Depoimento de Maria Enedina Bandeira
Entrevistada por Carol Margiotte e Alice Junqueira
São Paulo, 1º de novembro de 2018
Entrevista número PCSH_HV705
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - Maria, bom dia.
R - Bom dia.
P/1 - Um prazer recebê-la aqui. Seja muito bem-vinda.
R - O prazer é todo meu de poder estar aqui neste momento.
P/1 - E para começar, eu queria que a senhora falasse seu nome completo.
R - Maria Enedina Bandeira.
P/1 - O local e a data de nascimento da senhora?
R - Eu sou de 1º de novembro de 1941, sou natural de Cachoeira do Sul, estado do Rio Grande do Sul.
P/1 - Então parabéns pelo dia de hoje, fica mais especial ainda receber a senhora aqui no dia do aniversário.
R - Muito obrigada.
P/1 - Espero que, de verdade, a senhora goste muito deste momento de hoje.
R - É um presentão que vocês estão me dando hoje. Uma coisa bem diferencial.
P/1 - Que bom, dona Maria. Dona Maria, não. Maria! E eu queria saber se a senhora sabe por que a senhora foi batizada com esse nome, Maria Enedina?
R - Eu sei. Maria, porque o nome... Maria e Enedina são irmãs do meu pai, duas irmãs do meu pai. Então ele colocou Maria Enedina, que é o nome das duas irmãs.
P/1 - E os seus pais contavam para a senhora como foi o dia do seu nascimento?
R - Olha, eu vim de uma família muito pobre. Meus pais eram agricultores, a minha mãe tinha nove filhos. Ela veio a falecer com trinta e três anos, deixou um filhinho com dois meses e a mais velha com quatorze. E eu tinha três. O meu pai, como era alcóolatra... Ele sozinho, com nove filhos, o que ele iria fazer lá no meio do mato? Ele foi para São Pedro do Sul, que também é um município do Rio Grande do Sul, onde moravam os meus avós, pais dele. Nós fomos todos para lá. Chegando lá, uma família alemã se interessou em adotar uma criança e a que foi... A que o papai doou, a única filha que ele doou para essa família alemã fui eu. A família (Wagner) [00:03:05] e a família (Spotti) [00:03:06], porque a esposa era (Spotti) [00:03:11], Aida (Spotti) [00:03:12] e ele Wagner. E então me levaram para lá, eu tinha três aninhos. Passaram-se anos e anos e nunca mais eu vi a minha família. Mas eu fiquei encantada, porque eu nunca tinha andado de carro e eles estavam de carro. Eles convidaram e eu fui para dentro do carro, faceira, contente porque eu ia passear de carro. Nem lembrava se estavam me dando ou não, nem sabia o que era. Então, fui para a casa deles e a minha mãe, a Aida - talvez seja a maneira como ela foi criada - ela era muito enérgica, muito brava, não é? E eu fui criada dentro daquele regime assim, durão. Meu pai já era mais calmo, o pai que me criou, Carlos, mas a minha mãe era muito brava. Eu sei que fui crescendo naquele ambiente, fui estudar em um colégio - Apóstolo Paulo - que era também um colégio alemão, e também muito rígido... Até, inclusive, do lado tinha um grupo escolar, que era do governo, a criançada gritava, mexia conosco. Na hora da gente sair, eles gritavam: “Apóstolo Paulo prende a pau”, porque era muito rígido, sabe? E eu pensava... “Meu Deus, por que a mamãe não me colocou nesse outro colégio? Eles gritam isso aí para a gente, essas barbaridades, não é?” Então, eu sei que... Quando eles mandavam os bilhetes para casa, eles mandavam em alemão. E eu, como não lia alemão, chegava, entregava o bilhete em casa, que às vezes não tinha feito a lição, nem eu sabia por que, não é? Chegava, apanhava, tomava uma surra bem grande e não sabia também por que estava apanhando, não sabia nem do que eles estavam se queixando... Mas apanhava. E pela manhã, antes de eu ir para o colégio, eu tinha... Naquela época, não tinha... Como é que se chamava? Banheiro com descarga, como se tem hoje, era o... A gente chamava penico, urinol. Então, o meu serviço, antes de sair de casa para ir para o colégio, desde pequena, era arrumar as camas - a minha, a da mamãe e a do meu irmão - e lavar os penicos. E às vezes, criança... Eu saía, despejava ligeiro, jogava e colocava debaixo da cama sem lavar. Quando eu chegava em casa, apanhava porque eu não tinha lavado o tal de penico. Dizia: “Meu Deus do céu”. Então, era pau e pau. Mas foi passando o tempo, foi passando o tempo, eu fui... Naquela época, era o ginásio - tirei o ginásio. Estava em casa, então eu passava fazendo... O meu serviço era lavar o chiqueiro dos porcos, limpar o galinheiro, varrer o pátio, tinha que levantar de madrugada, porque muitas vezes tinha que acender o lampião para enxergar aonde é que eu estava varrendo e fazer o serviço da casa. E muitas vezes ia para a lavoura - tinha uma lavoura nos fundos, ia lá ajudar a plantar mandioca, buscar mantimentos para os bichos, e assim eu passava. Sair que era bom, não podia sair para lado nenhum porque para mim ficava feio ir passear em uma praça porque eu não era filha legítima. Para as outras meninas... Elas tinham pai e mãe, então elas podiam e eu não podia; então, eu só em casa trabalhando, trabalhando. E assim foi a vida. Então, um dia, a minha mãe e o meu pai descobriram que eu tinha uma irmã mais velha que morava em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. E eles, não sei por que cargas, disseram que queriam se ver livres de mim, não sabiam como fazer. Um dia, eles disseram para mim: “Amanhã, nós vamos passear em Santa Maria”. E eu fiquei meio faceira, só ouvia falar em Santa Maria mas nem sabia o que era. Arrumaram as pouquíssimas pecinhas de roupa que eu tinha e fomos para Santa Maria. Chegamos lá na casa da minha irmã, a minha irmã esperou o marido chegar do trabalho - ele era motorista de táxi - eles já tinham cinco filhos. Então, o meu cunhado disse que eles não poderiam ficar comigo porque eles já tinham cinco filhos e a mulher dele não trabalhava, tinha que cuidar das crianças. E ele, como motorista de táxi, não podia ficar com mais uma, não é? Eu nem sabia que eles foram para me levar para lá para eu ficar com eles. Então saímos, fomos para a rodoviária novamente. Chegamos à rodoviária, sentados, esperando o ônibus, então a minha mãe... Eu sempre tive muito medo de freira, não sei por que eu tinha medo de freira, acho que por causa daquelas roupas que elas usam. E padre também. Eu, quando via uma, eu corria, tinha muito medo delas. Tinha uma freira sentada e a mamãe disse assim para mim: “Maria, tu podias ser freira, olha que bonita aquela freira”. Eu fui e disse: “Ai, não fala isso, eu tenho medo”. Fiquei louca de medo, eu disse: “Eu não quero ser freira”. Passou. Lá para as tantas, tinha um rapaz sentado, que eu nunca mais esqueci até a carinha dele, sentado à mesa lá, mamãe foi e disse assim: “Por que você não vai lá e conversa um pouco com aquele rapaz?” Eu nunca tinha conversado com um rapaz, não é? Então, eu fui e disse: “Eu não, eu não o conheço”. Ela disse: “Vai”. Eu disse: “Não, não vou não”. Não fui mesmo, segurei assim na mesa e disse: “Ah, eu ir conversar com o rapaz...”. Eu tinha doze, treze anos. Então ela disse: “Ok”. Saímos. Nisso, veio o ônibus, fomos embora para casa, voltamos para casa. Então eu queria... Tinha uma vontade de aprender a costurar. E eu, por minha conta, passei em uma costureira - porque eu passei na frente e vi ‘costureira’ - cheguei lá e disse: “A senhora ensina as pessoas a costurar?” Ela disse: “Eu ensino”. Então eu cheguei em casa e falei para a minha mãe: “Eu tinha tanta vontade de ser costureira”. Ela falou: “Mas eu vou te dar ser costureira, tem muito serviço aqui para fazer: tem o chiqueiro de porco, tem os galinheiros todos para limpar, tu nem dá conta de tudo isso”. Eu disse: “Ok”. Então ficou por isso mesmo. Passou mais um tempo, entrou um primo-irmão da minha mãe, da família dela, como prefeito de São Pedro do Sul, (Werner) [00:10:55] (Daher) [00:10:56] era naquela época, e a minha mãe... Hoje eu penso, não é? Talvez... Eles queriam se ver livres de mim e não sabiam como fazer. Então eles falaram com o (Werner) [00:11:15] para eu ser professora, eu tinha quatorze anos. Para eu ser professora, eu tinha que aumentar a minha idade, eles tinham que passar para a maior idade, para dezoito anos, porque a Lei Orgânica nossa não aceitava isso. Mas eu também... Eles todos nos escuros, eu não sabia de nada. Um dia, a minha mãe chegou e disse assim: “Tu sabes que tu vais ser professora? Porque tu gostas muito de criança”. Eu sempre gostei muito de criança. Eu disse: “Eu vou ser professora?”. “Vais sim, vais ser professora”. Então, ok. Fizeram os papéis todos lá, quer dizer, hoje eu não estou fazendo setenta e sete, eu estou fazendo setenta e três, não é? Eles aumentaram quatro anos da minha idade. Então, ok. Fizeram os papéis, não sei o que eu assinei lá, já me sentia a dona professora. Quando foi o dia de ir, para eles chamarem, me colocaram em um colégio no distrito de Antônio Lima, que pertencia a São Pedro do Sul. E eu fui lecionar lá. Então eles me levaram para uma casa onde... Essa família, eles acolhiam os professores, então me levaram para lá para essa casa, que também eram alemães, família (Schmitt) [00:12:50]. Eu lá, só no meio da alemoada. Quando foi... Cheguei lá, o colégio ficava a uns duzentos metros de onde eu estava, começaram as aulas, nas aulas eu lecionava... Havia na sala de aula, da primeira à quinta séries. Então, eu atendia: primeiro ano me chamava aqui; o segundo aqui; o terceiro ali; o quarto ali; o quinto ali. Era assim. E eu pequeninha, magrinha e as minhas alunas umas enormes de umas moças, porque elas até bordavam na hora do recreio para vender. Elas ficavam lá sentadas, conversando, e eu lá, aquele toquinho lá, professora. Os pais dos alunos me chamavam ‘dona professora’ e eu dizia: “Meu Deus” - me sentia com vergonha, não é? Eu, uma criança, sendo chamada de ‘dona professora’. Então foi indo, foi indo... Lá na casa onde eu fui para ficar, que eles estavam... A pensão para os professores, a dona da casa me fez uma proposta de eu... Porque, naquela idade, eu já sabia fazer pães, fazer fogão à lenha, no forno à lenha, lá fora fazia pães, fazia cuca, e ela tinha um armazenzinho na frente da casa. E o casarão era grande. Então, ela me fez uma proposta: “Maria, tu fazes assim... Eu não te cobro a pensão e tu fazes os pães e as cucas, e limpas a casa para mim”. Eu achei aquilo o máximo. Então, eu lecionava de manhã e de tarde, (inint) [00:14:45] me sentia, imagina... Foi indo, foi indo. Um dia, foi eleito governador do estado o doutor Leonel Brizola, que ele sempre foi muito pelas escolas, muito pelo professor. O que ele fez? Ele pegou, juntou com a Prefeitura e fez um colégio em Júlio de Castilhos, também no estado do Rio Grande do Sul, sob regime de internato, para todas as professoras municipais que quisessem fazer o Magistério, que, naquela época, era o Normal. A Prefeitura dava o material escolar e ele dava a escola; então, a gente ia para lá... Fomos. Eu fui a primeira a correr. Eu disse: “Vou ser professora, agora sim”. Fui, me inscrevi. Então, a gente estudava na época de lecionar - de março a julho, que entrava em férias. Nós estudávamos de manhã, de tarde e de noite nessa escola, ficávamos lá. Era uma escola maravilhosa, porque a gente fazia aulas de culinária, enfermagem, fazia várias coisas junto com o Magistério. E eu, encantada. Durante três anos fizemos isso, nas férias... O que para a gente era para ser férias, nós lecionávamos, ficávamos trabalhando. Então, quer dizer que aqueles três anos foram corridos, não é? Quando eu me formei... Nesse meio tempo, eu me casei. Porque, naquela época, a mulher... Como até hoje. Se deixar, os homens mandam mesmo. E a mulher que trabalhasse era vagabunda. Porque eu me casei e fui morar... Casei-me em São Pedro do Sul e fui morar em Santa Maria, porque o meu marido era de lá, que é o pai da (Dione) [00:17:07]. Então, eu... Até terminar o ano - porque eu me casei em outubro e em dezembro findava o ano - eu ia para São Pedro do Sul, ficava a semana toda e voltava no fim de semana. Então, meu marido um dia disse que mulher que trabalhasse era vagabunda, que eu não ia mais trabalhar, que eu ia ficar em casa. Então, o que eu fiz? Pedi licença por dois anos. Nesses dois anos não aconteceu nada. Então engravidei da mais velha, da Rose, e não trabalhei mais. E o meu marido bebia para mais de um metro, entrava em casa já quebrando tudo. A mãe dele, uma pessoa maravilhosa, minha sogra, ela foi mãe, foi irmã, foi tudo para mim. Sempre a gente se deu muito bem, ela me acolhendo, a família dele também, mas ele era danado. Então, um dia... Eu disse: “Eu não vou mais”... Então, fomos morar em... Voltamos, fomos morar em Porto Alegre. Chegamos em Porto Alegre, fomos morar no município de lá também, que é Alvorada. Na casa em que nós morávamos... Eu tinha a Dione, pequenininha, e a Rose com seis aninhos. Nessa casa em que eu morava, tinha uns ratões deste tamanho, porque eles tinham armazém na frente, eu morava em uma parte dos fundos, então tinha aqueles ratões. De noite, eu acordava com aqueles ratos em cima de mim, eu fazia assim com os pés... Nossa, aqueles ratões. E assim... Nós... E eu cuidando das minhas filhas, com medo de que os ratos fossem comer as minhas filhas. Eu disse: “Vão mordê-las”. Não é? E assim nós íamos. E a Dione tinha um medo... A chave que chaveava a minha casa era chave desse tamanho assim, era uma chave só, e ela tinha um vestidinho que tinha um bolsinho, aquele vestido ela não queria tirar nunca porque ela chaveava a porta e colocava a chave no bolso, de medo do pai dela. Porque ele fazia horrores, ele chegava quebrando tudo, dinheiro nunca tinha, porque os bolsos eram assim todos para fora, vazios. As latas todas vazias. Quando ele deixava... Eu hoje não posso ver uma moeda, assim, me largo. Assim... Uma moeda... Ele deixava um cruzeiro - naquela época era um cruzeiro - deixava em cima da mesa, eu sem nada, com duas filhas pequenas. Eu ia no açougue comprava um cruzeiro de osso, às vezes não tinha o arroz ou a massa, ou qualquer coisa para misturar com aquele osso, eu pedia emprestado para os vizinhos. Mas aquele emprestado era para nunca mais, não é? Porque não tinha para devolver. Então, eu fazia aquele ensopado lá para a Dione, para a Rose, para a Maria - para mim, não é? E a gente comia bem gostoso, como era bom. Tu sabes, então foi indo, foi indo... E ele sempre pintando, ele chegava de madrugada com os bolsos virados, sem dinheiro, fazendo arruaça, barulho. Um dia eu me dei por conta, eu disse: “Mas, Meu Deus, o que eu quero com um homem desses? Eu passando todas as barbaridades vou criar as minhas filhas dessa maneira?” Me veio aquilo, Deus falando para mim, não é? Eu peguei um dia, arrumei uma malinha - porque ele também não tinha nada - coloquei uns caquinhos que ele tinha, dentro, o esperei sentada até de madrugada, eu disse: “Agora, quando ele vier, eu vou dar essa malinha, e ele ó...”. Não pensei se ele podia bater em mim, me matar ou qualquer coisa. Podia fazer, porque ele batia em mim, não é? Nem me passou nada daquilo pela cabeça, só queria que ele fosse, sem um pila dentro de casa, sem comida, mas estava mandando o vivente andar. Quando eram quatro horas da manhã, ele chegou. Olhou, e ele disse: “Ué, vai viajar?” Eu disse: “Não, quem vai viajar é você”. Ele disse: “Mas, para onde eu vou? Não estou sabendo”. Eu disse: “Vai para onde tu vens todas as noites, na madrugada”. Ele disse: “Mas agora, a essa hora, eu não vou voltar”. Então eu disse: “Bom, problema seu”. Ele disse: “Dá para eu ficar até clarear o dia?” Eu: “Ok, eu te deixo ficar até clarear o dia”. Mas clareou o dia, ó, e as gurias dormindo. Quando foi de manhã... E eu acordada ali, de plantão. Clareou o dia, eu disse: “Ó, bom dia para ti, boa sorte”. Ele pegou a mala e saiu, se foi. Então... Passaram-se alguns dias e eu dentro de casa. Os vizinhos me dando uma mão daqui, dali, não é? Dando comida, me ajudando ali com as gurias. Um dia, chegou... Em um domingo bateram na porta, fui ver e era ele, então abri a porta. Ele disse assim: “Eu vim aqui porque eu vim dar uma prova de amor para o meu amor”. Estava ele com uma mulher bem novinha, não é? Eu tinha vinte e oito, ela deveria ter uns dezessete, dezoito. Então eu olhei, estava lá no portão, ele disse: “Eu vim dar uma prova de amor”. Eu disse: “Mas que prova de amor?” Ele pegou e me deu um soco - eu tenho até o sinal aqui. Deu-me um soco na cara para mostrar para ela como ele não tinha nada comigo. E eu fiquei apavorada, as gurias gritavam - a Dione gritava, a Rose gritava, apavorada. Então eles fizeram aquilo ali e saíram correndo. E os vizinhos saíram correndo atrás deles e pegaram os dois. Então, me levaram para o Pronto Socorro para fazer curativo e fazer a denúncia, aquela coisa toda, mas ficou tudo... Naquela época, era tudo por isso. Então, vizinhos diziam: “E agora, como é que tu vai fazer criatura? Sem dinheiro, sem emprego, sem nada”. Eu disse: “Eu tenho dois braços, duas pernas, tenho uma cabeça bem legal eu vou trabalhar, porque até virando pedra dá dinheiro, qualquer coisa eu faço, mas as minhas filhas não vão mais passar por isso, e nem fome vão passar”. Foi o que eu fiz. Então, me passou na cabeça, no outro dia, sabe? Eu disse: “Mas eu tenho uma amiga que trabalha no laboratório, no Marques Pereira, lá em Porto Alegre. A Carmen. Vou ligar para a Carmen, porque eu fiz o curso de enfermagem”. Na época, eu fiz o Magistério. Eu disse: “De repente, eu vou colocar em prática. Porque eu nunca trabalhei...”. Liguei para a Carmen, a Carmen disse para mim: “Olha, eles realmente estão precisando de uma pessoa lá”. Eu disse: “Segura lá para mim que amanhã eu vou lá”. Então, pedi dinheiro emprestado para a minha vizinha e fui. Peguei o ônibus e fui para o Marques Pereira. Cheguei lá, a doutora me entrevistou, aquela coisa toda, fiquei empregada; no outro dia já era para começar. Mas daí, eu precisava de um sapato branco, ou um tênis, o uniforme branco - a calça branca, jaleco... Eu disse: “E agora? De onde?” Então, a doutora que me entrevistou - a doutora Clarice - disse: “Então, amanhã às sete horas - é das sete às quatro da tarde”. Eu disse: “Não tem problema”. E eu ia no ônibus pensando: “Como é que eu vou arrumar essa roupa? Mas eu vou arrumar”. Então, eu me lembrava da fulana, se eu já a tinha visto de calça branca; a filha da fulana usa jaleco branco para ir para o colégio - naquele tempo, eles usavam uniforme, não é? Vou pedir emprestado. Pois não é que me emprestaram? Arrumei tudo emprestado e me apresentei no outro dia toda enfeitada com a roupa dos outros, mas fui. Comecei a trabalhar lá. Eles davam dinheiro para nós quando tinha que atender em um hospital ou ir em uma residência. Eles davam dinheiro para o táxi, para ir e voltar. O que eu fazia? Eu ia de táxi, porque eu não sabia como é que era... Se precisaria ou não.... Ser rápido ou não. Mas eu ia de táxi, na volta eu vinha de ônibus para pegar o dinheirinho para chegar em casa e levar o pão para as minhas filhas. Assim eu fui, ia, e fui. Então... Um dia, eu chamei a minha sogra - porque ela morava em Santa Maria - e disse: “Tu vens a Porto Alegre, minha sogra, que eu preciso falar contigo”. Então ela veio, eu disse: “Minha sogra, faço uma proposta para ti: a Rose está no colégio aqui e eu me preocupo muito porque eu saio de manhã e volto à noite, porque demora de Porto Alegre a Alvorada”... Naquela época, era uma buraqueira aquelas estradas, às vezes o ônibus quebrava e eu chegava tarde, e aí as vizinhas é que as reparavam para mim - a Rose vinha do colégio sozinha, com oito aninhos. Então eu falei para a minha sogra... A minha sogra veio, eu disse: “Olha, queria lhe fazer uma proposta: “Tu levas a Rose, eu vou colocá-la no melhor colégio que tem lá em Santa Maria…” - que era o Colégio Centenário, um colégio metodista - “e a Rose vai estudar lá: eu pago o colégio e tu cuidas dela, dá comida, tudo que ela precisar tu cuidas”. Ela disse: “Não tem problema”. Fizemos isso: levou a Rose, fiquei com a Dione. Então, eu deixava a Dione em uma vizinha, para a vizinha cuidar dela. Um dia me veio à cabeça... Eu passava sempre na frente de um orfanato de Irmãs e via aquelas crianças entrando e muitas vezes via as mães buscando, à tardinha. Um dia eu fui lá e disse: “Vou ver o que é isso aí”. Fui lá e a Irmã disse: “Olha, tem umas crianças que moram aqui porque eles não têm onde ficar, mas eu tenho outras que os pais pagam para elas ficarem durante o tempo em que eles estiverem trabalhando”. Então eu disse: “Ah, então eu quero para mim, mas eu gostaria que a senhora me arrumasse uma bolsa de estudo porque eu não tenho dinheiro para pagar”. Então ela disse: “Não, nós daqui do colégio não damos, mas tu vais na Prefeitura e diga que fui eu quem te mandei ir lá - a diretora do colégio, uma Irmã. E tu vais conseguir”. Fui lá na Prefeitura e consegui na hora, para a Dione, uma bolsa. Então, eu levava a Dione pela manhã e buscava à tarde. Chegávamos tarde em casa, mas a Dione era pequeninha, nós íamos lá para a Alvorada, e assim foi indo. E eu sempre quis sair lá da Alvorada, aquele cantão, não é? Aqueles ratões, aqueles bichos... E aranha, escorpião, tudo que era bicho tinha lá. Então, a Dione... E eu querendo sair de lá e não conseguia. Porque eles pediam mil e uma coisas para alugar um apartamento lá em Porto Alegre, na cidade, em Santa Maria. Então eu ia aqui, ia ali: “Ah, mas a senhora tem que... O seu fiador tem que ser daqui de Santa Maria mesmo, não pode ser lá de Viamão, ou de Alvorada, tem que ser daqui”. Eu dizia: “Mas aqui não tem ninguém”. E assim eu ia. Então, um dia, liguei para a minha comadre, a madrinha da Dione, disse para ela: “Eu não aguento mais, vou fazer qualquer loucura. Tu tomas conta da Dione porque eu não aguento mais, não sei mais o que fazer, eu quero sair lá daquele cantão, porque é uma tristeza - eu e a Dione vamos só para dormir nessa distância toda, todo dia com essa criança pequeninha para lá e para cá, e eu não consigo alugar nada”. Ela disse: “Deixa aí comigo que eu vou levar um chinelo e vou bater nessa tua bunda. Onde é que se viu uma mulher forte dizer essa barbaridade? Espera aí que eu vou lá”. Então foi lá atrás de mim e eu estava com (inint) [00:30:44] na mão, tinha um apartamento para alugar, ela disse: “Vamos lá, eu vou falar com essa pessoa”. Então fomos lá, falamos com o dono do apartamento e ela contou a minha história. Ele disse: “Não, não, ela vai morar lá no apartamento”. Então aluguei o apartamento, apartamento pequenininho, porque era o meu sonho também trazer a Rose para junto de nós, não éramos só nós duas. Consegui alugar o apartamento, ela conseguiu fazer para mim, fomos morar. Então trouxe a Rose, a Rose já estava no último ano do ginásio, tinha o colégio perto, foi estudar ali e vinha para casa todo dia. Ah, coisa bem boa, não é? A gente ali com as duas filhas, eu bem feliz, trabalhando, e nós fomos vivendo assim, levando a vida.
P/1 - A senhora lembra como foi a primeira noite das três juntas no apartamento?
R - As três juntas no apartamento era o meu sonho, não é? Eu digo: “Minha filha lá…”. Porque a Rose chorava lá porque eu ficava com a Dione e não podia ficar com ela, não é? Então, trouxe. Ah, Meu Deus, foi uma alegria danada. Então, fomos morar juntas, a Rose... E a Dione continuou no colégio, porque era perto, eu a levava, depois ela foi estudar no colégio Marista, com a mesma bolsa, porque ela continuou naquele colégio, no Colégio das Dores, lá em Santa Maria. E nós fomos vivendo, vivendo, e eu trabalhando... Trabalhava de dia... De dia eu trabalhava lá; de noite eu tirava plantão também, muitas vezes, em uma clínica que tinha lá perto de casa para ganhar uns (pilinhos) [00:32:40] a mais, não é? E eu ia bem contente, feliz da vida porque eu iria ganhar uns trocos a mais.
P/2 - Quantos anos a senhora tinha?
R - Eu tinha vinte e oito anos.
P/2 - Quando você conseguiu esse apartamento?
R - É. Tu sabes que quando eu fui... Saí de... Um dia, eu descobri uma irmã minha que tinha salão de beleza no... Aí está, eu fiquei lá em Santa Maria e... Nós fomos para Porto Alegre passear. Então, a minha irmã disse... Conheci uma outra irmã minha lá, também, que me levaram, a Zenir. Então, contei para ela tudo o que eu estava passando, ela foi e disse: “Não, não vai passar mais isso, vamos ver o que vamos fazer”. Então cheguei lá em Porto Alegre, eu não conhecia nada lá também, então eu disse para ela: “Olha, eu estou assim, assim no laboratório”. Então ela disse: “Mas aqui também tem esse laboratório, de repente... Vamos ver não é?”. Fui lá tentar conseguir trabalhar naquele que é o laboratório que fica na Santa Casa de Misericórdia, lá em Porto Alegre. Fui para lá, me mudei para lá com as gurias. Chegando lá, trabalhando, me virando daqui, dali, tudo que aparecia... Se aparecia final de semana: “Ah, podia limpar aqui, será que você não sabe alguém que limpa?” Eu dizia: “Eu”. Já ia limpando, não é? Para ganhar uns ‘pila’. E assim eu fui levando a vida, daqui, dali, daqui, dali. Nesse meio tempo, eu soube que o pai das gurias estava em Santa Catarina com a irmã dele, estava muito mal, com câncer, e ela telefonou pedindo ajuda às gurias. Coisa que ele nunca fez, nunca deu nada. Ela pediu que... Se as gurias podiam ir ajudar, que ele estava muito mal. Então eu falei para elas e elas não queriam ir, eu disse: “Perdoem o papai, perdoem, coisa de mãe e pai os filhos não têm que se meter, não precisa”. “Não, nós não queremos”. Então passaram-se mais alguns dias e ela ligou que ele tinha morrido e se as gurias podiam ir lá dar uma mão para fazer o enterro, porque ela era sozinha - também bem pobre - se podiam fazer o enterro. Eu falei com as gurias e elas não queriam ir, eu disse: “Vão sim, vão lá ajudar a tia a fazer o enterro do papai”. Então elas foram. A Rose já era casada, a Dione era solteira, mas a Rose já era casada. Foram, fizeram o enterro lá, tudo direitinho e vieram embora. Eu disse: “Viu como é bom? A gente vai lá, perdoa, vocês perdoaram o papai?” “Sim, perdoamos”. Eu disse: “Então ok, fizeram a parte de vocês, está tudo certo”. E elas foram estudando, crescendo, hoje eu tenho essas ‘baitas’ mulheres. O sonho da Dione era viajar pelo mundo, viajou vários países trabalhando, estudando. A Rose hoje é... A mais velha... é gerente da Pampa lá em Porto Alegre, na rádio, já há vinte e três anos que ela trabalha lá, está super bem, tenho os meus netos maravilhosos, que agora o mais velho foi morar no Canadá, e eu disse para ele: “Tu vais, filho, podes ir. Mas tu nunca olhes para trás, por mais que tu tropeces, tu vais engatinhando e vais para a frente, não olhes para trás. Porque esses que vão até ali e voltam, não crescem. Tem que enfiar o nariz”. Ele foi com a família, com a mulher, com dois filhos, e moram no Canadá. Estudam, trabalham... Ele trabalhava na rádio... Naquela do Silvio Santos, como é que é?
P/2 - SBT?
P/1 - A emissora?
R - A emissora do Silvio, como é que era?
P/2 - SBT?
R - SBT. Ele trabalhava no SBT, em Porto Alegre. E ela trabalhava no Grêmio, muitos anos, ela era... Como é que chama, faz todos os intermediários lá dentro do Grêmio.
P/2 - O Grêmio, o time de futebol?
R - É. Ela trabalhou muitos anos lá, a Melissa. E eles lá... Sabe com o que eles estão trabalhando? Coisa que ela nunca fez em casa, eu brigava com ela, xingava ela às vezes, não é? Que eu não tinha nada que ver com isso... Eu dizia: “Mel, tu não fazes nada em casa, Mel. O Felipe chega do serviço tem que cozinhar, tem que arrumar casa, arrumar cama tu não arruma, tu não fazes nada”. E ela dizia: “E eu com isso? Ele que faça”. Ela fazia assim, não é? Pois agora ela lá está trabalhando em um restaurante, lavando pratos, limpando o chão. Eu estive lá em junho agora, visitando-os, eu disse: “Meu Deus, que coisa linda, agora tu vistes (inint) [00:38:31]”, limpas tudo”. E antes, ela se achava. Eu digo: “Está aí para crescer, vão em frente, não larguem de mão isso aí”. E estão lá bem felizes, os filhos estudando, bom colégio.
P/2 - Que lugar no Canadá?
R - No... Ai, esqueci o nome. Diz-me uns nomes ali.
P/2 - Toronto.
R - O outro.
P/2 - Vancouver. Montreal.
R - Montreal. Eles moram em Montreal. Então, quando eu estive lá agora, em junho, era um calor de cinquenta graus, um calorão... Porque as casas são enormes, o edifício onde ele mora... E é só a frente que tu enxergas, no fundo é tudo fechado e não tem ar condicionado, só tem para o inverno aquelas... Não sei como é que chama aquilo.
P/2 - Estufa.
R - É. Aquilo ali para o inverno, porque a neve é grossa lá. E eu estava tão mal lá, com aqueles cinquenta graus, e não falava. Porque lá eles falam só o Francês, e eu não entendia nada. Era eu e a Rose lá, parecendo umas moscas tontas, porque eles saíam para trabalhar e nós ficávamos. Nós íamos ao supermercado, não adiantava... Tinha que fazer assim, ó... Sinal de que queria isso, queria aquilo. E eu disse: “Rose…”. Para dormir, eu me deitava no chão puro para ver se ficava mais fresquinho não é? Então, quando foi um dia, eu disse: “Rose, se nós ficarmos mais uns dias aqui eu vou entrar em depressão, porque eu estou que não aguento mais, eu quero ir embora”. Então viemos embora. Hoje eu estou fazendo terapia para aquela barbaridade lá, eu digo: “Meu Deus, eu não pensei…”. E eu dizia: “Ai, que saudades do Rio Grande do Sul, do frio de lá, que Deus deu do céu”. Mas venci aquela etapa toda. Mas antes disso ali, que eu comecei a trabalhar, estudando... Então, um dia, eu estava no salão de beleza da minha irmã, lá em Porto Alegre, na hora da minha folga, e tinha uma senhora fazendo a unha, e eu contando: “Ah, lá no Marques Pereira é maravilhoso de trabalhar, mas só que eu estou ganhando pouco, eu tinha que ganhar mais, o que eu faço?” E aquela senhora escutando a minha (história) [00:41:16], não é? E eu disse: “Ah, com duas filhas eu tenho que melhorar”. Aquela senhora foi e disse assim: “Porque tu não vais trabalhar na Rainha das Noivas? Rainha das Noivas era uma loja que, naquela época, era um finérrimo, iam comprar os vestidos de noiva, aquela coisa. E eu achava que era muito fino, e eu nunca tinha vendido nada na minha vida, achava que nunca tinha vendido. Ela disse: “Por que tu não vais trabalhar na Rainha das Noivas? Lá eles ganham super bem”. Eu disse: “A senhora acha?” Ela disse: “Eu sei que eles ganham super bem”. Então eu fui e disse: “Ah, mas lá é muito chique”. Ela disse: “Que chique nada, vais trabalhar, vais ganhar mais”. Eu disse: “A senhora conhece a Rainha das Noivas?” Ela disse: “Sim, eu sou a esposa do dono”. Eu disse: “(inint) [00:42:05], ô tchê”. Então ela foi e disse assim: “Tu vais lá amanhã, eu vou falar para o meu marido hoje de noite, vou falar para o Jaime”... que era o nome dele. “E amanhã, tu vais lá te apresentar para ele”. Então, eu saí do laboratório às quatro horas e fui lá, louca de vergonha. Eu disse: “Meu Deus, uma loja fina dessas”. Eu achando assim que eu não era nada naquela hora. Então eu cheguei lá, ele veio bem sorridente, o senhor, me atender, ele disse: “Ah, fostes tu que a Dora mandou aqui, não é? Que bom!” Mandou sentar no escritório dele, conversamos, daí ele me mostrou o que as gurias ganhavam lá, eu cresci... Eu disse: “Nossa!” Só que eram só dois e meio por cento sobre o que tu vendias, não tinha fixo. Tinha que vender, não é? Então ele mostrou lá várias, as melhores assim, ele mostrou que ganhavam muito bem. Então ele foi e disse: “A semana que vem tu podes começar a trabalhar?” Então eu disse: “Eu não sei vender, nunca vendi nada”. Ele disse: “Como que tu não sabes vender, claro que tu vendestes”. Eu disse: “Como... O senhor não me conhece, como é que o senhor sabe que eu vendi alguma coisa?” Ele disse: “Tu já vendeste a tua imagem, que é a primeira coisa que se vende e eu gostei muito de ti e tenho certeza que tu vais ser ótima vendedora”. Pense? E eu levantei a cabeça e saí, não é? Então, pedi as contas lá no laboratório e fui para a Rainha das Noivas me achando. Só que as criaturas que trabalhavam lá eram ‘vivaldinas’, já eram veteranas de comércio. Era por vez: a que estava lá em cima começava - primeira a atender - e ia até lá embaixo. E eu, como estava entrando, era a última, nunca conseguia chegar a minha vez, nunca tinha a minha vez para chegar, elas não deixavam, eu não vendia nada, passava o dia inteiro para lá e para cá (não vendia) [00:44:20]. Chegava o dia do pagamento, não tinha para receber. Passaram-se três meses, eu chegava em casa e dizia para Rose - porque a Rose era a mais velha - eu dizia: “Filha, a coisa está feia. A mãe deu a maior burrada da vida, não estou vendendo nada, não estou ganhando nada”. Mas como eu tinha o irmão... Que era irmão não de sangue, mas filho dos pais que me criaram e ele morava em frente, era professor na Universidade, ele dizia: “Não te preocupes, Maria, que eu vou te dando uma mão enquanto isso”. E ele me dava aquela mão, era solteiro. Então eu fui indo, fui indo, um dia ele mandou me chamar lá - o dono da loja. Eu disse: “É hoje, não é? Vai me botar para a rua e onde é que eu vou trabalhar?” E eu falava tudo para a Rose, porque a Rose era a mais velha. Era uma criança, mas era quem eu tinha para dividir. Então cheguei lá, ele mandou me chamar lá no escritório dele, e eu perguntava para um: “Não sabe o que ele quer comigo?” - naquela ânsia, não é? “Não sei, ele mandou te chamar”. Cheguei lá, falei com a secretária dele: “Não sabe o que o seu Jaime quer comigo?” Ela disse: “Eu não sei, mas ele está atendendo agora”. Eu disse:” Ah, então eu volto outra hora”. Louca para sair daquela. Ela disse: “Não, se ele mandou te chamar, tu vais esperar”. Eu disse: “Está bom, então”. Esperei. Quando ele veio me receber, ele veio sorrindo para o meu lado, botou a mão no meu ombro dizendo: “Vamos entrar, vamos conversar”. Cheguei, ele foi e disse assim: “Vou te dizer uma coisa: eu vou te ajudar porque sei a tua história. Vou fazer o seguinte: todo dia 5, dia do pagamento, vai ter o teu envelope aqui, com teu dinheiro aqui. Tu vens aqui, e dia 20 vais ter o vale. Tu vens dia 5 e dia 20 buscar o teu envelope, mas tu não avise ninguém, não diz para ninguém, porque senão vem a Rainha toda aqui”. Eu disse: “Não”. Então, dia 5... E eu me esforçando. Ele dizendo: “ Continuas te esforçando que tu vais chegar lá, tu vais ser uma das minhas melhores”. E eu ali, não é? Olha, depois eu saí a melhor vendedora da Rainha das Noivas, guria, porque ele me incentivou, me deu força, não é? Nunca mais esqueci desse homem, que hoje já faleceu. Mas que coisa maravilhosa, não é?
P/1 - Tem alguma venda que a senhora lembra que tenha sido memorável?
R - Mas... Eu vendi para uma noiva... Ai, o dia em que eu vendi para aquela noiva, ai, eu queria ver ela... Eu dava uns quatro, cinco vestidos, ela experimentava, eu colocava, enfeitava e fazia o máximo para ela ficar linda... E ela era filha de um fazendeiro rico do interior lá de São Pedro, (inint) [00:47:18] tem que tocar nela, não é? Então ela comprou aquele vestido mais lindo que tinha lá, o véu, tudo que precisava, não é? Que tinha lá dentro. Então, a gerente, depois que ela foi embora, veio me parabenizar, dizendo: “Olhe aqui o que a Maria Enedina vendeu. Por favor, olhe aqui, olhe a quantia, olhe só, que horror”. E é claro que aquelas que vendiam bem ficaram com os olhos desse tamanho, não é? Aquelas gatonas que tiravam o meu... Mas foi assim... Eu saí, parecia que eu não pisava no chão, de alegria. Eu disse: “Meu Deus”. Então, o ‘seu’ Jaime mandou me chamar lá para me parabenizar. Ele disse: “Eu não te disse? Eu não te falei que tu ias vender muito bem? Que tu és boa vendedora?” Eu disse: “Nossa!” Eu acreditei mesmo que sou boa vendedora, porque até hoje eu sou metida. Até para comprar, eu vou lá e pergunto: “Me diz quanto é que está isso aqui?” Na farmácia: “Quanto é isso aqui?”. “Está tanto”. Então eu tomo nota, vou a outro: “Quanto é que está isso?” “Está tanto”. E assim eu vou indo. Onde está o menor preço, eu vou lá e digo: “Quanto é que está?”. “Está tanto”. Eu digo: “Ah, não, mas eu vi lá...” - daí eu diminuo dez reais ainda. Eu digo: “Ah não, na outra farmácia eu comprei por esse tanto”. “Ah, ok, então a gente deixa por esse”. Eu compro por menos, até hoje continuo a mesma.
P/1 - Maria, se eu fizer algumas perguntas para a senhora vai lhe atrapalhar?
R - Não. Não vai não.
P/1 - Eu tenho muitas perguntas.
R - Ok. Faça-me. Faça todas as perguntas que tu quiseres.
P/1 - Tem problema se eu voltar bem lá para a infância da senhora?
R - Não tem não.
P/1 - Não tem problema?
R - Não, não, não.
P/1 - A senhora falou que vocês eram nove irmãos. A senhora consegue dizer para mim o nome de cada um, por ordem de nascimento? Do que lembrar.
R - Por nascimento, não... Eu vou te dizer a mais velha, que mora em Santa Maria, que é a Oráida. A Oráida está com oitenta e cinco anos. Depois, tinha a Tereza, que já faleceu. Há uns três, quatro anos. Depois me lembro da Oráida, Tereza, Zenira e eu - nós éramos quatro mulheres e cinco homens. Então, o Nelci, que é o mais velho; depois o Volceir, o Eloir e o José. O José, que foi o nenê, que foi o mais moço. Lembro-me dos nomes deles todos. O Nelci... Eu tinha muita vontade de conhecer os meus irmãos, e falavam muito que o Nelci foi criado por um fazendeiro lá em Alegrete, que também pertence ao Rio Grande do Sul, mas eu nunca tinha visto o Nelci. E era o meu sonho conhecer o Nelci. Então, um dia, eu estava em um seminário na academia de treinamento espiritual da SEICHO NO IE, em Gravataí, e vem aquela quantidade de gente de tudo que é município, e vem de outros estados também, aquela quantidade de ônibus, e eu estava na fila do meu... Porque é aquela quantidade de gente, não é? Então eu vi o ônibus ‘Alegrete’. Eu disse: “Mas... Será que não tem alguém aqui que conheça o meu irmão lá em Alegrete?” Tinha um senhor atrás de mim, ele disse: “Eu sou de Alegrete. Como é o nome do seu irmão?” Eu disse: “É Nelci de Araújo”. Ele disse: “Olha, eu posso... Porque eu tenho uma joalheria e posso colocar no rádio e chamá-lo; de repente, eu vou achá-lo, o seu irmão”. Então, dei o meu nome para ele e ele me deu o nome dele, telefone e tudo. Fiquei no aguardo. Quando foi um dia, bateu na minha porta esse mesmo senhor, com outro, porque eles também eram preletores da SEICHO NO IE, mas eu não sabia, não é? Eles disseram assim: “Nós viemos lhe dar uma surpresa”. Eu disse: “O que foi que houve?” Eles disseram que encontraram o meu irmão. Então os mandei entrar, nós conversamos, ele disse: “Olha, coloquei no rádio chamando Nelci de Araújo, que era para comparecer à minha joalheria. Então, apareceu o seu irmão lá. Levou um susto, porque ele é meu amigo e eu não sabia que o nome dele era Nelci - a gente só chamava ‘o Araújo’”. Disse que, quando chegou o meu irmão lá, diz ele assim: “Werner, o que eu estou te devendo? Estás me chamando pelo rádio? Pelo amor de Deus, se eu trabalho aqui do lado”. Então virou uma farra. Contou para ele que tinha me conhecido e se ele queria me conhecer. Combinaram comigo de eu ir para lá para Alegrete e eles iam avisar ao meu irmão que eu iria, não é? E combinamos tudo: que eu ia chegar lá, e quando eu chegasse, ia fazer de conta... Descer... Não conhecê-los, para o meu irmão pensar que eu não fui, não é? Então fui eu, ia Dione - a Dione era mocinha. Chegamos lá de manhã cedo, descemos do ônibus e passei pelo Werner e o outro, e fiz que não vi. Tinha um senhor tomando chimarrão, com a mulher ao lado... Eu ouvi quando ele disse assim: “Werner, cadê a minha irmã? Onde é que está? Fazer eu passar a noite aqui esperando esse ônibus e nada”. O Werner disse: “Eu não tenho culpa se ela não veio. O que eu vou fazer?” Então, quando eu ouvi aquela conversa, olhei para o Werner, ele veio e disse: “É essa que é a minha irmã”. Me pegava no colo, me abraçava, me apertava, mas eu me sentia longe, porque eu não tinha aquele amor de irmãos não é? Eu disse: “Meu Deus do céu”... Foi aquela alegria quando eu o conheci. Levou-me para a casa dele, nos parentes, nos amigos dele todos para conhecerem a irmã dele, que ninguém conhecia. Eu digo: “Meu Deus”... E depois daquele tempo, eu nunca mais o vi. Nunca mais. A gente se dispersou, não vi mais. Então, ele também era um dos mais velhos dos homens, não sei se está vivo ou não, mas foi.
P/1 - E, Maria, dos nove filhos a senhora sabe por que a senhora foi escolhida?
R - A única que papai deu, não sei por quê. Se eu era a mais bonita ou mais feia... Por que ele doou.
P/1 - A senhora era muito novinha?
R - Muito novinha. E tu sabes que hoje, quando as crianças falam isso, falam aquilo, te cuida, porque as crianças gravam muito. Eu nunca esqueci nada; com três anos eu não esquecia. Então, não é? Eu sonhava muito, eu tinha muito aquele... De me afogar... Como é que chama isso... Até hoje tenho, de vez em quando me afogo até com o vento... E aí tinha uma visão da minha mãe que me criou, era parede com parede, assim, a casa muito grande, ela disse: “Como essa criança se bate de noite”. Porque eu dormia sozinha em um baita de um quarto. “E se bate, e torce e isso e aquilo…”. Mas eles nunca... Não iam ver. Então, foi uma vida bem pesada para mim porque tudo para mim era feio, nada eu podia fazer, os outros podiam fazer e eu não podia porque pegava mal. No clube, quando... Uma vez eu fui ao baile - eu estava mocinha, eles me levaram ao baile - eu fiquei meio faceira, fui ao baile. Então, tinha o Clube do Comércio de um lado da praça e o Clube União do outro. Só atravessava a praça. E então nós fomos ao Clube do Comércio, mas uma amiguinha que estava lá me convidou para nós irmos lá olhar o outro baile e eu escapei e fui com ela. Cheguei lá, eles não me deixaram entrar porque eu não era a filha, eu era a criadinha, eles chamavam. No colégio, eu nunca sabia se eu era branca ou se eu era preta, porque o meu pai que me criou um pouco, ele dizia que eu era bugra, outro pouco era negra, que meu nome de Araújo de (inint) [00:57:06]. Então, era confuso. Um dia, eu fiquei tão contente no colégio: o professor, fazendo a chamada, ele leu assim: “Maria Enedina Lemos de Araújo, cor...”, e eu fiquei, não é? “... branca”. Eu disse: “Ah, eu sou branca”. Cheguei em casa, eu disse: “Sabe que o senhor está errado? Eu sou branca, o professor disse”. Mas eles como... Não sei se vocês são de origem alemã, mas o alemão é muito... Eram - não sei se ainda são - mas eram muito racistas, não é? Então, preto para eles... Meu Deus!
P/1 - E qual foi a reação deles quando a senhora disse isso?
R - Meu pai disse assim: “Bom, isso é coisa de professor, eu não sei”. E eu ainda continuei em dúvida se o professor estava mentindo ou o pai, não é? Mas fiquei naquela... Eu sou branca, sou preta, sou índio. E o pai dizia que o índio era bicho muito burro. E hoje eu vejo lá em Porto Alegre, eles têm na rua aquelas coisas mais lindas que eles fazem, eu fico, paro e olho, e penso assim: “Se eu soubesse fazer uma cestinha que o bugre faz, seria muito contente”.
P/1 - Maria, a senhora falou que quando entrou no carro com esse casal alemão a senhora sentiu que era um passeio. Quando a senhora percebeu que era definitivo? Teve algum momento?
R - Não. Tu sabes que não teve momento assim de eu achar que era definitivo, porque eles me ensinavam assim: eu ia pedir um pão: “Quero pão”. Então a minha mãe que me criava dizia assim: “Diga assim: mamãe eu quero pão”. Eu não conseguia dizer mamãe, não saía aquele mamãe, então ela não me dava o pão ou alguma coisa que eu queria comer. Não dava porque eu tinha que dizer mamãe. E o papai era a mesma coisa, até que... Então eu dizia bem ligeiro assim: “Mamãe, pão”, não é? Então ele dava. Mas aquilo bem ligeiro. Foi muito custoso para mim conseguir dizer mamãe e papai. Mas eu fui muito amada. O irmão... O filho que eles tinham... Eles tinham um filho de um ano de diferença comigo, então ele também era pequeno, o Edson. O Edson, a gente se dava muito bem, brincava muito e eles não deixavam que o Edson... sabe como é criança, se tapeiam, se jogam um pra cá, outro pra lá, e a mamãe não deixava nós brincarmos assim. Hoje eu entendo por quê. Talvez achasse que podia acontecer alguma coisa, não é? Mas ela tinha esse cuidado. Mas nós brincávamos e tudo. Ela até o tirou... Colocou-o em um colégio interno, em Porto Alegre, colégio de... Como é que chama esse de fazer agricultura, como é que é? Esse que estuda agricultura, como é que é?
P/2 - Agrônomo?
R - Agrônomo. Colocou em um colégio de agronomia. Ele estudando em Porto Alegre. Hoje também... Tudo isso eu vejo que ela fez para afastar, para ficarmos longe um do outro. Mas depois que ele se formou, casou com uma amiga minha, amicíssima minha, e professora. E ele foi morar em Brasília, trabalhou no Ministério da Educação lá, ele tinha cinco livrarias, tinha editoras, se encheu do dinheiro, grande na história. Ele vinha me visitar em Porto Alegre e ficava no melhor hotel, lá no Plaza, e vinha me buscar para almoçar com ele lá. De vez em quando ele fazia uma viagem, me convidava para ir junto, fazer a viagem com ele. Quando a mamãe faleceu, porque ela faleceu no Paraná, em Curitiba... Porque depois, quando eu estava com doze anos, ela teve uma menina, a (Aida Marie) [01:01:37], que hoje mora em Curitiba, e ela morava com ela, foi morar com ela lá. E quando ela faleceu, enterraram ela lá e depois... Um dia ele me ligou, passou uns dois anos, três anos, ele me ligou me convidando para ir junto, para levar os restos mortais dela para São Pedro do Sul, onde estava o papai enterrado. Eu fui, nos encontramos, ele mandou para a funerária a caixa, e nós fomos de avião, ele me pegou em Porto Alegre e nós fomos. Daí ficamos no melhor hotel lá, ele sempre assim, muito carinhoso comigo, muito atencioso. E dali há dois anos... Eu não sabia que ele estava com câncer na garganta,.. Depois disso ele morreu, bem novo. E não me contou nada. Levamos para lá, até tenho as fotografias, nós quando fomos ao cemitério com a caixa. E no fim ele estava com a doença e não me disse nada.
P/1 - Como a senhora soube do falecimento dele?
R - Porque a minha irmã avisou que ele tinha falecido, ela ligou avisando. Eu não fui ao enterro, mas foi muito triste. Então, esse irmão... Até essa semana sonhei com ele, mas que engraçado, eu sonhei com o Edson, mas foi tão legível, ele chegou e disse assim: “Oi, tudo bom?” Eu digo: “Tudo bom, tu por aqui?” Ele disse: “Sim. Eu vim te dizer uma coisa: tudo o que tu precisares, pede para mim que eu vou estar sempre ao teu lado”. Porque eu sou da Seicho-No-Ie. E, no momento em que eu conheci a Seicho-No-Ie, que é uma filosofia de vida, eu compreendi de vidas passadas que a gente tem... Que a gente tem muito a ver com vidas passadas. Aí ele, claro... Porque eu estou sempre fazendo oração para ele e falando com ele, e dizendo para ele que “onde quer que tu estejas, o que tu estiveres fazendo, que tu sejas feliz. Mas que possa, de lá onde tu tiveres, emitir vibrações de amor para todos os teus familiares aqui no mundo terreno”. Eu estou sempre falando isso para ele, sabe? E ele veio dizer para mim... Aí eu fui e disse para ele assim: “Tu sabes que eu estou de aniversário agora, dia um, não é?” Porque nós íamos ao cemitério, lá em São Pedro, com o papai e mamãe. E eles sempre diziam para mim que eu nasci no dia dois, que é o dia dos finados, porque daí eles não faziam nada, no meu aniversário não tinha presente, não tinha nada. Mas nós íamos ao cemitério e ele ia lá nos túmulos e colhia as flores. E quando eu via, vinha ele com o buquê e me dava, aquilo era a coisa mais linda. E a minha mãe xingava ele: “Mas o que tu fizeste, guri?” Ele dizia: “Eu trouxe umas flores para Maria, porque tu disseste que é o aniversário dela hoje”. Era assim, menina, era aquele carinho. Então, eu acho que coisas de vidas passadas que a gente teve juntos. E hoje eu vejo que depois que eu conheci a Seicho-No-Ie... Antes de conhecer a Seicho-No-Ie, eu inventei um... Como que é? Um dos diretores... Não era do Bradesco, era outro banco que tinha lá em Porto Alegre, que eu o conheci, que ele tinha conta naquele banco, agora me fugiu o nome. Ele disse para mim que estava querendo abrir uma empresa de cosméticos e essa empresa precisava de uma sócia. E ele viu que eu tinha jeito para comércio, e eu me achei a tal, a gostosa. Daí eu disse: “‘Seu’ Paulo, mas o senhor acha que eu tenho essas condições?” Diz ele: “Sim”. E esses cosméticos vêm do Rio de Janeiro, de Caxias, e ele: “E eu estou pensando em eu ser o diretor financeiro e a senhora, comercial”. Tudo bem, eu nem entendia nada disso. Mas... não é? Ficava besta, me achando. Peguei e assumi. Aí abrimos o escritório, no centro de Porto Alegre, e eu ia para o interior arrumar vendedores, fazia reunião com os vendedores. Porque podia vender de casa em casa, podia vender nas farmácias, onde quisesse podia vender. Eu fui a vários lugares e ele ficava no escritório. Mas só que o malandro tirava as contas, dinheiro que precisava para a empresa, tudo no meu nome. E eu me achava muito importante. No meu nome! Como eu sou bem de vida, o cara tira no meu nome. Aí eu tirei impresso, vieram vários locais para a empresa, inclusive um carro. Porque um dia ele disse para mim que precisava trocar o carro, que não sei o quê. Eu andava de ônibus, mas ele andava de carro. Aí nós fomos numa revendedora de carros, tirei o carro também no meu nome, carro zero. E eu continuando a trabalhar, dinheiro que era bom eu não via, mas eu tirava. Quando foi um dia, eu viajando, cheia de conta (inint) [01:07:58], voltei para casa, ligava lá para o escritório, nada. Aí fui lá ver o que estava acontecendo, cheguei lá, tudo fechado. Eu perguntei para uma vizinha: o Paulo não está aqui? “Mas faz dias ele foi embora para o exterior, você não sabe?” Eu digo: “O quê?” Ele já estava com tudo pronto. Eu digo: “Não, isso aí não é verdade!” Fui lá onde ele morava, ninguém sabia de nada. Eu, conta, conta, conta. Naquela época do Collor, que hoje era um valor, amanhã era outro, e assim ia. Menina de Deus, eles colocavam aqueles baita homens para cobrar na porta - que hoje até não pode - eles batiam, eu olhava no olho mágico, meu coração ia aqui. Me diziam tudo que era desaforo e eu devendo de tudo que era lado. E aí diziam assim: “Aqui é bom, vai lá que lá é bom”. (inint) [01:09:02] Eu ia lá, mas lá não dava, não ajeitava as contas, e eles continuavam batendo na minha porta. Ia aqui, ia ali,.. E, um dia, eu passei por um local onde tinha umas senhoras no pátio, tinha o portão na frente da casa, iam entrando as pessoas e eu as via reverenciando as pessoas: “Muito obrigado”. Elas iam entrando. E me chamou a atenção aquilo: “Que bonito aquelas senhoras, assim que eu quero ser um dia” - pensei para mim - “quero ser uma senhora chique assim”. Aí eu fiquei espiando. Ia entrando um, entrando outro, e aquela quantidade de gente: “Muito obrigado, seja bem-vindo”. E entrando. Aí, quando parou, elas vieram: “Venha aqui, vou te dar um abraço”. Fazia tanto tempo que eu não ganhava um abraço. Elas me deram um abraço bem apertado, disseram assim: “Vamos assistir à reunião, venha”. Aí eu disse: “Reunião? Mas do que é?” “Venha assistir, a senhora vai ver”. Eu, com vergonha, mas sentei bem atrás, aqui está cheio de gente. Aí, estava falando o professor (Kamoto) [01:10:21], que era um japonês, ele ainda estava meio enrolado no Português, e ele estava falando sobre o roubo. Eu digo: “Ué, será que esse japonês sabe da minha vida? Porque se eu não paguei, eu vou roubar, não é? Não paguei aquele montão de conta para pagar”. Aí ele disse que marido e mulher são um só; se tu fores o marido e tu fizeres coisa errada, eu também respondo por aquilo, ou vice-versa. Aí eu digo: “Meu Deus do céu, esse homem sabe tudo da minha vida”. Aí me veio o pai das gurias, não é? Porque nós moramos num lugar - Santo Antônio da Patrulha - que também é lá no interior de Porto Alegre, e ele foi morar... Ficou uns tempos entre Santa Cruz e Venâncio Aires fazendo a estrada de rodagem, trabalhando naquilo. E eu fiquei com as gurias na beira do mato, sem luz, sem água, sem comida e sem dinheiro. Ele me deixou lá, e a Diane era nenenzinha, a Rose já era maiorzinha. Tinha lacraia, escorpião, aqueles baita bichos e eu, um lampiãozinho desse tamaninho que eu achei lá, aqueles que têm o biquinho assim para cima, que nem iluminava nada, tinha que andar assim. E eu não dormia de noite com medo que fossem pegar, morder minhas filhinhas. Então, eu ficava ali de plantão. E passou... E eu não me correspondia, não tinha meios de me comunicar, não tinha telefone, não tinha nada. Passou. Até que um dia o irmão dele descobriu que eu estava lá e foi atrás dele, sem eu saber. Disse: “Se tu não fores buscar a Maria, as gurias lá, eu vou trazer para cá para casa, porque o teu desaforo... O que não deve estar passando essa criatura lá?” E foi lá e falou com o chefe dele. Aí o chefe mandou... Apareceu lá para me buscar. E aí chegou... Sabe aquelas vendedoras que compram para revender? Com uma sacolada de coisas. Chegou de manhã cedo, nós estávamos voltando... Não eram móveis, era caco, (inint) [01:12:50] enchendo o caminhão. E ela foi, me ofereceu, eu disse: “Não, querida, eu estou indo embora”. Bem contente, não é? “Eu estou me mudando... Ali o caminhão!” E daí ele pegou e torceu o beliscão na minha bunda. Disse ele... Como quem diz: “Fica quieto”. Aí eu peguei, fui para dentro, fui lá buscar mais caco para botar em cima do caminhão. Quando eu vi, ele chegou com aquele baita sacolão. Eu digo: “O quê? Tu compraste?” Diz ele: “Comprei”. Eu digo: “Tu pagaste?” Ele: “Não, pago outro dia”. Eu digo: “Mas eu disse para você que estamos indo embora, quando que tu vais pagar essa mulher?” Ele deu uma risadinha e eu fiquei quieta - tomara que eu saia daqui, não é? Chegamos lá, ele com tudo aquilo. Tu imagina as vibrações de ódio e raiva que essa mulher emitiu em cima de nós - de mim e dele - porque roubou as coisas dela. Aí, ele estava falando sobre esses roubos, essas coisas, e ensinando que a gente tem que fazer a oração do perdão, perdoar. Quando terminou a reunião, eu fui lá, pedi licença para falar com ele. Eu digo: “Mas, se ele sabe tudo da minha vida, vou falar com ele, não é? Esse aí é batuqueiro, esse velho”. Fui lá e disse assim: “O senhor disse que é para fazer oração do perdão, mas eu não sei o nome dela”. Diz ele: “Não precisa, só tu mentalizares a fisionomia dela”. Eu digo: “Isso eu sei, porque ela é baixinha, gordinha, assim”. Diz ele: “Então é assim. E vai fazendo a oração do perdão, tu vais sair de todas essas barbaridades”. Contei para ele tudo o que tinha me acontecido. Desci as escadas, dali já a oração: “Eu te perdôo, tu me perdoas, eu e tu somos um só com Deus. Eu te amo e tu me amas”. E foi indo. Passaram-se uns quinze dias, fui na primeira financeira. Cheguei lá, procurava o meu nome e não achava. Eu digo: “Mas eu estou devendo, eu sei que estou, porque todo dia tem gente batendo na minha porta, eu estou devendo”. E o gerente, o diretor dizia: “Mas não achamos”. E vinham os funcionários, não achavam o nome. Aí lá (inint) [01:15:31], eu estou devendo, acharam lá o negócio. “Está aqui, achamos”. Eu digo: “Mas tira todo o juro, por favor, porque é muito alto”. Diz ele: “Mas como é que eu vou tirar? Nós, nessa crise, tirar esses juros, não posso. O que a senhora está pensando?” Me colocou a boca, e eu chorava, me sentia um ratinho. Aí, de repente, ele disse: “Deu tanto por mês, a senhora vai pagar”. Deu o valor. Diz ele: “Quando a senhora vai pagar?” Eu fui e disse... Me veio dia quinze, não sei por quê dia quinze... “Dia quinze eu pago o primeiro”. Diz ele: “Então, está”. Deu o papelzinho ali e fui embora. Eu liguei para esse meu irmão que morava lá em Brasília e contei para ele a história, chorando, ele disse: “Não, mana, eu te mando esse dinheiro até quinze, paga lá”. Aí paguei duas vezes. Na terceira vez eu pedi para Rosa - ela ia para o colégio - eu: “Filha, passa lá na financeira e paga para a mãe. E traz o recibo bonitinho”. Disse ela: “Está”. Foi lá, procuraram, não acharam. Disseram para ela: “Tua mãe não deve nada, ela está enganada”. Daí veio na cabeça dela: “Então, me dê um papel escrito que a mamãe não deve mais nada aqui”. Eles deram para ela o papel, que eu não devia mais nada. Chegou ela dizendo assim: “Adivinha, mãe, paguei milhões lá”. Eu digo: “Com o quê?” - já me assustei toda. Daí ela mostrou: não devia nada, sumiu a conta. Passaram-se uns dias, eu fui na outra financeira - cinco ou seis financeiras que eu devia - em nenhuma acharam nada. E eu sempre (inint) [01:17:30] perdão, perdoando não daquilo, é daqui de dentro, pedindo para ela que me perdoasse. Aí, chegou o dia do carro. Eu digo: “Agora vou no carro, não é?” Fui no carro, cheguei lá o financeiro disse: “A senhora não sabe que quando a senhora comprou, nós fizemos um seguro que, automaticamente, ele pagou? A senhora não deve mais nada”. Eu não sabia nada disso. Um dia, me bate da Fininvest um cara lá em casa, olhei no olho mágico, bonitão, com uma boa de uma pasta na mão, de terno e gravata. Eu digo: “Isso aí é o delegado que vai me prender, é agora”. Abri uma frestinha: “Às suas ordens, senhor”. Eu (inint) [01:18:33]. Diz ele: “Dona Maria Enedina” - bem alegre falando. Eu digo: “O senhor é o delegado?” Diz ele: “Não sou o delegado. Eu vim aqui para conversar com a senhora, eu sou do Rio de Janeiro, sou diretor financeiro da Fininvest e vim conversar com a senhora”. Eu digo: “Mas o senhor não vai levar meus cacos aqui de dentro de casa?” Diz ele: “Não vou levar nada, eu vou conversar com a senhora. Vamos sentar aqui na mesa que eu vou abrir minha pasta, vou lhe mostrar. Eu fiquei sabendo lá, a senhora sabe, na financeira, quando faz um financiamento, automaticamente a senhora paga um seguro, não sabe? Se a senhora não paga, o seguro paga”. Eles não me disseram nada, eu não sabia. Mas eram os advogados de fora que estavam fazendo... Para tirar o dinheiro. Daí ele me explicou tudo direitinho. Disse: “A senhora não deve nada para nós, está tudo certinho. Eu vim aqui para a senhora assinar que não deve nada”. Eu digo: “Meu Deus do céu”. Aí fiquei numa alegria... Me tornei Seicho-No-Ie, fiquei acreditando, verdadeiramente, que a gente traz tudo na mente. O que tu imaginares de bom, vem de bom. E faz quarenta e dois anos que eu estou lá dentro. Hoje, eu trabalho com a melhor idade, porque a melhor idade (inint) [01:20:06], nós somos as crianças da Seicho-No-Ie. Aí eu faço brincadeira, eu mando ele dizer versinho, eu coloco música da terceira idade, danço, brinco e faço umas brincadeiras bem gostosas com eles. E agora eu fiz um curso, fiz o primeiro ano agora - acabei na semana passada - um curso do (inint) [01:20:30], que nós estudamos para melhor trabalhar com as crianças, porque elas estão muito abandonadas, principalmente no colégio. O professor passa lição e manda para casa, se vira. Então nós, tratando-os com amor, com delicadeza, olhando-os com olhos de bondade, elogiando... Porque eles gostam muito de elogio... “olha como tu fizeste bem”. Mas tem pais que chegam em casa, a criança tirou nota baixa, eles só vão em cima daquela nota baixa, não é? “Aí, olha aqui, (tu não estudaste) [01:21:16], tu vais ficar de castigo”. A primeira coisa que eles fazem é tirar o celular, coitadinhos. Mas nós fazemos diferente. Nós vamos mostrar que: “Olha como tu foste bem nessa aqui. Agora, no próximo mês, vai ser muito melhor que essa aqui, tenho certeza, porque tu és muito inteligente, muito isso, muito aquilo”. E eles saem daquilo. Então, eu fiz esse curso também porque a gente vai trabalhar nas escolas, levando ensinamentos para os professores, para os diretores de lá.
P/1 - Vamos tomar uma água?
R - Vamos.
P/1 - A gente chegou nesse assunto, Maria, a gente estava falando do irmão da senhora, que a senhora falou que sonhou com ele. Tudo bem se continuar mais um pouquinho na infância? Pode?
R - Posso.
P/1 - Eu queria saber se a senhora mantinha contato com o seu pai.
R - O meu pai verdadeiro. Falavam, comentavam que o meu pai tinha tuberculose. Naquela época, tuberculose não tinha cura, e todo mundo tinha medo, então falavam mas eu nunca mais vi meu pai. O meu pai bebia que era uma barbaridade, comentavam que ele dormia na rua muitas vezes, caído. Mas eu nunca vi. Eu sempre tive muito medo de morto, porque me assustavam com os mortos: “Porque o morto vai te pegar, o morto isso, o morto aquilo”. Eu tinha medo. Eu via... Eles usavam aquele (fumozinho) [01:22:48] preto no casaco, quando estavam de luto. Era um paninho que colocava assim. E eu, quando via aquelas pessoas com aquilo, eu tinha medo. Pensava que tinha um defunto ali. Imaginava... Coisa de criança. Um dia, eu estava em casa e bateram palma lá no portão, eu olhei assim e conheci. Lembro-me de que meu pai estava com um casaco meio rosa, quase dessa cor assim, e um fumo preto. E eu me assustei. E eu o conheci, pensei que era o defunto que estava ali, comecei a gritar e saí correndo, gritando: “O pai”. Daí a minha mãe, a Aida, que me criou, foi ver o que era aquilo, era ele. Estava no fim da vida dele e queria ver os filhos, que tinha muita vontade de ver os filhos. Ele morava na cidade de São Leopoldo, também próximo de Porto Alegre. E ele queria ver os filhos, mas eu não quis vê-lo porque eu fiquei com muito medo, eu me enfiei debaixo da cama da minha mãe e fiquei lá, assustada de medo do homem... O espírito. Eu pensei que era um morto que estava ali. De tanto medo que eu tinha de morto. Aí, depois, minha mãe contou o que ele tinha dito; aí, foi embora e tudo. E eu me lembro de que minha mãe se lavou bem lavado, passou álcool nas mãos, tudo, porque aquela doença era muito perigosa. E depois foi isso aí, não vi mais. E a minha mãe legítima... O nome dela era Maria Francisca, mas o apelido... Todo mundo chamava ela de “Pequena”. Porque dizem que ela era bem pequenininha, a “Pequena”. E o meu avô paterno era professor em São Pedro do Sul, então todo mundo o conhecia. Daí eu penso assim... Talvez ele, como era professor lá, e disseram que vinha vindo o filho, com toda aquela filharada, apareceu esse casal que queria adotar uma criança... E eu tenho até o papel da adoção, a Diane acho que está com ele aí, da adoção, quando eu fui adotada.
P/1 - E alguma vez eles falaram por que eles quiseram adotar uma criança?
R - Não, nunca. E eu tinha uma vontade de saber se meus pais eram casados, será que eles eram casados? Porque eles davam muito valor a isso, uma mulher separada lá não tinha valor nenhum, chamava-se vagabunda. A (inint) [01:25:47] do fulano. Então eles diziam assim: “Aquela é a (inint) [01:25:51]”. Se achavam, as casadas. Nem que estivesse apanhando, mas era casada; aquela outra que se separou não valia nada. E eu, o que eu estava dizendo?
P/1 - Se alguma vez eles comentaram por que eles quiseram adotar uma criança.
R - Não, eles nunca comentaram o porquê. Nada. Tinha empregada doméstica, eu não podia falar com a empregada, porque ela podia virar minha cabeça, contar coisas. Então eu não podia chegar perto da empregada nossa. Às vezes elas contavam historinhas, eu queria escutar, minha mãe me chamava, mandava me deitar. Era pequenininha, não podia escutar nada que a empregada doméstica falava, porque também não valiam nada, só valiam para limpar e esfregar para eles. E o meu sonho era saber se meus pais eram casados, porque quem não era casado não tinha valor nenhum, não é? E eu queria saber. Um dia, a minha mãe mandou eu limpar o galpão, e ela guardava muitas malinhas com caixinhas, com documentos, tudo. E eu mexi ali, numa daquelas - ela não estava em casa - eu lá, limpando o galpão, achei o papel. Maria Enedina... Era um documento do meu registro. Maria Enedina Lemos de Araújo, filha de Maria Francisca Lemos de Araújo e João Tibúrcio de Araújo, ambos casados. E eu fiquei numa alegria, eu ria sozinha, eu pulava lá no galpão. E nunca contei para ninguém que tinha descoberto, mas estava feliz; descobri que minha mãe era casada. Que bom!
P/1 - E o que a senhora sabe da história dos dois?
R - Não sei nada, porque eles iam para a lavoura, nós ficávamos em casa. Eu me lembro que cama... Eu enxergo a cama, não era cama, era uma coisa que tu deitava ali em cima, nem sei o que era aquilo, não era cama que eles deitavam, não tinha. E assim era a vida. E eu acho que minha mãe deve ter comido o que o diabo deixou de amassar, porque papai bebendo daquele jeito e ela com todos aqueles filhos. Eu não sei se ela morreu... Às vezes eu penso, deve ter morrido de infecção, com dois meses. Eu me lembro que o papai, quando ela morreu - tu vês como as crianças gravam - ele gritava na janela assim: “Vizinho, socorro, a minha mulher morreu”. Gritando por socorro, para virem ali. E me lembro de que eles fizeram o caixão lá no pátio de casa. E aí nós fomos, colocaram em cima de uma carreta e a gente ia a pé, o papai com os filhos, a minha irmã mais velha com o nenenzinho no colo, que era irmãozinho, levando. Aí enterraram ela lá em Boa Vista, num lugar que também pertencia lá para Cachoeira. E de lá nós fomos para São Bento. E dali eu fui para a casa dos pais que me criaram, mas eu nunca me esqueci disso. De toda aquela barbaridade.
P/1 - E nessa casa desse casal que criou a senhora, tinha algum costume da família? Um costume alemão, talvez? De comida...
R - Sim. As comidas eram todas feitas... Eu aprendi a cozinhar... Porque eu era criança e já cozinhava, não é? Posso dizer hoje que eu adoro cozinhar, tive restaurante, era cozinheira do restaurante, porque sempre gostei muito. Então, sempre tinha muita receita alemã para fazer - era massa caseira que era o meu serviço, amassar a massa e depois esticar com o rolo, depois cortar. Aquilo ali era meu serviço. Fazer o molho pardo. Eu também pegava a galinha, tirava aqui, botava os pés dela aqui, segurava e aqui cortava o pescoço. E aparava o sangue, ia mexendo ali com salzinho para não coalhar, para fazer o molho pardo. Isso era o meu serviço, era menina e fazia isso. E as comidas eram todas muita verdura, isso aí que você comia. E batata doce, aipim, essas coisas assim eles comiam lá também. Muita carne. Mas eram bem fortes as comidas, feijão bastante.
P/1 - A senhora chegou a aprender a falar Alemão?
R - Muita coisa. Muito pouca coisa. Mas até depois eu não falei mais, mas ainda de vez em quando... Agora eu estou fazendo Inglês, eu tento fazer Inglês para trabalhar a mente. E aí eu faço... Não sei se já ouviram falar na (NAPS) [01:31:20], ela é uma Faculdade da Felicidade. É do INSS. Lá nós temos dois mil associados. Então, lá tem ginástica, tem ioga, tem palestras, tem médicos, tem enfermeiros, tem apresentações de música, agora também tem Inglês, tem bordado, também tem crochê - para as pessoas, todas de idade, todos aposentados. E ali a gente dança, brinca, agora teve o (debu) [01:31:57] na semana passada, sexta-feira, de oitenta menininhas, debutaram. E todas debutando, vestido longo, bem bonitas. Então, o nome é Faculdade da Felicidade. Tem até aula para analfabeto. E aí eles têm a formatura, se formam, eles te escrevem bilhetinho, porque já sabem escrever, não é? Tem aula de informática, que eu fiz informática lá também. E sabe quanto desconto por mês? Já vem descontado e tu nem sentes - cinquenta reais - imagina? E aquilo é assim... Tudo que é tipo de ginástica que tu podes imaginar tem lá. E é gravado, então a gente grava e diz: “Saia do sofá e venha para cá”. É tão bom, porque as pessoas... São senhores, senhoras, a gente brinca... Viajam para cá, para lá, fazem baile no interior, convidam e vai a turma toda. É muito bom.
P/1 - Essa faculdade é em Porto Alegre?
R - É em Porto Alegre, a faculdade da felicidade.
P/1 - Maria, eu prometo que está encerrando já a parte da infância, eu só tenho mais umas perguntinhas. A primeira é: quais eram as brincadeiras?
R - As brincadeiras? Gostava muito de brincar de roda, que até hoje não me esqueço, que eu brinco hoje com umas crianças lá, de sessenta para cima. De roda, de dizer versinhos.
P/1 - A senhora lembra de algum?
R - Pular corda. Isso era eu, porque era pequeninha, magrinha, tinha (inint) [01:33:50], tu conheces a (inint) [01:33:52]? Eu era assim, uma espoleta. Subia nas árvores, descia das árvores. E eu gravei muito um assim: “Eu sou bem pequenininha, do tamanho de um botão, carrego papai no bolso e mamãe no coração”. Então esse, eu nunca mais esqueci. E quando dizia “mamãe no coração”, eu via a outra, eu nunca via aquela que me criou, porque ela não dizia... Não tinha uma palavra de amor, de afeto, um abraço que as mamães dão nos filhos, tão bom. Não tive isso. E eu via quando eles estavam falando comigo e ficavam com peninha de mim. Porque tinha uma tia da minha mãe que ia seguir lá, tia Vilma, e elas estavam falando em Alemão. E elas diziam assim... Tia Vilma olhava para o meu lado e ela fazia (inint) [01:34:46], que dizia assim: “Riquinha”. Aí eu digo: “Estão falando de mim, a tia Vilma ficou com peninha de mim”. (inint) [01:34:57]
P/1 - E o que a menina Maria queria ser quando crescesse?
R - Eu não tinha essa coisa, porque eles não me davam essa oportunidade de me perguntar o que eu queria ser, devia ser. Porque: “limpe o lixo ali”, “limpe o chiqueiro ali”, “limpe isso, limpe aquilo”, eu achava que a vida era aquilo ali. E um dia, eu passei na frente... A minha mãe tinha salão de beleza, essa que me criou. Então, ia muita gente, fazia pé, mão, cabelo, aquela coisa toda. E eu via na rua umas moças com os vestidos, com as saias... Naquele tempo, usava saia de armação, aqueles vestidos bem bonitos, com as unhas bem longas, bem pintadas, salto bem alto, e eu pensava: “Mas que bonitas essas moças”. Um dia, eu passei na frente de uma casa, junto com a minha mãe, e iam saindo duas moças daquela casa, com o muro bem alto, aí eu perguntei para mamãe... Eu disse: “Mamãe, essas moças que eu acho tão bonitas, elas moram aí? O que elas são?” E a mamãe disse assim: “Essas moças que vêm para cá, essas que tu estás vendo aí, elas vêm para cá porque fizeram coisa errada na vida”. Mas não disse o quê. E eu fiquei pensando... Eu olhava para elas pensando: “O que será de errado que elas fizeram? Em que elas erraram? Tão bonitas e fizeram errado”. Claro, pois elas eram mulheres da vida, tinha a época dos cabarés. Digo: “Meu Deus do céu”. Era assim, os pais não explicavam.
P/1 - Pois é. Não sei se sua mãe comentava - a que te criou - como era ficar adolescente...
R - Ela nunca me explicou. Quando eu fiquei menstruada a primeira vez, eu me lembro que ela fez uns paninhos, passou na máquina, uns trapos velhos que ela tinha lá, daí ela me disse que tinha que colocar ali e eu colocava. Agora, não sabia quantos dias, quantas horas. Aí, de vez em quando, eu dizia para ela assim: “Mamãe, passou tudo aqui”. E ela já mandava uns: “Tem que tirar, tem que lavar”. Aí, tinha que lavar aquilo ali para depois secar para colocar de novo. Era assim.
P/1 - Mas quando a senhora menstruou pela primeira vez, onde a senhora estava? Como é que foi descobrir?
R - Foi em casa, de repente saindo aquele sangue, mas eu não disse para ela, porque eu não sabia o que era aquilo. Achava até que era porque ela tinha me batido. Digo: “Nem vou falar”. E depois, um dia, ela viu a cama, que estava toda... Ela viu e foi fazer aqueles paninhos, que não tinha essa facilidade de hoje. E não explicou como é que tinha que me cuidar. E quando eu arrumei o primeiro namoradinho, ele estava servindo em Rosário do Sul, mas era lá de São Pedro do Sul. E ele me escrevia cartas, aí a mamãe recebia a carta, ela abria, disse que abria a carta, e lia. Daí um dia ele foi lá em casa, e nós estávamos sentados lá na sala, mas eu bem estranha, ele também, (inint) [01:39:07] uma criança. Aí a mamãe disse assim: “Sentem ali, é um canto bem escondidinho”. Hoje eu, Maria Enedina, vejo (inint) [01:39:22]... E eu dizia: “Não, para que eu vou sentar lá? Eu não vou sentar, não. Vou ficar aqui”. Aí ficava lá sentada, olhando para ele, ele olhando para mim. Eu digo, meu Deus do céu, que coisa séria, não é? Era assim a vida, não era explicado como era, deixava de ser. Quando eu fui me casar, me casei, fiquei na casa deles, me casei na casa deles.
P/1 - Dos seus pais?
R - Dos pais. Olha só, eu que fui dar jeito no vestido de noiva, alugar, eu que convidei os padrinhos, fui lá na igreja - me casei na igreja luterana, que eles eram luteranos. Mas não tinha nada, não ganhamos presente deles, nada. Eu me casei mais pensando em me ver livre. Porque de tanto a minha mãe me assustar, ela dizia: “Porque se engravidar, vai para a rua. Mulher moça que engravida, fica barriguda, vai tudo para a rua, vai morar na rua”. E falava umas coisas assim, bem grosseiras, sabe? Eu levei uns quinze dias para perder a virgindade, porque eu tinha medo. Vê se pode?
P/1 - Qual o nome dele?
R - Nelson.
P/1 - Como que a senhora conheceu o Nelson?
R - Conheci quando eu estava fazendo o Magistério. (inint) [01:41:11] Uma amiga minha, uma colega que morava em Santa Maria... havia na Igreja do Rosário aquelas quermesses e os pais dela faziam parte lá da direção. E ela me convidou para ir junto com ela, em Santa Maria. Aí eu pedi licença no colégio e fui com ela. E lá na quermesse, ela me apresentou ao Nelson, porque era vizinho dela. Aí eu o conheci, e foi indo. Ele ia lá me visitar, aquela coisa toda. Mas lá onde eu lecionava, que ele ia me visitar, em Cerro dos Coqueiros, que chique! Só alemão também, tudo alemão. E uns alemães maus. Eu parei na casa de uns alemães e tinham as filhas mocinhas, iam para a lavoura, passavam o dia trabalhando com o pai na lavoura, de certo brigavam lá na lavoura. Ele chegava em casa, eu me lembro que tinha uma escadaria assim que subia para entrar na casa. Ele colocava em fila, eram cinco, seis, era um guri assim, um rapaz. E ele com aquela açoiteira assim, dava um laçaço em cada um. Apanhavam.
P/1 - E isso quem era?
R - Do pai.
P/1 - O pai do Nelson?
R - Não, de onde eu ficava. Era assim. Dava-lhe pau. Digo, meu Deus do céu, saio de um alemão e entro em outro. Graças a Deus criaram essa lei agora, não é? Mulherada, nós temos que nos unir, unir aí desses homens, porque está muito feio.
P/1 - E a senhora comentou que, depois do casamento, morou ainda na casa dos seus pais de criação.
R - Não, depois do casamento não. Não morei lá.
P/1 - Nos pais do Nelson.
R - É, eu fui morar na casa dos pais do Nelson, da mãe do Nelson, que já era viúva. E ela era bem nova também, coisa mais querida ela. Meu Deus do céu, já é falecida, mas uma mãe para mim. Basta dizer que quando ela estava mal, no hospital, ela não comia com ninguém. Já estou há quantos anos separada do filho, e continuo me dando com toda a família, todos eles gostam muito de mim, e eu deles. Ela não comia, tinha eu que ir lá dar comida para ela, porque ela tinha certeza de que o que eu desse para ela não tinha perigo, olha só? Tem cabimento? Era um apego que ela tinha comigo, a dona Martinha - era o nome dela - coisa mais querida do mundo. Mas Deus levou.
P/1 - E como foi esse começo da vida?
R - Depois, um dia, eu disse assim... Diziam para mim: “Tu não vais vencer, criar duas filhas sozinha? Tu tens que arrumar um homem”. Eu digo: “Eu não, homem para eu arrumar tem que ser bem mais velho que eu, e que ele respeite as minhas filhas e me respeite, assim como vai ser o meu lado também com ele. E riam de mim. Onde é que eu ia arrumar esse homem? Eu digo: “Não sei, até na rua. Pode se bater na rua, caminhando”. Diziam: “Tu não vai a nada!”. Elas me convidavam para ir a um baile aqui, ali, eu dizia: “Eu não posso, se eu for ao baile vai faltar na mesa para as minhas filhas, e jamais isso vai acontecer, eu não vou”. Aí, um dia, uma amiga minha, também divorciada, me convida para ir ao Baile dos Coroas - eu era nova, tinha trinta e dois anos. Nos coroas, eu nem sabia o que era isso. Aí, ela disse assim: “Vamos, Maria, eu pago para ti, depois tu me pagas”. Eu digo: “Não, de jeito nenhum”. E ela insistindo. Digo: “Então fazemos assim: “Tu paga e te esqueces, porque eu não tenho dinheiro, não posso tirar do meu bolso para ir a baile, eu tenho duas filhas. Disse ela: “Está, louca de fome!” Bem assim, ela implicando. Aí fomos, me levou ao baile. Chegamos ao baile, ela me ensinando como é que a gente fazia para economizar, aí vieram umas tacinhas e um guaranazinho, a garrafinha, ela disse: “Vai colocando pouquinho, vai fazendo de conta que está tomando”. Para passar o baile. E eu ali, fazendo pose. Aí passou um senhor, todo de terno, de linho branco, dançando, e olhou para mim, sorriu e eu fiz assim com meu copinho. Ele com o cabelo bem grisalho. Aí, terminou aquela música, ele sentou na mesa dele, eu vi que ele estava sozinho na mesa, começou outra e ele veio me tirar para dançar. Eu tremia tanto. Digo: “Viu o que é a gente colocar na cabeça?” Estava lá dentro, eu queria um homem bem mais velho do que eu, só que na hora não me dei conta de que eu que tinha pedido aquilo. Diz ele: “Está nervosa”. Eu digo: “Não”. Diz ele: “Por que está tremendo tanto?” Aí dançamos e eu tropeçando nele, nem sabia dançar, pisava no coitado. Quando chegou ao fim, dançamos, aí ele: “Vamos lá para a minha mesa”. Eu disse: “Não posso, porque eu estou com a minha amiga”. Diz ele: “Não, vamos lá pegar tua amiga e vamos sentar lá na minha mesa”. Digo: Agora vai melhorar, não é? Vamos parar com o guaranazinho”. Aí eu digo: “Terezinha, olha, ele está nos convidando para ir para a mesa dele”. Fomos para a mesa dele. Esse combinou, tomamos cerveja, conversamos, rimos, dançamos. E no clube tem um restaurante, chegou a meia noite, diz ele: “Agora vamos descer para jantar”. Mas eu me sentia, no restaurante. Aí fomos lá, jantamos, tudo. Quando voltamos, ele disse para minha amiga: “Eu estou apaixonado pela tua amiga”. E a Terezinha disse no meu olho: “O cara aí está apaixonado”. Eu disse: “Terezinha de Deus, será que ele é meu (pai) [01:47:47]?” (Já tirei dinheiro da batida) [01:47:49]. Tu sabes que foi indo e ele me comprando presente, me dando presente. Ele comprava sapato de salto bem alto para mim, que eu não tinha, não é? Eu ia estar comprando salto alto tanto quanto (inint) [01:48:06]. Aí ele comprava, comprava roupa bonita para mim, comprava enxoval para minha cama, roupa de cama, tudo ele me dava de presente. Mas eu não tinha nada ainda, até então. E um dia ele me contou que tinha uma filha com Síndrome de Down, a única filha dele. Eu digo: “Mas onde é que ela está?”. “Está em casa”. Eu digo: “O que ela faz?” “Ela fica olhando televisão, ela gosta muito de riscar nas revistas, ela gosta muito de novela, que ela sabe o nome de todos os atores”. Eu digo: “Tu não sais com ela?” “Não, ela não pode sair”. Porque eles eram adotados como loucos, não é? Aquelas crianças. E de louco eles não têm nada, quisera eu ser tão louca quanto eles. Tu sabes, um dia eu pedi para ir lá na casa dele. Digo: “Quero ir na tua casa conhecer a Anita”. Diz ele: “Então vamos”. Cheguei lá, eles são tão carinhosos, me abraçou, me beijou, eu a abracei, aquela coisa toda. Conversamos, conheci a casa dele, tudo, uma casa com dois pisos, terreno com 650 metros de área, bem grande. E ele era aposentado do porto, ele era da administração do porto lá de Porto Alegre. E o que ele fez? Em seguida me colocou... Nem perguntou para mim nada, me colocou como dependente dele no INSS e no IP, que é o do estado. Me colocou dependente dele, dizendo: “Já vou te colocar minha dependente, porque se tu precisares ir ao médico aqui e ali, tu tens”. Bem assim. Eu nem sabia o que era aquilo. Digo: Virgem Maria, olha onde é que eu estou. Tu sabes que, terminando o dia, ele me pediu em casamento? Digo: “E agora?” Digo: “Está, vamos nos casar”. Daí ele: “Vamos nos casar porque, de repente, eu vou embora e tu vais ficar bem na vida”. E eu fiquei pensando: “Me casar com um velho”. Ele tinha sessenta e cinco anos e eu tinha trinta e dois, pelo amor de Deus. Marcamos o casamento, tudo, chegou na hora eu não fui. Não fui ao casamento. (inint) [01:50:40] só casar no Cartório. Aí eu peguei, fui viajar com uma amiga minha, fui a Passo Fundo. Cheguei lá na casa dessa minha amiga - que era na avó da minha amiga - ela disse assim: “A avó bota carta, Maria, deixa ela botar, ela gosta tanto de botar carta”. Eu digo: “Não acredito nessas coisas, para com isso”. Disse ela: “Deixa ela botar só por brincadeira”. Digo: “Está, então deixa a avó botar”. E ela leu para mim nas cartas que tinha uma pessoa assim, contou a história, que essa pessoa ia partir logo e que se eu não aceitasse o convite que ele me fez... Ela: “Ele fez um convite para ti, não fez? Tu marcou para ele?” Eu digo: “A única coisa que eu fiz foi que eu não me casei, não fui ao Cartório”. Diz ela: “Pois é isso. E ele vai partir logo, se tu chegas lá em Porto Alegre, vai lá e pede desculpa para ele, diz que tu queres voltar. Tu vais perder essa oportunidade”. Aí fui lá na casa dele, cheguei lá e ele disse assim: “Não, aqui as portas estão fechadas, não quero mais me casar”. E eu saí porta afora (inint) [01:51:58]. Aí passou mais uns dias, ele mandou um buquê de flores pela Rose, para mim, pedindo desculpas, que ele queria, que ele aceitava casar comigo. Aí nós casamos. Olha, ele durou - depois de nós casados - um ano. Um ano, está? E ele tinha ido ao Juiz - antes dele morrer - e tinha deixado tudo bonitinho lá no Juiz. Porque, naquela época, quem trabalhava no estado, indicava fulano, sicrano, colocava, e ia colocando lá para dentro, para fazer o concurso. E ele colocou dez parentes dele lá. Aí ele faleceu e foi lá no Juiz, colocou tudo direitinho: nomes dos parentes que ele queria e colocou assim: que não era para deixar a Anita comigo, porque eu era muito jovem e ela podia me atrapalhar de ser feliz na minha vida. Eu levei um susto, comecei a chorar, porque a Anita me chamava de mãe e ela era mais velha do que eu, me chamava de mãe. Eu digo: “Meu Deus, como é que eu vou ficar, doutor? Sem a Anita”. Diz ele: “Eu vou fazer assim, eu vou lhe dar três meses de curatela e nesses três meses eu vou chamar esse pessoal”. Digo: “Ai, meu Deus”. Saí de lá aos prantos, aqueles três meses não passavam, e eu em oração:”A Anita é minha”. Passaram-se os três meses, recebi o chamado dele, fui lá. Já saí de casa fazendo oração, não enxergava para os lados, era só frente e a mente, enxergando a Anita comigo. Cheguei lá, ele mandou entrar e eu digo: “Doutor, pelo amor de Deus, não me diga nada negativo, por favor”. E falando com o Juiz como se estivesse falando com uma criança, me abracei nele, digo: “Doutor, diga”. Ele: “Vamos sentar, calma”. E ele me mostrou, chamou um por um daqueles dez, nenhum quis ficar com a Anita. Diz ele: “Anita é sua”. Ai, eu abraçava, beijava. Ele me botou no Diário Oficial falando que eu, com duas filhas e aquela menina, que ninguém dá valor para essas crianças e eu querer tanto aquele anjo. A Anita foi um anjo de luz na nossa vida, ela botava as mãozinhas na cintura e xingava as gurias: “Vocês não se metam a dizer bobagem para a mãe ou estar teimando com a mãe, porque eu vou pegar o chinelo”. (inint) [01:54:39] foi a Rosa, foi a Diane, coisa mais amada. Fiquei com a Anita, ela ainda durou três anos, morreu com quarenta e oito anos. O médico me disse que na idade cronológica dela, ela estava com oitenta e seis e que ela durou devido ao grande amor, o carinho que eu tinha por ela. Ensinei a tomar chimarrão, saía para tomar chimarrão, colocava o rádio bem alto, ia dançar com ela, porque eles gostam muito de dançar, ia em baile, música, tudo que era coisa. Aí, ela quis aprender a pintar. Digo: “Vou te colocar numa escola de pintura de tecido”. Mas como lá tinha uma lancheria e eu dava um dinheirinho para ela comer um lanche, eu levava ela: “De tarde tem o lanche, tu comes o lanche”. Ela passava a tarde sentada lá na lancheria, as (inint) [01:55:30] mais ou menos ela estava ali. Ai, foi tão bom aquele tempo.
P/1 - E nessa época a senhora já tinha começado a ir à Seicho-No-Ie?
R - Já, já era.
P/1 - Posso voltar com o casamento com o Nelson?
R - Pode.
P/1 - Eu queria saber, Maria, se a senhora se sentir confortável para contar para a gente, quando ele começou a se mostrar violento?
R - Logo, acho que uns dois anos de casado. Porque eu tinha uns seis anos de casada com ele, não dava para aguentar. A pauleira pegava o dia todo. Ele chegava em casa e não falava. Se eu falava em dinheiro, que não tinha nada... Eu dizia: “Nelson, não tem arroz, não tem feijão, não tem carne, não tem isso, não tem aquilo”. Não tinha nada. Aí, ele já... Então, desde o começo foi assim. E, um dia, quando eu o namorava, passamos na rua, passou uma tia dele, que era médica, a Elzi, e ele me apresentou a ela. Que disse assim para mim: “Esse aí, para tu transformar, tu sabes fazer pão (inint) [01:56:51]?” Eu digo: “Sei”. Diz ela: “Assim como tu fazes um pão, tu tens que fazer com esse aí, porque esse aí não vai ser mole”. Aí eu pensei: “Ela não gostou de mim, porque dizer uma barbaridade dessa, que eu tinha que transformá-lo”. E ela quis dizer das barbaridades que ele fazia, mas eu não me toquei que era isso. Depois que as coisas acontecem é que a gente vai botando os pontinhos nos is e vendo, não é? O que ele fazia.
P/1 - E o que ele fazia com a senhora?
R - Batia, socava, quebrava as coisas dentro de casa; não tinha e ainda quebrava. Era um monstro. E a Diane, pequenininha, tinha um medo...
P/1 - E com as meninas? Ele batia nelas também?
R - Com as meninas também. E puxava. Eu digo: “Não vou”. Me veio aquilo, foi Deus que disse, porque se é hoje eu penso assim, ele pode me matar, pode isso, pode aquilo. E me veio aquela coragem de sair fora. Depois veio essa pessoa maravilhosa, que hoje eu tenho a pensão do INSS, do IP e a minha aposentadoria.
P/1 - Como ele chamava?
R - Ele chamava-se Oliveiro Portes Bandeira. Ele era viúvo. Então, ele sempre foi muito assim... E dizia para mim assim: “O dia em que eu morrer, eu vou estar sempre vigiando por ti, ninguém vai fazer mal para ti”. Isso me chamou muito atenção, e eu disse assim: “Pelo amor de Deus, não vai aparecer para mim, que eu tenho medo de defunto”. Ele disse: “Não, não vou aparecer, eu simplesmente vou tirar da tua vida”. Aí passou-se um ano que ele tinha morrido, uma amiga minha me convida para ir a um baile e eu fui. Aí chegou, nós estávamos na nossa mesa, entrou um cavalheiro, bem arrumado, chegou, tirou o paletó, colocou na cadeira, sentou na mesa dele, e eu cuidando. Pediu uma cerveja, estava ele tomando aquela cervejinha, e eu disse para ela: “Esse aí vai ser meu”. E ela: “Como é que tu sabes?” Digo: “Eu estou te dizendo, vou dançar com ele esta noite”. Não teve outra. Ele era primo-irmão do vice-governador do estado. E eu me sentindo. Aí me acertei para dançar com ele, dançamos. Namoramos uns tempos e ele foi morar comigo, eu morava sozinha. O que aconteceu? Ele tinha um táxi, que era dele, aí ele trabalhava no táxi e depois ele pegava e ia para o bingo. Jogava tudo. Vinha com os bolsos virados, e assim ia. E tomando cerveja, (tomando) [02:00:11] cerveja, isso e aquilo. E muito carinhoso comigo, então aquilo me segurava. E eu me achando. Como eu tinha a pensão do outro, (inint) [02:00:24]. Quando foi um dia, ele começou com uma coisa aqui nas costas: “Que dor, dor, dor”. Uma feridinha. Não conseguia dirigir, doía. Aí, um dia, eu olhei e falei: “Vamos ao médico. Vai ao médico, vai ver o que é isso”. Dizia ele: “Eu não vou”. Aí, um dia, eu peguei... De tanto ele se queixar, peguei e marquei o médico. Fomos lá, ele estava com câncer, como é que chama? Câncer de pele, no último. E ele não durou três meses. (Deixa eu ver) [02:01:02]. E quando ele estava com isso, eu peguei e me separei dele. Ele pegou e me colocou na Justiça. Para eu dar pensão para ele, (porque ele tinha que dar pensão) [02:01:10]. Aí eu dei dois meses de pensão para ele, e nesses três meses (inint) [02:01:22] levou ele. (inint) [02:01:26] Bandeira disse que ia levar. Tirou ele do meu caminho, sem mais nem menos. Eu digo: “Quando é que um homem forte e grande daqueles…”. Eu digo: “Poxa!”.
P/1 - E quantos anos as meninas tinham, mais ou menos?
R - A Rose já estava casada, e a Dione estava estudando. Era mocinha.
P/2 - Maria, a gente daqui a pouco tem que encerrar, mas ainda tem um monte de pergunta para fazer para a senhora.
R - Pergunta para mim que eu vou falar pouco.
P/2 - Não, não. A senhora não tem que falar pouco, não.
R - Não?
P/2 - Não, mesmo.
R - Pode perguntar.
P/2 - Eu queria saber como foi saber que a senhora seria mãe? A notícia que a senhora seria mãe, como que a senhora começou a perceber que tinha alguma coisa estranha?
R - Quando eu fui mãe... Você sabe que eu... Uma coisa assim meio gozada, que eu não senti que ia ser mãe. Naquele tempo, com o meu marido, era só o Nelson, era o INSS. Não ia, não fui ao médico, não fui em nada. Veio uma parteira em casa, que eu nem sabia quem era. Uma parteira, uma senhora já de idade, me atendeu em casa. Aí eu me lembro de que a mamãe quando ganhou a filha, mandou esquentar uma panela de água. Nem sabia para que era aquele panelão de água que tinha colocado no fogo, eu fiz a mesma coisa. Corri, que a parteira ia chegar, coloquei aquele panelão de água lá, mas não sabia o que ia fazer com aquele panelão. Tu sabes que eu, três dias gemendo para ganhar Rose, em cima de uma cama, e nada de nascer a Rose. Lá (inint) [02:03:23] nasceu a Rose. E a minha sogra junto comigo, e a parteira ali. Sofri, sofri, sofri, sofri, veio a Rose, linda e maravilhosa. Mas depois, dali a cinco anos, foi que eu encomendei a Dione. Mas em seguida que eu ganhei a Rose, eu fiquei grávida. Olha só. Eu fiquei grávida e era um menino. E aí o irmão mais velho do Nelson disse para ele: “Nelson, a Maria não vai sofrer do jeito que ela sofreu em casa. Tu vais levar ela para o hospital”. Aí (disse está) [02:04:08], mas eu grávida. Um dia, ele saía para o serviço, às vezes não vinha, eu ficava só com a Rose, pequenininha, no colo, (com arregão aqui) [02:04:22]. Um dia, chega uma moça lá em casa, conhecida minha, e ela disse assim: “Passei pelo “seu” Nelson, ele está conversando com uma moça ali em cima, eu o cumprimentei, ele não me respondeu”. Digo: “O Nelson? Mas ele trabalhava na (San Rick) [02:04:38]. Não está lá na (San Rick) [02:04:40]”. (Aí eu digo, desde) [02:04:41] lá de casa eu enxergava. Ele estava lá conversando com uma mulher mesmo. Daí eu com a Rose, com o barrigão desse tamanho, nos dias de nascer, sem um enxoval, sem nada. Não tinha nem o que colocar no neném quando nascesse. Fomos lá. Digo: “(Santa) [02:05:00], vamos até ali ver quem é aquela mulher”. Saí. Cheguei, ele estava de costas lá para casa, ele não me viu. Quando eu cheguei, encostei nele, ele olhou, e a mulher foi e disse assim: “Mentiroso, sem vergonha. Mentiu que era solteiro. Olha aí o estado da mulher, e mais um filho nos braços”. E entrou em casa. E ele saiu atrás de mim, me dando chute, me dando isso, me empurrando. Me deu uns empurrões daqui e dali. E eu fiquei mal, aí a minha vizinha me levou para o médico. Aí cheguei lá no médico, não ouvia mais o neném. O neném estava morto. Aí tiveram que induzir o parto, com quatro quilos e 250. Um baita de um guri. Ele nasceu um dia depois da Rose. A Rose é do dia 7 de julho e ele nasceu dia 8. A coice, a tapa, mas naquela época ninguém fez nada. Fizeram enterro, tiveram que registrar, e aí foi registrado como Vilson Carlos, que é os dois nomes dos avôs. E não vi se foi enterrado ou não, porque eles disseram que foi enterrado, mas eu não vi.
P/1 - E qual foi a reação do Nelson nisso tudo?
R - A coisa mais natural do mundo. Ninguém fez nada. Então, foi uma coisa assim, inexplicável. Aí continuamos juntos, dali cinco anos nasceu a Dione. Aí ganhei a Dione no hospital. A Dione foi privilegiada, porque já fomos para o hospital. A minha sogra junto comigo, muito brincalhona. Ela deitava na cama do acompanhante, dizia: “Vou dormir porque eu estou cansada. Não sou eu que vou ganhar neném”, ela fazia. Eu dizia: “Dona Marta, não faz assim, fica acordada”.
P/1 - E a senhora continuou por que tinha medo?
R - Eu tinha medo que acontecesse de novo. Ai, meu Deus do céu. Mas, graças a Deus, saíram minhas filhas.
P/2 - Eu queria que a senhora falasse como se deu a escolha do nome delas.
R - Olha só. A Rose, eu que escolhi. Rosemary. E a Dione, Dione Mary, eu queria que fosse, porque eu tenho um quadro, Diane, que é uma pintora. Diane, eu queria que fosse Diane Mary. E ele apareceu em casa com o registro, Dione. Eu digo: “Mas é Diane o nome dessa pintora”. E ele: “Eu escolhi porque eu tive uma namorada com esse nome e eu gostava muito dela”. Colocou o nome de Dione Mary. Eu sempre quando vejo meu quadro lá, Diane, (inint) [02:08:10]. Aí surgiu a Dione, maravilhosa. Uma filha que amo de paixão. Minhas filhas são tudo que eu tenho na vida.
P/2 - Se eu passar muito para a frente, a senhora me avisa. Eu queria falar como foi ser avó.
R - Imagina, o que foi ser avó. Eu, avó. Eu tinha trinta e nove anos quando o meu neto nasceu, mais velho. Filho da Rose. (Era tudo, tudo) [02:08:50]. Eu, avó, me achavam um máximo. E todo mundo dizia: “Mas tu, avó?” Eu digo: “Por que não posso ser avó?” E ele agarrado comigo, porque eu coloquei uma mini creche no apartamento onde eu morava, no Centro, em Porto Alegre. E aí ele morava comigo, porque a Rose trabalhava. E aí ele ficou comigo, ele não quis mais ir embora. Ele ficou até os doze anos comigo. E o Lucas ainda não tinha nascido. E ele dizia para mim assim: “Vó, te amo tanto, tanto, vó. O dia que tu morreres, eu quero ir junto contigo no caixão”. Aí eu dizia para ele: “Meu filho, mas não pode. Isso aí não existe, meu filho. Você não vai com a vó. Você vai ser um grande homem”. E ele gostava muito daqueles carros de quatro portas, sabe? Quando ele via um, ele dizia: “Vovó, olha o carro de quatro portas”. Eu dizia: “Você vai ter muitos desses carros, filho”. Ele dizia: “Mas você não vai morrer agora então?” Eu dizia: “Não, vou ficar bem velhinha”. Dizia ele: “Pois eu vou contigo, vó”. Agora que ele tem os filhos, eu mexo com ele: “E aí filho, vamos?” Diz ele: “Vó, sinto muito, agora não vou poder ir. Tenho meus filhos”. Um dia, o pai dele - ele estava com doze anos - e o pai chegou lá, a Rose já estava grávida do Lucas. Chegou lá em casa, cheio de razão. Diz ele: “A senhora sabe que os filhos, quem cuida e cria são os pais?” Digo: “Não sabia. É?” Ele: “É. Eu vou levar o Felipe para casa”. Eu digo: “Filho, você tem toda razão, leva seu filho com você. Eu vou estar sempre perto dele. Eu o amo demais, mas não é aquele apego de não deixar ele ir. Tem que ir, sim”. Aí levou. Ele: “E esse aqui”... Ele bateu na barriga da Rose... “Esse você não vai cuidar”. Eu digo: “Eu nem estou falando nada. Eu não vou cuidar, não estou dizendo nada”. Diz ele: “É, então”. Aí, levou o Felipe. Quando nasceu o Lucas, antes de nascer o Lucas, eles foram para uma fila de uma creche, bem boa, de Irmãs, e não sei o quê. Porque o Lucas ia ficar o dia todo lá, que isso e aquilo. Foram para lá, arrumaram a creche. Passou três meses, não aguentaram, porque eles passaram mais no hospital com o Lucas do que em casa. Porque ele não se deu por causa do ar condicionado, ele é todo alérgico, com problemas de rinite, e não sei o quê, de tantos (ites) [02:11:34]. Um dia, chega ele, de manhã cedo - ele e a Rose - com aquela trouxinha, bem disfarçado: “Dona Maria, será que a senhora fica com o Lucas? Ele não está se dando lá no colégio, dona Maria”. Eu digo: “Mas é lógico que eu fico. Amanhã mesmo eu vou comprar uma cadeira de balanço e nós vamos passar se balançando aqui”. Aí eu já corri, comprei uma cadeira de balanço”. Olha, desapareceu. “Ele não se deu lá na creche”. Então, mexeu com a Rose. Me lembro até hoje o meu genro, que já faleceu - a Rose ficou viúva bem nova. Anteontem, ele faria cinquenta e cinco anos, se fosse vivo. Ele faleceu de um acidente de moto. Então, ela era bem novinha e ele também. Mas foi muito engraçado, porque ele batendo: “Esse aqui você não vai cuidar”. Eu digo: “Está bom”. Caiu nas minhas mãos o Lucas também. Então eu amo de paixão os nossos netos, são uns anjos de luz. E agora, esse que a Dione tem, essa menina, que a Dione também (inint) [02:12:50] teve problema sério (inint) [02:12:54], aí ela não pôde ter os filhos. Fez vários tratamentos e tudo, não deu. Aí, um dia, ela teve a ideia de adotar, e eu dando forças para ela. Dizia ela: “Mãe, não importa cor, não importa nacionalidade. Pode ser até com Síndrome de Down, eu quero”. Eu digo: “Vai vir. Vai vir para ti”. E levou quatro anos esperando, naquela luta, naquela luta e nós íamos e voltávamos, e sempre aquilo. E ela já queria desistir, e eu dizia: “Não desiste, filha, ela vai vir”. De repente, chamaram-na, aí demorou mais um tempo até tirar lá do local onde ela estava. E hoje eu estou feliz, porque ela é tão amorosa, tão querida. E outra coisa, a Dione (inint) [02:13:48] conhece o Yuri. Da cor da menina. Eu digo, isso não é coisa de vidas passadas? E ele quer aquela menina, sim. Uma filha, minha filhinha. E ela, papaizinho pra cá, papaizinho pra lá. Diz ela para Dione: “Mãe, eu e o pai somos marrons e você é branca”. Coisa mais fofa. Eu amo de paixão. E agora tenho uma bisneta, que é do Lucas. Só que o Lucas, arteiro, foi em uma festa e conheceu uma menina lá, e fez outra menina, a Maria. Maria Laura está com três aninhos. A coisa mais linda, mais fofa do mundo. A bis, ela me chama, a bis. Eu amo, amo, amo, amo, cada uma delas. Coisa mais linda. Não tem coisa melhor. No dia em que vocês forem vovó, vocês vão ver.
P/2 - Maria, eu tenho mais duas perguntas finais para a senhora. Mas antes, eu queria saber se a senhora tem alguma história para contar que eu não perguntei?
R - Não, acho que é isso aí mesmo que contei. Coisa bem boa, meu Deus. Outra. O meu marido, Bandeira, esse homem maravilhoso, a quem eu agradeço todo dia, porque graças a ele não precisei virar mais pedras. Porque só faltou - o que sempre digo - me prostituir e roubar. Ainda faltam esses dois trabalhos para eu fazer, mas agora não vou fazer mais. Senão, olha... Andou ali. Tu sabes que antes da mulher do Bandeira morrer, colocaram... Ela já tinha a Anita, e ela dizia que não queria mais filho porque a Anita tinha nascido com a Síndrome de Down, então ela não queria mais filho. Não é que colocaram um pretinho na porta dela? Nenenzinho, um gurizinho. E ela ficou (inint) [02:16:08], pegou o nenenzinho para criar, registraram ele no nome deles. Luiz Levi Lopes Bandeira. Só que o gurizinho daí há pouco tempo... Ele estava com oito aninhos quando a mulher do Bandeira morreu, e o Bandeira ainda estava trabalhando. Ele entrou nas drogas, entrou em tudo que foi porcaria. Se transformou. O Bandeira não podia com a vida dele. Estava preso, chamava o Bandeira lá, e isso e aquilo, e vivia naquela coisa. E aí ele arrumou uma mulher e foi morar na parte de baixo lá de casa. Bandeira não queria. Eu disse: “Deixa a criatura morar ali, ninguém está ocupando”. E ela tinha mais três filhos de outros, e o pai e a mãe - um sem o braço e a outra na cadeira de rodas. A mãe na cadeira de rodas e o pai sem um braço. Moravam lá no interior (inint) [02:17:18], e ela com AIDS. Eu disse: “Bandeira, deixa eles morarem ali”. E ela engravidou, ganhou uma menina, e a menina também nasceu com AIDS. E o Bandeira dizia: “Essa casa aqui é para ti e a Anita morar. E as suas filhas, se precisar. Mas o Levi não é para morar aqui”. Ele morreu e eu pensei... Digo: não sou eu que vou ficar aqui e deixar toda essa turma na rua. O que eu fiz? Fiz um inventário, escondido de todo mundo, coloquei no nome dele e os chamei. Ele com AIDS, mal, mal, mal, mal. Eu disse para a mulher dele: “Mara, esta casa aqui é para vocês morarem. Vou deixar com todos esses móveis que tem aqui, tudo para vocês”. Você coloca a mamãe e o papai lá em baixo, que é melhor, e você e Levi ficam aqui com as crianças. Ou vice e versa, vocês que vão saber. Eu vou sair daqui com a Anita, vou morar lá no Centro”, que eu tinha um apartamento alugado lá. Aí ficaram (bem faceiros) [02:18:40]. Os parentes do Bandeira ficaram furiosos, porque então podia ter vendido para uma empresa, e não sei o quê. Eu digo: “Mas eles estão precisando urgente. Até eu vender...”. Nesse meio tempo, o Levi estava muito mal no hospital, morreu. E eles estão morando lá, até hoje. E esses dias eu passei por lá, vou ver como está a casa, só na frente. Não bati, nem nada. A casa toda demolida. O muro caído. A garagem não tem mais. Nem estão aí. Eu nem contei para as minhas filhas. Aí, até uma amiga minha disse: “Nem vai mais, porque eles não estão pagando os impostos. De repente, eles vêm te cobrar os impostos. Fica quieta. Deixa assim, (mesmo se eles estão lá dentro) [02:19:33]”. A janela quebrada, tudo. Digo, meu Deus, que coisa mais triste. (inint) [02:19:40].
P/1 - O pai e a mãe que você falou que moravam lá, era o pai e a mãe de quem?
R - Da Anita e do Luiz Levi. O Luiz Levi que eles pegaram para criar, mas não deu certo.
P/2 - Posso ir para as duas perguntas finais?
R - Pode, pode.
P/2 - A primeira é: como a senhora se sentiu contando hoje essa história para a gente?
R - Eu me senti assim... Parece que eu estou vivendo essa vida, criatura. Que eu voltei lá, enxergando tudo, até a cor da terra lá. Enxergando. Que loucura isso. É uma viagem ao passado. Porque eu sempre digo, o passado já foi, nós temos que viver o agora. E amanhã, Deus sabe. Porque tem gente que pula o hoje para viver o amanhã. Ou larga o amanhã e o agora, e vão lá. Mas foi muito bom. Muito, muito, muito bom. Adorei. Adorei vocês. Maravilhoso.
P/2 - E para a gente encerrar de verdade, Maria, quais são seus sonhos?
R - Meu sonho agora é viver a vida. Como eu sempre digo, assim... Eu brinco. Eu sou muito brincalhona, estou sempre brincando. Estou namorando. Estou namorando um senhor também, ele é divorciado. Dez anos menos que eu, e ele diz que está apaixonado por mim, porque ele estava em depressão, só passava deitado e isso e aquilo. Porque a mulher que ele teve tirou tudo dele. (inint) [02:21:25]. Que tirou nada. Deu. Tirou? Ninguém tira nada de ninguém, tu que deste. E agora fica aí deitado, chorando, miando. Não, vai trabalhar, vai fazer outra coisa. Ele é aposentado, aposentado (inint) [02:21:39], daí ficou cheio de dívidas. Eu digo: “Vai pagar as dívidas, eu paguei as minhas”. Aí comecei a ensinar a ele como é que paga as dívidas. E ele está fazendo. Então, cada vez que termina uma, ele diz: “Olha aqui, esta terminou. Fiz isso, fiz aquilo”. Digo: “Isso, vamos levantar”. E eu sempre brincando. Eu ligo o rádio vou dançando sozinha, vou fazendo a comida e vou levando a vida. Eu digo: “Agora eu vou”. Minhas filhas estão criadas, estão bem, então eu vou viver a minha vida. E eu digo sempre para elas: “Eu vou viver assim como eu sou, até os cem. Brincando, pulando, dançando. Depois vou viver mais cem, só para incomodar vocês”. Aí elas me disseram: “Não, a gente vai te colocar lá na Espanha”. Espanha é um asilo que tem lá. Digo: “Pode me colocar lá, porque lá tem meus amigos”. Porque eu sempre vou lá ajudá-los. Digo: “Pode me colocar lá, é lá mesmo que eu quero”. Então é assim que eu levo a minha vida, maravilhosa.
P/2 - E tem algum sonho?
R - Meu sonho? O sonho que eu tenho hoje, (adiantei) [02:22:52]... Esse apartamento onde eu moro é da Dione, lá em Porto Alegre. Muito bonito. São nove apartamentos no edifício. Nesse edifício tem médicos, tem juiz, tem advogados que moram lá. A mais assim sou eu, o resto tudo tem seus graus lá. Quando ela veio para São Paulo, ela colocou para vender. Eu morava lá no Bonfim. Bonfim é um dos maiores bairros de Porto Alegre. Aí não vendia, não vendia, não vendia, eu digo: “Filha, apartamento fechado estraga, mofa, isso e aquilo. Perde até o valor. Eu vou morar lá”. Diz ela: “Mãe, tu não vais se acostumar lá”, porque lá não tem (inint) [02:23:44] ali perto. Eu gosto muito do (inint) [02:23:43]. Eu digo: “Não faz mal. Eu venho para o Centro e compro”. Porque lá é Zona Sul, uma Zona muito boa. Eu vou sim, senhora. Peguei e estou morando lá. Adoro morar lá. Maravilhoso. Estou feliz, e eu já disse para ela: “O dia que você quiser vender aqui para comprar lá, você pode vender”. Diz ela: “Não vou vender nunca”. Eu digo: “Pode vender sim senhora”. Porque eu me acostumo em qualquer lugar, aonde eu chegar eu chego bem. E estou lá. Maravilhoso o apartamento dela. Lindo, lindo, lindo.
P/2 - Maria, o aniversário é da senhora, mas acho que a gente é que ganhou o presente. Muito obrigada. Muito obrigada mesmo.
R - Eu que agradeço vocês.
P/2 - Foi uma delícia ouvir a senhora.
R - Vocês são uma simpatia, uma belezura. Colocaram todas as bonitas aqui para dentro e o bonitão lá atrás. Vou levar para mim, posso? Posso levar? As minhas amigas (inint) [02:24:41]... Porque eu sou muito brincalhona, então abraço um, abraço outro, e os maridos das minhas amigas são meus maridos. Eu digo: “Nosso marido”. E eles dizem: “Aí Enedina, por quê?” Digo: “Sim”. Então tem uma que teve câncer, está bem pequena, tão miudinha, eu digo: “Não faz mal, eu fico só para mim”. Eu estou sempre brincando, sabe? Porque eu acho que a gente... Por que vai estar com aquela cara (inint) [02:25:06]? Não leva a nada. E aquilo ali atrai para mim essas coisas ruins. Então, eu estou sempre rindo, brincando e coloco aquelas músicas de gaúcho, danço e faço pose. Danço a dança cigana, faço parte do grupo de ciganos. Olha, aonde tem uma farra, a Maria Enedina está lá. E assim é a vida, vou levando a minha vida.
P/2 - Muito obrigada.
R - Muito obrigada.
P/1 - Obrigada.
R - Muito obrigada, digo eu.
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