? Eles querem só pegar o nome da gente para colocar que aquele projeto é dele mas ele não fez nada. A gente só precisava de espaço, então, esse espaço eu nunca ganhei. Os meus filhos tinham muito medo disso, muito medo. E quando esse professor falou, eu levei a sério, disse "não é alguém que está falando qualquer coisa", porque eu sei que o Rio de Janeiro é muito mais adiantado nessa questão da coleta do que a gente, do que São Paulo. O Rio de Janeiro sempre foi na frente. Então, eles tinham muito medo que alguém me matasse, que fizessem alguma coisa, porque eu não tinha medo e enfrentava. Se vinha numa discussão ou alguma coisa, eu "não, não estou fazendo nada errado. O que eu estou fazendo?". E tinha muito interesse político, os políticos visitavam, vinham, "vamos fazer isso, vamos fazer aquilo", então, como eu não dava continuidade e nem conversa para eles, começaram a combater. Esse projeto por si só caminha se tiver o espaço. Só precisa de espaço, porque a riqueza está no lixo. Porque fazendo as contas, dá certinho, bate certinho, só que tem que ter o ponto de equilíbrio, e menos que 100 toneladas, é besteira, nenhum negócio vai chegar a lugar nenhum. O começo de ponto de equilíbrio seriam 100 toneladas, e a Vila Albertina tem potencial para 100 toneladas de recicláveis, só de recicláveis.
P/2 – Precisa do espaço para fazer a separação.
R – Fora que ainda daria para trabalhar a questão da compostagem - que eu também faço -, daria para estar fazendo isso. Eu me lembro que na época, eu conversava com o Sabesp sobre a captação da água da chuva e eles não gostavam, "isso não dá certo". O Sabesp ajudava bastante a gente lá, mas sempre combatendo esse lado e nunca dando… Porque no primeiro momento, no começo de 2000, nós fizemos um seminário aqui na Vila com participação de bastante gente com nome bom. Inclusive Limpurb, nós trouxemos Limpurb para fazer um teatro para as crianças. O pessoal vinha visitar o espaço, eu falava do aterro sanitário, dava palestra… Hoje em dia eu estou um pouco mais… Não gosto de dar palestra na questão ambiental, porque eu não estou tão atualizada com os dados atuais, então, eu evito um pouco porque a gente tem que dar uma reciclada. Então eu recebia, trazia os jovens direto ali, a fundação também vinha e a gente fazia um dia bem gostoso de algumas formações e algumas oficinas. Bem gostoso… Então, eles sempre tiveram um pouquinho de medo, mas minha família… Meu marido nunca gostou, sempre teve muita vergonha.
P/2 – Por que?
R – Porque ele achava assim "minha mulher está abaixando, pegando lixo e colocando….", eu botava dentro do carro mesmo, boto dentro do carro mesmo. Esses dias eu ri tanto do Ítalo. Eu fui numa reunião pedagógica com o Ítalo e vi um pallet. Eu estava doida atrás de um pallet lá na rua, mas de noite não deu para ver se estava novo ou velho. Eu parei a Kombi assim, falei "nossa!", e ele ficou lá dentro sentadinho. Eu desci, olhei em volta e disse "eu estou precisando de um pallet, e esse aqui é a medida", ele falou para mim "ah, eu não acredito que você vai me fazer descer da Kombi para catar um pallet", falei "rapaz, você está com vergonha do que? Vai jogar madeira fora só por conta da ignorância humana?", e ele chegou e falou "gente, olha o que a Eva me fez fazer. Acho que eu vou virar catador também, será possível uma coisa dessa?!". Não, eu vou lá, que agora eu estou tirando as tampinhas das garrafas, porque quero fazer o alfabeto com as tampinhas e a letra colada. Meu marido quando sai comigo, fala "não vai pegar latinha, né? Não, não vai pegar latinha. Se pegar, fica em casa, porque não vai comigo", ele fala bem assim (risos). Eu morro de rir e gosto de fazer para provocar. Às vezes quando vai beber alguma coisa, eu pego a latinha e ele "deixa isso aí, é lixo" e eu digo "lixo para você, para mim isso não é. Isso aqui fica 1000 anos para dissolver e na natureza e o cara vai jogar no lixo? Está louco? Eu paguei com o meu dinheiro - com o seu dinheiro -, paguei, comprei e tenho o direito de levar para onde eu quiser". Agora, hoje ele já apoia bastante essa questão do alimento. Ele está vendo que todas as coisas que eu falava, a questão do ora pro nobis, do açafrão, dessas coisas… Antes, "ah, isso é mato, isso é tudo mato", e agora, ele já… Eu também estou acabando um pouco mais, porque é muita coisa.
P/2 – Ele é da área da saúde?
R – Ele é protético, faz prótese dentária, mas ele não protege o meio ambiente, não. Ele destrói. Pescador de matar peixe mesmo, não está nem aí. Se passar um bicho na frente dele, ele mata também e não está nem aí. Ele não protege nada. Ele fala "não, só que eu não mexo, não faço nada". Ele fala assim "não, você é boba, não está acabando, não. Só acaba se matar muito, mas eu não mato muito". Está bom, não mata. Que absurdo, né?
P/3 – Dona Eva, das tantas preocupações que a senhora tem com o meio ambiente, com a comunidade… Quais são os momentos de lazer da dona Eva?
R – Lazer? O meu lazer é trabalhar. Não existe mais gostosa no mundo do que trabalhar, então, até lá na associação quando tem reunião e tudo, eu falo "gente, tem lazer maior do que você estar no meio dos alunos rindo, brincando, conversando e preparando um café gostoso para eles, um chá ou alguma coisa? E combinando com um para trazer um bolo de fubá, o outro vai trazer um cuscuz e não sei o que… O outro liga e você vai buscar uma roupa para pôr no brechó. O outro dá um móvel e você vai correndo lá buscar", "olha, você está precisando de uma geladeira? Está precisando de um fogão? Vamos lá, alguém me deu". Você pega, põe dentro da Kombi, trás na casa da pessoa e a pessoa… Isso para mim, é lazer. Para mim, isso é lazer. A única coisa que eu gostava muito de fazer na minha juventude, era dançar. Hoje em dia, já não existe mais… Eu quero fazer um sarau aqui para que meu povo pudesse dançar e eu junto com eles, para gente fazer junto. Era o que eu fazia quando solteira, eu dançava, estudava e lia, então… Televisão eu já não gosto mais, que só tem coisa horrível. Na Internet, até isso está dando nos nervos da gente e você acaba maltratando alguns que falam um monte de porcaria. Então, até estou evitando porque se não, a gente até magoa as pessoas e não pode. Eu gosto muito de estar no meio do povo. Um dia o meu marido riu porque eu falei para ele "devia ganhar para conversar e ensinar", porque o que eu mais gosto de fazer, é conversar com as pessoas, "isso não é profissão?", perguntei para o meu marido (risos). Ele falou assim "você não quer mais nada, né mulher?". Ele é muito prático, sempre dá conta de… Ele entra 7 da manhã e quando for 10, 11 horas, ele está trabalhando ainda. Se precisar sábado, domingo ou feriado, ele está lá trabalhando. Então, para ele também não… Só que quando ele larga tudo isso e fala "vou pescar", acabou. Chega lá, nem no celular ele pega. Só pega no celular para pôr no bolso para voltar e entrar no mundo… Ele faz assim. Toda vida ele foi assim: trabalhou, trabalhou muito, mas o dia que ele tira para ele… Eu nunca tirei nem isso, porque sempre tive que ficar em casa cuidando dos filhos e não me acostumei a ter lazer. Na minha vida… Lazer, já era. Lazer é passear mesmo (risos). Passear trabalhando. É isso, não tem lazer. Agora, a minha neta mais velha, essa daí pegou tudinho, é doente por leitura. A questão ambiental também… Ela foi comigo em uns conselhos. Eu cuidava dela para a minha filha e ela ia comigo, eu tenho até algumas fotos dela. Ela ia comigo, participava, e estava sempre ali desenhando e prestando atenção… Eu gosto muito de bicho. Gosto muito de bicho mas não para eu cuidar, para ter em casa cachorro e gato, não. Então, não dá tempo. Até as plantas agora eu estou evitando um pouquinho porque não para cuidar. Uma hora e meia que eu gastava para aguar todas as minhas plantas (risos). Agora, já tenho que diminuir, se não, não posso ir dar aula.
P/2 – Quantos anos tem a neta?
R – Onze anos.
P/2 – E tem mais netinhos?
R – Tenho, tenho até a Giovana, que é a pequenininha. Essa daqui também gosta muito, ela gosta muito de bicho. A mãe dela tem pet, então, ela gosta muito de bicho. Ela tem um cachorrinho, e pergunta assim "você gosta de bicho?" e eu para provocar digo "não, não gosto de bicho. Bicho faz sujeira" e ela fala assim "ai, eu gosto" (risos). O avô dela não gosta, não, principalmente se levar para casa. Da cooperativa, sobrou uma pitbull e ela estava velha. Como eu sabia que ninguém queria essa pitbull e eu não queria dar porque pensei "vão fazer alguma coisa", eu fiquei com ela até ela começar a ter convulsão, ficar velha demais e teve que sacrificar mesmo. Mas para ter em casa um cachorro mesmo, preso assim… Ainda mais grande, porque pitbull é muito grande, mas ela era muito brava e com a gente, mudou completamente. Essa menininha fazia dela gato e sapato, fazia ela ir, deitar, levantar e ela ia… O povo falava "tem perigo", minha outra filha dizia "não vou na sua casa, não. Só se você tirar essa cachorra", e a Giovana mandando na cachorra, "vai lá, vem cá", e a cachorra fazia tudo que ela mandava (risos). A Karen com medo de trazer dois gigantes, e ela era pequenininha assim (risos). Agora, a mais velha puxou bastante para a questão… Pior que ela era queria mexer lá mas tinha nojo. Ela olhava e "não, vó, não vou mexer nisso, não". E quando eu vinha dar aula… Nas férias ela veio e se deliciou aqui, ajudando os alunos a fazer a lição, mas eu falei "mas não vai ser professora, né?". Não sei, não, porque a mãe dela queria ser professora e hoje virou uma dentista que não exerça a profissão, vai fazer dente com o pai. Gosta mais de fazer dente do que de mexer na boca (risos). Assim vai.
P/1 – Bom, para você, como foi contar a história da sua vida?
R – Olha, é um filme que passou de novo na minha vida. Eu relembrei muitas coisas, falei das coisas com prazer e com amor. Muitas vezes quando eu relembrava algumas coisas, era com dor e sofrimento, e essa, não teve dor e sofrimento, só teve lembranças boas, coisas boas… E assim, fechando uma etapa da minha vida… Fechando não, tendo um outro direcionamento dessa questão ambiental na minha vida - uma coisa mais da formação do indivíduo em si e não de fundos mas educacional -, eu acho que é como se… Eu me senti aliviada, me senti colocando para fora tudo que eu queria que as pessoas fizessem. Mesmo que doa, vamos fazer, porque vale a pena. Vale a pena, porque eu já encontrei por aí em muitas reuniões e em muitos lugares, pessoas que diziam assim "você fez isso e aquilo numa época comigo. Eu me lembro disso", muita gente que começou até ONG vindo conversar comigo, falando e tal. A gente não sabe quantas pessoas a gente inspira, que vai e fala "não, eu vou fazer, porque dá certo", ou "eu não vou fazer mais, porque não deu certo, aquilo é precioso". Então, é muito bom isso, porque a gente vê que serviu de inspiração e que a gente se inspirou também em muitas pessoas, que a gente não só ensinou, mas também aprendeu. Chega num ciclo que a gente vê "não sou mais nenhuma criança, agora eu estou um pouco mais idosa. 62 anos, não são 62 dias". De 40 para 60, são 20 anos dedicados para essa questão bem forte, e a gente fica… Não precisa buscar significado para a vida, ela já tem um significado bom, uma caminhada boa, pessoas boas que passaram. E mesmo as ruins, ensinaram muitas coisas para gente, de como a gente não deve ser, a gente aprende como não podemos ser de jeito nenhum. E as boas a gente fala "poxa, é com aquele lá que eu gostaria de estar". Eu conheci muitas pessoas maravilhosas, e falar disso tudo, é muito bom, é muito, muito, muito bom. Eu me lembro perfeitamente do primeiro dia que o Raí subiu lá e veio conversar comigo e falou assim para mim "Eva, agora não dá porque estou começando, mas futuramente, nós vamos te dar um apoio grande", e nunca nos abandonou: sempre está junto, a gente está sempre perto fazendo alguma coisa junto. É muito gostoso isso, uma parceria boa, como temos hoje nas bibliotecas, nas escolas… Chega da escola e pode estar fazendo e falando, o Maria Paula que é a escola que dou aula e o Doutor Sócrates também é uma escola que está sempre aberta para gente e fazemos uma troca legal. Ali, é mais por influência e por estar perto da fundação, então, a gente tem todo esse… Antigamente, era até um pouco mais ligado com o Promove, mas depois quando trocou o… O Geraldo é muito legal, mas no tempo da outra menina, a gente fazia umas trocas boas. Mas está bom, também não tem perna para andar tanto (risos).
P/2 – Você vai para as escolas com educação ambiental?
R – Mais a horta. Eu tentei fazer no Isaac e não tem espaço, porque aquelas árvores são grandes demais e não pode e nem vai cortar para fazer horta. É melhor deixar a árvore, porque oxigênio é mais importante. E no Maria Paula tem um espaço legal, eu fiz a horta lá. E agora, no Doutor Sócrates, acho que vai ter que usar aquele tipo de telha, porque lá também tem muita sombra. Vou ter que ver se vai dar para fazer com essas telhas. Vamos ver o que vai dar para fazer lá. Lá é difícil. O lugar que deixaram para horta, não bate sol nenhum, e quatro horas de sol por dia é o principal para uma horta, se não, não sobrevive, não tem jeito. Enche de bicho…
P/2 – Eva, a última coisa: tem alguma coisa que você queria contar na sua história e registrar, que a gente não te perguntou?
R – Olha, com o que eu gostaria de fechar toda essa nossa conversa, é que quando eu me formei em 1997 (96/97) em pedagogia, saí para trabalhar, entrei numa escola e conheci pessoas maravilhosas, eu pensei que a escola era um espaço muito pequeno para que eu pudesse estar desenvolvendo alguma coisa. Quando veio essa ideia mais tarde em 2000, essa coisa da penitenciária feminina, a reciclagem, isso tudo… Eu disse "puxa, dá para fazer uma coisa para atingir muito mais e muito mais pessoas se beneficiarem disso", mas num mundo muito grande você também tem um número muito grande de combatentes com o seu trabalho. Então, eu comecei a sonhar com a Eco-Vila e lutei muitos anos nisso, 15 anos mais ou menos. 15 anos com essa ideia do cooperativismo e encantamento, vindo de uma família grande em que todos se ajudavam - o meu avô criou a gente. Então, sonhando com isso e ficou muito forte em mim, porque eu fui muito próxima do meu avô. Eco-Vila. Quando eu vi que tudo isso não era possível aconselhada por pessoas que já mexem com essas coisas, eu retomei ao meu ponto inicial, que seria a educação. Voltei para o Estado e voltei a mudar a sala de aula para uma alfabetização de adultos - porque antes eu não podia estar como educadora, sempre colocava outra pessoa e às vezes não funcionava, então, "vou eu ser a educadora", virei a educadora. Esse espaço tão pequeno que hoje está com 26 frequentes… Então, cada um desses 26, devem ter no mínimo três, quatro, cinco pessoas ou mais que são atingidas por esse processo. Eu percebi que talvez com um grupo menor de pessoas as coisas funcionem melhor do que você querer trabalhar com pessoas… Então, essas 26 sementinhas talvez podem ter uma transformação boa, cada um dentro da sua casa. Nesse tempo todo da minha vida, eu aprendi que você não precisa fazer grandes coisas, você pode fazer coisas pequenas e talvez terá um resultado melhor do que fazer grandes coisas. A Eco-Vila se transformou num Alfa-Eco. Uma cooperativa não aconteceu efetivamente assim, de funcionar - está funcionando em outras mãos de vários grupos -, mas o espaço Alfa-Eco está transformando outras pessoas com uma educação um pouco mais elaborada, com a questão ambiental, com a questão alimentar, com a questão de economia e a questão de ler também além dos livros, de ler o mundo. Então, acho que isso é o que eu não percebi na época. São percepções que eu tive na minha vida bem diferentes e isso é muito bom porque a gente não perde nunca a esperança de estar fazendo alguma coisa, que mesmo assim, ainda é muita coisa, bastante coisa mesmo.
P/2 – Parabéns (palmas).
P/3 – Nossa, quantas histórias!
R – É, obrigada.
P/2 – Parabéns pela tua história, foi um privilégio te ouvir.
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