P/1 – Bom, vamos lá Ulysses, para gente começar, primeiro eu queria te agradecer de ter tido este tempinho para gravar a tua história de vida para o projeto e pro Museu da Pessoa. Para a gente começar e deixar registrado, eu queria que você falasse o teu nome completo, onde você nasceu e quando você nasceu.
R – Meu nome completo é Ulysses de Macedo Fabrício Neto, eu nasci em 07 de abril de 1983, na cidade de Dourados no Mato Grosso do Sul.
P/1 – E você me contou o nome dos seus pais ali, mas para a gente deixar registrado, fala o nome completo da sua mãe e do seu pai.
R – O nome completo da minha mãe é Virginia Lúcia Gomes Revoredo Fabrício e o nome completo do meu pai é Amoacy Carvalho Fabrício.
P/1 – E você sabe dos avós?
R – Sim, o meu avô por parte de mãe é Manoel de Souza Revoredo e minha avó por parte de mãe é Isva Gomes Revoredo. Meu avô por parte de pai é Ulysses de Macedo Fabrício e minha avó por parte de pai é Eva Carvalho Fabrício.
P/1 – E conta um pouquinho pra gente da história dessa família.
R – Bom, se depois tu puder indo dando orientações de como ir, pode dizer. Meu pai é natural do Rio Grande do Sul. A família toda dele é do Rio Grande do Sul e minha mãe é natural do Rio Grande do Norte. A família toda dela é do Rio Grande do Norte. A minha mãe veio fazer uma especialização em Porto Alegre (RS), na época, meu pai morava em Porto Alegre. Eles se conheceram em Porto Alegre, mas nessa época meu pai estava fazendo mestrado, ele já tinha residência e trabalho em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Então, eles se conheceram durante este curso e namoraram, casaram e só que aí nesse meio tempo ele voltou para Dourados, e foi quando eu nasci. Eles voltaram para Dourados em final de 1982 e eu nasci em abril de 1983.
P/1 – E sua mãe estava fazendo especialização e teu pai mestrado, conta pra gente um pouquinho do que eles faziam.
R – Meu pai é engenheiro agrônomo, hoje aposentado, mas fez quase que a carreira toda como pesquisador da EMBRAPA [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] e estava fazendo um mestrado na área de fertilidade de solos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Minha mãe é formada em Educação Física, era atleta, professora e, na época, ela estava de licença, era funcionária do Estado, da Secretária de Educação do Rio Grande do Norte. Ela era treinadora da seleção estadual de basquete, o esporte que ela jogava e ela foi fazer uma especialização em basquete na Universidade Federal do Rio Grande do Sul também, na ESEF [Escola Superior de Educação Física]. Depois que se conheceram, namoraram, casaram e minha mãe já engravidou e então aí ela largou tudo lá em Natal (RN), saiu do emprego e foi pra Dourados onde meu pai já tinha residência, por ser pesquisador da EMBRAPA.
P/1 – E você sabe como seus avós maternos se estabeleceram no Rio Grande do Norte e os paternos no Rio Grande do Sul?
R – Sim, por, vamos dizer assim, um privilégio, a família do meu pai eu tenho já isto historiado, eu tenho um livro que conta toda a origem dele. O Diogo que é estudante de história já fez a pesquisa dele em cima deste livro. Os Macedo são de origem portuguesa e os Fabrício são de origem alemã, quando chegaram no Brasil deram uma “traduzida”, vamos dizer assim no nome e ficou Fabrício e [tem] um pouco de espanhóis também na origem da família do meu pai. Eles se estabeleceram no Rio Grande do Sul em 1800 e alguma coisa e veio toda a história e meus avós e bisavós todos são da região de Caçapava do Sul (RS), no pampa gaúcho. Não mudava muito ali: o meu avô era comerciante pecuarista, minha avó dona de casa, meu pai saiu de Caçapava pra estudar, primeiro foi estudar o Ensino Médio em Porto Alegre e depois fez faculdade em Passo Fundo (RS), aí da faculdade ele já começou a trabalhar em Porto Alegre e, em seguida, foi pra Dourados né, nesse caminho meus avós continuavam em Caçapava e só depois, quando meu avô já estava mais doente, meu pai trouxe eles, primeiro pra Porto Alegre e depois levou eles pra Dourados. Até meus cinco anos, meus avós paternos moraram conosco, em Dourados, minha avó e meu avô. Aí, quando eu tinha cinco anos, meu avô faleceu e minha avó quis voltar pro Rio Grande do Sul, foi morar na casa da minha tia. A família da minha mãe é de origem portuguesa e espanhola. É do período lá da colonização vieram as raízes da família e ficaram ali, não tem muita distância ou pessoas de outros lugares, são dali da região, vamos dizer, metropolitana de Natal, apesar de não existir, mas das cidades mais próximas ali. Família de muitos irmãos, a minha mãe tem cinco irmãos e meu avô tinha também seis, sete irmãos, não lembro exatamente o número, meu avô era funcionário público, auditor da receita estadual, já falecido também. Minha avó, dona de casa, sempre cuidando dos filhos, sempre morou lá. Meu avô nunca saiu do Rio Grande do Norte, não viajava de avião, a minha avó sim, já viaja, ela sempre nos visitava, mas meu avô não, a gente que visitava ele, já que ele não saia de Natal. A família da minha mãe continua morando lá, a maioria, só um dos meus tios que saiu para estudo e tal, o restante, todos sempre ficaram, residiram e moraram sempre em Natal. Minha mãe saiu de Natal para fazer um estudo, acabou se mudando de vez, 2007, ficou 24 anos fora, morando fora, que foi o tempo que meu pai se aposentou em 2007, aí eles foram pra Natal, morar mais próximo da família da minha mãe.
P/1 – E, Ulysses, agora conta um pouquinho dessa tua infância em Dourados.
R – A infância foi boa, acho que foi muito... Hoje em dia tá difícil de se ver infância, a gente era realmente criança, né? A gente morava numa vila de funcionários da EMBRAPA, eram casas de vários pesquisadores. A gente tinha uma turma na rua, era um bairro novo na cidade que tinha várias vilas, então tinha a vila dos funcionários da EMBRAPA, tinha uma vila militar, tinha uma vila dos funcionários da ELETROSUL [Eletrosul Centrais Elétricas S.A.]; então era um bairro só com casas iguais, por conta das empresas ou das instituições terem feito essas vilas e era bem tranquilo. A gente passava o dia inteiro na rua, só ia pro colégio. Casa era só pra dormir e comer. Era o dia todo na rua. Eu tenho um irmão, o Fabrício, um ano e meio mais novo que eu, a gente estava sempre juntos, sempre brincando, o pessoal na rua também. As nossas brincadeiras eram as mais simples possível: bola, pipa, esconde-esconde, corrida, bicicleta, jogar taco na rua, muito difícil fui ter e brincar com vídeo game já quase perto da adolescência, não era do nosso dia a dia. Eu morei em Dourados até os seis anos. Meu pai foi fazer Doutorado em São Paulo, em Piracicaba, então, com seis anos, a gente foi pra Piracicaba e moramos quatro anos em Piracicaba, foi dos seis aos dez. Lá, foi totalmente diferente do que a gente tinha em Dourados, lá eram poucos amigos, na maioria das vezes, em casa, brincadeiras só no colégio ou na casa de alguém ou no clube. Em Dourados, a gente tinha o costume de, no final da tarde ficar, todo mundo sentado na frente da casa e tomar chimarrão, as crianças brincavam e os pais conversavam; em Piracicaba não, já tinha uma certa preocupação com violência e tal, então, a gente não tinha isso. Eu lembro que na semana que a gente chegou, o pai fez o chimarrão, pegou as cadeiras a gente colocou na calçada e aí a gente começou a enxergar assim o movimento nas janelas dos vizinhos: o povo puxava a cortina, aparecia a cara na janela, olhava, olhava, até que um saiu de casa e veio: “Vocês estão loucos, vão pra dentro de casa, vocês querem ser assaltados e tal?” Então, aquilo ali meio que marcou os outros quatro anos que a gente ia ficar brincando dentro de casa. Aí sim veio o vídeo game, aí vieram as coisas para passar o tempo dentro da nossa casa ou na casa de algum amigo, aí até os dez anos a gente morou lá. Aos dez anos, voltamos pra Dourados, meu pai terminou o Doutorado, voltamos pra mesma casa, moramos mais, creio que, três anos nessa casa. Nesse meio tempo, o pai comprou uma outra casa, reformou, porque essa da empresa ele pagava um aluguel, na época, simbólico, mas o pai conseguiu comprar uma casa, reformou e a gente se mudou pra essa outra casa, no mesmo bairro, a poucas quadras daquela. Então, mantinha o mesmo ritmo e o mesmo dia a dia de brincadeira e tudo mais. Acho que de infância assim, em seguida entra a adolescência.
P/1 – Vocês sempre iam pra Natal, Ulysses?
R – Sim, nossas férias, na maioria das vezes. Nas duas férias do ano, a gente viajava; metade do ano, ou às vezes no final do ano, a gente vinha pro Rio Grande do Sul, sempre de carro, íamos nós todos e, no final do ano, verão, a gente acabava indo pra Natal. Sempre era invertido, se a gente fosse no meio do ano pro Rio Grande do Sul, no final, ia pra Natal ou o contrário. Quando a gente ia pra Natal, na maioria das vezes, ia só eu, meu irmão e minha mãe e ia de avião e era mais difícil. Tem um tio meu que trabalhava na época na aeronáutica e algumas vezes ele conseguia uns vôos nos aviões da FAB [Força Aérea Brasileira] e aí nessas vezes o pai já ia, ou quando tava um pouquinho melhor de grana, ele acabava indo, mas, assim, durante toda a minha infância, foram muito poucas as vezes que o meu pai foi pra Natal com a gente, né. Ia mais eu, minha mãe e meu irmão. Pro Rio Grande do Sul não, aí ia todo mundo, no carro. O pai ia dirigindo, saía de Dourados às quatro e meio, cinco horas da manhã, chegava em Porto Alegre às oito, nove horas da noite, passava o dia...
P/1 – E as recordações da casa de vó lá em Natal e também no Rio Grande do Sul?
R – Todas as duas vós, vamos dizer assim, as casas tinham recordações, mas são recordações até bem distintas. Enquanto em Natal, eu tinha, tenho né, na época, sei lá, acho que sete, oito ou dez primos então era uma casa cheia, sempre com brincadeiras, a gente estava sempre na praia, aquela coisa de veraneio. Era sempre aquele ambiente bem agitado, com bastante criança correndo, indo pra praia, aquela coisa molhado, churrasco aqui, comida e brincadeiras na areia, então era uma parte bem alegre, bem festiva, mas porque tinha muita gente, tinha muito primo, também tinha os desencontros, as desavenças, né, as briguinhas: “O mãe o fulano fez isso, né?” Enquanto que no sul, não, eu tinha dois tios, uma tia e um tio, mas esse meu tio faleceu muito cedo, então a gente perdeu o contato com os filhos e a família dele, então não tinha muito relacionamento. Só tinha minha tia que tinha três meninas e eu e meu irmão, então as brincadeiras eram quase que nulas ou muito limitadas assim, era um ambiente bem mais tranquilo e a minha avó por parte de pai era bem mais velha, era, como eu vou dizer, aquela caricatura de vó bem mais frágil, mas sem ser frágil, ela tinha uma saúde violenta, uma cabeça violenta, mas era miudinha, pequeninha, delicadinha, então era uma recordação assim. Ela fazia os doces pra gente, ela estava sempre fazendo cantigas de criança, mas aquelas coisas mais delicadas, a recordação que eu tenho dela é ela sempre no sofá fazendo um crochê, conversando com a gente, uma palavra cruzada, enquanto que a minha avó lá de Natal não, a minha vó é ligada no trezentos e oitenta da tomada, então era o dia inteiro cantando, mas cantando, cantando, na cozinha, lavando, passando, lavando o chão, tava funcionando, já era mais de chegar apertar, beijar, agarrar, era um relacionamento mais caloroso. Então foi legal porque eu tive as duas formas de viver a infância, duas formas ótimas, não tenho o que reclamar de nenhuma delas, mas bem distintas, bem tranquila. Assim como são meus pais, meu pai bem calmo e minha mãe é totalmente agitada, então eu tenho essas recordações. E lá de Natal, da minha avó, tem as recordações das comidas, que ela adora cozinhar, então, as comidas típicas também e aqui no sul era mais doce, minha avó adorava um doce, o negócio dela era doce, então fazia doce de pêssego, de figo, as compotas de laranja, abóbora, então cada um tinha um sabor diferente, uma lembrança.
P/1 – E Ulysses o que você queria ser quando crescesse, você lembra dessas primeiras recordações, quero ser isso?
R – Tenho, eu tive várias profissões... (risos)
P/1 – Conta pra gente.
R – Eu tive vários interesses assim, primeiro, eu disse que queria ser dentista, depois, eu disse que queria ser piloto, depois eu queria ser militar, estudei em colégio militar, fiz provas pras academias, mas, a partir da oitava séria, eu meio que já tinha definido que, ou ia fazer arquitetura, ou eu ia fazer agronomia, eram as duas áreas que me interessavam, né. Arquitetura pela experiência, experiência ruim, que meu pai teve durante a reforma da nossa casa e agronomia porque sempre estive muito próximo das atividades do meu pai, nas férias que a gente ficava em Dourados, eu ia pra EMBRAPA com ele em campo, quando eu vinha pro Rio Grande do Sul eu queria ir pra campo, andar a cavalo tudo, então eu tinha definido essas duas, tanto é que no Rio Grande do Sul você pode fazer, na época pelo menos que eu fiz, podia fazer vestibular para dois cursos de áreas que não tinham nada a ver, porque a prova era a mesma e eles só faziam os pesos diferentes, então a minha primeira opção foi arquitetura e a segunda foi agronomia. A partir ali da oitava série eu defini isso, mas durante o Ensino Médio, eu fiz colégio militar, aí eu tentei carreira militar, acabei não indo pela questão da saúde, porque, se você já está no meio militar, você tem a classificação de acordo com estudos e saúde. O que seria saúde? Eles selecionam quem não tem problemas, como eu uso óculos desde os dez anos, eu tinha um fator não impeditivo, mas ele fazia com que eu descesse na pontuação. Então, acabei não entrando na carreira militar, mas estou bem satisfeito hoje com a minha profissão, faço o que eu gosto. Fiz o vestibular no Rio Grande do Sul e no Rio Grande do Norte, nas universidades públicas, não passei no Rio Grande do Sul, que era onde eu queria, eu sempre quis morar no Rio Grande do Sul, mas não consegui, era uma concorrência e uma exigência bem maior e passei no Rio Grande do Norte, fiz minha faculdade no Rio Grande do Norte, em Natal, na Universidade Federal de lá, em arquitetura.
P/1 – Você não pensava em ficar em Dourados?
R – Na verdade, eu não pensava nem em ficar, nem em sair. As coisas comigo aconteceram meio que, não diria totalmente de supetão, mas assim, eu não tinha um plano longo traçado, eu só tinha uma coisa que eu queria que era morar no Rio Grande do Sul, isso eu tinha certo na minha cabeça, que eu tinha que morar no Rio Grande do Sul em algum momento. Acho que deve ter algum trauma inconsciente do meu pai ter feito lá e eu nasci no Mato Grosso do Sul. (risos) Mas uma vez eu estava em casa assistindo tevê, com meus pais, com o Fabrício, meu irmão, tal e passou uma reportagem sobre o colégio militar. Aí eu cheguei: “Bah, pai, eu quero fazer esse colégio aí”. Em Dourados não tem, só tem em Campo Grande (MS), vou me informar. Isso eu estava na oitava série, aí fui me informar e vi como é que era, tinha que fazer um vestibular também para entrar no primeiro ano, aí deu sorte, porque filho de civil só entra em colégio militar na quinta série, hoje não sei que ano é mas na época entrava na quinta série ou no primeiro ano do Ensino Médio, então deu a sorte que seria meu próximo ano, aí fui me informei e vou fazer o curso. O pai: “tá ,vamos fazer”, o pai não estava acreditando, fui, fiz a prova e passei, aí foi aquela correria pra poder mudar, arranjar lugar pra morar tudo mais em Campo Grande, isso eu tinha 14 anos e não tinha sido pensado, tanto é que meus pais ficaram totalmente atordoados e não sabiam como fazer, aí comecei a estudar lá, morei lá e ia pra casa de 15 em 15 dias aquela coisa, só que no segundo ano no Colégio Militar eu comecei a sofrer perseguição por um Tenente, porque ele chegou no colégio lá pra trabalhar, não sei porque ou como, foi pra lá, não sei qual são os critérios que o exército usava pra escolher quem ia pra qual lugar e esse Tenente foi pra lá pra ser professor de Educação Física, especificamente basquete e que jogava e que o cara não sabia nada de basquete e aí eu disse: “Quem sabe eu te ajudo, minha mãe é especialista na área, tem livros e é treinadora”, e o cara: “Tá, tá bem,” e levei uns livros e comecei a conversar com ele e eu não sei o que o cara viu que achou que eu estava, não sei, não vou dizer isso, mas ele achou alguma coisa estranha e ele começou a me boicotar, então eu não jogava mais, ficava no banco, teve um competição lá que incluía todos os colégios militares, que foi em Campo Grande, que ele convocou os alunos pra jogar e perguntei pra ele se eu iria jogar e ele disse que sim, que estava convocado, que iria jogar, disse: “Ó, vou ficar aqui no final de semana que vai ter jogos.” Meus pais vieram de Dourados, ficaram em Campo Grande ficaram num hotel, porque eu morava numa república, aí eles vieram pra Campo Grande ficaram no hotel para assistir os jogos e simplesmente o cara não me botava para jogar, até que teve um jogo que um outro colégio militar, que não me lembro agora, acho que era o de Santa Maria, foi com um uniforme igual ao nosso e aí tinha que ter um outro uniforme e nós não tínhamos outro uniforme e eu não jogava, mas segundo ele e na suma ele sempre me botava como capitão do time. É o primeiro capitão do time que eu vejo que nunca está jogando, mas tudo bem. E aí teve essa história do uniforme e aí a gente não tinha uniforme e a seleção feminina do Colégio Militar de Campo Grande tinha jogado antes e o que eles fizeram: “Ah, vamos pegar o uniforme feminino, que era diferente a cor e vamos jogar com ele”. Só que tinham faltado atletas, e quem ficou uniforme fui eu, aí eu tá então, eu não vou jogar, vou embora pra Dourados, meus pais vão ficar pagando hotel a tôa e esse cara não vai me colocar para jogar, e fui embora e nisso, ele não gostou que eu fui embora e me advertiu, me deu uma punição depois dos jogos, então ele começou a me perseguir e então eu falei: “Olha pai, meu futuro aqui...”, e já tinha na época uma certa diferenciação entre filhos de militar e filhos de civil, filho de civil normalmente estava tirando espaço dos filhos dos militares no colégio, então tinha uma certa diferenciação. Eu disse: “Olha, o cara tá me perseguindo tal”, mas tudo bem, aí fui passar as férias em Natal, eu, minha mãe e meu irmão, meu tio, aquele que eu falei que já trabalhava na Aeronáutica, disse: “Olha Ulysses isso vai ser pro resto da tua vida, até você ser militar, ser um oficial e fazer carreira e chegar nos patamares mais altos. A vida militar é assim”. Aí nisso a minha tia chegou, a esposa dele, falou: “Porque tu não vem estudar aqui? Vem aqui, que aqui tem colégios”, porque era uma capital né, Natal, até então, se eu saísse do Colégio Militar, eu voltava pra Dourados. Aqui tem colégios de nome, qualificados, preparatórios para vestibular, ela disse: “Olha, teu primo não fez cursinho e passou no vestibular, tal”. Aí, eu conversando com a minha mãe, a mãe: “tá, meu filho vai pra Natal daqui a pouco eu venho junto”, minha mãe gostou da ideia. “Tá, então vou ficar em Natal”, e só liguei pro pai e disse eu vou ficar aqui, cancela minha matrícula lá. Foi o segundo baque que meu pai levou: o primeiro foi quando eu fui pro Colégio Militar e o segundo que eu fui pra Natal. Aí ele tentou mudar: “Ah, tem certeza?”, “Tenho, pai, é o melhor.” “Tá certo, se tu achas que é o melhor pra ti, então fica aí.” Aí fiquei em Natal, fiz o vestibular passei, vim pro Rio Grande do Sul fazer vestibular, passei um mês e meio, dois aqui em Porto Alegre, mas não passei lá, mas passei aqui. Bom aí, também foi uma mudança sem muito planejamento, fiz a faculdade em Natal e quando eu estava terminando a faculdade, nessa época, meu pai saiu, se aposentou. Na verdade, ele se aposentou por um plano de demissão voluntária do governo [federal], na época do Fernando Henrique [Cardoso]. Então ele recebeu indenizações lá por ter aceito sair. Neste meio tempo, meu irmão, já morava em Natal também, porque ele prestou vestibular só em universidade pública onde a gente tinha família então era no Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Natal. O meu irmão prestou vestibular e passou em Natal também, então meu irmão já morava lá em Natal. Aí meu pai e minha mãe se mudaram pra um apartamento menor e venderam a casa, aquela coisa, então ele ficou com um dinheiro e disse assim: “Olha, cada um de vocês escolha um curso que eu vou pagar um curso pra cada um.” Então aí, meu irmão, como é da área de Turismo, escolheu fazer um curso na Inglaterra e passou oito meses eu acho na Inglaterra e eu disse pronto, tá aí a minha oportunidade de ir pro Rio Grande do Sul e aí fui procurar uma pós graduação no Rio Grande do Sul e aí eu fui procurar uma pós graduação, eu falei que fui procurar no Rio Grande do Sul, mas abri um pouco mais o leque, mas não encontrei, encontrei no Rio Grande do Sul, e aí eu escolhi um curso de arquitetura comercial, uma especialização em São Leopoldo, então meu pai disse então está bem, aí terminei a minha faculdade. A minha colação, eu recebi o diploma na quarta-feira e na sexta-feira nós estávamos descendo pra Porto Alegre. E aí eu fui morar no Rio Grande do Sul, fiz a pós-graduação, comecei a trabalhar e estou até hoje lá. Já voltei a Dourados, pra férias, a passeio e até pelo AFS [AFS Intercultura Brasil]. É um local que eu voltaria morar, porque é uma região, uma cidade, boa, legal, mas assim, eu não tenho uma meta de: quero ficar ou voltar para Dourados. Minha meta até então era ir pro Rio Grande do Sul, agora, a meta, a princípio, é continuar lá com a minha família. Agora se vou continuar lá ou não, eu não sei.
P/1 – E Ulysses aonde que entra o AFS nesta história? O seu irmão foi pra Inglaterra e eu ia te perguntar até se foi pelo AFS?
R – Não, não.
P/1 – Como que se deu então esse primeiro contato? Conta essa história pra gente.
R – O meu irmão foi pra Inglaterra mais ele já foi quando tava na faculdade e o AFS não tinha ainda o programa para maiores de dezoito anos mais desenvolvido, hoje já tem alguma coisa, mas na época não tinha. Ele foi por uma agência de intercâmbios. Eu conheci o AFS, conhecer mesmo, saber dele, em 2002 e eu entrei em 2003. Eu estava em Natal, aqueles meus tios que falaram: “Ah, quem sabe tu não vem estudar aqui?” Eu fui morar na casa deles, e a minha prima, filha deles se candidatou e foi fazer o programa do AFS, intercâmbio. Esse meu tio tinha tentando na época da adolescência dele fazer um programa pelo AFS e não conseguiu, na época, você tinha que fazer uma seleção extremamente concorrida, eram muito poucas vagas e era pra bolsa que ele tinha participado, então ele já tinha aquilo do AFS lá da adolescência dele. Como ele teve condições, ele proporcionou pra minha prima. E aí por ela fazer, como eu morava na casa deles, eu escutei sobre o AFS, fiquei sabendo tal e nesse meio tempo eu conheci na época o Presidente do Comitê que era o Rodrigo, aí nos tornamos amigos, o pai do Rodrigo era muito amigo do meu tio, esse com quem eu morava, eles foram colegas de faculdade, tiveram banda, aquela coisa toda. Então eu conheci o Rodrigo e o Rodrigo: “Cara, quem sabe tu não quer trabalhar conosco ali no AFS, participa de uma reunião conosco, vê o que tu acha?” Aí eu bom, vamos lá, acho que vai ser legal sim. Aí eu comecei a trabalhar como voluntário em 2003 e fui ficando. Num primeiro momento foi aquela ida mais despretensiosa, assim, vamos conhecer pessoas diferentes, conhecer estudantes de outros países, outras línguas, treinar um pouquinho o inglês aquela coisa assim. E aí tu acaba criando laços de amizade e relacionamento com as pessoas, então a gente criou um grupo legal lá no comitê de Natal, a gente estava sempre junto, às vezes nem era relacionado ao AFS, mas a gente saía pra ir pra um bar e uma coisa, a gente estava sempre junto e ficou um círculo de amizade muito legal e fui ficando, fui ficando. Obviamente, a missão e o objetivo da organização são interessantes, é bonito, é importante e nos traz muito orgulho, então, eu continuei trabalhando né. Em 2005, eu me formei. Início de 2006, fevereiro de 2006, eu me mudei pro Rio Grande do Sul, aí quando eu cheguei no Rio Grande do Sul: “Ah, vou procurar o pessoal do comitê daqui, quem sabe o pessoal também seja legal e a gente forme um grupo legal também”. A minha prima essa que viajou lá de Natal conhecia o Diogo, aí ela disse: “Ah, tem um voluntário lá que eu conheço o Diogo tal.” Aí eu procurei ele, participei da primeira reunião do comitê de Porto Alegre foi uma reunião por msn [plataforma de troca de mensagens pela internet] na época ainda, foi um dia que tinha chovido muito, tinham muitos problemas na cidade, aí acabaram marcando de fazer uma reunião virtual né. Só que quando eu fiz o contato, eu fiz o contato na época com o presidente do comitê Porto Alegre que era o Thiago, o Diogo era o voluntário, mas não era o presidente, na época, do comitê, então eu fiz o contato com o Thiago. Então nós fizemos a reunião e foi um fato engraçado também, porque nós fizemos toda a reunião via msn e o pessoal falava a gente tem que fazer isso e o Thiago falava: “Quem sabe o Ulysses faz”, “Tá, pois não, pode ser, pode ser” e foi indo a reunião. Uma coisa: “Ah, o Ulysses pode ajudar”, então, terminou a reunião, o Thiago estava encerrando: “Então, tá pessoal terminou, acabou obrigado.” E o Diogo: “Só um pouquinho, quem é esse Ulysses?” Que ele não me conhecia ainda, aí explicou tal, teve um outro encontro, um mês depois, presencial, mas num primeiro momento o pessoal não me conheceu. E aí o pessoal de Porto Alegre também, tão bom quanto o de Natal, assim o grupo. A gente também criou uma amizade muito forte, com os voluntários, isso foi já 2007 e lá o relacionamento, a forma de trabalhar lá no Rio Grande do Sul estava muito tranquila, muito amigável, muito bom, então foi fácil. E quer queira, quer não, o AFS hoje é responsável por todas essas transformações na minha vida, mesmo que eu nunca tendo viajado pro exterior, sempre nas minhas apresentações no AFS, uma reunião diferente, ou que tenha voluntários ou pessoas diferentes, eu digo que sou intercambista do Brasil que eu já morei em vários lugares do Brasil, com culturas totalmente distintas e extremas e eu sempre uso do conhecimento do AFS para aplicar na minha vida, porque eu saí de casa com 14 anos e fui morar sozinho numa república. O nosso maior número de programas é com adolescentes de 14 a 17 anos que vão morar sozinhos, então eu fui morar numa outra cidade com outras pessoas, então tudo aquilo o que um estudante passa no exterior, eu passei, mas dentro do Brasil. Lógico eu sofri choques culturais menores porque não eram culturas tão diferentes, mas sofri. A gente diz que o estudante quando vem do exterior pra cá, a gente avisa a família, olha ele vai dormir bastante, vai ter muito problema de estômago, vai ir no banheiro muito seguido, eu passei por tudo isso quando cheguei em Natal, a comida da minha vó é extremamente temperada, a lá de casa não era, todas essas transformações que os estudantes passavam, eu passei dentro do Brasil né. Então, eu utilizava desse conhecimento que o AFS tem pra minha vida, então ele é responsável por todas essas transformações também na minha vida. O Thiago, esse, que era o presidente do Comitê de Porto Alegre, inclusive está numa daquelas fotos, ele é primo da minha esposa, a minha esposa não faz parte do AFS, não tinha nenhum relacionamento. Eu conheci a minha esposa em 2012, até 2012 eu nem sabia que ela existia e estava ali próximo né. O Thiago e o Michael, que a gente chama o Mika, Thiago e Mika que são irmãos e são primos da minha esposa, que são dois grandes amigos que eu tenho em Porto Alegre, que estão lá, a gente continua se falando e foram responsáveis por apresentar a mim e a minha esposa, responsáveis por hoje eu ter uma filha e então partiu deles dois que eu os conheci no AFS. Conheci o Thiago pelo AFS. Essa mudança de Natal para Porto Alegre, o fato de eu ter procurado o AFS também me ajudou nessa adaptação, porque eu fui morar sozinho também. Toda essa andança que eu fiz, meus pais continuavam em Dourados, eles só saíram lá naquela época em que foi fazer o Doutorado do meu pai em Piracicaba, o resto do tempo eu saí e meus pais continuaram lá. Então, além do trabalho, de conhecer as pessoas, da gratificação, de conhecimento, de experiência de vida que eu fui adquirindo no AFS tem todo essa que eu diria que é uma coisa que está correndo paralela, onde eu estou indo o AFS está indo junto e me ajudando a encontrar os caminhos, ou adaptar, ou passar por aquele momento. Então tudo isso foi me dando vontade e até gratidão, continuo trabalhando, fui procurando outras formas de ajudar a organização, porque muitas coisas do que eu tenho hoje ou do que eu sou também são em função desse aprendizado e dessas pessoas que eu conheci no AFS. Então cheguei até aqui hoje sendo voluntário por esses relacionamentos que o AFS me proporcionou. Apesar de eu nunca ter viajado.
P/1 – Então Ulysses fala um pouquinho pra gente como é o desenrolar dessa carreira de voluntário, porque a gente tem muito essa coisa de que tem todo um processo de preparação pra uma pessoa viajar e o voluntariado gira muito em torno também desse aspecto e você acho que traz uma coisa diferente, essa outra ótica do voluntariado de uma pessoa que não foi pra fora, que não fez parte dessa etapa, mas que construiu essa carreira de voluntário. Se você pudesse contar um pouquinho pra gente da tua carreira.
R – Sim, normalmente, a maioria dos voluntários é que quando voltam do seu intercambio, querem contar, querem encontrar pessoas que passaram pelas mesmas coisas pra dizer e eu não tive isso oficialmente como eu falei, passei desapercebido, mas também vivi essas mudanças. E eu não, eu cheguei por um amigo, por um amigo que fazia parte e disse: “Cara, tu tem bem o perfil de voluntário que a gente precisa pra ajudar, tal.” E tem coisas realmente que são difíceis pra quem não viajou fazer, difíceis no sentido, é mais trabalhoso, porque tu não passou por aquilo então tu não sabe bem como lidar. Então o que acabou acontecendo, eu comecei primeiro trabalhando em áreas que não tinha muito a ver com o estudante. Eu primeiro comecei ajudando a fazer eventos de arrecadação, lá em Natal, a preparar uns treinamentos, então eu dava mais um apoio logístico, vamos dizer assim, para que as coisas acontecessem, os eventos. Depois, eu comecei a participar de processo de seleção de bolsas que tinham, selecionar estudante carente pra viajar. Depois eu fui pro lado do recebimento, bom eu tinha a minha tia que tinha mandado a filha, em seguida eles receberam uma estudante Neo Zelandesa, eu tive uma irmã intercambista nesse tempo que eu morei em Natal, então eu tive essa proximidade com o estudante de fora que estava no Brasil, passei a trabalhar mais com o recebimento. Fui virar conselheiro, fiz os treinamentos de conselheiro, pra poder ser conselheiro de estudante, mesmo sem ter viajado. Mas o recebimento era mais fácil, porque eu fazia toda a prospecção, a busca de famílias interessadas, então eu conversava com as famílias no Brasil, a minha atuação era bem mais voltada para no Brasil e não tão pro Exterior. E quando eu fui pro Rio Grande do Sul eu segui nessa linha, fui continuar fazendo o recebimento, mas na época o Diogo já estava precisando, o Diogo era Diretor Regional, ele já estava precisando de ajuda mais na área administrativa, financeira, planejamento, logística, que é o que eu comecei a fazer. Logo depois, o Diogo me convidou pra me fazer parte da Diretoria, como Diretor Administrativo da Extremo Sul, então eu fiquei como Diretor Administrativo, nesse meio tempo aí, lá no Rio Grande do Sul, pelo menos, é uma questão meio que por osmose, assim, tu vai indo nos estágios do voluntariado, então eu já sabia, bom, hoje eu sou Diretor Administrativo, próximo passo é ser Diretor Regional e aí a gente vai preparando os voluntários pra ir nessa linha; depois de Diretor Administrativo, vim a ser Diretor Regional; como Diretor Regional, os outros diretores das outras regiões me escolheram como representante deles dentro do Conselho Diretor, então eu já comecei a participar do Conselho Diretor antes mesmo de ser eleito e aí depois bom agora eu vou me preparar pra entrar no Conselho Diretor e aí me preparei, me candidatei e fui eleito pro Conselho Diretor e, nesse tempo, sempre quando eu posso, eu faço ainda alguma coisa de recebimento: conversar com família, não é tão frequente, ou toda hora, como um voluntário de comitê mesmo, até porque a gente não tem tanto tempo assim pra fazer tudo, toda hora né. Vez ou outra, eu fazia uma entrevista de família, fui conselheiro, durante este tempo que eu estou no Conselho Diretor, continuei sendo conselheiro, fui conselheiro de dois estudantes ainda nesses cinco anos que eu estou no Conselho Diretor. Eu sempre mantive um pezinho ali no recebimento, na ajuda no trabalho no comitê local em Porto Alegre, então foi meio que também pelo destino mesmo, foi levando, foi levando, foi acontecendo e se a pessoa trabalha com vontade, tem a sua motivação pra trabalhar e continuar no AFS, ele não precisa de mais nada, ele vai conseguindo fazer os treinamentos, se qualificar, encontrando formas de ajudar a organização, mesmo que ele nunca tenha viajado ou que ele passe muito tempo viajando, nós temos também voluntário que fez intercambio, depois foi fazer mais um mestrado, foi não sei aonde, está sempre viajando e mesmo assim consegue ajudar, se ele quer, ele consegue. E se continua como a gente diz, com a chama lá dentro, perdura.
P/1 – E Ulysses o que te motivou a sempre continuar a querer seguir esses passos que são meio que automáticos, essa escadinha de sempre querer estar com o AFS?
R – A grande motivação hoje, fora o fato de, como eu falei de você se sentir bem fazendo o bem para as pessoas, pra comunidade, pra o grupo, essa gratidão né, não seria gratidão, essa honra, vamos dizer assim, de poder fazer alguma coisa boa pra comunidade, essas relações, esses relacionamentos que a gente cria e cultiva no AFS é que faz você não querer sair, né. A eu vou sair do AFS hoje, muito provavelmente se eu for sair, eu vou, não sei se deixar de conviver, mas vou diminuir a minha convivência com essas pessoas que eu conheci nesses 13 anos. Vou deixar de conviver com o Diogo, por exemplo, vou deixar de conviver com o Thiago e o Michael, com o Rodrigo que foi meu amigo lá de Natal, que me chamou, até hoje falo com ele, quando eu vou a Natal, eu encontro com ele, sempre a gente está trocando uma mensagem ou outra. Então, são pessoas que pra onde quer que eu vá eu sei que eu posso conversar com eles, que eu posso contar e essa possibilidade de conhecer mais pessoas com este vínculo, são realmente amigos e não são colegas, porque são aqueles que passam anos sem se falar e quando precisa consegue falar, então isso faz tu não querer sair. Tu tem que manter essa convivência com esse pessoal, não só os amigos locais, mas também com a Secretaria Executiva, o Marcos mesmo da Secretaria Executiva, todo o e-mail dele no final ele manda uma mensagem, uma mensagem qualquer, então é legal tu saber que se vier um e-mail do Marcos vem uma mensagem, aquilo te faz refletir e se eu sair da organização, se eu não vou perder, mas vai diminuir, ou vou deixar de conviver com isso, então a pessoa que gosta, que sabe da importância que isso tem na tua vida tem dificuldade de sair da organização. Não é uma coisa que te prende forçadamente é uma coisa que te prende é bom, porque tu gosta, porque tu te sente bem.
P/2 – Então Ulysses, você chegou a tocar na questão que você fez treinamento pra ser conselheiro. O que eu queria saber é como é esse processo no AFS de capacitação, de qualificação de seus voluntários, como isso é feito?
R – Olha, tem diversas formas, estágios, níveis de treinamento né. E hoje a gente está caminhando para uma profissionalização destes treinamentos, estruturar eles de forma mais clara e estabelecida, com um método, um período, para um público específico. Mas durante esses 13 anos de voluntariado que eu tive, eu tive treinamentos de formas distintas, aquela coisa que: “Oh, precisamos de um conselheiro.” “Ah, então vamos arranjar alguém e vamos dar um treinamento pra ser conselheiro”. Isso aconteceu comigo, eu não era conselheiro: “A gente está sem conselheiro, a gente precisa de um conselheiro, o Ulysses é voluntário, tá então vamos treinar”. Então pegaram um voluntário mais experiente, que tinha mais tempo de organização, que conhecia, vinha e dava toda a parte teórica, normalmente a gente fazia uma experiência em conjunto, então ele tinha um estudante aconselhado, eu ia junto com ele nos aconselhamentos, ia ganhando experiência e me tornei conselheiro isso pras outras atribuições e tarefas também. Como eu falei, eu sempre tive mais voltado pro recebimento, porque eu não viajei e tinha coisas que eram mais fáceis pra quem viajou mais fácil no sentido de que sabia por experiência, mas se eu quisesse eu poderia dizer, eu quero receber um treinamento específico para trabalhar com estudante brasileiro que vai viajar, mas não foi tanto assim do meu interesse. Meu interesse foi mais pro recebimento. Então, os treinamentos que eu mais buscava eram mais esses. Desde quando eu estou na organização, você tem a possibilidade de: “Olha, eu quero trabalhar com o envio”, aí vem um voluntário ou até mesmo alguém da Secretaria Executiva, prepara toda a teoria de como fazer um envio, o passo a passo, os prazos, as datas limites, o que tem que fazer, o que não tem que fazer como tem que preencher, então isso tem de forma tanto on line, virtual, à distância como presencial. Normalmente, quando é presencial é um voluntário que está na organização a mais tempo que tem a experiência e acaba passando pra ti, e esses [treinamentos] virtuais, à distância, ficam mais com a Secretaria Executiva e a parte formal, documental da organização. O que a gente está querendo é estruturar isso de forma que o mesmo treinamento que se dê em Natal, se dê em Porto Alegre, se dê em Dourados, em Brasília, em São Paulo... Isso a gente está querendo organizar e é o que tem sido feito nos últimos anos e que deve continuar agora documentando e formando manuais específicos que é um legado que o AFS tem de diferencial. A nossa experiência dos estudantes não é só para a experiência, são estudos que a gente cria, que a gente faz, que a gente desenvolve para encontrar resposta para alguns problemas de diferenças das culturas, tanto é que muitos voluntários que são das áreas de [ciências] sociais, antropologia, qualquer que seja, história, muitos acabam ou fazendo trabalhos – profissionais ou acadêmicos – com o AFS em função dessa característica de formação, de pesquisa, de treinamentos e desenvolvimento de pessoas. Então, isso é notório que o AFS tem um conhecimento que, se, por exemplo, você quer ir pro exterior por uma agência, se quiser você pode ir amanhã, eu compro o programa e vou. No AFS não tem isso, tu tem que te preparar, não é assim: “Ah, eu quero ir pra tal lugar, tal data e ficar tanto tempo.” Não, nosso programa é assim se tu quer, tu que te encaixa nele, porque tem toda essa preparação, a nossa ideia não é fazer uma viagem, a nossa ideia é criar um aprendizado através de uma experiência de troca de cultura que você não está preparado ou não pensa que vai acontecer, aí nós vamos te preparar e te orientar a passar por essa diferença. Então isso é o diferencial no AFS, você tem um conhecimento incluso, escondido, vamos dizer, que normalmente não se tem em outras organizações.
P/1 – Nessa tua trajetória de voluntário teve um desafio muito grande em algum momento?
R – Muitos.
P/1 – Se puder contar pra gente até depois como que foram superados.
R – Muitos, bastante desafios. Quando eu fui pro Rio Grande do Sul, comecei a trabalhar mais regionalmente, eu comecei a participar dos eventos nacionais e, em 2009, a gente passou por um momento bem complicado, foi quando teve uma denúncia da, na época, Superintendente que era chefe do escritório, uma denuncia de irregularidades. E ela foi desligada da organização e nós ficamos um período sem a Superintendente, então foi um período bem conturbado, na época o CD [Conselho Diretor] daquela época foi muito questionado. Eu não fazia parte e fui um dos que questionou muito, inclusive numa plenária eu fiz perguntas e críticas contundentes. Um ano depois, o presidente da Organização na época o Almir veio conversar comigo, daquela minha fala lá atrás, e eu fui muito claro com o Almir: “Você pode explicar, explicar, explicar e para mim não vai explicar. Mas o que eu posso te dizer é que eu vou me preparar pra ajudar a organização, eu vou me preparar pra ir pro Conselho Diretor, pra ajudar a organização pra que a gente não passe por isso novamente”. E foi o que eu fiz aí eu me preparei, fui buscando informações, conhecimento, treinamento, tal, para poder me apresentar como opção para os voluntários ao Conselho Diretor e aí desde que eu entrei no Conselho Diretor foram muitos desafios. Desde a substituição do segundo superintendente, porque eu não peguei a primeira contratação quando essa superintendente foi desligada foi contratado um outro, eu ainda não estava no Conselho Diretor, entrei depois e nós desligamos este outro Superintendente também, na verdade aí, foi por outros motivos, mas por não nos atender, não atingir os resultados que a gente queria. Desconfiança e desavença de voluntários, um clima organizacional muito pesado, a Secretaria Executiva trocou a equipe duas vezes em três ou quatro anos a equipe quase que completa, com poucas pessoas mantidas, então era um clima de muita desconfiança. Os voluntários não acreditavam nas coisas que eram ditas, então foi um período muito desgastante, bem desgastante, as reuniões do CD eram longas, demoradas, pesadas, com poucos resultados, então os desafios foram grandes. E a gente foi trazendo pessoas que pudessem nos ajudar, mostrando pros voluntários outras alternativas, até que a gente chegou numa composição de CD de Diretorias Regionais e Secretaria Executiva de funcionários que criou um clima mais positivo, um clima favorável, um clima produtivo. Hoje, nós temos uma equipe na secretaria Executiva que já está aí a, salvo uns poucos números, uns dois ou três anos, a mesma equipe: uma equipe entrosada, que trabalha de forma fácil, sem grandes problemas. O grupo do Conselho Diretor também, as reuniões tem muito mais assuntos, com um tempo de duração de reunião menor e com muito mais resultados obtidos. Então, um clima de reunião bom, produtivo, que a gente consegue dar andamento. A gente ficou muito tempo, no Conselho Diretor, apagando incêndio e resolvendo picuinhas entre pessoas. Agora nós estamos trabalhando na organização, estamos discutindo assuntos para a organização, estratégicos da organização. A gente não fala mais de problemas pessoais, então os voluntários também estão se, não diria policiando, mas se adaptando ou percebendo que essas diferenças eles têm que tratar entre eles no seu comitê, na sua região e não vir tudo pro Conselho Diretor. Uma vez eu até comentei que parecia aquela briguinha de aluno na escola: “Ah, professora, o fulano colocou uma tachinha na minha cadeira”. Então, essa tachinha vinha para o Conselho Diretor. “Oh, o fulano colocou a tachinha na cadeira do outro e nós vamos ter que resolver o que nós vamos fazer”. Não é isso que a gente tem que tratar, então foram uns três anos, vamos dizer, assim bem complicado, bem conturbado, muito pesado que agora a gente viu nos dois últimos anos, esse último ano bem especificamente, a gente conseguiu fazer mudanças, criar estratégias e projetos para a organização, esquecer um pouco as pessoas, não as pessoas em si, mas os problemas das pessoas, nós estamos tratando da organização
P/1 – Ulysses, como esse também é um registro da história do AFS, não só pra comunidade interna, mas historicamente mesmo, eu acho que é interessante você contar pra gente um pouquinho, como se dá essa relação, por ser uma organização voluntária, dos voluntários, do voluntariado com a Secretaria de tirar ou colocar uma pessoa, essa coisa que teve, que você deu exemplo da denúncia. Fala pra gente um pouquinho como que é feito o corpo do secretariado e o poder e a participação dos voluntários do Conselho Diretor nesta equipe que trabalha pra vocês na verdade.
R – Hoje, o AFS, como a gente diz, os donos da organização são os voluntários e dentre estes voluntários os presidentes de comitês são, os voluntários juntos os presidentes de comitês são os voluntários que tem o maior poder de decisão que é o Conselho Nacional, isto está no nosso estatuto. O Conselho Nacional, que é a reunião de todos os presidentes dos comitês, é o que fazem as grandes mudanças na Organização, referendam, aprovam ou não as grandes mudanças. E aí eles elegem um Conselho Diretor, elegem voluntários pra fazer parte do Conselho Diretor que é quem nesse período vai guiar a organização, dar os rumos da organização de forma política e estratégica, traça os objetivos, define as estratégias, os projetos, o que a gente vai fazer nos anos acompanhando o planejamento estratégico da organização, planejamento estratégico esse que é feito por todos, todas as instâncias participam e é aprovado por todos, aprovado pelo Conselho Nacional. Nós temos um planejamento estratégico de cinco anos e nós trabalhamos dentro do Conselho Diretor e da Secretaria Executiva se trabalha com base no planejamento estratégico, agora as ações e os projetos que serão trabalhados naquele momento quem vai definir isso é o Conselho Diretor e a Secretaria Executiva que são os funcionários, são as únicas pessoas que são remuneradas no AFS Brasil são os funcionários que trabalham aqui na Secretaria Executiva no Rio de Janeiro que fazem toda a parte administrativa, burocrática, vamos dizer assim, documental, formal, a operação mais legal do negócio. Enquanto os voluntários lá na cidade fazem a pesquisa de famílias, os treinamentos, operacionaliza a experiência intercultural no sentido de dar suporte pra família, pro estudante, pra escola faz tudo localmente, aqui, na Secretaria Executiva, se faz os registros, guardamos os arquivos, fazemos pagamentos, registra os contratos, então essa parte burocrática administrativa é feita aqui e cuida de todo o patrimônio da organização, patrimônio intelectual, patrimônio financeiro, então fica aqui. E os voluntários traçam as estratégias no caso do Conselho Diretor. O Conselho Diretor ele é hoje o grupo de direção, de andamento da organização, a Diretora Nacional tem uma autonomia pra o seu trabalho de dia a dia e alguns itens ou situações são consultadas antes de serem feitas, são comunicadas, isso depende do grau de responsabilidade, de investimento de impacto dessas ações para dizer se a Diretora Nacional tem que nos consultar, nos comunicar ou simplesmente realizar a tarefa e isso é definido por políticas. Políticas essas criadas pelo Conselho Diretor, então o Conselho Diretor diz pra Diretora Nacional, olha até X reais tu podes gastar ou tu podes fazer qualquer projeto desde que não traga prejuízos para a organização ou não vá onerar a organização. Então tem ali nas políticas do Conselho Diretor as limitações que a Secretaria Executiva pode tratar sem a nossa consulta ou a nossa comunicação e por assim vai. Tudo isso depois vai ser referendado por auditorias, nós contratamos auditorias independentes que no final a Diretora Nacional, no âmbito da Secretaria Executiva, apresenta relatórios para comprovar esse respeito as políticas que ela tem que seguir, o que ela pode fazer e o que ela não pode fazer e a auditoria checa. Essa auditoria também faz uma checagem por tabela do trabalho do Conselho Diretor, porque aquilo que a Diretora Nacional fez foi com orientação do Conselho Diretor. O Conselho Diretor diz pra ela vai por esse caminho, vai por outro caminho então a auditoria de um relatório que confirma que ela seguiu todas as orientações por tabela é uma resposta do que o Conselho Diretor fez durante esse ano e isso aí depois é apresentado e é aprovado ou não na Convenção Nacional, onde tem o Conselho Nacional, com todos os presidentes. Então, é um desafio no sentido que você tem voluntários que, não sei por que, mas sentem que, vamos dizer assim, estão trabalhando para a Secretaria Executiva, mas na verdade é a Secretaria Executiva que trabalha para os voluntários, que dá apoio, que dá assistência pros voluntários. E essa questão que a desligar, hoje o Conselho Diretor ele tem autonomia para desligar só o Diretor Nacional, aí o Diretor Nacional organiza a sua equipe na forma que achar melhor né, a nível gerencial aí, qualquer alteração de gerência, hoje nas pessoas do Marcos e da Renata, por exemplo, antes de fazer qualquer alteração a diretora nacional, tem que nos comunicar, pra que não se perca as informações ou que a gente tenha uma queda de qualidade no serviço, então ali ela tem que nos comunicar antes de fazer, mas a gestão da equipe da Secretaria Executiva é dela. O que o Conselho Diretor pode fazer é cobrar resultados, e a partir de cobrar resultados, ela tem que tomar uma atitude, se uma área dentro da Secretaria não está funcionando e a gente não tem os resultados, então ela tem que fazer o que for necessário para que aquela área atinja resultado, se vai ser trocar funcionários ou não, aí vai ficar a critério dela. E esses resultados são estabelecidos pelo Conselho diretor uma meta global pra Secretaria Executiva, no caso da pessoa da diretora nacional hoje e ela vai com a equipe dela distribuir essas metas para serem alcançadas.
P/1 – E Ulysses agora conta pra gente como que foi assumir a presidência?
R – Foi gratificante, honroso e ao mesmo tempo, de um primeiro momento sem planejar, sem querer. Como eu disse eu estava me preparando pra ir pro Conselho Diretor, isso eu me preparei, mas não tinha a pretensão de ser presidente. Acabou que o trabalho, a confiança com os outros conselheiros, os outros voluntários e o apoio, me fez tornar presidente no último ano. É bom, é uma honra muito grande é muito gostoso, mas também bem trabalhoso, uma responsabilidade enorme, um peso importante pensar que todo o trabalho de 800 voluntários espalhado pelo Brasil depende de atitudes minhas, não que depende diretamente, mas que eu posso botar por água abaixo um trabalho de 800 pessoas, sabe-se lá quantas vidas impactadas, então é muito bom, é gratificante, honroso, mas também tem a sua responsabilidade.
P/1 – E quais foram as suas principais conquistas assim, uma mudança que você tenha implementado, que você tenha deixado o seu legado nesse tempinho de presidência.
R – Eu não digo que a conquista é minha, eu sempre falo com o grupo que a conquista foi do grupo, de fato, a gente está colocando bastante mudança hoje na organização, principalmente na esfera nacional, desde que eu assumi a presidência, aí sim, seria, não sei se seria exatamente uma conquista, mas é um resultado, aí sim, da minha presidência que é transformar o processo de decisão e participação mais plural, mais participativo, porque até então, inclusive como estava registrado nas políticas do Conselho Diretor, tinha uma concentração de poder e de decisão com o presidente e isso eu tirei, a decisão, a definição é do grupo, é do Conselho Diretor e não do presidente. Existia uma comunicação direta de Diretora Nacional com o presidente da organização e ele dividia para os conselheiros, eu terminei com isso e a comunicação é direta da Diretora Nacional com todos os conselheiros do Conselho Diretor, isso eu considero a minha contribuição. É fazer com que o processo de decisão, o trabalho e as responsabilidades, os deveres e os direitos, sejam de todos do grupo, sejam dividido, não fica tudo comigo, apesar de eu ainda continuar tendo a maior responsabilidade, até por questões legais, tem que ter uma pessoa respondendo, mas o trabalho é dividido, eu não faço nada sozinho. A gente conseguiu criar um grupo que tomasse conta e percebesse e que entrasse nessa decisão de que o trabalho será feito por todos. Então tem assuntos que a Diretora nacional me traz, a Andreza, que eu não dou a minha opinião, olha quem vai tratar isso é o comitê de desenvolvimento e mercado, que são três/quatro dos membros do Conselho diretor que são desse comitê. Eles vão tratar primeiro, depois ele traz pro grupo e a gente decide, faz, não faz, aprova ou não aprova. Mas isso eu diria que é a grande contribuição que eu deixei. A partir desse momento, a decisão é feita por todos, então as vitórias, as conquistas são desse grupo que está aí hoje.
P/1 – Quais são as principais metas e objetivos desse momento pra esse grupo?
R – Olha 2015, meu mandato se encerra em 31 de dezembro, então em 2015, a gente teve como principal meta distribuir as decisões, de diversificar e fazer uma organização mais participativa acho que isso a gente está conseguindo neste ano de 2015. Fazer uma recuperação financeira dos problemas que nós tivemos lá em 2009, então nós conseguimos já recuperar nossa saúde financeira, para o ano de 2016 ainda tem muito desafio. A maior parte desse grupo continua né, eu saio este ano, então só eu que não estarei, entra uma outra voluntária no meu lugar, mas o restante do grupo se mantém. Eu acredito que 2016 tem bastante desafios de trazer um Congresso Mundial pra cá, o congresso mundial do AFS será no Brasil em 2016, fazer os 60 anos do AFS Brasil, implantar um plano de treinamento nacional é aquela história de estar estruturado e organizado os treinamentos, que hoje a gente tem vários treinamentos, todos válidos, agente quer juntar isso num trabalho só, 2015 a gente conseguiu fazer isso com as orientações, montou um manual geral de orientações, todas as orientações de estudantes, seja de brasileiro, estrangeiro e pra 2016 isso vai pra os treinamentos também e continuar dando voz e poder pra todos participarem de todos os processos de decisão da organização e resgatar a credibilidade e o clima organizacional, manter isso que a gente conseguiu ir resgatando nos últimos seis anos e que neste ano chegou num patamar que eu considero que foi, que a gente chegou no momento de mudar a chave, vamos dizer assim, nós vinhamos de um clima de desconfiança muito grande e agora nós perdemos a desconfiança, agora nós temos que manter essa confiança que nos foi creditada. Então acho que os desafios pra 2016 são esses. Até o final do ano, a gente ainda quer manter esses objetivos, manter a saúde financeira da organização, a gente ainda tem aí alguns meses pra tentar um superávit maior pra gente poder reverter isso em bolsas, em treinamentos e reinvestir na organização, alcançar os objetivos de programas, todo o ano a gente tenta aumentar o número de pessoas que a gente consegue atingir nessa transformação e concluir esses documentos de registros de treinamentos e orientações e fazer isso de uma forma que todos participem dessa decisão, nós estamos revisando estatuto, nós estamos revisando código de ética, então esse ano foi um ano de muita mudança, mas para consolidar um momento novo da organização. Então 2016 vai ser um momento de implantar, final de 2015, começo de 2016, vai ser um momento de implantar essas mudanças que estão sendo feitas para consolidar esse clima produtivo que hoje se encontra na organização.
P/1 – E Ulysses, agora com a sua saída, quais são os próximos passos da sua história com o AFS?
R – Bom, vou te dizer que não foi difícil, desculpa, não foi fácil tomar a decisão, porque eu poderia me candidatar a reeleição, mas eu tomei por decisão não me apresentar como candidato e não foi fácil apesar de muitos pedidos, o próprio Marcos aqui da Secretaria Executiva, por várias e várias vezes, conversou comigo pra eu continuar, mas esse ano eu fui pai, tenho uma filhinha de oito meses então eu decidi ajudar a minha família. Em Porto Alegre só morarmos, eu minha esposa e minha filha, nossas famílias não estão lá, a minha família está em Natal, meus pais estão em Natal, a família da minha esposa fica em São Borja (RS), são 600 quilômetros de Porto Alegre, então a gente não tem um suporte. Uma casa de vó, um suporte que a gente possa deixar a Martina por um período, pra um ir no médico, então, preciso ajudar a minha esposa e a minha filha neste momento que nos exige muito. Esse ano já foi um ano bem desafiador né? No momento da presidência da organização, muita coisa aconteceu na minha vida, nasceu a minha filha, perdi meu avô. Minha mãe, minha avó e meu irmão quando foram me visitar foram assaltados e sofreram um sequestro relâmpago, então teve muita coisa, em muito pouco tempo. Um ano de muita mudança. Então, eu decidi que agora eu ia dar um pouco mais de atenção pra minha família e vou continuar naquele trabalho local, esporadicamente, não vai ser ainda tão frequente como um voluntário do dia a dia, pra eu poder dar um pouco mais de atenção a minha esposa e a minha filha, mas pra daqui a pouco voltar, como eu falei, a gente não quer sair. É difícil pra gente pedir pra sair, hoje mesmo eu estou aqui pra essa reunião, ontem quando eu estava no aeroporto em Porto Alegre pra embarcar a minha esposa mandando mensagem: “Oh, a Martina está com febre, voltou a febre...” Então, tu fica e eu ainda perguntei: “Tu quer que eu fique? Eu posso não ir.” “Não, vai porque tu não vai se sentir bem, tu vai ficar sofrendo porque não foi, eu dou um jeito.” Então, a gente fica sofrendo dos dois lados, se vai ou se fica. Meus planos, agora, no momento, é cuidar um pouco mais da minha filha e da minha esposa, ficar um tempinho com elas e depois voltar aos pouquinhos, o grupo que está aí vai fazer um bom trabalho, quando eu voltar, com certeza, vai ser mais tranquilo e os desafios serão outros.
P/1 – Eu ia te perguntar como foi pra você esse ano de presidência, ser pai, conciliar coma carreira de arquiteto também?
R – É, não foi fácil assim, foi um ano acho que até o corpo sentiu, porque foi um ano, eu nunca fiquei tão doente, tão seguido e em tão pouco tempo. Então, é complicado, porque claro, cada um tem suas dificuldades, todo mundo tem as suas dificuldades, as suas particularidades, ninguém tem mais ou menos, cada um tem a sua e sabe o quanto pesa. Eu posso dizer que esse ano foi bem desafio, mas acho que até uma coisa ajudou na outra, no sentido de, por mais que eu tivesse problemas em desafios acontecendo, eu tinha alegrias com a minha filha, aprendizado a cada dia que você vê, ela começar a ficar em pé, começar a caminhar, começar a engatinhar, começar a balbuciar, então, para aqueles momentos que o clima estava começando a ficar cansativo, tinha um sorrisinho lá do outro lado pra nos alegrar. Apesar de exigir bastante, acho que ajuda no sentido de ter uma recompensa no final do dia ou de manhã cedo, porque ela sempre acorda com um sorrisão do tamanho do mundo. Então, dá ânimo pra começar o dia, pra poder ir trabalhar, além disso, eu trabalho numa outra cidade, uma hora de deslocamento (risos), então, tem o deslocamento de outra cidade, tem meu trabalho, tem a organização, o AFS, a presidência, minha filhinha, minha esposa, então foi bem cansativo, mas foi muito bom.
P/1 – Agora pra gente encerrar, só vou te fazer umas últimas perguntinhas. Se puder falar pra gente quais são seus sonhos pro futuro? Os próximos passos?
R – Meu sonho pro futuro é ter uma vida em família tão boa quanto eu tive quando criança. Então, o que eu pretendo agora é encontrar uma forma de continuar fazendo o meu trabalho, tem a minha profissão, mas dar mais atenção e estar mais próximo da minha família. Praticamente, meu sonho é esse, poder ter uma boa vida pra minha família, estar com eles, participar da vida deles e que ela tenha tudo o que precisa se isso acontecer está ótimo.
P/1 – E quais foram os maiores aprendizados desse tempo de AFS?
R – São muitos aprendizados, mas o maior aprendizado pra mim eu diria que é conviver com a diferença, saber conviver com a diferença, com a diferença de opinião, com a diferença de cultura, com a diferença física. Saber contornar situações, esse aprendizado que o AFS me deu e não tem como tirar. A gente fala que a gente está promovendo a paz entre os povos, uma organização que surgiu após uma guerra, pra que não tivesse mais guerras, aí às vezes uma pessoa pergunta, “tá, mas não tem guerra, não”, [mas] nós temos uma mini guerra todo o dia, pessoas que pensam diferentes e não conseguem conversar, não conseguem conviver, não conseguem tolerar, então na verdade o que a gente disse a respeito de uma guerra, é pra fazer no dia a dia e, às vezes, a gente vê que numa escapadinha, num deslize o próprio voluntário acaba num momento ou outro entrando num conflito com o outro e não percebe que aquilo ali é o que a gente está tentando mudar. Vão ter opinião diferente, vão ter ideias diferentes, posturas diferentes e a gente vai ter que saber conviver e lidar com elas né. Contornar, atravessar por esses momentos sem criar cicatrizes ou feridas, esse aprendizado de saber ouvir, escutar, analisar, parar e depois tomar uma atitude pra qualquer coisa na vida, esse é o grande aprendizado que eu levo do AFS.
P/1 – Bom, Ulysses como você vai encerrar esse ciclo, se você pudesse deixar uma mensagem pra esse grupo que fica aqui:
R – Bom, a mensagem que eu deixo pro grupo é o seguinte: Toda a organização ela é feita de pessoas e quando você tem pessoas, você tem possibilidades diferentes. Cada pessoa é diferente, ninguém tem a mesma digital, ninguém tem a mesma íris de olhos, ninguém tem o mesmo comportamento, então a gente achar que tudo vai ser as mil maravilhas, não vai acontecer. O que a gente pode fazer é aquilo que o AFS diz: “Vamos preparar, apoiar e colocar a pessoa numa situação de conforto passando por um desconforto. Tudo o que a gente conseguiu construir até agora, pra não deixar a peteca cair, não deixar voltar atrás, a gente precisa ser tolerante, analítico, ouvinte e não agir exageradamente com a emoção. O AFS é muita emoção, é muita emoção porque as pessoas estão lidando com emoções, todo o tempo, todos os dias, emoções fortes, então os voluntários são muita emoção e pouca razão e a gente tem que cada vez mais utilizar do nosso conhecimento da organização pra poder passar por isso. Então o grupo que está aqui no Conselho Diretor hoje é um grupo que está trabalhando de forma tranquila, serena e a gente precisa manter isso, e para manter isso a gente precisa se respeitar, analisar e parar pra pensar um pouquinho antes de fazer as coisas. Nos nossos treinamentos se diz, lá no início do AFS, uma das recomendações era a carta dormida. O que era a carta dormida, o estudante passava por um momento, naquele dia ele dizia: “bah, não dá, não dá mais, não vou ficar aqui, não é assim” e escrevia uma carta pra falar pro pai e pra mãe que não estava bom, mas era carta naquela época, então ele escrevia a carta e no outro dia ia mandar pro correio, e no outro dia antes de mandar ele lia, mas não é bem isso. Não, acho que não é e a carta não ia. As coisas se ajustavam para que ele passasse pela experiência sem ele passar por grandes problemas. Hoje, a tecnologia os fez perder um pouquinho disso, o cara se sentiu mal, viu uma coisa, já posta, posta, e isso acaba criando problemas desnecessários, acaba criando má interpretação, que muitas vezes depois que tu lê: “Bah, acho que não deveria ter feito isto”. Então essa essência da carta dormida a gente tem que fazer a todo o momento, as redes sociais, o e-mail vieram pra nos ajudar, vieram, mas a gente precisa fazer eles nos ajudar. Mas a gente precisa antes de sair postando, mandando e comentando, analisa, vê, a gente perdeu muito o contato pessoal, mas assim no telefone, puxa o telefone e liga: “Oh o que aconteceu?” Então, a mensagem que eu deixo para o grupo é essa, que a gente cada vez mais seja analítico e ouvinte, antes de fazer alguma ação. E agradeço por eles terem me ajudado, me apoiado nestes últimos anos, foi bom trabalhar com esse grupo, essa experiência, esse clima bom, então eu devo também a eles, porque talvez com outras pessoas a gente não teria atingido esse estágio. Eu sei que essa questão de analisar e parar, eu sei que cada um fez um pouquinho neste ano, porque cada um conseguiu trabalhar sem maiores problemas, sem maiores desavenças, foi um ano muito bom.
P/1 – E agora, pra gente encerrar, só vou te fazer mais duas perguntinhas: O que você acha dessa ideia da gente contar desses sessenta anos do AFS gravando a história de vida de vocês? Que construíram essa história?
R – Muito bacana! Eu não me lembro de agora quem foi que trouxe, acho que foi a Ana, a informação do Museu da Pessoa e quando a Andreza nos apresentou, de cara eu já disse, taí um negócio legal, a gente já fez livros anuais, muita coisa mais impressa, que tem o registro, mas pode se perder, a organização já mudou de endereço várias vezes, já passou tanta gente aqui... Um livro se uma pessoa mal intencionada quiser pode dar fim nele, como qualquer outra coisa, até mesmo nos arquivos digitais, mas fazer parte de um acervo de um museu, fazer parte de uma história contada por profissionais, é outro patamar, então a organização o Internacional chegou a cem anos , 2015 completou cem anos, o Brasil está completando 60. A gente até estava levantando e talvez só a Cruz Vermelha seja mais antiga que o AFS no mundo hoje como organização não governamental. Então, uma organização com esse peso, com essa importância tem que se dar o direito de ter um registro também importante e de credibilidade. Essa oportunidade de contar as histórias da organização pelo Museu da Pessoa, foi acatado pelo grupo quase que instantaneamente, a gente na hora gostou da ideia e batalhou pra que virasse uma realidade.
P/1 – E como que foi pra você voltar lá atrás, lembrar um pouquinho da sua infância, fazer essa trajetória e contar essa história pra gente?
R – Foi bom, é sempre bom, quando eu estava separando as fotos, nessa última semana também, a gente já foi vendo coisas interessantes, no e-mail que a Andreza mandou ela pedia cinco fotos da vida do AFS e cinco fotos da vida pessoal, teria que trazer dez, eu devo ter trazido umas trinta. Setorizei ali pra ver quais eu ia achar, aí tu chegou aqui e disse que eram cinco e eu disse poxa vida ainda tenho que escolher mais ainda. Mas foi bom porque mesmo assim eu disse: “Não, vou trazer pro pessoal ver também outras coisa, tem fotos do AFS ali de anos atrás que alguns aqui conhecem as pessoas, então vamos lembrar mais um pouquinho, mesmo que não esteja aqui registrado”, nesse grupo a gente senta, olha, revê as pessoas e foi muito bom, e sempre quando eu vejo as fotos antigas, ou tenho que contar uma história é bom assim pra gente ver como foi privilegiado. Eu me sinto muito privilegiado, a família que eu tenho, os meus pais, meu irmão, minha infância, minha esposa, meus amigos, ficar lembrando disso é muito bom, são coisas boas então, não tem porque não te fazer bem. Então essa oportunidade é fantástica por isso, te força a olhar mais uma vez as coisas que estão guardadas, e se dá conta que essa história da foto digital, não é uma boa porque a gente não imprime, não vê e depois não acha nunca mais.
P/1 – Que bom então Ulysses muito obrigada, parabéns pela tua história de vida.
R – Obrigado.
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