Entrevista de José Paz de Lira Filho, Lirinha.
Entrevistado por Jonas Samaúma e Ane Alves.
São Paulo, 28 de maio de 2024.
Projeto Conte Sua História.
Entrevista PCSH HV 1400.
– E Vidas Musicais.
– E Vidas Musicais.
P1:
Lirinha, para a gente começar, primeiro agradecer imensamente a sua disponibilidade de vir aqui com toda a sua humildade e a falar para você abrir com um verso, uma poesia que seja importante na sua caminhada.
R:
Algumas poesias que são importantes em momentos diferentes da minha vida.
Mas acho que eu posso dizer um verso de Manoel Filó, que é uma pessoa que carregava toda a tradição, da cantoria, do repente, da região que eu cresci, que eu nasci, e que se tornou um amigo também.
Ele era um poeta diferente. A abordagem dele, a filosofia dele era diferente.
Ele disse:
Assim como existe alguém que quando perde, alguém chora
também tem alguém que age quando um amor vai embora
na mesma simplicidade que um pingo d'água se tora.
Manoel Filó.
Tava até pensando, de um tempo para cá, talvez influenciado por algumas leituras de Viveiros de Castro, que alguns poetas, que alguns repentistas que eu cresci, eles não falam do animal, eles não tão descrevendo o animal. Eles viram esses animais, esses pássaros. E eu venho cada vez mais observando isso na poesia que eu sei, decorada de Manoel Filó.
Para mim foi uma descoberta isso. Que há muito tempo eu, eh, algo não se fecha nas teorias de origem dessa poesia. Tem uma coisa muito determinada pelos primeiros pesquisadores, de que ela é uma origem trovadoresca medieval, de origem na Península Ibérica e que chegou aqui, nessa região, por essa influência e que aqui se desenvolveu dessa forma impressionante que a gente sabe.
Mas eu sempre tive muitas dúvidas disso, porque, por que que essa região ali do sertão, do semiárido nordestino, tinha, a partir dessa herança, das Cantigas de amigo são as teorias escritas, oficiais, dos romances de cavalaria medieval, tinha gerado tanta mudança rítmica e tantos gêneros, quase uma centena de estruturas de rima e métrica diferentes, né?
E aí começo a perceber que existe uma história não escrita sobre isso e que as novas gerações começam a escrever. São as novas inquietações e os novos pensadores que começam a entender que talvez essa poesia tenha uma influência das comunidades indígenas, uma filosofia vinda diretamente desse pensamento do mundo, dessa visão diferente… Da Península Ibérica, dessa herança, e também das comunidades negras dessa região. E aí eu começo a conseguir fazer esse encadeamento de pensamento, e um deles é Manoel Filó, por exemplo, que ele vira os animais. O Manoel Filó não cantava profissionalmente, só que ele era amado pelos poetas e pelos rapentistas, pelo poder de construção metafórica, o poder de poesia. E aí tem uma história, uma cantoria, os cantadores chamando, chamando ele para cantar, só que ele não tocava bem viola, ele cantava lento, muito lento, não era aquele rápido.
E aí era na casa de João dos Passos. Na insistência, ele vai pegar a viola e começa e diz o primeiro verso:
João dos Passos me pediu
para que eu cantasse um pouquinho
mas eu me sinto cansado do tanto de um passarinho
que passou a noite toda tangendo cobra do ninho.
E aquilo me impressionou, por que como ele construiu esse passarinho, que talvez não exista em nenhum livro que um passarinho pode passar uma noite preocupado tangendo cobra, que estão ameaçando os filhotinhos ali?
Tem outro verso dele que diz, quando falta, na mesma rima, por coincidência, mas foram noites diferentes:
Quando falta companheira na vida de um passarinho
ele caça um pau bem alto para construir um ninho
devido ser menos triste para quem mora sozinho.
Que é uma outra observação que talvez não esteja documentada, que um passarinho sem companheira mora no alto do... No alto do… Tanto que eu fiz uma música uma vez chamada “Ah, Se Não Fosse o Amor”, que é do meu primeiro disco solo, que não é na estrutura de… dos repentistas, dessa poesia que eu me criei.
Eu terminei fazendo um trajeto na canção até de não ir nessa estrutura, que é a minha formação.
Eu lembro, por exemplo, que num paralelo das minhas experiências, o meu amigo Siba, ele faz o trajeto contrário. Ele começa a fazer poesias e canções na estrutura mais rígida dessa herança da cantoria. E eu faço essa observação para ele, que ele está deixando esse legado, na música brasileira, mas não vejo muitos críticos de música observarem isso. Mas Siba está construindo em decassílabos, décimas, sestilhas, setilhas, mourão, mourão voltado, mourão respondido, gemedeira, vários gêneros ali, bom…Mas a música que eu fiz, “Ah, Se Não Fosse o Amor”, tem um trecho que diz “Mudei para a laje de um prédio vermelho/No alto é sempre bem melhor, pra quem vive só.”
E é, na verdade, uma visita a essa imagem de Manoel Filó. E eu construo muitas coisas trazendo essas ligações com essas poesias que eu cresci escutando, mas às vezes elas estão assim, disfarçadas.
P1:
– Nossa, a gente vai aprofundar muito nisso! Aproveitar que você tocou no ponto, queria perguntar: na sua infância, se você tem alguma memória, alguma história que você lembra da sua ligação com os pássaros.
R:
– Com os pássaros. A minha ligação é forte. Pra mim, é o que entendo sobre música, por exemplo, e sobre o impacto de linguagem universal. Pra mim, é muito importante. Quando digo universal, digo essa coisa sem fronteiras políticas socioculturais. Para mim, se eu pudesse definir o que é poesia, seria o canto de um pássaro. Se fosse necessário definir rapidamente, né? Porque não necessariamente é a reunião dos símbolos fonéticos, né? Mas é algo que, de qualquer forma, comunica e comunica num lugar que, às vezes, não podemos definir como uma língua, não podemos entender como uma língua de um lugar.
E também acompanho aqui desde… Tem muito isso de que no Brasil não tem as estações definidas, mas eu percebo a mudança dos pássaros, por exemplo, nessas estações. Quando reaparece aquele canto na janela de casa, quando… Quando… É que esses meses mudam e volta uma certa música, uma certa coisa ligada aos passarinhos.
E uma vez, eu conheci, tive um contato com o diretor de teatro Gabriel Vilela. E a gente em uma convivência, ele disse que eu precisava ler uns livros de filosofia sufi, poesia persa. E aí chegou em casa, a gente teve essa conversa e um dia chegou em casa, na minha casa, dois livros que ele mandou. E um deles era A Linguagem dos Pássaros, de Rumi. Eu acho que é, não é… Datar.
P1:
– Conferência dos Pássaros?
R:
Não, “A Linguagem dos Pássaros". A Linguagem dos Pássaros! Que até Micheliny, minha comadre Micheliny Verunschk fez um livro agora, “O Movimento dos Pássaros”.
E aí eu até mandei esse livro para ela, fotografei e mandei.
P1:
– Lirinha, Você conheceu os seus avós? Eu queria que você contasse um pouco o que você sabe da história dos seus avós, se você teve alguma convivência que te marcou.
R:
O meu nome é do meu bisavô, o nome José Paes de Lira, o avô do meu pai. Eu herdei esse nome, é o nome do meu pai também, então eu terminei tendo que carregar, por causa do nome, toda uma história relacionada a esse bisavô. E não é o primeiro desse José Paes de Lira, tem outros antes dele também.
Meus avós paternos são da região de Alagoinha, Pesqueira, Cimbres, Venturosa, tudo Pernambuco. A região da Serra Ororubá, daquele ambiente ali. Sei pouquíssima a história deles, como chegaram. Eu já era muito curioso, perguntava, mas é difícil conseguir construir. Primeiro que eles falavam pouco sobre isso, sabiam pouco também, mas uns primos mais novos hoje tão tentando fazer essas descobertas de como é que meus avós chegaram ali. Mas tenho uma relação com Cimbres, a vila de Cimbres, parece ali no cartório…Não sei exatamente, não sei exatamente. Eu vi agora a última coisa mais, sei lá qual é a palavra, diferente, estranha que eu vivi agora, a dúvida, mas é que tem uns símbolos na cumeeira da casa do meu avô, que é a madeira da casa que meu pai nasceu, a madeira principal da cumeeira tá escrita em 1904. É uma casa antiga e tem uns símbolos, que eu acho que não foi, não é possível que tenha sido sem querer, uns detalhes lá, e que me chegou até a País Basco, esses símbolos.
Mas é tão fora, tão longe do que a gente sabe até hoje dos meus avós, que ficou realmente uma viagem fora da curva. Mas eu quero pesquisar mais isso, porque tem umas coisas realmente bem próximas. Mas é isso, eu acho que toda essa região ali, a gente está falando de uma região que ela aparece num estudo como cenário de uma coisa que se chama a guerra dos bárbaros, que é o processo de ocupação, o processo de entrada ali quando as pessoas ganham as sesmarias ali do governo português e que começam a ocupar e a invadir esse território, através dos bandeirantes.
E é um dos capítulos mais sangrentos da história brasileira, da formação da sociedade brasileira. Porque essas comunidades indígenas, como os Xucurus e outras que existiam ali, não participam do processo de catequização, do projeto de catequização. Eles são exterminados. A tentativa era essa. E aí temos umas figuras que aparecem, uns personagens que aparecem, que são assim... Que reaparecem nessa região através de documentos de quem na época fez esses registros. Por exemplo, o Domingo Jorge Velho participa de toda essa entrada nessa região no mesmo período das campanhas de destruição de de Palmares, do Quilombo de Palmares. Na verdade, estamos muito próximos às estradas que separaram mais essas regiões, mas geograficamente é quase o mesmo lugar. E aí aparece essa figura, por exemplo, que é um personagem importante, emblemático por tudo que ele representava. E ele chega arrasando ali, junto com uma tropa de bandeirantes, para limpar o território para que essas famílias ocupassem. E aí começa toda a história do ciclo do couro, das criações de gado, que é um capítulo bastante conhecido dessa região, né?
E aí essa é a família do meu pai. Tem uma coisa interessante nesse assunto, que eles eram chamados de Tapuias, esses índios, esses indígenas. Esse povo que morava lá já. E essa definição “Tapuia” é uma generalização das pessoas que não falavam Tupi-Guarani. E, como eu tinha te dito, não entraram no projeto de catequização dos jesuítas.
E aí é engraçado, engraçado não, interessante que essa generalização até hoje continua com outras palavras, como sertanejos... E aí termina unindo uma série de coisas diferentes numa mesma definição. E esses Tapuias eram considerados impossíveis de diálogo. Eles eram arredios.
Isso nos documentos, principalmente da Igreja Católica, que vive todo o patrocínio dessas entradas ali também. E aí eles eram bárbaros, por isso a Guerra dos Bárbaros. É uma definição acadêmica até. Uma professora da Federal escreve um livro sobre isso, juntando documentos dessa entrada super violenta.
A minha região, a que eu nasci e me criei, e a que meus pais nasceram, ela foi construída através do aldeamento, do etnocídio e da escravização. É como nasce toda aquela ordem de cidades.
P1:
– Eu ia perguntar o que você lembra da sua cidade, assim dessas primeiras memórias de infância mesmo. Como era Arcoverde?
R:
Sim, Arcoverde é a cidade mais bonita que eu conheço do mundo. Tem o pôr do sol mais lindo desse mundo. Se você esticar muito a mão assim, você pega nas ripas do telhado do céu. As nuvens são aqui, bem baixinhas. A coisa mais linda que esse mundo já fez. É a minha cidade. E ela se chamava Rio Branco. E ela é muito importante para a região, porque ela é um grande – a gente chama de entroncamento – ela é um grande trevo que leva para várias cidades. Então, ela se tornou importante como isso, como passagem daqueles comércios antigos, dos almocreves, dos tropeiros. E aí ela vira isso, dormitório e tal. E ela reaparece em vários momentos históricos assim, com essa importância de centralidade, de ser central ali. Por exemplo, Lampião, quando… Ganha uma batalha, uma batalha muito emblemática contra os volantes do governo e tal, que ele se empodera muito com essa vitória, aí ele escreve uma carta para o governador de Pernambuco, em que ele divide e se auto-intitula governador do sertão, e ele divide em Arcoverde esse lugar de domínio, pela importância geográfica ali de Arcoverde. Ele diz assim na carta “fico governando essa zona de cá, por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco (que é a minha cidade). E o senhor, por sua vez, governador, governa do Rio Branco até a pancada do mar”.
Então, o Rio Branco era cidade. Tinha uma estação de trem e isso era bem, assim, um trânsito de pessoas e tal, materiais ali que chegavam. E aí por que ela vira Arcoverde? Por causa de um personagem muito importante, também bastante desconhecido. Embora é o nome de uma rua importante aqui em São Paulo, é o nome de uma praça no Rio de Janeiro, mas poucas pessoas sabem da importância histórica desse Cardeal Arcoverde.. Que é o primeiro cardeal da América Latina, da Igreja Católica.
Ele é da minha cidade. E é muito importante a história desse personagem. Vários pontos. A Igreja Católica muito forte, mundialmente, e ainda não tinha tido um cardeal. O cardeal na hierarquia da Igreja Católica pode ser papa. E ele vota em papas e tal. Na América Latina, que é uma das maiores presenças da Igreja Católica no mundo. Ele aí ele sai da minha cidade com nove anos, vai para Roma, mandado pelos pais fazendeiros. Provavelmente, dessa vinda, dessa ocupação que falamos, dessa invasão através das terras doadas, as sesmarias gigantescas, as primeiras estruturas latifundiárias daquela região, que é uma característica da região até hoje, como também se torna característica a luta contra isso, que são as ligas camponesas, depois aparecem os grandes líderes da luta pela reforma agrária, também atravessam essa região.
E aí esse Cardeal Arcoverde, ele, de Roma, que vai com nove anos e se forma em Roma e tal, ele está presente de forma atuante mesmo, na Guerra de Canudos, bem no começo da atividade dele como cardeal, ele aparece como uma pessoa que instigava, questionava aquele fanatismo em Canudos. Então, participa de uma… Daquele pensamento sobre que Canudos tinha que ser punido de alguma forma, desaparecer. E ele também está presente nas questões ligadas a Padre Cícero, naquele processo de excomungar Padre Cícero, processo de proibição de Padre Cícero rezar a missa, a partir daquele milagre que não foi exatamente aceito pela cúpula da Igreja Católica. Então é um personagem incrivelmente importante, para entender um pouco ali, e aí a cidade de Arcoverde deixa de ser Rio Branco e vira Arcoverde. E é isso, no 11 de setembro, que é o feriado da minha cidade, e tem uma escola pública lá, chamada Onze de Setembro. E e os meus amigos de Recife, quando iam no São João, ficavam... Meu Deus, é em homenagem a… É ligado ao atentado dos Estados Unidos? É o aniversário da minha cidade, onze de setembro.
P1:
– Nossa, impressionante esse panorama.
R:
A nossa história, Jonas, a história dessa região não foi escrita. A gente pode entender mais e construir um fio cronológico de situações, de acontecimentos, muito através da oralidade, da poesia, dos poetas, dos compositores das canções. Você consegue, através dessas informações, entender ou acessar um pouco a história daquele lugar.
Tava te falando sobre os tapuias? Eu li isso num livro sobre essa generalização, sobre a definição de Tapuias, que não é nenhum povo, nenhuma comunidade, mas sim esse grupo, muito diverso, inclusive. Eu relembrei uma poesia que eu sabia criança, de Manoel Xudu, porque sou muito fã dele. Para mim, um dos maiores, vou falar um pouco sobre ele.
Mas Manoel Xudu disse... Era um mote, tinha uma tradição na cantoria que era dar uns motes para o cantador se perder, tipo trava-língua. Era um desafio para o cantador.
Aí deram para Xudu, turu tu tu tu tu tu, que também é um gênero que meio que desapareceu, que era um mote de uma linha só. Hoje existe mais o mote em duas linhas, que aí o poeta faz oito para terminar essa décima em dez linhas. E aí essa décima pode ser em setessilábico, que a gente chama, ou decassílabo. Então, depende do tamanho dessa frase.
E aí era turu tu tu tu tu tu
Eu achava muito engraçado esse verso.
Olha, eu te digo, ele aparece de várias formas diferentes, que a oralidade tem isso, tem esse problema. Ele muda muito também, muda o autor, reaparece ali como sendo de outra pessoa. Mas o que eu sei é assim, com certeza tem uns erros aí, tá? É turu tu tu tu tu tu.
Aí Xudu disse:
“eu fui para uma farinhada
lá na tribo dos Tapuias”
Aí, quando eu li o livro, eu sei o verso que fala em Tapuia.
E o Xudu não está mais aqui para a gente perguntar que tribo era essa.
E o que é isso, tribo dos Tapuias?
Mas ele diz…
“Eu fui pra uma farinhada
Lá na tribo dos tapuias
Deu mais de sessenta cuias
Eita, que festa animada
Tinha carne tripa assada
Farinha, milho, beiju
E a roda do caetitu
Era grande, era pesada
E a cevadeira danada
turu tu tu tu tu tu”
Ainda fez o som, não é? Que lindo, fez o som do turu. Escolheu esse caminho, o caminho do som, para falar de turu tu tu tu tu tu. Só Xudu mesmo. Posso falar de Xudu?
P1:
– Pode, fique à vontade.
R:
Bagunçar toda a ordem, né? Tudo bem, depois vocês veem um jeito de...
Xudu é um poeta que não é do sertão. Ele é de uma região que não tem uma tradição de cantoria de viola, de repente. A tradição lá é maracatu, que é essa região que meu amigo Siba estuda mais, tal. É um brejo.
Ainda não é Zona da Mata, exatamente. Ele é de Pilar, na Paraíba. E ele vai para o sertão e arrasa cantando com os poetas. E ninguém compreende como ele vem com uma tradição tão elaborada daquela forma. Lourival Batista, que é de São José do Egito, fala muito sobre essa força de Manoel Xudu, muito rápido, repentista mesmo, e ele chega falando da vegetação do sertão, falando dos animais do sertão, falando do… Sabe? Arrasando mesmo, assim. Dos melhores que a gente teve. Até no Cordel do Fogo Encantado eu peço a bença a ele, na poesia Cordel Estradeiro.
Peço a bença, mestre, Manoel Xudu:
“o meu cordel estradeiro
vem lhe pedir permissão
para se tornar verdadeiro".
Eu sou apaixonadíssimo pela poesia dele, pela história dele mesmo. Ele cantando com Sebastião Dias, Zé de Cazuza que me contou. Bom, muitas das poesias que eu sei eu peguei de Zé de Cazuza, que é a grande memória dessa história toda. Aí Zé de Cazuza diz que eles cantando e tentando me explicar de onde Xudu vinha. Xudu não era do sertão. Aí Sebastião Dias termina o verso dizendo:
“O meu rio corre bonito na Serra Jabitacá”.
Aí o Manoel Xudu pega na deixa. A deixa é importantíssima para a cantoria da viola. Ela surge, ela é incorporada ao repente, para que as pessoas não trouxessem os poemas decorados de casa. Então ele é mais um desafio para o poeta, para que ele esteja fazendo de improviso. Porque ele não sabe o que o outro vai terminar e ele tem que começar com a rima que o outro terminou. E os mais antigos não repetiam a rima. Tinha ainda essa regra deles. Eles não repetem nenhuma das três que o outro fez. É uma quarta palavra naquela rima. Hoje em dia isso… Como é? Amoleceu mais, está menos rígido, aí se repete a última. Bom, mas nessa fase aí de Immanuel Chudu, a gente está falando de década de 50, 60, 50, 60, 70. Eles estavam nessa rigidez aí.
Aí, Sebastião Dias diz:
“O meu rio corre bonito na serra Jabitacá”.
Aí Xudu diz:
já o meu corre para lá
na terra paraibana
atravessa dois riachos
Juazeiro e Itabaiana
deixando a marca do barro
na palha verde da cana.
É um depoimento geográfico em que traz nome de dois riachos, através dessa poesia, determina um recorte geográfico. Ainda com a imagem muito comum dessa zona canavieira, que é deixando a marca do barro na palha verde da cana, que quem é dessa região sabe que essa cana de açúcar na beira desses riachos, ela deixa esses desenhos marrons, assim, onde a cheia chega.
É um poeta preto, o Manuel Xudu. Pouco fala-se nisso. Pouco fala-se nisso. É como se não fosse importante, historicamente, esses detalhes. E tem os ancestrais disso, poetas negros, Fabião das Queimadas, Inácio da Catingueira, alguns até escravizados.
Inácio da Catingueira:
meu viver é misturado
de sofrer e de alegria
sou escravo no roçado
mas sou rei na cantoria.
É antes da sestilha, é antes de desenvolverem as seis linhas como característica principal que vai para a literatura de Cordel, que vira a forma mais usada na literatura de Cordel.
Isso é antes, Inácio da Catingueira.
Fabião das Queimadas.
“Pobre não pessui calçado
mas Deus Pai onipresente
faz nascer grosso solado
na sola dos pés da gente”.
Que é outra filosofia também para andar descalço naquela região.
Fabião das Queimadas:
“Quando eu forriei minha mãe
a lua nascia cedo
para alumiar o caminho
de quem deixava o degredo”.
Porque a lenda é de que ele comprou a alforria da mãe com o dinheiro de cantoria. Fabião das Queimadas. Então, acho que essa história da origem da poesia sertaneja, do semiárido nordestino, vai passar por essas novas teorias, através das novas gerações. Mas eu queria voltar um pouco para a Xudu. Só um minuto. Fique à vontade. Porque eu amo o Xudu. Mas essa história de “O meu rio corre bonito na Serra Jabitacá”, é uma serra pequena que o Manoel Filó me levava muito lá. O Manuel Filó adorava Jabitacá, é um vilarejozinho. E aí, eu compondo uma música com o Junio Barreto, a gente compondo, aí, em casa. Pensamos que era uma canção, meio que uma cantiga de amor, uma canção de amor. Ai, “enfeitei a nossa casa – começamos a fazer essa letra – com a rosa da mais bela cor”. Aí paramos aí, ficamos pensando… Nossa, uma rosa da mais bela...
Aí eu pensei… Encontrada nas montanhas do Jabitacá”, que não é montanha, é uma serrinha, mas a liberdade da poesia e das imagens. “Encontrada nas montanhas do Jabitacá”. E aí Gal Costa grava essa música, que o título é Jabitacá. É muito interessante ver Gal Costa cantando, escutar Gal Costa cantando “nas montanhas do Jabitacá” e, sei lá, aquele lugar que eu escutei nesse verso de Sebastião Dias e Xudu, e que o Manoel Filó me levava lá. Um dia, já aconteceu mais de uma vez, fazendo um show, alguma coisa, chega alguém de Jabitacá. Queria te conhecer e tal. Escuto muito Jabitacá, essa música. Ganhei um mel uma vez agora num show. Esse mel é da Serra de Jabitacá. Que demais! Mas essa música de Jabitacá, que Gal Costa gravou, ela também tem umas imagens que eu ficava pensando, será que a Gal Costa sabe mesmo?
“Mas meu amor/mesmo com todas as coisas escondidas/até o pôr do sol da madrugada/e as placas baleadas pela estrada”.
E é muito interessante ver ela cantando essas placas baleadas. E são aquelas placas do sertão ali que todas têm furos de bala.
P1:
– Nossa.
R:
E é isso, Xudu. Deram um moto para ele:
sai o fogo das nuvens
passa o vento
cai a água na terra
o trovão zoa.
(Mote difícil também).
Sai o fogo das nuvens, passa o vento
cai a água na terra, o trovão zoa.
(Sobre uma chuva, uma tempestade).
Aí Xudu diz:
quando Deus, que é juiz para todo julgo
molha as terras sedentas e vermelhas
o corisco por cima abala as telhas
cai a água, me molho, me enxugo
e um caçote se escancha num sabugo
como um cabra remando uma canoa
e sai quebrando as maretas da lagoa
chega os braços, parece um catavento
sai o fogo das nuvens, passa o vento
cai a água na terra, o truvão zoa.
(É mais um poeta que vira um animal, Manoel Xudu disse)
“há certas coisas no mundo
que eu olho e fico surpreso.
uma nuvem carregada
se sustentar com o peso
e dentro de um bolo d'água
sair um corisco aceso”.
(Manoel Xudu)
admiro cem formigas
um besouro carregando
vinte delas vão na frente
e vinte atrás empurrando
e sessenta vão em cima
pensam que tão ajudando.
Eu tive tanto prazer vendo Lourival Batista:
igual um cego que vai
na clínica de um oculista
quando termina a consulta
ter recuperado a vista.
Ficou feliz, né? Eu tenho uma coisa de cego também. Posso falar que não enxergo por um olho. Uma miopia. Não tive nenhum acidente. Mas aí os poetas… Zé de Cazuza que me contou essa história também, conversando, Manoel Filó com Xudu, eles eram muito amigos. Alguém disse, você já viu um cego picado de cobra? Um deles disse, não, nunca vi um cego picado de cobra.
Um deles disse: “cobra volta do batente da casa que cego mora”.
Dá um pensamento místico sobre isso. Aí Xudu diz… Olha essa construção de poesia, de improviso.
“Cobra volta do batente da casa que cego mora”
Xudu diz:
Falo a verdade e não nego
que certo dia uma cobra
fez no corpo uma manobra
para ir na casa de um cego.
furou-se logo num prego
de um caibo que tinha fora
regressou na mesma hora
lambendo a ponta do dente
cobra a volta do batente
da casa que segue mora.
É isso. Manoel Xudu.
– Você chegou a conhecer ele?
Não. Xudu morreu cedo, morreu com 50 anos, não sei exatamente a idade que ele morreu, mas a minha família, os meus tios, dessa parte dos pais que eu estava contando, eram o maior ídolo deles. Então, teve isso na minha vida. O meu avô fazia cantorias.
Então, o meu avô, fez cantoria de Pinto do Monteiro, Manoel Xudu, depois foi feito Ivanildo Vila Nova, João Paraibano, Valditelli, Sebastião Dias. Todos esses poetas passaram lá, no sítio do meu avô, chamado Lagoa de Dentro, essa que eu te contei, de 1904 e tal. E acho que a partir daí eu me ligo a isso, eu começo a decorar umas poesias e começo a dizer… Tenho um tio que me… Dizia poesia decorada, declamada, e aí ele, quando vê que estou decorando e tal, me incentiva muito. Inclusive, é o primeiro que viaja comigo, que eu era menor de idade, então não podia receber cachê das coisas. Ele é como se fosse o primeiro produtor, vamos dizer assim, mas era outra lógica. Ele viaja comigo e me incentiva muito. Acho que teve a ver com isso, porque não sei exatamente como comecei com isso. Quer dizer, tem isso, tem tudo isso, aí eu decoro as poesias, e aí com 12 anos de idade eu sou chamado por Ivanildo Vila Nova, Ézio Rafael, que trabalhava na Fundarpe. Eu sou chamado para fazer o “Quarto Congresso de Cantadores do Recife", em 87.
O que é esse congresso e essa data. É uma coisa interessante, importante. O quarto congresso acontece com um intervalo grande entre o terceiro e o quarto porque ele é feito pelo governo a Arraes, com Ariano Suassuna na Secretaria de Cultura. E esse governo é eleito em 1986, na volta das eleições diretas do Brasil, e a Arraes tinha sido deposto em 1964, e o governo dele tinha ficado pela metade. E em 1964 eles tinham feito o terceiro Festival de Cantadores, Ariano era secretário de Arraes. Quando eles voltam, décadas depois, eleitos democraticamente, eles retomam com o quarto congresso de cantadores. E eu vou como convidado, como declamador, que é um outro gênero de atuação dessa poesia. O declamador, essa palavra está bem em desuso, mas ele tinha uma função bem estabelecida, que era a poesia decorada, não era de improviso, e ele não canta, ele diz a poesia e entra nos intervalos dos poetas.
É tipo uma atração especial, esse declamador. E aí, nesse congresso, quem eram os declamadores, eram quatro declamadores para esse quarto congresso de cantadores.
Era Chico Pedrosa, Zé Laurentino, Patativa do Assaré e eu com 12 anos.
E aí eu conheço o Chico Pedrosa. Lembro que Chico, nessa época, bebia. Chico parou de beber.
E aí a gente foi orientado a fazer ou dez minutos, ou duas poesias, cada um que entraria, cada um dos declamadores. E era muito rígido isso, porque tinha uma transmissão, transmissão de rádio, transmissão da TV, Jornal, eu acho. Era rígido isso e era algo que não podia passar do tempo. Aí Chico entra bem chuviscado. Eu não conhecia Chico. Conhecia a fama de Chico.
Depois eu te conto a história de como eu conheci Chico.
E aí ele entra… Eu nunca esqueci isso. E aí faz uma poesia, faz uma segunda, entra na terceira.
Bem emocionada, disse, vou dizer a poesia agora, pilão de pedra que eu fiz para a minha mãe.
Aí, terceira. E o alvoroço dos produtores nas coxias.
Aí Jó Patriota, que é um poeta dos mais incríveis, já morreu também. Ele fazia assim para mim.
Vai, menino, tirar Chico, para ele deixar saudade. E dava um empurrãozinho para eu ir tirar Chico do palco. Acho que ele achou que eu, criança, não ia ser tão feio tirar Chico. Mas, Chico, lá...
Eu nem lembro como terminou. Eu não entrei, mas… Não lembro como terminou.
Mas aí foi isso. Mas por que eu fui convidado com 12 anos? Porque quando eu tinha 9, numa dessas cantorias Ivanildo Vila Nova viu eu recitando, que aí os meus tios… “Ele recita, ele declama”. Aí fui e declamei. Ivanildo Vila Nova e João Paraibano, era a cantoria. Aí o Ivanildo ficou. “Ah, eu tenho que lhe levar para o festival em Recife, que vai acontecer”. Isso anos depois. Três anos depois eu fui para esse. E aí não parei mais. Fiquei viajando, fiz muita, essa coisa de festival… E cresci com eles.
P1:
– Em geral, às vezes, aqui no museu, a gente começa uma entrevista perguntando qual é a primeira memória que a pessoa tem. E eu queria te perguntar qual é a primeira memória de poesia que você se lembra, a mais antiga.
R:
Certo. Esse é um… Uma lembrança que eu venho dedicando, me esforçando para recuperar. É um exercício que eu faço, porque eu lembro de algumas fases dessa memória. Eu lembro de meu pai num carro, meu pai e um tio escutando uma fita repentista e achando bonito um verso, e eu sem entender porque que aquilo era, aquelas palavras eram uma poesia. Eu lembro muito disso, dessa confusão, dessa coisa… Por que é uma poesia essa informação de palavras?
Era alguma coisa com um animal, com um cavalo, com aquelas metáforas, né? Aí eu lembro disso, mas isso é uma coisa que eu recuperei há pouco tempo, mas é muito nítido para mim esse momento. Eu não sei que idade eu tinha.
Aí, antes dos nove, acho… Fazendo a linha através dos amigos que organizavam os festivais de violeiro em Arcoverde, que era um grande centro de festivais muito famosos assim, aí eu consigo recuperar que escutei Chico Pedrosa na rádio, num festival de violeiros de Arcoverde. E eu não podia ir para esse festival, porque era muito criança. Bom, não me levaram. E eu vi na rádio e eu entendi assim aquela história toda e fiquei muito envolvido com aquela história, que era Chico Pedrosa falando sobre aquela poesia “o abilolado’”, do exército e aquela construção toda.
Chico tem um humor diferente de todos que eu conheço. O humor de Chico Pedrosa sempre é uma brincadeira, como é que posso dizer? Ele ironiza, ele desarticula o poder, sempre. Porque assim, tinha um gênero que caminhava junto ali, de Chico Pedrosa, que eram aquelas histórias engraçadas, escatológicas, e muito ligadas a um sertanejo nordestino abobalhado, matuto, que acho que perdura até hoje um conceito assim de humor sobre o sertão. Uma pessoa que não sabe o que é um carro, que se assusta com… Uma tecnologia, que fez alguma coisa, que a calça rasgou e aí ficou numa situação com a calça rasgada, numa festa. Tem uma poesia muito ligada a isso. E a de Chico não. A de Chico era sempre um cara que prendia Hitler, sabe? O humor dele arrancava, a plateia se acabava de rir com situações…
No caso do Abilolado, embora eu não goste desse título, acho que ele é uma gíria, na época fazia sentido, mas é meio isso. Um abobalhado, mas não tem nenhuma relação com a poesia dele, com essa história. Embora ele comece “ doutor”, tem algumas coisas que se repetem nessa poesia, que é sempre essa referência a um doutor, ao meu senhor, também coisas que eu nunca gostei disso. Mas depois fui entendendo como um jeito de comunicação irônico também.
“Mas seu doutor, o senhor”, algo de submissão.
Mas é também um depoimento, um testemunho de um processo social, político da região, que eram esses trabalhadores submissos aos donos das terras. Aí ele começa, ele usa seu doutor, ele usa meu senhor, mas ele desconstrói totalmente. Essa eu acho a força de Chico e a originalidade dele. Então, ele começa assim...
“Doutor, eu tenho razão de ser meio abilolado”.
Começo um pouco estranho, mas aí ele já faz um recorte histórico, sociocultural.
“venho de um tempo passado
por seca e revolução
quando eu tinha um ano e meio
escapei de um tiroteio
do meu pai com bulandeira.
se pai ganhou, eu não sei.
também nunca perguntei
nem sequer por brincadeira”.
E só nesse verso, só nessa estrofe, ele traz muitos elementos socioculturais ali.
As guerras de família, os tiroteios entre famílias, que tão relacionados à história do cangaço, não perguntar pro pai, nem sequer por brincadeira, porque a comunicação não era assim, que Graciliano Ramos aprofunda muito isso, tanto em “Vidas Secas”, como no livro de memórias Infância, não é? Então, eu sempre vejo Chico com esse… Com essa importância histórica, social.
O Chico é esse depoimento, sabe? Em quase tudo que ele faz.
Tem uma poesia mais, mais assim, vamos dizer, inocente, ingênua de Chico, que é “Minha Infância com Meus Pais". Meu Deus!
Ele diz:
“Sua infância foi risonha?
calma, não responda agora
por favor, não a exponha
que vai chegar a sua hora.
a minha foi muito ingrata
tipo caldo de batata
sem substância nenhuma
Infância desenxabida
dessas coisas que na vida
pobre só aguenta uma.
(-Aí vê o que ele vai dizer)
minha escola foi o campo
minha caneta a enxada.
meu brinquedo pirilampo
vigilante da baixada.
armei pedra de quichó
cassei preá e mocó
atirei de balieira
cavei pebe em tabuleiro
tirei enxú verdadeiro
das moita da capoeira.
Ele diz:
todo tipo de doença
que se contrai na infância
sofri por indiferença
da nossa ignorância.
Mamãe era benzedeira
rezava olhado, papeira
dor de dente
bucho inchado
febre, espinhela caída
inchação, tosse cumprida
rote-choque puxado.
cresci na fralda da serra
ouvindo a voz do vaqueiro
que pega, derruba e ferra
para seu patrão fazendeiro
como nativo da selva
pisando a delgada relva
a caminho do roçado
recebendo dos meus pais
os conselhos naturais
do meio em que fui criado”.
E assim, o que… Bom, isso é a introdução de uma poesia dele. O que acho impressionante é que não é percebido exatamente pelos críticos, se é que existem críticos para essa poesia, teóricos, eu quero dizer, dessa construção de Chico no tempo em que as estradas eram poucas no sertão.
Veja o recorte histórico, assim:
no tempo em que as estradas
eram poucas no sertão
tangerinos e boiadas
(a história que eu falei de Arcoverde)
cruzavam a região
entre volante e cangaço
quando a lei era do braço
do jagunço, pau mandado
do coronel invasor
dava-se no interior
esse caso inusitado
Olha a intro que ele faz. O que é que ele faz? Ele faz um testemunho, um depoimento e uma denúncia do coronel invasor. Dava-se no interior esse caso inusitado. Tem uma história boa com o Chico. Eu fui fazer um filme, Árido Movie, com o Lírio Ferreira, o diretor.
Aí eu iria fazer… Esse filme foi muito importante porque eu conheci nesse filme Zé Celso Martinez Corrêa, que vira um amigo e que me influencia muito. Mas eu conheci lá, nesse filme, em Arcoverde, porque esse filme foi filmado lá e a gente ficava hospedado em Arcoverde.
E aí tinha uma cena que era assim… Eu era secretário de Zé Celso, no filme. Zé Celso era um personagem que existiu mesmo lá, no Vale do Catimbau. Esse personagem se chama “Meu Rei". Ele existiu, ele morreu já. Ele criou uma comunidade em torno de uma água, há uma água sagrada, uma água que cura doenças. Ainda existe essa comunidade lá. Ele morreu, o Meu Rei.
Ele chama Meu Rei, esse senhor. Essa água, eles deram o nome de água abstratosa. Olha que poesia incrível, água abstratosa! Eu lembro que Lírio, na pesquisa, definiu que faria. Só que a comunidade proibiu o uso do nome “Meu Rei" para Zé Celso. Zé Celso dizia que foi convidado porque estava com a barba grande d’Os sertões, que ele tava montando. Ele dizia que foi convidado para o filme, porque a barba estava grande e ele queria que ele fizesse o “Meu Rei".
Aí mudaram para “Meu Velho”, e a água não podia usar água abstratosa. Eu lembro muito o Zé Celso dizendo, “vamos lá, Lírio, e a gente vai para a justiça. Vamos, a gente grava e vai para a justiça depois. Não tem um nome que substitua essa água abstratosa, não”.
Aí Lírio escolheu Mimosa, água mimosa. Muito, muito longe. Mas, bom, eu era o secretário de “Meu Velho", que também era um personagem que existia. Me caracterizaram e tal, daquele jeito. O cinema tem um pouco isso. Convida uns músicos, uns malucos, feito eu, para fazer que não são atores. Eu até disse a Cláudio Assis na época:
- você viu eu fazendo o filme de Lírio?
Ele: - vi, você não tá ator não, você tá à toa!
As críticas de Cláudio Assis.
Mas eu vou lá fazer o filme do meu amigo Lírio Ferreira.
Aí tinha uma cena que tinha a atriz Giulia Gam, que chegava nesse lugar e esse secretário pegava um pouco da água e dava à personagem de Giulia Gam e é isso. Essa cena tinha uma cisterna de água e o diretor fotográfico… Poxa, ele como é nome dele, muito importante. Bom, eu já lembro.
Aí, esperando meio-dia em ponto, porque um telhado era vazado de madeira, aquelas madeiras assim, e era para fazer as listras do sol, assim, no chão, sabe?
Murilo… Já lembro o nome dele.
Aí, todos esperando, sabe?
Aqueles equipamentos de cinema, todo mundo esperando dar a hora para o sol ficar retinho assim e a gente fazer a cena. E eu lá já esperando, Giulia Gam lá esperando. Até que foi o diretor de fotografia que disse, “por enquanto vamos ensaiando a cena, enquanto não dá a hora”.
Aí o Lírio fez,” tá, então, Lira, você pega a água e dá o texto”.
– Eu, que texto?
– Não mandaram o texto pra Lirinha, não?
Perguntou ao… Aí alguém… Não!
Dele, você não recebeu um texto, não?
Não, não recebi texto nenhum, não.
Mandaram você vir para cá e eu vim.
Aí começou a confusão, o diretor ficou danado, de fotografia.
Mas, rapaz, a pessoa não sabe o texto. E tal.
Aí Zé Celso – que não está na cena, mas estava lá – disse, mas o que é?
Qual é o conteúdo?
Aí o Lírio disse, “não, é que ele dá essa água, essa água é sagrada, essa água cura doenças”.
Aí Zé disse, você não sabe nada de uma poesia, alguma coisa de doenças?
Aí eu disse, eu sei uma de Chico Pedrosa.
Então diga, aí está no filme, se você assistiu o filme, está lá.
Olha essa água
cura dor de dedo
febre, espinhela caída
inchação, tosse comprida
outro choque fuchado.
Chico Pedrosa me salvou.
E era memória, e nunca esqueci dessa aula de Zé Celso.
Você não tem nada que você possa dizer esse conteúdo aí das suas lembranças.
E a gente se tornou muito amigo, eu e Zé Celso, e eu trabalhei na Luta 1, d’Os Sertões, na trilha sonora. Participei dessa experiência, o espetáculo tinha oito horas de duração.
Eu fiz um pouco parte do Teatro Oficina, através dessa ligação com o filme.
P1:
– Quer contar um pouco dessa experiência?
R:
– Com o Zé Celso?
Zé Celso, muitas lembranças, ele participa talvez de um tratado, de um caminho estético que eu incorporo, em relação à arte, em relação a alguns ensinamentos que me acompanham até hoje. Ele me dizia que não existia artista. E, sim, todos nós somos uma potência artística, todo ser humano. Então, a partir dessa visão, eu compreendo outras coisas disso que eu faço, sabe? A potência, a possibilidade de se acender, de aceso, da palavra aceso, e de estar nessa conexão com essa potência, né? E a abordagem que ele faz a Os sertões, de Euclides da Cunha, que acho que representa toda essa nova escrita que observo na sociedade brasileira.
Acho que Zé Celso reescreve Os sertões, os textos deles eram gigantescos, como o livro Os Sertões. E ele faz uma leitura que não deixa de ser crítica, analítica e subverte totalmente, coloca outros personagens como protagonistas. E faz essa grande experiência que Os Sertões, de Euclides da Cunha, trata de um assunto, não é? Não só trata de um assunto. Euclides da Cunha ele é um correspondente de um jornal do sudeste, ele vai para a Guerra de Canudos como correspondente do Estado de São Paulo, do jornal.
E aí ele chega lá com uma ideia totalmente contrária àquele atraso, vamos dizer. A ideia era essa, um bando de monarquistas – porque tinha virado a República – atrasados, que iam impedir o progresso do Brasil, aquele impedir, né? Já existia muito um processo de fake news nessa guerra, porque diziam que a Rússia apoiava, dava armas ao Arraial de Canudos, toda uma coisa. O Rio de Janeiro, a Rua do Ouvidor, era muito…. O governo vai sofrer essa vergonha, a república vai começar mantendo um grupo fanático de… E aí o Brasil faz a sua maior guerra até hoje, contra o seu próprio povo. A maior guerra que o Brasil participou e a cara da… Das elites brasileiras foi contra a sua própria população. E aí, destroem o Arraial de Canudos.
Uma experiência que era muito importante que o Brasil entendesse. Entendesse aquilo ali, no lugar de muitas pessoas diferentes que absorveu. Muitas pessoas que saíram da escravização, ali do período… Canudos é isso. Coincide com a Lei Áurea. Tudo é a formação de canudos. E é um processo de distribuição de terra, é um processo de ocupar aqueles latifúndios. Eles começam ocupando uma fazenda abandonada. Uma relação com a agricultura, uma relação com a terra.
E… Eu lembro que Glauber Rocha, que é uma outra pessoa importante na minha vida, eu não conheci Glauber Rocha, mas me identifico muito com algumas coisas de Glauber e muitas coincidências foram acontecendo. Por exemplo, sou muito amigo dos filhos de Glauber Rocha.
Erik Rocha é um dos meus mais próximos amigos e tudo foi por causa de Glauber. Uma vez eu sofri uma crítica da revista Veja, que fizeram um perfil meu que dizia "O Profeta dos Modernos". Era o título da matéria. E aí pegava trechos do meu livro, que era um personagem, que não era um pensamento meu, era um personagem, Lirovsky, do meu livro “Mercadorias e Futuro". E diziam, entendeu, Glauber Rocha? Ficava toda hora repetindo essa pergunta. Entendeu Glauber? E colocava fotografias do lado da matéria dizendo quem era eu. Eu era uma pessoa influenciada por Glauber Rocha, Zé Celso, e Luiz Fernando Carvalho, que eu nunca nem conheci, que era um diretor da Globo, eu acho. E aí ficava fazendo esse tipo, colocava umas frases bem loucas do meu livro.
Aí dizia,” entendeu, Zé Celso? Entendeu, Glauber?”
E aí a família e Erik falam comigo, e a gente começa uma amizade.
Quer dizer, Glauber nos uniu também em algum ponto.
No filme “Transeunte", de Erik, ele me convida para fazer o pai dele, uma cena, na praça ali do Rio de Janeiro, mas não está definido que é o Glauber, mas eu sei que é..
E aí, pois é, Fiz a percussão de Glauber. Mas aí faço uma roda como se fosse uma homenagem ao filme, aquela cena icônica e tal. E aí por que estou citando Glauber?
Porque Glauber disse em mais de um momento, Glauber disse que, “se a gente não entender Canudos, a gente não entende o Brasil. Se a gente não entender o que foi Canudos, vamos ter muita dificuldade de entender a sociedade brasileira e seus problemas”.
E aí o Zé Celso, anos depois dessas coisas de Glauber, também dá como importância maior a construção dessa abordagem d’Os sertões, através do Teatro Oficina.
Eu entendo bastante esse comentário de Glauber Rocha, porque você veja, Canudos, é… Quando Canudos é ali, atacado, você veja, olha que coisa interessante, uma das teorias do nome “favela”, no Rio de Janeiro, vem de Canudos. Canudos ficava no Alto da Favela, é o lugar. Lugar geográfico, Alto da Favela. Estamos falando do final do século XIX, 1894, 1895. E as notícias de Canudos viram a notícia nacional. As pessoas acompanhavam, tanto que mandam Euclides da Cunha. E aí as pessoas começam a dizer… Sabe aquela formação toda labiríntica? De canudos, aquelas casas sem ser ruas retas e toda labiríntica, e que isso do Alto da Favela é uma vegetação que é emaranhada, cheia de espinhos e tal. E aí começa a… A aparecer nos jornais cariocas e paulistas também, a expressão lá na favela, lá no alto da favela. Começa a ser muito comum essa referência. Eu já vi outras teorias. Mas eu apostaria que favela vem de Canudos, porque é o mesmo período de primeiras aparições dessa construção, dessa ocupação dos morros ali do Rio de Janeiro, e feita por nordestinos na sua boa, por sertanejos, uma situação muito parecida com Canudos.
Tanto que construí uma música no Cordel chamada “A Matadeira”, que é o seguinte, A Matadeira era o apelido de uma arma alemã que foi usada na guerra, uma metralhadora que ela chega de navio em Salvador e o exército brasileiro recebe essa arma com banda, com música, com tudo, e essa arma vai vagarosamente para o Arraial de Canudos. E a imprensa acompanha isso, a matadeira está chegando, é um apelido que dão à arma, ela tem um nome, não é daquela linha do canhão Krupp, alemão e tal. É uma arma, uma tecnologia de guerra, e ela vai ter muitos problemas A matadeira, n’Os sertões aparece isso, principalmente no livro de Mário Vargas Llosa, “A Guerra do Fim do Mundo”, que é baseado em Canudos. E aí romantiza muito a chegada dessa matadeira, porque ela vai empacando no sertão, tem muito problema para chegar no arraial, demora muito, porque ela é pesada. Mas chega essa metralhadora, e a letra que eu construí é:
A matadeira vem chegando
no alto da favela
no balanço da justiça
do seu Criador.
salitre, pólvora
enxofre, chumbo
o banquete da terra
o teatro do céu.
o banquete da terra
o teatro do céu.
diz aí quem vem lá
o velho soldado
o que traz no seu peito
a vida e a morte
e o que traz na cabeça
a matadeira
e o que veio falar
fogo!
Aí eu sinto que continua a mesma coisa, a mesma encenação cênica nas favelas do Rio de Janeiro.
A ideia é essa. Mas o Canudos… Bom, aí eu faço essa ligação com Zé Celso, e Glauber Rocha faz parte daquele universo de Zé, e isso caminha comigo hoje também. Eu sou essa passagem também por essas pessoas, por esses ensinamentos.
P1:
– Eu queria voltar lá para aquele festival que você falou, que encontrou o Chico Pedrosa, e você comentou que estava presente também o Patativa. E aí eu ia pedir para você falar se você teve algum contato com o Patativa da série e também já falar um pouquinho como era a sua relação com a literatura de Cordel, como é que você encontrou a literatura de Cordel.
R:
Patativa do Assaré é muito especial para a história dessa poesia, para as minhas interpretações sobre Patativa. Ele começa dentro dessa lógica de Zé Celso, potência artística, ele começa a doar, ele dá à existência dele à poesia. Bom, parece simples, mas não é simples. Ele começa a virar uma poesia, andando. Ele começa só a falar rimado e metrificado. Ele começa a ser essa pessoa. E ele também vai pra um lugar do declamador que ele começa a improvisar declamando. Ele entrava, por exemplo, em 10 minutos para Patativa – isso estou falando no final da vida de Patativa – ele não mais vai dizer as poesias que ele tem do repertório. Ele começa a dizer, boa noite, e ele começa a improvisar, ali, declamado ali, de forma declamada. E é muito interessante acompanhar isso de Patativa, porque ele vai se doando cada vez mais, ele vai entendendo a importância dele para a região, ele vai entendendo que ele é um veículo, que ele é uma… Como é que chama? Uma antena, uma interface entre aquela, aqueles desejos da população, e ele começa a ser o porta-voz disso, assim. Ele vira um ícone da luta pela terra, da relação com os agricultores sertanejos, dos sonhos, das ilusões, das desilusões daquele povo, ele vira, ele dá o corpo dele para isso. Eu não conheci a tentativa de conversar com ele. Vi, ficava admirando. Feito como se fosse um deus, assim. Ele era muito famoso. Lembro também que, em Arcoverde, no Festival de Violeiros de Arcoverde, os meus amigos que organizavam, Jorge Filó, filho de Manoel Filó, diziam “que impressionante que ele sabia mais de mil poemas na cabeça e todo dia esquecia o número do quarto do hotel que ele estava”.
Aí Jorge contava essa história, eu ficava a amar, adorava essa história. Meu Deus, quer dizer que ele decora o que ele quer, só e tal. Ah, Patativa é incrível, Patativa. Ele passou por um drama – drama, não, uma tragédia familiar – e começou a dar muita entrevista.
Ele teve uma fase que virou, ali no momento, década de 1980, final de 1980 ali, quando o Fagner grava ele, começa a ter muita visita na casa dele. O tempo inteiro, em algumas entrevistas, ele reclama até que não consegue mais ficar tranquilo em casa, assim. E ele começa a ser muito entrevistado. Aí tem um poema dele que amo, que acho a coisa mais linda desse mundo, que tem a ver com esse momento da gente aqui agora, sabe? Que é a câmera, esse microfone, sabe?
Ele diz:
gravador que estás gravando
aqui no nosso ambiente
tu gravas a minha voz
o meu verso, o meu repente
mas, gravador, tu não gravas
a dor que meu peito sente.
Tu gravas em tua fita
com a maior perfeição
o timbre da minha voz
a minha fraca expressão
mas não gravas a dor grave
gravada em meu coração.
Gravador, tu és feliz.
E aí de mim?
O que será?
bem pode ser desgravado
o que em tua fita está
e a dor do meu coração jamais
se desgravará.
Patativa do Assaré.
Aí vou te contar que uma vez o diretor Geraldo Sarno, que já morreu, o importante diretor que fez aquele projeto Farkas, um projeto de… Bom, o que você vê de imagem do sertão preto e branco, que é… Quase todo dia tem coisa de Geraldo Sarno na TV, que é um documento que ele fez, que eram por setores. Ele fez Os Ferreiros do Sertão, que faziam as coisas de ferro e tal. Ele fez uma coisa sobre o misticismo ali, de Padre Cícero. Ele fez uma cantoria de Pinto com Louro. A única imagem que tem de Pinto com Louro cantando, colorido, é Geraldo Sarno. Eu fiz um trabalho com Geraldo Sarno e ele disse “Patativa do Assaré fez um tratado estético quando ele diz em Cante Lá que eu canto cá, para todo canto que eu olho vejo um verso se bulir”.
Sabe? Tem muito a ver com isso que eu estava falando da existência de Patativa, dada a poesia.
“Para todo canto que eu olho vejo um verso se bulir”.
Geraldo identificou como um tratado estético.
Eu acho interessantíssimo esse ponto.
Aí eu sou convidado pelo MST, uma relação que eu tenho, antiga, que a minha avó, a mãe do meu pai… Eu só falei sobre meus avós paternos até agora. A mãe do meu pai, dessa casa que eu contei, de 1904, é Elvira, que é o nome da minha filha hoje, a mãe do meu pai era da Ação Cristã Rural, ACR, que era um grupo, um movimento da Igreja Católica, da Teologia da Libertação, que é ali o início das Ligas Camponesas, certo? A Igreja Católica nessa região, a gente falou sobre a Igreja Católica como opressora e tal, mas a Teologia da Libertação, a atuação deles ali geraram muitos movimentos que até hoje estão aí, inclusive o PT.
Tudo nasce um pouco da Igreja Católica, desses movimentos eclesiais de base, uma coisa assim. Então minha avó se relacionou politicamente com Francisco Julião, com Gregório Bezerra e com Dom Hélder Câmara. Aquele movimento ali político, eu digo se relacionou no sentido tava ali, naquele movimento de luta. Já podíamos dizer que era luta por uma reforma agrária, mas eram outros impulsos… Ela dava aula de Eucaristia, a primeira comunhão, para aqueles filhos dos agricultores, então ela envolveu com aquelas dificuldades, com aqueles processos, e trabalhou uma luta disso. Então, eu tenho essa história.
E, quando eu morava lá em Arcoverde, tem um assentamento do MST em Arcoverde, antigo, dos mais antigos do MST, chamado Pedra Vermelha. E aí meu amigo Lula Calixto, que morreu, uma pessoa muito importante para mim, ele dava aula na escola do MST, de samba de coco.
E aquilo me impressionava, porque ele não dava aula em nenhuma outra escola da cidade, as escolas particulares. Por que? Que sabedoria! Quem é que chama Lula para dar aula de samba de coco? Era uma professora desse assentamento. Na época, provavelmente, era um acampamento.
Não sei exatamente, perdi um pouco essa história. E aí Lula me leva lá pra um dia.
Ele vivia convidando. E a gente vai, um pouco afastado da cidade. Hoje já está mais próximo, mas a gente vai, um caminho, passa por uma zona rural e tal. E, quando eu chego lá os alunos estão tendo aula de português com o Mamulengo, a professora. Era uma professora muito boa, a mesma que convidou o Lula. Lula Calixto, né?
A mesma que o convidou para dar aula. E aí eu crio uma simpatia, um negócio pelo MST. Agora, isso eu estou falando eu adolescente. Passam-se os anos, eu, aqui em São Paulo, essa coisa da gente, de movimento, de um pensamento parecido e tal, sou convidado pelo MST para conhecer a Florestan Fernandes, Guararema. E era um festival coisas do MST, que pouca gente sabe. Era um festival de Teatro do Oprimido, era um grupo da Índia que estava lá fazendo uma peça. Era um festival só de peças ligadas a Augusto Boal. E aí o filho de Boal estava traduzindo. A peça era em inglês. Traduzindo na hora e tal.
E aí, quando eu chego lá, em Guararema, eles têm uma plenária chamada Patativa do Assaré.
Aí eu não acreditei naquilo. Como é que pode… É um poeta que não está nos livros oficiais de literatura brasileira. Patativa do Assaré, mesmo com a sua fama, não faz parte dos ensinos de literatura brasileira oficial. Mas aí um movimento sensível a essa construção dessas informações, do que chamo de profundos segredos da formação da nossa sociedade, entende a importância de Patativa do Assaré, dá o nome de uma plenária.
Aí eu fico muito emocionado, porque é todo esse cara e eu conheci, tive essa história de declamador e eu começo a contar essas histórias. Depois até entendo a ligação do MST profunda com ele, que ele é um tipo de poeta que diz:
a terra é um bem comum
que pertence a cada um
com o seu poder além
Deus fez a grande natura
mas não passou escritura
de terra para ninguém
se a terra foi Deus quem fez
se é obra da criação
deve cada camponês
ter uma faixa de chão.
Quer dizer, é um pensador importantíssimo para o país, com a visão dessa experiência agrária.
Então, eu tenho esse… Essa pessoa que… Eu passei um tempo mais crítico de Patativa. Na minha adolescência, para a minha juventude, não restava Patativa. Tanto porque ele era o mais famoso e eu achava que a minha contribuição era um dos mais escondidos, como também não gostava da linguagem matuta, porque ele não falava daquele jeito. Então, ele falava normal, e aí, quando eu ia escrever, muié… Bom, eu mudei completamente o meu pensamento, tá?
Hoje sou apaixonado pela obra de Patativa e acho que ele termina construindo uma sonoridade fonética de muita importância também. Tanto que quando eu vou, o meu repertório, com 12 anos de idade, é uma poesia dele chamada Espinho e Fulô, que recito neste Quarto Congresso de Cantadores. Uma dele e uma do meu tio, Fernando Paes, são as duas poesias que eu faço naquilo que eu disse que tinha que ter dez minutos ou duas poesias, Patativa do Assaré e o meu tio, que era uma poesia chamada Transporte Urbano, sobre um ônibus lotado, muito engraçado.
Eu peguei um ônibus no finzinho do dia
tão cheio que nem sei se fui.
Fui, vai, mas não vai, com ai e com ui
pisando, esfregando, quase nem subia.
Um velho gritava, uma velha gemia
um velho sentia pisar a ferida
criança chorando, mãe aborrecida
um outro tossindo, fumando tabaco
É uma viagem, um ônibus lotado. Mas… É isso.
P1:
Você falou sobre o cordel. O cordel.
R:
– Para se emendar junto com o cordel. Que é esse momento que você falou, eu estava com 12 anos, declamando ali, e dali sair rodando tudo que é festival. Eu ia falar para você contar um pouquinho como foram esses festivais, como é que você foi amadurecendo na sua poesia, os cantadores que te marcaram mais, você já falou de alguns, mas mergulhar mesmo nesse balde da memória.
Certo. Meu cantador preferido chama-se João Paraibano. É o que eu acho mais… O que chegou mais longe nas imagens, nas coisas. De cantoria, de repente. A pessoa mais importante para mim desse universo é Zé de Cazuza, sem dúvida alguma. Zé de Cazuza ele tá vivo, mais de 90 anos, e hoje ele entrevistou. Bom, um grande programa de dia, domingo, à noite, foi lá na casa dele para fazer um programa sobre memória, porque ele decorava cantorias inteiras, inteiras, na década de 1950 e 1960. Então, ele é a maior informação que você pode ter de conteúdo, de poesia, chama-se Zé de Cazuza. Mas, sem dúvida alguma, ninguém se aproxima de Zé em quantidade de poesias. Sou muito amigo dele, estamos distantes, bem distantes, porque nunca mais fui lá visitá-lo. Mas tenho muita história com o Zé de Cazuza. Até que chego lá no interior e vejo o povo contando as minhas histórias com o Zé, mas já mudaram, já enfeitaram. E as várias histórias engraçadas. Eu ouvi uma história de Antônio Marinho. Chegou para mim um vídeo de Antônio Marinho dizendo uma poesia minha. Ele dizia que Lirinha estava com Zé de Cazuza em Itamaracá, na praia. Eu não tava com o Zé, mas já tem um volume de histórias eu com o Zé. A gente viveu muita coisa engraçada. A gente fazia a mesma coisa de declamação, quer dizer, eu fazia o mesmo que ele. Então, a gente viajou muito junto. Teve uma vez que meu pai disse, esse é filho de Zé de Cazuza, meio enciumado. Fiquei triste que ele baixou a cabeça.
“Esse é filho de Zé de Cazuza”.
Mas Zé de Cazuza tem muita história com o Zé. Passei três dias na casa dele. Eu tinha ido só para passar um dia. Não levei roupa, só estava com a roupa de três dias.
No terceiro dia, no quarto dia, ele disse, vamos ali em Ouro Véio, Boi velho, que é uma feira de Boi Velho. Eu disse, Zé, estou com essa roupa faz três dias. Ele disse, deixa de ser besta, que a tua idade é um paletó engomado. Eu posso estar vestido com um terno de ouro e você numa roupa de estopa, que onde você chegar você faz mais sucesso que eu. E aí, de vez em quando, eu vejo essas histórias minhas com o Zé e fizemos muita coisa junto. Ele decorava cantorias inteiras.
Ele decorava cantorias inteiras, ele me disse que parou de decorar quando viu um gravador.
O gravador se tornou muito comum nas cantorias da década de 80. Ele disse que quando viu um gravador, ele parou de decorar. Imagino que é uma função, né? Social, que ele tinha. Ele tinha a função de decorar, que eu não sei se ele entendia como uma função mesmo, mas ele era essa pessoa. Então, talvez, quando ele viu a substituição do gravador nesse lugar… Tanto que nessa matéria que fizeram com ele sobre memória, a jornalista pergunta qual a diferença de Zé de Cazuza para um gravador? Aí ele diz que o gravador grava qualquer coisa. E ele tem uma… Uma erudição em todos os sentidos, é muito conhecimento, mas é um agricultor. Tem essa característica na cantoria, são pessoas muito inteligentes. É uma característica do poeta. O poeta, nessas comunidades, é o jornal, o tradutor, o que traz as informações, o que tem poder de crítica, de análise, ele tem conhecimento sobre a geografia, ele sabe… São muitas histórias nesse sentido.
Pinto do Monteiro, por exemplo, que é o ídolo de Zé de Cazuza. Quando você fala de Pinto, se você trouxer Zé de Cazuza aqui para ele falar de Pinto vai demorar, porque ele quase não fala, porque, se ele fala, ele fica horas… Ele ama Pinto do Monteiro, sabe?
Zé me contou que perguntaram a Pinto, o que é o poeta, Pinto?
Aí Pinto disse, “poeta é o que tira de onde não tem e bota onde não cabe".
Foi Zé que me contou essa história.
Nessa mesma entrevista, perguntaram quem mais ele visita aqui, Pinto.
Ele disse, as moscas.
Pinto é danado, vou te dizer um anjo de pinto do Monteiro.
Mas Zé de Cazuza, a nossa amizade ficou muito forte e eu virei muito amigo dos filhos dele, que me influenciaram muito na música. Eu começo a compor canções a partir de dois filhos de Zé de Cazuza, que são Miguel Marcondes e Luiz Homero.
Aí eu faço essa ponte entre a poesia e a música. Eu sou muito influenciado por eles dois. Eles tinham um grupo chamado Vates e Violas, até hoje tem, e eles são filhos de Zé de Cazuza. Mas aí eu sou amigo de toda a família, e aí passou para os netos também, a neta dele, Águida.
Águida é um presente da nova geração. Tem muitas características de Zé de Cazuza. Ela é muito forte. E ele… Zé de Cazuza, ele… Ele… Me apresenta uma série de poesias que eu aprendo com ele. Muitas das que eu disse aqui eu aprendo com o Zé de Cazuza. Uma tradição nossa é um pouco essa, de oralidade. Então, quando identificam que alguém decora, começa a vir muita coisa para a pessoa decorar. Passa mesmo pro outro, sabe?
No meu caso, foi bem assim. As visitas de Manoel Filó me levavam muita poesia, que era… Olha, eu acabei de escrever essa, eu acabei de escrever essa… Eu sei várias de Manoel Filó dessa forma. Ele trabalhava com venda de autopeças, de carro, e aí tem aqueles faxes que ele fazia.
Tenho várias poesias de Manoel Filó, escritas atrás desses papéis de fax. Várias.
“Quando a gente magoa, uma saudade incomoda demais o coração”.
Acho até que o mote é de Zé de Cazuza.
“Quando a gente magoa
uma saudade incomoda demais o coração”.
Ele diz:
“nunca esqueço da roça de um vizinho
onde à tarde cantava a siriema
de um defeito num galho de jurema
que um casal de rolinhas fez um ninho.
Por ser muito na beira do caminho
um filhote assustou-se e foi ao chão
Quando eu quis colocá-lo na prisão
pai mandou devolvê-lo à liberdade
Quando a gente magoa uma saudade
incomoda demais o coração”
Pinto do Monteiro.
Essa nossa triste vida eu só comparo a um S.
Aí Pinto traz um elemento com essa poesia, que é a língua portuguesa, que é muito importante esse tema na cantoria, porque a gente pode falar de hoje, já é possível falar de uma língua brasileira. Já é possível. Alguns estudiosos dessa área já apontam essa possibilidade de a gente falar que existe uma língua brasileira. Os cantadores contribuem muito para essa observação.
Generino Batista!
Nasci num sítio esquisito
onde não mora ninguém
Papai chamava pro modi
mamãe dizia que nem
um filho desse casal
que português aqui tem?
E a maior de todas nesse sentido é o improviso de Pinto do Monteiro, que ele diz:
Essa nossa triste vida eu só comparo a um S. Eu quero ver quem comparou a vida a uma letra.
Essa nossa triste vida
eu só comparo a um S
tem uma hora que sobe
tem outra hora que desce
e a curva que dá no meio
nem todo mundo conhece.
Que é as aulas de língua brasileira!
P1:
– Que aula! Mas eu queria retomar do Manoel Filó. Você estava falando que tem muitas histórias dele chegando, escrevendo poesia para você.
R:
Sim. É porque Manoel Filó morou em Arcoverde por um tempo nessa minha juventude, adolescência, antes do Cordel do Fogo Encantado.
Eu saio do Arcoverde com a banda, com o Cordel. Eu não faço uma trajetória que era comum dos meus amigos, que é ir estudar em Recife, por exemplo. Eu saio com a banda quando começa uma demanda de show mesmo, principalmente aqui em São Paulo. Então, nesse período anterior e da minha juventude, de 16 até 22 anos, Manoel Filó morava em Arcoverde. E era esse poeta que comecei até a nossa conversa dizendo as coisas dele, do passarinho.
Então ele tem uma forte presença na minha vida, na minha história.
E ele também era, por exemplo, o apelido dele era Manoel Filósofo. Ele era um grande pensador e era conhecido como o melhor em dar motes pros festivais.
Então, eu também participei de uma coisa com o Manoel Filó, que era a criação de motes, que eram segredos para os festivais de violeiro.
Por que segredo? Porque o cantador ia receber na hora. Então, eu tive essa experiência. Que é uma outra coisa que pouquíssimas pessoas viveram, que era um núcleo assim super reservado que criavam os motes que seriam cantados pelos cantadores.
E não era só no Festival de Arcoverde. Eu vivi isso em vários festivais. Eu fui chamado para esse lugar de construção ali. Até hoje eu faço esse exercício em cantorias daqui, que Siba organiza. Ele sempre me pede para mandar uns motes quando eu não estou aqui, quando eu não posso ir.
Sabe esses motes que os poetas têm que terminar, como eu falei do tu ru tu tu tu tu tu?
O Manoel Filó é danado nisso.
O Manoel Filó, os motes dele eram assim:
Chora o cedro na gruta da floresta
escutando o machado a trabalhar.
(Mais uma vez, ele vira uma árvore)
Chora o cedro na gruta da floresta
escutando o machado a trabalhar
O espinho é o vigia da inocência da flor.
Mote de Manoel Filó.
Moxotó foi coroado de Xique-Xique e Facheiro.
Eu lembro de uns cantadores reclamando.
Mano, é o Filó da mote que já é a poesia. Não tem o que a gente fazer mais.
Fazer em cinco minutos, que os festivais de violeiro tinham essa característica.
Dava esse mote, era cinco a seis minutos para improvisar, diferente da cantoria de pé de parede, que é essa dos mais antigos, Pinto do Monteiro, essa que Zé de Cazuza decora, não é Festival do Violeiro. Festival do Violeiro é uma influência do mercado e começa mais na década de 1980, final de 1980, que é que eu participei, a que me fez viajar. Foram os festivais de violeiro. Mas foi uma invenção o festival de violeiro, da profissão mesmo, para circular em grupo e fazer eventos em teatros, em casas de show. Mas antes era cantoria, pé de parede, 100 horas para acabar, 4, 5 horas de cantoria, que é onde existe todo o material que conhecemos de Lourival Batista, Pinto do Monteiro, Otacílio Batista, Manoel Xudu... Quase não fizeram o Festival do Violeiro. São os mais antigos. E antes desses tem Antônio Marinho, que é o… Geração anterior a eles todos. Antônio Marinho é… Você vai em São José do Egito e vai entender tudo isso. Antônio Marinho é o genro, o sogro de Lourival Batista. E Antônio Marinho é contemporâneo de Leandro Gomes de Barros. Antônio Marinho é contemporâneo de Pinto do Monteiro, que são os mais velhos na cantoria.
Mas uma geração pós Romano da Mãe d'Água, Inácio da Catingueira, o Gulino do Teixeira, Fabião das Queimadas. Que são os primeiros poetas esses aí, que nascem ali na Serra do Teixeira. Ivanildo Vila Nova diz:
Vocês que estão no palácio
venham ouvir meu pobre pinho
não tem o cheiro do vinho
das uvas frescas do lácio
mas tem a cor de Inácio
da Serra da Catingueira.
um cantador de primeira
que nunca foi numa escola
venha ouvir minha viola
puramente brasileira
É o mote, né? Que eu gravei isso no Cordel. Nem disse o mote, que eu não gosto da palavra pura.
Puramente brasileira. Mas tudo bem, o mote foi dado provavelmente por outra pessoa.
E o verso dele é… Mas é… Essa geração… Antônio Marinho, Antônio Marinho...
Hoje temos um grande poeta dessa minha tradição da declamação, que é Antônio Marinho, mas é o bisneto desse Antônio Marinho. As pessoas diziam diziam para mim, porque ele é mais novo que eu, né? Aí diz, ah, tem um menino aí que te imita. Ai, meu Deus, vocês não entenderam nada.
Eu é que imito eles. Eu cresci em São José do Egito e aprendi aquele jeito de declamar, mas aquilo é muito antigo, esse jeito de declamar, sabe? Mas o bisavô de Antônio Marinho, que estou falando, esse novo, Antônio Marinho, cantando com o pai de Ivanildo Vila Nova.
Dizem que o pai de Ivanildo Vila Nova era muito formal.
Bom, as lendas, né? Provavelmente Zé Faustino Vila Nova.
É… E provavelmente Ivanildo Vila Nova tem outra história sobre isso, mas é uma lenda.
Tem umas lendas assim, definem os poetas como isso, como aquilo. O pai de Ivanildo Vila Nova era isso, um cara como se fosse exagerado numa formalidade, numa tentativa de falar difícil. É o que sempre chegou para mim. Ele cantando com Antônio Marinho. São poucos os registros de Antônio Marinho, porque não tinha gravador na época.
Aí é oralidade mesmo.
Difícil uma foto de Antônio Marinho. Acho que só tem uma ou duas fotos dele.
A história é a seguinte que dizem que ele cantando ele terminou um verso dizendo “pra dar alegria aos povos, pra dar alegria aos povos", Zé Faustino Vila Nova.
Zé de Cazuza que me contou essa história. E Zé sabe o verso todo, é porque eu não sei. Esse de Zé Faustino Vila Nova. Mas é, “pra dar alegria aos povos".
Aí Antônio Marinho pega na deixa e diz “esses cantadores novos”, é inacreditável esse verso, porque ele vai na sonoridade também da palavra. Tem uma coisa, um bastidor muito da cantoria, tem uma coisa dos plurais. Tem uns cantadores que usam os plurais, com a sonoridade, mas tem uns que não usam plural. João Paraibano, por exemplo, é super difícil você ver.. É tudo muito… Não sobra nada. Esses S não sobram. Difícil explicar.
Mas, aí o Zé Faustino Vila Nova diz, “para dar alegria aos povos”, aí Antônio Marinho pega na deixa e diz...
“Esses cantadores novos
não usam mais rimas rasas
por comum só fazem versos
com bicos, penas e asas
com tantos R's e S's
que espantam os gatos das casas”
Mas, bom, é quase uma piada. da criação deles, da poética deles. Pinto do Monteiro era muito...
Como é que eu posso dizer? Tem muitos versos dele, muitas poesias dele, que são esses duelos, esses embates com o outro cantador, e ele destruía os cantadores.
São vários exemplos. Tem um que diz, que acho muito bonito, que ele diz:
“Mas hoje eu sou doutor
mas hoje sou professor
você nunca foi doutor
meu colega, me perdoe
se foi, estou enganado.
ah, estou enganado, Foi!
Um tempo em Campina Grande
doutor de bumba, meu boi.
É lindo demais, não é? Ele ainda traz uma tradição de um tipo de doutor.
Mas, bom, queria falar um pouco sobre a Literatura de Cordel. Acho importante, que é o seguinte. Tudo isso que estou contando para vocês são poetas que atuaram nos improvisos, na estrutura de declamação, na estrutura de fazer poemas longos também. Mas, na minha juventude, a literatura de Cordel era bem definida os seus mestres e os seus poetas, porque era uma outra atuação, que eram esses que imprimiam os folhetos e que vendiam esses folhetos.
Então, acho que a coisa da literatura do cordel ficou muito forte, famosa mesmo. E, por ser a mesma estrutura da cantoria de viola, ela se tornou uma coisa só.
Hoje o pessoal diz, por exemplo, recita um cordel para mim. E aí posso dizer esses versos.
Só que, na minha juventude, isso era mais dividido, mais definido como gêneros diferentes. Mas eu entendi que se dissolveu essa fronteira, essa linha de fronteira, e eu aceito, incorporei até, já não corrijo, mas não é a palavra, levanto essas questões de origem, mas é importante, dentro de um contato histórico, entender que são nomes diferentes que criaram uma coisa e que criaram a outra. E eles são de atuação diferente também e, em determinado momento, objetivos diferentes.
Embora muitos cordéis, eles tenham registrado pelejas, cantorias, mas às vezes não era dos cantadores, eram os personagens do Cordel. Por exemplo, a peleja de Pinto do Monteiro com o Cego Aderaldo. Então, existe uma corrente que diz que não aconteceu essa cantoria. O autor, ele acessava o estilo de um, um estilo do outro, por esse conhecimento da oralidade e fazia essa construção de história. Então, quem são os grandes nomes da Literatura de Cordel?
O maior deles, Leandro Gomes de Barros. Ele é muito respeitado pelos cantadores, muito respeitado pelos poetas, mas ele não era o repentista, nem era esse que eu convivi mais, embora ele seja de uma geração que eu não pegaria, porque ele é da época de Antônio Marinho.
Mas isso é muito importante no entendimento dessa história. A Literatura de Cordel tinha uma função de jornal, de informação, de entretenimento, uma espécie de novela, de filme. Então, eu lembro… Eu tive experiências de leituras de cordel na sua tradição mais familiares, antes da energia elétrica, no sítio do meu avô, que meu pai nasceu, a leitura de um cordel em torno de um fogo, de uma luz, de um candeeiro, exatamente naquele momento que hoje a família se reúne depois do jantar, muito próximo dessa mesma sensação de uma história coletiva, de um público em torno daquela história.
Isso é muito importante, porque a palavra ela surge de uma definição, uma definição por muitos considerada pejorativa, que era Literatura de Cordão, que era uma literatura exposta à venda nas feiras. E ela não é tão antiga porque grandes ícones dessa herança estão vivos.
Por exemplo, J. Borges. J. Borges é responsável pela propagação da xilografura como capa de literatura de Cordel. Tem pessoas antes de J. Borges que faziam, como Dila, que J. Borges cita. Bem interessante essa relação de J. Borges com a xilografura de Dila, que é de Caruaru. Mas, por exemplo, na exposição que o Sesc Pompeia fez, 100 anos de Literatura de Cordel, a primeira dúvida que a gente teve é: qual é o marco para essa contagem dos 100 anos?
Então, os curadores da exposição escolheram um folheto, um primeiro folheto, que se tem notícia que foi o primeiro folheto. E aí eles fizeram essa contagem e determinaram esse aniversário, vamos dizer, da Literatura de Cordel. Nessas comemorações, que essa exposição gigantesca fez, vieram todos os repentistas, todos os cantadores. Os vivos conseguiram trazer praticamente todos para fazer apresentações, participações. E vieram os declamadores.
E essa tradição é uma tradição escrita e publicada, impressa, que começa uma outra história muito importante na história da região, como as tipografias, as gráficas, que a maioria eram em Juazeiro do Norte, Crato, onde ainda tem a Lira Nordestina, que é o meu nome.
A Lira Nordestina ainda existe. As tiragens dessas literaturas, desses folhetos, eram gigantescas para os números de hoje. Muitas dessas histórias foram best-sellers mesmo, assim. Milhares de tiras, o romance do Pavão Misterioso. Eu acredito, eu defendo que Padre Cícero e a força dele está ligada a um fenômeno de mídia, que era a Literatura de Cordel. Porque quando acontece aquele milagre de Beata Mocinha, de Padre Cícero, Juazeiro tem quase uma dezena de gráficas e propagam de uma forma grande a história daquele milagre. Então, a Segunda Guerra Mundial, a história de Lampião, a história do cangaço, ela é toda acompanhada, todas essas histórias são acompanhadas pela literatura de Cordel e pelos escritores de Cordel daquele momento, sabe? Essa é uma coisa muito importante pra gente entender, revisitar. Acho muito importante porque, vou te contar, Braulio Tavares me disse, contou, e aí talvez eu me perca na memória disso, as datas, as coisas, mas que Getúlio Vargas, ele comete suicídio no Palácio do Catete, que às dez horas da manhã, eu acho.. Dez, dez e meia, uma coisa assim.
Não lembro exatamente essas informações. E Braulio disse que duas horas da tarde tinha, em Campina Grande, a morte de Getúlio Vargas, em folheto de cordel. E isso eu fiquei, eu sempre penso porque envolve muita coisa essa história da Literatura de Cordel, com a alfabetização, nem todos sabiam ler naquela região, então tinham os leitores que reuniam as pessoas em torno daquilo. Essa função de jornal, de o que acontecia no mundo, o que acontecia… E, como eu disse, o entretenimento, que aí entram as histórias, os romances, as histórias do assassino da honra ou a louca do jardim, as histórias de ética, de moralismo, de guerreiros, de… Tudo isso que compõe a essência narrativa dos filmes até hoje, né?
Quando a gente escolhe o grupo, o nome “Cordel do Fogo Encantado”, que inclusive é uma sugestão de Micheliny Verunschk, que é a minha comadre, que nasceu em Arcoverde, que somos vizinhos. Ela não nasceu em Arcoverde, ela nasceu em Recife, mas chegou criança em Arcoverde. Crescemos juntos. É uma pessoa muito importante para mim. E ela junto ali, a gente escolhendo esse nome, a gente já tinha um fogo encantado.
O que a gente queria dizer? A história do fogo encantado. E o cordel sempre foi sinônimo de história, quando a gente usava no dia-a-dia lá em Arcoverde. Ah, esse cara tá cheio de cordel. Esse cara… Sabe, tá vindo com um cordel a história. Então, ela entra com… A História do Fogo Encantado era o nome da banda, que, na verdade, era o nome de um espetáculo antes de virar banda. Decidimos, em 1999… O espetáculo começa em 97 e decidimos em 99, quando fomos convidados para um festival de música ligado ao Manguebeat, ao movimento Manguebeat, muito forte em Recife, principalmente pela figura de Chico Science. Chico Science morreu em 97.
Em 99 a banda vai fazer um festival chamado Rec Beat. Eu lembro que a gente se reuniu em Arcoverde e decidiu… Porque a proposta de Antônio Gutierrez, que até hoje é quem comanda o Festival Rec Beat, que acontece no Carnaval, durante o Carnaval, ele viu uma apresentação da gente, eram 40 minutos de poesia e 30 minutos de música.
Que música era essa? Umas bases que a gente começou a construir para essa poesia ser dita. Depois entendemos que a canção se define por isso, por essa palavra junto com a música, com a melodia. Começamos a construir essa história. Era 40 minutos de poesia. E aí Gutierrez sugere se a gente poderia fazer a parte musical no festival. “Olha, eu vi e tal. Vocês conseguem fazer um show especial para o carnaval?” Porque é todo mundo dançando, em pé, pulando e tal. E vocês conseguem fazer essa parte musical com algumas poesias? Fazer uma adaptação para o festival, depois vocês voltam para o espetáculo. Nos reunimos na casa de um dos integrantes e decidimos que o nome do grupo seria Cordel do Fogo Encantado, que era o nome do espetáculo.
Considerávamos um espetáculo cênico-musical, de origem no teatro. E aí, no momento em que a gente faz essa estreia como banda, acontece uma mudança de rumo na vida de todos os integrantes da nossa vida, por vários fatores. Uma das pessoas que está nesse show é Naná Vasconcelos. E Naná vai para trás do palco quando a gente termina. E nunca mais se separa da gente. Ele vira o produtor do primeiro disco nosso, Naná. E quando a gente termina, desce do palco, começam a acontecer coisas determinantes na nossa história, como o Antônio Gutierrez, que é o dono do festival, começa a afastar as pessoas, tinha uma presença muito forte da MTV na época. Já começa a ser o produtor da banda, sem a gente nem combinar. Agora não, entrevista, agora não. Deixa os meninos descansarem. Gutierrez já colocou a história de produtor.
E Naná Vasconcelos vem, chega, faz uns comentários sobre o protagonismo da percussão, que era raro. Essa percussão, geralmente, na música mundial, ela está nos bastidores, inclusive chamam “Cozinha”. E me impressionou muito que vocês colocaram a percussão como uma instrumentação de frente. A mensagem é passada pela percussão, com apenas um instrumento harmônico, um violão. Esse foi o impacto do Cordel do Fogo Encantado na música brasileira naquele momento. Que poderíamos definir Cordel do Fogo Encantado, percussão na frente, um instrumento harmônico e poesia sendo, na época, gritada.
P1:
– Quer fechar o capítulo aqui?
R:
Eu quero só avançar um pouquinho sobre Naná. Só sobre Naná. Naná Vasconcelos leva, ele sugere… Ali, na mesma hora, ele… Bom, Naná é muito próximo do que foi Zé Celso, Glauber, no que eu citei para vocês, no que eu falei. Porque Naná, ele me dá uma estrada de atuação em que Naná derrete as fronteiras entre o regional e o universal. A obra dele é isso. Aquela relação dele com o Berimbau, não é? Já não é mais capoeira só, é um berimbau colocado num lugar como um instrumento… Não deixa de carregar toda a tradição, não deixa de ser representante de tudo que existiu, mas tem uma atuação de novas mensagens.
Uma liberdade artística impressionante a que Naná Vasconcelos se deu, ele se deu uma liberdade de criação que é muito difícil ver em outro artista. O que é a música de Naná Vasconcelos? Tá para nascer os conceitos possíveis de falar sobre essa música. E aí Naná propõe uma turnê do Cordel do Fogo Encantado antes de a gente gravar o disco.
Isso não exatamente nessa noite. A gente começa um contato, uma coincidência, porque Naná deixa Nova York, que ele morava há anos, desde a década de 70, que aí um… Um professor de New Orleans – vê como é a vida – chamado Dan Sharpe fez a biografia de Naná, escreveu – não está traduzida pra português, é em inglês – do disco de Naná chamado “Saudades”. Ele é etnomusicólogo de uma universidade de New Orleans. Ele me disse… Eu participei de muitas entrevistas dele, por causa, ele fez uma pesquisa enorme sobre o Naná Vasconcelos. Ele foi nessas pessoas todas que conviveram com o Naná.
Ele me disse que o apartamento de Naná, em Nova Iorque, era de Glauber Rocha e Naná. E que Glauber deixou. Eles compraram na década de 70.
É uma história muito louca, porque Naná tinha um apartamento no Central Park, na rua do Central Park, que hoje é um dos lugares mais caros do mundo, se não for o mais caro do mundo, o metro quadrado mais caro do mundo. E isso me impressionava, como Naná comprou, com o trabalho dele, com percussão. Mas bom, foi na década de 1970 e eram aqueles primeiros prédios que viram a característica de Nova York, que era tipo um vão, assim, que os artistas plásticos alugavam e faziam um coletivo, vamos dizer assim.
E ele disse que o primeiro é Naná, Glauber e uma outra pessoa, e que depois fica só Naná.
É uma história que eu tenho muita curiosidade, porque assim, Naná sai de Nova York, ele vem ter a primeira filha dele em Pernambuco, ele decide voltar porque a esposa dele tá grávida, E nasce Luiz Morena, que tem a idade da minha filha, porque minha filha nasceu em 1999, que é quando eu vou para Recife. Então Naná está de mudança para Recife e Naná sugere que a gente faça uma turnê, e dura dois anos essa turnê, Naná Vasconcelos e Cordel do Fogo Encantado, para a gente gravar o primeiro disco E Naná fazia o show dele inteiro, aquele solo que a gente vê no YouTube, nas coisas, ele com berimbau e tal. E não tinha intervalo, ele saía e fazia… Com vocês, Cordel do Fogo Encantado, naquele negócio. No gongo dele… E ele andando para trás...
E a gente entrava, já estava tudo montado, e lascava a percussão para cima. E eram duas atmosferas. O show de Naná, jazz, super introspectivo, cheio de nuances, e o Cordel vinha naquela agressividade, quando a gente era mais jovem, aquele negócio pegando fogo, né? Então, tudo isso aconteceu com a banda, e era só para encerrar o seguinte sobre a Literatura de Cordel. Ficamos muito em evidência nacionalmente e percebi que essa metáfora do Cordel começa a ser entendida por uma juventude como toda uma atmosfera, um universo de poesia. E aí eu relaxei mais entendendo isso e hoje já não vejo as diferenças, já considero… Ah, eu faço Literatura de Cordel, faço muitas escolas, sempre procuro perguntas sobre o assunto. Mas eu dividia mais antes e tentava explicar que não tinha sido uma tradição que eu tinha tanto conhecimento, sabe?
Chico Pedrosa, muito interessante, ele vendeu a Literatura de Cordel. Não sei se ele na entrevista falou para vocês, mas ele fez uma coisa que desapareceu, que eram os vendedores na feira de Cordel, que não necessariamente eram de sua autoria. Eram declamadores que tinham toda uma técnica. E J. Borges, vai… É o lugar dele, é o terreno dele, porque J. Borges, ele começa a vender a Literatura de Cordel dos outros e ele diz que começa a mudar a poesia dele na relação com o público.
O que é que dá mais, vende mais? O que é que dá mais atenção? E ele diz que começa a fazer os desenhos, as xilogravuras, porque ele começa a entender que aquela xilogravura pode levar aquela história a outros lugares. Ele tem um caminho estético muito ligado ao mercado de venda dessa literatura. E a Literatura de Cordel nunca se separou dessa relação de exposição numa grande feira. E aí a metáfora se faz muito forte pro Cordel do Fogo Encantado, que era, estamos pendurando a nossa história, a história do Fogo Encantado, nessa grande feira que é o mundo, a humanidade, no sistema capitalista. Então isso começa a fazer um sentido metafórico, o Cordel do Fogo Encantado, pra banda, sabe?
P1:
– Eu queria perguntar que as músicas do Cordel sempre tinham poesia. E também tinha reza católica, tinha ponto. Eu queria saber como era isso e como era recebido pelo público também.
R:
Certo, importantíssimo. Bom, isso tudo não foi traçado conscientemente por a gente. Essa abordagem religiosa, principalmente ligada ao Candomblé e à Umbanda, que virou… O primeiro disco é um disco cheio de referências a isso. Qual era o objetivo da gente? Era uma música que provocasse… A busca sempre do Cordel foi por uma música que provocasse essas emoções transcendentais, místicas. A grande busca, as coisas que a gente ia vivenciar, pesquisar… Pesquisar nunca foi bem a abordagem da banda, mas as coisas que a gente ia viver, elas eram uma busca por esses ritmos, por essa percussão que nos tirava de um canto e levava pra outro. Então, o transe, sabe? A coisa de energia, mas a gente sempre pensava nisso musicalmente, como a percussão levava a isso. Uma outra forte influência, o povo Xukuru. Por quê? porque Chicão, líder do Xucurus, que foi assassinado… A história dos Xucurus é uma história de assassinatos dos seus caciques. É muito violento ali, no Xucurus.
E Chicão é o pai do atual cacique, de Marquinhos. E Chicão é um líder do movimento indigenista do Nordeste. O líder era Chicão, era muito politizado, muito inteligente, um carisma tremendo. E ele ocupa um prédio público em Arcoverde para exigir as coisas dos Xucurus. Ele sempre disse que sempre foi mais ligado a Arcoverde, Pesqueira mais conservadora, e Arcoverde conectou mais os desejos, as pautas dos Xucurus.
Eles ocupam um prédio, Denox, que eram aqueles prédios ligados à seca do Nordeste, tipo Sudene. E aí eles ocupam e ficam meses. E todo final de tarde eles fazem um Toré. A gente ia pra isso, sem relação com a luta, exatamente. Pela música, porque eram tantos assim, com o Coité, com as sementes do Coité. E começavam a girar. E aquela coisa...
Tanto que no primeiro disco tem salve o Povo Xucuru, uma nova era se abre com duas vibras trançadas, seca e sangue, umas coisas que a gente tinha de referência, de imagem. Só que quando a gente vai para Recife fazer esse show do Carnaval, dois integrantes da banda de Arcoverde não vão. É um processo de mudança mesmo do grupo. E aí a gente começa a trabalhar com dois músicos de Recife indicados por Mundo Livre S.A., aquela banda, o percussionista da Mundo Livre S.A., que é Marcelo Pianinho e Maurício, do Mestre Ambrósio. Eles são irmãos, Pianinho, Marcelo Pianinho e Maurício. Eles indicam dois músicos alunos deles, alunos das aulas que eles davam de percussão. E parentes deles. E esses dois músicos são Ogans confirmados de todo o processo do terreiro deles. A avó deles é Dona Mira, de um terreiro no Morro da Conceição, em Recife.
Uma outra história de seis horas pra a gente contar, porque eles moram no mais alto do Morro da Conceição e eles viram músicos do Cordel. E todos os discos do Cordel são com eles dois. Não tem registro desses outros amigos de Arcoverde, que eram o Beroni e o François, o surdo do Coco Raízes de Arcoverde, François Gomes. Se vocês já viram o Coco Raízes de Arcoverde, tem um rapaz de tranças, era integrante do Cordel, e Alberone ainda hoje atua em Arcoverde, rabeca, confecciona rabecas, pífanos e tal. E os dois, Nego Henrique e Rafa Almeida, que são Cordel do Fogo Encantado, desde a origem, como banda, eles são Ogans. No processo da banda, um outro integrante, que é de Arcoverde, Emerson Calado, faz todo o processo e vira Ogan. Teve uma hora que eu tocava com três Ogans no palco. Eles pediam permissão, eles pedem permissão para entrar, para fazer show do Cordel, pedem aos seus orixás. Eles pedem, em uma cerimônia, se eles podem emprestar o corpo deles para tocar no Cordel. O negócio é muito forte. E aí vira uma banda com essa força, essa ligação. Mas diminuímos bastante. Nos outros discos a gente resolve não trazer mais músicas tradicionais, religiosas. É uma decisão da banda. A gente começa a ter muita… As pessoas começam a pedir que a gente não faça certas coisas, em certas situações, né? Um público, às vezes, que a gente não domina, como está ali, bebendo e tal, enfim. E aí a gente parte para uma música mais criativa do que representativa de ritmos existentes, sabe? Mas a história é essa.
O Emerson não é mais Ogan, ele faz uma passagem para Santo Daime, mas é uma liderança nesse sentido aí. Vai para Palmas, morar em Palmas, e são meus companheiros de banda, você acredita? Eu fico assim, só agradecendo e dizendo… Espero que eu consiga representar toda a história deles ali no vocal, porque bom, eu to com o poder ali, da voz, a voz amplificada, mas tenho o maior respeito por eles, pela história deles. É isso.
P1:
– Para a gente fechar, você vai perguntar, a música choveu, já fez chover?
R:
Não, não tem quem consiga fazer isso. Mas já choveu muito durante a música. Mas é uma grande coincidência. Assim, eu tenho certeza que é uma grande coincidência, porque não é possível que a gente tenha esse poder. Talvez, em algum lugar, o público tenha feito chover, porque às vezes o público vira um ser, uma entidade. Multidão é uma espécie de um ser. Eu aprendi isso. E aí pode ter acontecido alguma coisa nesse sentido, mas eu realmente… É porque tem um acúmulo de coincidências que gerou essa lenda com a banda, né? Em alguns momentos e tal, em determinadas situações, a gente tocou “Chover” e choveu na hora. Tem desde casos em lugares que chove constantemente, como Recife, mas assim, naquela hora, naquele momento, sem a gente mudar a ordem do show, tá? Aconteceu mesmo, mas enfatizo que foram coincidências.
Agora, teve uma que foi em Teresina, no Piauí, praça pública, que não chovia há um tempão. Aí até hoje eu vou lá em Teresina e as pessoas vêm com essa lembrança, com essa história. Mas não deixa de ser uma coincidência. Mas choveu. E, olha, faziam meses que não chovia, uma viagem.
Mas a música é muito forte. Ela é uma evocação e ela nasceu assim, ela nasceu Inclusive, o segundo título dela é “Invocação para um Dia Líquido". E aí é isso.
A história da chuva nos acompanha. A metáfora da água é uma metáfora que a banda abraçou assim como algo importante.
P1:
– Lirinha, queria te agradecer.
R:
Eu que agradeço, muita conversa, meu Deus!
P1:
– Pra gente fechar como a gente entrou, ia falar pra você falar um verso seu, pra fechar.
R:
Vamos ver se eu lembro o meu. É… Certo. Hum, deixa eu pensar só um minutinho, tá? Pra eu trazer uma que faça parte dessa nossa conversa. É… Será que digo uma rimada metrificada da tradição? Vou dizer uma das primeiras que fiz, há 18 anos, acho, que é a que Antônio Marinho disse que eu estava com o Zé de Cazuza numa praia e passou uma… Matuta, uma sertaneja.
Era um exercício meu com essa poesia, com essa poesia que eu cresci escutando.
Enquanto o mar se orgulhava
dessa infinita grandeza
uma matuta mostrava
o mesmo grau de beleza
pisando a capa da praia
no balançado da saia
maré baixa, maré cheia
e a onda, só por ciúme
vinha roubar o perfume
que ela deixava na areia
o coqueiral da paisagem
zoava-se contorcendo
talvez prestando homenagem
à cena que estava vendo
da cabocla que invadia
com pureza e maestria
o mar do rosto brilhante
e o céu calado, chorando
vendo um gigante brincando
nos braços do outro gigante
seis horas, ave-maria
o sol que antes reinava
nos montes se derretia
nas nuvens, se deformava
E o jangadeiro, cansado
ouvindo, sentindo
o furo aguçado da lança
da solidão, viu a noite sem beleza
relutou, teve a certeza
ela voltou para o sertão.
viu-se o mar adocicar
quando partiu a donzela
é que o salgado do mar
nascia do corpo dela.
E até a própria jangada
Corria cadenciada
Na orquestração do seu passo
E a lua mostrou-se feia
Que, mesmo nascendo cheia,
Tava faltando um pedaço.
Um puro e simples sorriso
Roubou da praia o descanso,
Do jangadeiro o juízo,
Do coqueiral o balanço
Da brisa o beijo macio,
Da noite o toque sombrio,
Do vento à sonoridade
deixando o tempo marcado
no seu tambor ritmado
batendo a dor da saudade
volta depressa, morena
pra noite lhe acalentar
numa jangada pequena
perto do céu e do mar
vem que eu te dou um poema
te dou brinco, diadema
perfume de iemanjá
assim navega a jangada
toda santa madrugada
morena, volta pra cá
É um poema bobinho, né? Mas é de 17, 18 anos. Mas eu achei bom.
Estamos falando de memória. Tentei trazer isso. Eu nunca digo esse poema.
Recolher