Projeto Conte Sua História
Entrevistada Márcia Dias
Entrevistada por Rosana Miziara
São Paulo, 21 de março de 2025
Código da entrevista: PCSH_HV1448
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Márcia, eu vou começar assim da maneira mais tradicional possível. Qual é seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Eu nasci no dia 2 de março de 1947, sou de São Paulo. Meu nome completo é Márcia Ventura Dias e sou filha de uma mulher de mãe solo, paraense, e de um pai, meu pai é mineiro, de Juiz de Fora, aquele mineiro quase carioca, sabe como é? Que queria ser carioca. E só tem... Tem cinco, só de uma família com cinco mulheres, né? Tudo escadinha. São... Minha irmã mais velha. Eu tenho, infelizmente, duas irmãs que faleceram. Minha irmã mais velha, que era uma pianista bastante importante aqui no Brasil e na Europa também. Essa mãe solo era uma guerreira.
P/1 - Como era o nome dessa sua irmã?
R - Como?
P/1- Essa é a sua irmã?
R - Não entendi.
P/1 - Essa sua irmã, que é...
R - Pianista.
P/1 - Pianista, importante.
R - Importante. Isabel Maresca. E Vivianne Ventura Dias, minha outra irmã. Ela é... Com todas as dificuldades familiares... Você imagina o que é uma mãe solo a 80 anos atrás, ou 75 anos atrás. A dificuldade, o preconceito, tudo numa cidade que ela não conhecia. Então, realmente, é uma mulher muito guerreira. A minha irmã Viviane é economista, PhD, estudou em Barclay, e trabalhou na ONU, em economia feminina. Depois sou eu, que fiz normal e não terminei a universidade. Depois a outra minha irmã, que também fez normal, e a caçula psicóloga. Então, esse é o produto da minha mãe. Aí a gente conseguiu mimar demais da conta a mamãe. Aí deu para mimar e tudo. Foi uma infância bem difícil. E com o olhar para... Minha mãe se chamava Ilza. Meu avô era casado com uma indígena. Minha mãe ficava doida da vida, que chamava ela de parda. Estava na carteira dela, a parda. Ela queria ser branca, não...
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Entrevistada Márcia Dias
Entrevistada por Rosana Miziara
São Paulo, 21 de março de 2025
Código da entrevista: PCSH_HV1448
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Márcia, eu vou começar assim da maneira mais tradicional possível. Qual é seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Eu nasci no dia 2 de março de 1947, sou de São Paulo. Meu nome completo é Márcia Ventura Dias e sou filha de uma mulher de mãe solo, paraense, e de um pai, meu pai é mineiro, de Juiz de Fora, aquele mineiro quase carioca, sabe como é? Que queria ser carioca. E só tem... Tem cinco, só de uma família com cinco mulheres, né? Tudo escadinha. São... Minha irmã mais velha. Eu tenho, infelizmente, duas irmãs que faleceram. Minha irmã mais velha, que era uma pianista bastante importante aqui no Brasil e na Europa também. Essa mãe solo era uma guerreira.
P/1 - Como era o nome dessa sua irmã?
R - Como?
P/1- Essa é a sua irmã?
R - Não entendi.
P/1 - Essa sua irmã, que é...
R - Pianista.
P/1 - Pianista, importante.
R - Importante. Isabel Maresca. E Vivianne Ventura Dias, minha outra irmã. Ela é... Com todas as dificuldades familiares... Você imagina o que é uma mãe solo a 80 anos atrás, ou 75 anos atrás. A dificuldade, o preconceito, tudo numa cidade que ela não conhecia. Então, realmente, é uma mulher muito guerreira. A minha irmã Viviane é economista, PhD, estudou em Barclay, e trabalhou na ONU, em economia feminina. Depois sou eu, que fiz normal e não terminei a universidade. Depois a outra minha irmã, que também fez normal, e a caçula psicóloga. Então, esse é o produto da minha mãe. Aí a gente conseguiu mimar demais da conta a mamãe. Aí deu para mimar e tudo. Foi uma infância bem difícil. E com o olhar para... Minha mãe se chamava Ilza. Meu avô era casado com uma indígena. Minha mãe ficava doida da vida, que chamava ela de parda. Estava na carteira dela, a parda. Ela queria ser branca, não era caucasiana, mas ela era parda. Quando meu avô faleceu, ela foi para o Rio, onde ela também já tinha irmã mais velha do que ela. As irmãs estavam bem, bem organizadas. Ela casou com meu pai e veio para São Paulo. Foi aí que virou mãe solo e tudo mais.
P/1 - Você não conheceu, então, o seu avô, porque ele morreu antes de você nascer?
R - Sim, nem meu avô, nem minha avó.
P/1 - Os dois morreram antes?
R - Isso.
P/1 - E que histórias a sua mãe chama Ilza?
R - Ilza Rebelo de Carvalho.
P/1 - E aí a sua avó, a Ilza, ela contava, a sua avó contava histórias para sua mãe, para a Ilza, de... ou passou esses costumes indígenas, tinha esse quício, presença dessa cultura?
R - Veja, se hoje, de ser de origem indígena, você tem todos os preconceitos, você imagina naquela época. A questão do cristão novo, o que estava acontecendo, sobretudo no norte do Brasil. Quem eram os donos desse país naquela época? Mas, assim, as histórias da família não eram desses meus avós. Isso já na ditadura do Vargas, a gente sabia algumas coisas, porque meu avô foi perseguido na ditadura do Vargas. Mas antes não se sabia nada disso.
P/1 - E seu avô nasceu em Belém mesmo?
R - Meu avô, não.
P/1 - Marido dela?
R - Não. Marido da minha mãe?
P/1 - Não, da sua avó.
R - O Marido da minha avó não nasceu em Belém, ela era português.
P/1 - Ele era português.
R - Português.
P/1 - Você sabe como que ele vem, que período que ele veio?
R - Olha, não sei não, mas eu acho que isso também era meio... Ele é cristão novo, a ideia, porque Rebelo de Carvalho é um nome muito típico de cristão novo, que teria vindo em fuga de Portugal. Pelo nome, a única coisa que se sabe. De outra forma, não se tem, não passou a informação.
P/1- E o que ele fazia aqui no Brasil?
R - Ele era comerciante e próspero. Mas o que eu sei é que parece que o interventor do Pará. Teve problemas com ele em relação a... Tem uma questão dele ter sido preso, ainda que fosse um comerciante próspero e tudo mais. Meu avô e minha avó tinham dez filhas. E muito interessante, porque esse meu avô, a minha avó morreu mais cedo, mas esse meu avô, acho que a minha mãe tinha 12 anos, minha mãe era caçula, esse meu avô formou as filhas todas. O que era, na época, uma coisa, era um privilégio. Eu tive tias que foram prefeitas, prefeita de Marapanim, que era uma cidadezinha bem pequetitita do Pará. A maior parte delas, obviamente, foi professora. A mamãe foi professora numa cidade chamada Fordlândia, onde a Ford mandava, era dona da Ford. A Ford era a proprietária dessa cidade, praticamente, porque era assim que acontecia. Então, é uma coisa meio inusitada do ponto de vista, é muita mulherada danada, mas, ao mesmo tempo, inusitada de como essas mulheres foram criadas, de uma maneira muito forte. E aguerridas ao fato de serem mulheres e de como criavam seus filhos e tudo mais. A independência dessas mulheres. Então, eu venho de um lugar bacana. E aí as dificuldades, quer dizer, aquilo, a dificuldade de, naquela época, se hoje é muito difícil ser mãe solo, naquela época significava ser mãe solo. E é gozado, porque é uma coisa que não se fala isso, obviamente, mas há uma diferença. Porque naquela época você tinha a “teuda” e a “mantenuda”. Como você é novinha, você não sabia disso. A teuda e a mantenuda, você tem a esposa, e você podia ter amante. Por isso, tenuda e mantenuda. Agora, a mulher largada, essa não prestava. Entendeu? Porque ela não cabia em nenhuma dessas duas categorias. E ela representava algo que não prestava para nada, nem para ser tenuda, nem para ser... Nem para esposa, nem para amante. E essa mulher também representava um perigo, a largada, porque ela podia roubar o marido da outra. E, por exemplo, na escola, eu não tinha amiga, porque eu era filha de mulher largada. Então, quem a gente estudava, porque na época, estou falando de 70 anos atrás, a gente estudava, a mamãe era muito resoluta na questão da educação. Por isso que saímos da pobreza e tudo mais. E, na época, tinha escola pública, mas não passava de 20%, 30% o número de vagas. Então, o que acontecia é que as mães, as famílias, ficavam na fila para conseguir bolsa de estudo. Então, por exemplo, lá em casa, cada uma estudava num canto. Ou numa escola pública, porque tinha feito exame, tinha muita escola. No Parque Dom Pedro tinha uma, que eram experimentais. Era necessário fazer exames para isso. Essa minha irmã, Viviane, foi para a Escola Fundamental, que era uma das melhores, a Escola São Paulo. A mamãe ficava na fila para conseguir uma bolsa em escolas religiosas. Eu estudava no Paraíso, numa escola de padre. A minha outra irmã estudava no Sagrada Família, que era de freira, porque não tinha vaga e a gente não tinha dinheiro para pagar e não dava para ficar sem estudar. A dona Ilza ficava lá e conseguia que a gente estudasse em escolas boas. Então, foi isso.
P/1 - A sua mãe, por que ela escolheu vir para São Paulo?
R - Porque meu pai veio para São Paulo. Ele veio a trabalho para São Paulo, e ela veio, naquela época ela estava casada ainda com ele, e aí ela veio, tanto que aqui, lá no Rio, ela teve duas filhas, aqui ela teve três.
P/1 - E a sua mãe trabalhava fora?
R - Não, mamãe tinha cinco filhos, cinco filhas, tudo escada. A mais velha tinha... Isabel era a mais velha, ela tinha quatro anos de diferença da minha outra irmã, e aí foi até que, por exemplo, da Viviane e eu, são quatro anos, depois dois anos, depois um ano. Tudo assim, um pouquinho. E a mamãe, que naquela época, eu não sei, toda vez que eu conto essa história, a professora, tinha que fazer uma coisa de adaptação. Ela não podia ser professora aqui, formada em Belém. E acho que continua do mesmo jeito. Então, a mamãe fazia serviço de casa. Fazia bolo, fazia crochê... E pegava a minha irmãzinha no colo, de um ano, e levava para vender as coisas que ela fazia na rua, na casa. E eu sempre falo que, se tivesse conselho de tutelar na época, minha mãe ficava sem nenhum, porque ela deixava a gente com as mamães velhas que cuidava de mais três. Então, já não ia deixar ficar. A gente teve momentos muito difíceis. Eu comecei a trabalhar muito cedo.
P/1 - E seu pai?
R - Meu pai de vez em quando aparecia lá.
P/1 - O que ele fazia?
R - Ele trabalhava... Tinha um posto bom numa fábrica de indústrias elétricas. E ele era um dos diretores dessa empresa. Mas se apaixonou pelos carinhos de outra mulher.
P/1 - E ele contou isso para sua mãe e saiu de casa? Como é que foi?
R - Como?
P/1 - Ele contou isso para sua mãe e saiu de casa? Como é que foi essa história?
R - Não foi gostoso. Em cima de todas essas... Não ser amada já é muito ruim. Minha mãe era louca pelo meu pai. Ela via, sentia... O carro dele, tinha carro, tinha um status bem melhor, ela já ia correndo pegar o batom e passar o batom na boca. O luxo dela era passar o batom assim que via. Ela amava profundamente o meu pai. Não deu certo, ele se apaixonou por outro.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Quando ele foi embora? Acho que eu tinha uns três. Minha irmã tinha um.
P/1 - E ele visitava vocês? Como é que ele foi como pai?
R - Vez em quando ele ia lá. Aí levava pra passear, levava pra tomar sorvete, entendeu? Como a gente tem muitos homens que fazem isso até hoje, né? Mas cultura masculina, né? Que problema é seu? Mas, ainda assim, deu para poder estudar, formar, ter uma vida familiar. A mamãe foi fazendo amigos, nós também, pais de amigos, e aí saiu da tristeza.
P/1 - E seu pai contribuía financeiramente com a sua mãe?
R - Muito pouco. Foi uma vida difícil. Mas não é uma vida pior do que... A única diferença é que a mamãe era culta. A mamãe era uma mulher educada. Porque... Essa é a vida de uma mulher pobre, sola, para cuidar de filhos. Agora, a diferença da mamãe é que a mamãe era culta, a educação era prioritária, formou a nós todas e deu para sair.
P/1 - Em que bairro vocês moravam?
R - A gente morava lá no Ipirangão, mas lá embaixo do Ipiranga. Já entre Ipiranga e Diadema, alguma coisa assim, eu me lembro, mas era... Porque o Ipiranga, naquela época, era um bairro operário. As casinhas, eu me lembro, eram desse tamanho a memória.
P/1 - Você lembra da sua? Era uma casa?
R - Era uma casa, era um sobradinho, geminado, né? Me lembro que os vizinhos, tinha uma escada, daquelas escadas, aquela escada que tem, se você bate a cabeça assim, entendeu? Fere bastante a cabeça. Minha irmã, num dia que a mamãe foi trabalhar e a minha irmã ficou cuidando da gente, a Marisa, que era a mais nova, ela bateu a cabeça naquele negócio e teve que levar pontos, não sei o quê. Os nossos vizinhos eram super bacanas, eles eram japoneses, que vieram da guerra, e eles cuidavam da gente também. “Obasan”, eu sabia até falar algumas palavras, porque a gente tinha uma convivência bastante grande com eles. Então, era um sobradinho desses pequitinhos assim, geminado. Na minha memória, porque a memória às vezes se distrai, mas, na minha memória, a gente tinha uma cama de casal. Uma cabeça aqui, outra para lá, quatro aqui, e a mamãe no colchão agarrada com a minha irmã pequena. Então, essa foi a infância. Eu começo a trabalhar entre 12 e 14 anos, fazendo algumas coisas, 14 já numa fábrica. Depois eu vou para um banco, também de recepcionista, aí vou indo. Você tem que fazer qualquer coisa. E, na época, era muito pior. Eu lamento agora, porque até recentemente o Jovem Aprendiz era com 16 anos, agora passou de novo para 14. Eu acho absurdo, acho absurdo, absurdo, absurdo. Isso é aprovado e está lá, com 14 anos, você larga a escola. E não aprende também, porque é cota. E é estranho, porque é uma coisa tão grave como essa. Uma coisa tão grave como essa, ninguém protestou, não viu discussões a respeito, como se fosse na calada da noite. E o quanto que... Porque não é a criança que tem que levar o dinheiro para casa. Ela tem que estudar, e como é que vai fazer? Enfim, é uma historinha pobre.
P/1 - Márcia, como é que era na sua casa a relação com a sua mãe e com as irmãs? Vocês brincavam juntas? Como que era a brincadeira de infância?
R - Ficávamos juntas, brincávamos. Sabe, era tudo tão diferente. Porque, primeiro que morar na época em periferia, não era esse escombro que é hoje. Você podia brincar na rua. Então, você brincava não só com os irmãos, a família etc., mas você brincava com o menino que estava ali, entendeu? Com brincadeiras normais, não precisava ficar só num determinado lugar para brincar. Era outra forma de viver.
P/1 - E esses amigos iam na sua casa? Como é que era?
R - A mamãe sempre foi uma mulher... Claro que com uma vida muito difícil, você não é tranquilinha. A mamãe não era uma pessoa tranquila. Quando ela pegava para bater, batia bem. Mas ela sempre foi muito aberta. Ela sempre foi muito generosa. A mamãe não tinha preconceitos. Ela sempre foi extremamente generosa. Sobrou um pouco de comida, está dando. Sempre dividia as coisas. Uma mulher muito especial.
P/1 - Na sua casa, se comemoravam datas, aniversários seus, das irmãs, Natal?
R - Não, o Natal ela acendia a luz. Porque o tempo todo ela dizia que não era sócia da Light, mas no Natal ela podia acender a luz da casa, porque não tinha coisa para fazer no Natal. Isso é o que acontecia na época. Raros eram sócios da Light. No Ano Novo, de modo geral, a gente passava na casa das irmãs dela, no Rio de Janeiro. Elas vinham buscar a gente, eu pagava a viagem, etc. O aniversário da mamãe virou uma mulher que primeiro aprendeu a fazer esse negócio de crochê e tudo mais. Eu esqueci o nome. Ráfia, ráfia. Era bolsa de ráfia. Depois ela aprendeu a fazer todos os doces que você puder imaginar, esses bolos desse tamanho para casamento e tudo mais. Aí ela aprendeu a costurar. Entendeu? tanto para nós quanto para fora. E tudo nosso, ela que fazia. Se tivesse que ficar, passar a noite fazendo uns cinco, fazia desde as roupas íntimas até vestido tipo... como é que chama aquele cara que eu me lembro que eu fui trabalhar, fazer uma entrevista, tinha uma fita de gorgurão preta. Enfim, é um cara, um costureiro famoso que ela copiou. Uma vez a polícia foi em casa, na época da ditadura, por conta de uma bobagem que a mamãe fez para ajudar uma pessoa. Enquanto a polícia entrava e se jogava os livros, essa coisa toda, os caras pegaram os moldes da mamãe, pensando que aquilo fosse alguma coisa secreta, examinando aquilo como se fosse algum material, seria um mapa, alguma coisa assim. E era só molde de costura. Mas ela era muito especial.
P/1 - Vocês tiveram algum tipo de educação religiosa?
R - Sim, a mamãe foi o tempo todo, como paraense, nortista. Ela era espírita, outra hora era umbandista, mas nós tínhamos que ser católicos. Então, ela nos educou na religião católica, fez a primeira comunhão, fez todas essas coisas, entendeu? Até que a gente pudesse resolver o que a gente queria ser.
P/1 - Por que tinha que ser católica?
R - Como?
P/1 - Por que tinha essa questão de ter que ser católica?
R - Porque a religião católica, na época, até era mais importante. Não se duvidava da religião católica, porque a umbanda sempre foi vista com preconceito, até hoje. Os espíritas que ficam ali perto da Umbanda, só que mais quietinhos, também com preconceito. Mas essas religiões, como hoje, a religião católica e evangélica, elas são religiões que são respeitadas pelo maior número de pessoas. E aí, lá em casa, acho que ninguém seguiu a religião.
P/1 - E políticas? Falava lá?
R - Muito. Muito. Nós somos filhos da ditadura. A gente tem a ditadura do Vargas, que ela é filha da ditadura. Nós somos filhos da ditadura de 1964. E minhas irmãs, eu sofrendo na pele isso, em tudo que aconteceu no país. Amigos presos, mortos. Então, isso era tema o tempo todo.
P/1 - Com quantos anos você entrou na escola, Márcia?
R - Eu entrei na escola? Naquela época você entrava, por exemplo, o primário, que é o ensino fundamental, chamava primário. Eu entrei na década certa, na época certa, eu acho. Eu entrei junto com a minha irmã aos 7, 8.
P/1 - Que escola que foi, Márcia?
R - Eu fui numa escola de padres, que a escola está até aí. Ainda existe essa escola de padres, mas eu fui expulsa da escola.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Acho que eu tinha uns dez anos, porque a professora me mandou embora, porque a minha mãe tinha que me tirar da escola, porque eu era retardada. E a minha mãe falou assim, “não fala assim na frente dela, ela não está nem entendendo”. Eu não esqueço disso, eu estava sentada, não, eu estava de pé, minha mãe estava aqui e a dona Ruth estava aí. Porque eu queria saber quem, pela primeira vez, comeu abacaxi. Quem teve essa ideia? Quem é que imaginou que, cortando aquela casca com aquele negócio ali, você pudesse comer aquilo? Entendeu? Outra coisa, quem deu o nome de cadeira a cadeira? Por que a cadeira se chama cadeira? Claro, porque eu perturbava na escola bastante. E provavelmente também tivesse problemas. Aí eu fui para o grupo escolar Murtinho Nobre.
P/1 - Mas você ficava perguntando isso para a professora...
R - É, eu tinha muita... Ah, você já viu uma... imagina, uma criança ver uma alcachofra, tá? Sabe, na minha casa, minha avó, minha avó do Rio de Janeiro, que eu chamava de avó porque era a mãe mais velha da... comia o alcachofra, tá? Como é que você imaginou que aquilo viraria uma comida? Isso, sabe, podia te conformar, mas a mim não. Como é que é isso? Como é que se dá nome às coisas? E isso foi considerado alguém que é retardado, que fica perguntando as coisas que não deve. Aí eu fui para o grupo escolar, não tinha nome.
P/1 - Mas a sua mãe, ela... Como você era na sua casa? Esse comportamento que você tinha na escola, ele se reproduzia na casa?
R - É, mas era considerado uma coisa normal, não era considerado uma coisa de alguém que tivesse um déficit cognitivo. Entendeu? Era uma curiosidade. Agora, para a professora, era uma aberração cognitiva, porque, imagina? Mas eu acho engraçado ter sido considerada assim pela alcachofra.
P/1- Depois você foi para qual escola? Depois que você foi expulsa?
R - Eu fui para um grupo escolar. Eu estudava numa escola particular de bolsista. Aí eu fui para um grupo escolar chamado Murtinho Nobre, que era perto da casa da minha mãe.
P/1- E como era essa escola? Quantos anos você estava aí? Dez?
R - Dez anos. Era uma escola normal, só que menos organizada, menos arrumada.
P/1 - E como é que foi sua entrada lá? Os outros alunos sabiam que você tinha, ficou abafado?
R - Não, ficou lá. Sempre eu rio quando conta essa história. A mamãe falando, “não fala assim na frente dela. Ela não está nem entendendo que a gente está conversando”. Era ótimo isso. Isso foi ótimo. E eu tendo as irmãs que eu tinha, porque eu só tinha uma nota 10 em termos de inteligência. Minhas irmãs eram muito inteligentes, são muito inteligentes.
P/1 - Márcia, e como é que foi essa chegada na escola? Você se adaptou?
R - Não, fui. Fiquei pouco tempo na escola também, porque logo comecei a trabalhar. Pouco tempo, quer dizer, há 14 anos já estava trabalhando para ajudar em casa. Então, a escola não era o centro maior da minha vida. Para mim era muito importante ajudar a mamãe. Eu não queria que minhas irmãs, que tivessem os talentos que têm até hoje, que tivessem que largar as coisas para poder trabalhar, então era mais fácil que eu fizesse. Era pouco, mas dava, melhorava. E o importante é que a gente… É engraçado, isso foi costurando, sabe? As coisas na minha família foram se organizando de uma forma bem bonita. Olhando o coletivo, apesar dessa questão de Isabel e Viviane serem bastante importantes no sentido, do ponto de vista intelectual, do ponto de vista artístico e tudo, isso foi minando, quer dizer, contaminando a família, que não tinha nada a ver com música. De repente, a música faz parte, integra todas as relações. E foi legal.
P/1 - Você começou a trabalhar do quê, Márcia, com 14 anos?
R - Com 14 anos, comecei a trabalhar numa fábrica. Eu dizia que era auxiliar administrativo, porque ficava mais chique. Eu trabalhava, tinha um desenhista que fazia na madeira – esqueci o nome da madeira – objetos de jacarandá. Objetos de jacarandá. Então, tinha uma mesa, o banco foi primeiro, depois eu saí logo do banco como recepcionista, que ficava de pé, lá na Praça da Árvore. Aí, para fazer... Essa coisa de Jacarandá, as moças que trabalhavam, menores, que lá podiam trabalhar de menor naquela época, chamavam “de menor”. E preparavam a cera de carnaúba, derretia a cera de carnaúba e passava no... no objeto, depois passava na escova. Essa era uma das minhas tarefas. Eu era a única pessoa – eu já estava no ginásio – na mesa das meninas que era alfabetizada. Então, foi um momento bacana que eu também consegui ajudar as meninas a se alfabetizar.
P/1 - Você ia de manhã para a escola e à tarde no formato?
R - À noite.
P/1 - Você estudava à noite já, com 14 anos?
R - Já, naquela época, podia. Se eu não estou confundindo, eu podia. Porque eu tinha 14 anos. Você podia estudar à noite. E tinha a questão, por isso que eu te falo, do menor. O trabalho de menor. Então, você pode... Por isso que eu te falei dos 14 anos. Entendeu?
P/1 - Pode completar.
R - Não, que hoje, por exemplo, não precisa estudar de noite porque você tem um período, você vai trabalhar com 14 anos como jovem aprendiz e estuda no outro período, o que não acontecia na época.
P/1 - Como era o nome desse lugar onde você trabalhava, nesse primeiro trabalho?
R - Não me lembro, não. Nem do artista plástico Benjamin... Benjamin, eu sei que ele era famoso. Benjamin, alguma coisa assim.
P/1- E como era o ensino à noite? Estudar à noite. Você saía, ia para a escola, voltava?
R - Tinha a questão do bonde. A cidade era outra. A cidade era, do ponto de vista, muito mais tranquila. Os colégios eram muito mais severos, no sentido de ordem, no sentido da limpeza. Tinha até menino que ia com o paninho da carteira, que chamava carteira na época, e que tinha como se fosse um... Como é que eu falo? Um aventalzinho para cobrir a carteira, que tinha elástico, você passava na carteira e ficava tudo arrumadinho e você não podia fazer bagunça. Então, era bem diferente, entendeu? Estamos falando de 64 anos atrás. A cidade tem se deteriorado o tempo todo, cada vez mais, mais, mais, mais.
P/1 - Que bairro ficava essa escola?
R - Ela ficava também no Ipiranga, na Rua Bom Pastor. Chamava-se Alexandre de Gusmão, que até hoje “entra burro, sai ladrão”. Era o slogan da escola. Você vê como ela era famosa.
P/1 - Você trabalhava, estudava, tinha alguma matéria que você gostava mais, se identificava?
R - Eu gostava mais de literatura, não entendia nada de matemática, eu era muito ruim, como aluna eu era muito ruim. Eu me perdia na fração. É impressionante. E isso é interessante, porque quando você fala de... No meu trabalho, eu trabalho com crianças que tem até em função da vida que viveu, das questões enfrentadas, da não alimentação adequada, tudo que você quer imaginar, tem dificuldades cognitivas. Mas isso não significa que isso seja um diagnóstico, que ela não consiga fazer outras coisas. Como você estimula que é uma situação que ela gosta, entendeu? E não ficar só dentro da dificuldade, fazendo ela repetir, sabe, a tabuadinha dos nove. Até hoje eu não sei, mas, entendeu? Sabe, chega, não quero mais saber da tabuada dos nove, entendeu? Porque não vai ser gênio em matemática, mas, vejo, tem coisas que essa menina pode aprender e aprender bem, né? E eu penso assim até do próprio modelo, entendeu? Você não tem esse conhecimento reto. Literatura, eu gosto muito, né? E... Deu pra levar.
P/1 - Ô, Márcia, você tinha... Quais eram os seus programas como adolescente? Quer dizer, além de trabalhar, estudar, você tinha programas de adolescente fora do trabalho da escola?
R - Não tinha, não tinha. Sabe por quê? Porque, primeiro que adolescente não tinha, na época, essa liberdade e programas específicos. Família pobre não tem essas coisas, porque não tem dinheiro para gastar. Ou você vai na festinha de uma amiga, que é ali perto, ou você vai na rua brincar, entendeu? Porque cinema custa caro, todas essas coisas custam caro, e aqui eram cinco. Então, multiplica cinco reais por cinco, já dá muito dinheiro. Dava para comprar um pedaço de carne. Então, tudo isso a gente até tinha quando ia para o Rio de Janeiro, na casa dos meus tios, que tinham um poder aquisitivo muito maior. Uma era mulher de um coronel, outra... Então, essas coisas, lá na casa da minha avó, que não era avó, mas como era uma das irmãs mais velhas, e minha mãe era muito ligada a essa irmã dela, a gente chamava de vovó Alice. Então, o programa não tinha, eram os que tinham na rua, as brincadeiras que tinham na rua, festinha de escola, entendeu? E, às vezes, uma coisa ou outra, um parquinho, entendeu?
P/1 - Você chegou, seu pai saiu de casa, mas vocês tiveram algum contato com a família dele?
R - Sim, com a família dele, sim. E, de vez em quando, a gente ia até Juiz de Fora, podia ficar com a minha avó, com a minha tia, que era irmã dele, que eles estavam melhor organizados, a vida deles. Eles estavam bem. Então, vez ou outra, a gente ia na casa deles.
P/1 - Como que era Juiz de Fora? Você lembra? Você tem memórias da época que vocês iam visitar?
R - Juiz de Fora, mineiro que nasce em Juiz de Fora, ou que vive em Juiz de Fora, queria ser carioca. É verdade. Nunca ouviu falar isso? Eles queriam ser cariocas, todos eles que moram lá. Mas nasceram no lugar errado. Então, eles não têm o hábito, como o hábito dos mineiros. É mais dos cariocas, que é bem pertinho. Então, é mais... Mas eles estavam bem. Minha avó cozinhava muito bem e tinha aquele fogão. Meu pai tinha dado uma casa muito bonita para eles. Ela tinha aquele fogão que... Como é que chama o fogão? Aquele fogão que fica aceso o dia inteiro.
P/1- À lenha.
R - Não, não. É um fogão de lenha. Isso, de lenha. E que, no começo do dia, acende e vai apagar. Quando apagar, e aí se acende de novo, porque é típico isso para que você... O finete que abre. Então, vez ou outra, a gente ia lá. Mas não era com muita frequência.
P/1 - Sua mãe ia junto?
R - Não.
P/1 - E nessas vezes que vocês iam para lá, seu pai ia?
R - Uma vez ou outra, também. Uma vez ou outra, também.
P/1 - Qual era a sua relação com seu pai?
R - Quase nenhuma.
P/1 - Mas você tinha algum sentimento, quer dizer, em relação a ele? Pelo fato dele ter ido embora? Algum rancor?
R - Não, eu não tinha sentimento pelo fato dele ir embora, não. Acho que sempre olhei para isso de um outro jeito. Mas pela forma que ele... Acho que fui feminista muito cedo, de verdade. Acho que ele não tinha direito de tratar minha mãe do jeito que tratava, no sentido de deixá-la com cinco totalmente desorganizadas. Isso, para mim, sempre me afastou.
P/1 - Ele teve outra família, filhos?
R - Teve, teve. Com essa senhora que ele foi embora, ele teve um casal de filhos.
P/1 - E vocês tinham contato com eles, com esses irmãos?
R - Não, porque os meninos não sabiam da gente. E a gente também não ia criar problema com os meninos, né? Não era uma coisa de vingança. Isso era ele, as crianças tinham outra coisa. A minha mãe era tão legal que, na época, você não podia registrar filho fora do casamento. Minha mãe deixou ele registrar porque tinha que ter o não-consentimento, casado com essa coisa, mas ela não criou nenhum problema para o registro das crianças. Ela tinha também uma visão muito longe. As crianças não têm nada a ver com isso, porque ser bastardo, na época, era super complicado.
P/1 - E no Rio de Janeiro, vocês iam bastante também?
R - Ia. A gente, duas tias nossas moravam no Rio de Janeiro. A que eu chamava de vovó Alice, que era mais velha da mamãe. A mamãe chamava Laicinha, essa irmã. E tinha uma outra que era casada com um coronel. Depois virou general. E a gente... Eles pagavam... Tinha um trem. A gente ia de trem pro Rio. Era muito chique, né?
P/1 - E a gente estava falando que você foi de trem.
R - Várias vezes, meus tios, minha avó e minha tia, pagavam para a gente. Eu me lembro que era para passar o Ano Novo. porque tinha aquelas festas, têm até hoje, aquelas festas na praia. Então, a mamãe podia ir a Copacabana com essas minhas tias e a gente ia para a praia com a babá da minha prima, que fazia, até como faz hoje, festas do... Mas lá, na época, eram muito mais festas para Iemanjá, essas coisas. Hoje é que tem fogos e tudo.
P/1 - Você gostava? Quando você chegava no Rio de Janeiro, você tinha alguma comoção com a cidade?
R - Não, não. Eu gostava porque a gente ia para a praia, a gente passeava. Eu gostava, mas assim, estar no Rio... Eu era bem seriazinha, sabe?
P/1 - Bem o quê?
R - Séria, era séria. E bastante... não era uma pessoa... Sabe quando você é toda... não sabe nadar, não sabe correr, não sabe fazer nada. As minhas irmãs faziam tudo. Nadava, corria. Eu falo para a minha fisioterapeuta... Nem queimada, eu joguei. Sabe assim? Porque como é que pode alguém passar a vida inteira sem jogar queimada? Sabe assim? Que é só atirar uma bola em você. Não sei fazer isso. Não sei. Mas dá para dar risada, entendeu? Não precisa chorar, porque nem jogou queimada. Preguiça, não sei se é... Sou relaxada, sou preguiçosa, é mau jeito mesmo. Sabe quando você olha para você? Porque na altura da vida... Tinha na época um negócio de ginástica que as escolas participavam, não sei se você já viu um documentário a respeito, e tinha os guias. Era lá no Pacaembu, não sei o quê. Minha irmã, mais velha, era um dos guias. Isso era o máximo. Eu era uma toda que não conseguia jogar queimada. Essa é a história, entendeu? De dar queimada. E até hoje não consigo. Não nado. Agora, meus filhos fazem tudo. Para eu não puxar a mãe. Não puxar a mãe. Faz tudo. Mas valeu.
P/1 - Como que era? O trem pegava na Estação da Luz?
R - Eu não sei se pegava na Estação da Luz. Acho que sim. O trem era um negócio bacana. Tinha o trem que era, inclusive, com o dormitório, esses eram mais caros, que você tinha o restaurante, tinha todas as coisas, essa tia da gente, mais a minha avó, elas davam esse conforto para a gente, não os dormitórios, porque senão ficaria um aqui e outro ali, mas a gente tinha todas as regalias para andar nesse trem e chegar no Rio de Janeiro. Que era muito mais seguro, inclusive. Isso foi Juscelino Kubitschek, que acabou com os trens para fazer a rodovia. Acabou o trem, bom dia, essa coisa toda.
P/1 - Márcia, e você nessa idade, na adolescência, você tinha alguma paixão, o primeiro namoro?
R - Eu tive um namoro, que naquela época você namorava e ficava noiva. E eu fui noiva de uma pessoa que hoje é uma pessoa muito importante, que a gente continua tendo uma relação afetiva, de amigo e tudo. E aí começou a minha carreira de namoro que não parou muito rapidamente, não. Eu casei algumas vezes.
P/1 - Mas esse primeiro romance foi um namoro que depois você casou?
R - Não, não, não. Foi um romance. Mas super discreto, para a minha idade, que tinha 16 anos. Uma relação bastante, do ponto de vista familiar também, muito legal. Tanto que hoje ele é amigo das minhas irmãs. É amigo da família. Membro da Academia Brasileira de Letras. E a gente tem uma relação bonita, afetiva até hoje.
P/1 - Como que é o nome dele?
R - Não posso falar.
P/1 - Márcia, e aí você teve outros namorados na sequência?
R - É, tive, tive outros namorados, entendeu? E até que conheci o pai dos meus filhos, que aí já estamos em 60 e poucos. Já estamos perto do golpe. Eu já estava militante, já era militante, e conheci meu companheiro nessa militância, que é pai dos meus dois filhos mais velhos, do Marco e da Melissa. A minha terceira filha é de um outro casamento. E a gente teve uma militância que nos ensinou muito, que a mim me ensinou muito, do ponto de vista dos companheiros, foi muito importante. Quando você vê o país do jeito que está, você diz, “meu Deus do céu, onde a gente errou tanto? Quando você vê o mundo, onde a gente errou tanto?” Com tanta gente que morreu, com tanta gente que foi barbaramente torturado. Ainda bem que tem hoje um filme, ainda que não fale das coisas que deveria ter falado, ainda falta muita coisa. Pelo menos tem algo para lembrar e para se conversar a respeito. Tempos muito sombrios, e nós estamos revivendo isso, a miséria que a gente está vivendo. E falar desse período, que ainda que seja no filme que está lembrando essas coisas, mas o que a gente ontem estava discutindo, a questão da segurança alimentar. A fome está aí de um jeito grave, muito grave. Eu que trabalho com a pobreza, e sem classificar, porque extrema pobreza, o que é isso se tiver quatro pessoas? As crianças não comem proteína, as crianças não têm… A grande maioria de crianças até seis anos estão em insegurança alimentar e você não vê de novo a população, os mais ricos, os que podiam, preocupados com essa questão, para você poder dar uma cesta de alimento que no seu orçamento não seria nada e se cada um te fizesse E você não vê a indignação que nos leva à ação, porque também ficar com a indignação, sem levar à ação, não serve para nada. Enfim, essas coisas têm me abatido muito. Engraçado. Essas coisas têm me abatido muito, essa não-ação, porque eu venho de uma geração que tinha ação. Você pega um gatinho, você pega... E, ao mesmo tempo, me comove a delicadeza. Eu, por exemplo, agora, com o meu problema de saúde, preciso sempre de um braço amigo. E sempre me estende o braço amigo para eu poder descer do táxi, para eu poder descer a escada. E aí me comove muito. Quer dizer, essa... Essa contradição, entendeu? Quer dizer, você tem o braço amigo. Eu tenho o braço amigo, porque vem a Bengala, me vem claudicante, mas aquela criança, aquela família não tem o braço amigo, o prato amigo. E é só a fome. Eu não sei se é porque foi... A minha mãe, eu vi várias vezes a gente acordar de noite dizendo que estava com fome, e ela tinha feito o possível para que a gente não tivesse fome, e ela dizia: “bebe água para distrair a fome”. Tempo que distrai, mas distrai. Daqui a pouco você está de novo. Então, é o Brecht. Eu acho que é... Enfim, já falei demais.
P/1 - Vamos voltar um pouquinho atrás. Quando você estava no segundo grau, Você pensava assim, quando eu saí daqui, quero fazer faculdade de tal coisa, quero ser tal coisa, você tinha um desejo?
R - Não, eu queria ser professora mesmo, entendeu? E depois, quando eu comecei a fazer política, aí é que veio a filosofia, para eu entender melhor o mundo, entendeu? Para poder saber de onde sair, de onde partir. E tinham começado os novos filósofos, uma nova visão de mundo nessa época. Eu tinha a filosofia e a sociologia para poder escolher, e que elas se pareciam. E era muito importante, porque a Europa começava a pensar a questão da filosofia com outros, não naquele olhar já quebrando aquele olhar, já indo para outros filósofos, compreendendo o mundo de outra maneira. Então, aí que eu escolhi a Filosofia.
P/1 - Em que faculdade você fez?
R - USP. Mas não terminei, eu fiz um ano de faculdade. E aí, quando começou o AI-5. Eu saí e não voltei.
P/1 - Que filósofos que você lia nessa época? Que autores que você lia nessa época?
R - Para mim, os franceses eram os mais importantes. O Foucault, que estava começando a acontecer, era o que eu era apaixonada. E estava começando a ser importante o nível da explicação que ele tinha, inclusive, que era muito interessante, a explicação sobre a saúde mental. Não sei se... Mas era o comecinho desses filósofos que estavam também preocupados com a questão da saúde mental. E a gente estava ainda aqui no manicômio. Não se discutia, estava começando a discutir saúde mental no olhar da repressão também, porque a repressão usou bastante a questão da saúde mental para provocar situações de tortura piores.
P/1 - Como é que você entrou para algum movimento, alguma célula, algum partido nessa época?
R - Sim. Sim, eu entrei. Havia no Partido Comunista. Embora eu sempre fosse socialista. Eu fui para o Partido Comunista, mas o meu olhar era o socialismo, como é hoje. Porque a repressão, essa questão sempre me incomodou, essa coisa da repressão. Você pode ser socialista sem... Por exemplo, eu diria que Allende era o meu líder. Eu fui para o Chile, na eleição do Allende, fazer um trabalho lá, e não comunista, entendeu? Com a repressão, com o tipo ditatorial do comunismo.
P/1 - Você trabalhava nesse período? Você estava trabalhando?
R - Como?
P/1 - Nesse período que você entrou na faculdade, você estava trabalhando?
R - Estava. E eu estava casada com Walter, e trabalhava meio período em escola. E eu fui, eu tive também na minha formação, eu fui também educadora com crianças com problemas. Eu criei uma escola para crianças que tinham problemas diversos. De modo geral, crianças que tinham distúrbios de comportamento, ou paralisia cerebral, autismo e tudo mais. Trabalhei com gente muito boa. Tinha uma equipe, convidei a equipe, a gente montou uma escola que pudesse ser integrada. Primeiro, essa escola ficava no Pacaembu. Mas o rico não ia conseguir conviver com o pobre. Aí a gente foi, eu trabalhava com grandes neurologistas, psiquiatras e tudo, aí a gente foi para a Vila Brasilândia. Então, o primeiro período eram as crianças que não sempre eram pagantes, mas eram as crianças que tinham os problemas. E, no segundo turno, trabalhava, juntava as duas turmas. E tem uma coisa engraçada que eu não vou esquecer nunca. Tinha uma criança que não comia de jeito nenhum. Você podia botar a bandeja, a criança não comia. Essa criança era tida como uma criança, aspas, normal. Eu não acredito nisso. Mas aí eu falei, “pode deixar comigo”. Aí eu deixei a bandeja da criança ali na mesa, botei a minha do lado e falei, “espera aí que eu já volto”. Aí quando eu cheguei na sala, não tinha nem uma, nem outra. Aí eu falei, “cadê você comigo?” Aí ele olhou, olhou, olhou, “comi”. Falei, “ô, bicho, você não foi lá embaixo comer direitinho? Você teve que comer aqui”. E ele estava cheirando comida, porque parte estava no bolso. Aí eu falei, “mas você não come, e aí o que você fez?” “Comer todo dia, dá mau costume”. Eu não vou esquecer nunca mais de “comer todo dia”... Genial, não é genial? Muito bacana.
P/1 - Márcia, voltando um pouco, essa foi a sua primeira incursão na educação, no sentido de que você falou que criaram uma escola. Como é que foi esse processo de criar essa escola? Quem estava envolvido?
R - Você continuou com a sua vida clandestina.
P/1 - Como nasceu essa ideia de criar a escola?
R - De criar a escola? Veja, na época, isso, 70 e poucos, você estava, quando chocou a minha mente, mudando, é onde começam as mudanças nesse foco, nesse olhar. Toda parte de saúde mental, seja ela provocada no parto, estava se começando a falar disso. A dona Jô Clemente criou a APAE. E, na minha opinião, a despeito de um grande trabalho que ela teve, deixou muitos buracos. Então, a ideia que a gente tinha era fazer algo o mais próximo do normal possível. E aí a gente conseguiu fazer. Eu tinha relações na área médica. Essa questão dos preconceitos, era possível a gente trabalhar. E começamos a fazer. As pessoas são minhas grandes amigas até hoje, dessa época. Então, tinha muito trabalho com artes plásticas para deixar as crianças mais tranquilas, música, artes de modo geral, fisioterapia, fonoaudiologia. Então, tinha a área técnica, tinha as artes plásticas e as coisas foram dando muito certo. As crianças foram evoluindo muito bem. E tinha também as mudanças em relação ao olhar, seja médico, seja... Em relação a essas crianças que apresentavam esses tipos de problemas. E como inseri-las numa convivência normal. Hoje, por exemplo, quando eu tinha escola, você falava em autismo de Kanner, que não sei se você conhece. São determinados comportamentos que a criança... Hoje, qualquer um é autista. Nunca se viu tanto diagnóstico de autismo como tem atualmente. E tem mais siglas. Cada vez inventam mais doença mental. E a forma de inserir essas crianças? Como é que vive? E os pais? A gente fez um excelente trabalho.
P/1 - Você já participava dessa escola, grandes neurologistas, médicos. Onde você conheceu essas pessoas?
R - Eu fui casada com um médico. E como eu também atendia a classe mais privilegiada, entendeu? Então, por exemplo, José Salomão Schwartzman, grande neuropediatra. Eu atendia os pacientes deles. Isso formamos uma relação, e discussão que a gente pôde trocar. E ele respeitava muito o trabalho, a forma de fazer. É isso que estou te falando, estava mudando. Por exemplo, tinha um grupo de psiquiatras, psicanalistas, que criou a Comunidade Terapêutica UFAMS, que é o de Loreto, que era totalmente diferente, um olhar totalmente diferente para a questão da doença mental, seja de criança, seja de adulto, que até hoje os ensinamentos estão aí. Então, nesse sentido, formamos um grupo para lutar com isso. Quando falamos das mudanças na psiquiatria, que saiu do... faleceu, que também veio da comunidade terapêutica, que é o Gabriel Figueiredo, que criou toda a parte desses novos processos de atendimento à saúde mental, que não é mais internado, que não é mais manicômio. Então, a própria atividade vai te levando. Então, quem está trabalhando legal com essa questão, “bora procurar” porque tinha, não vou lembrar o nome dele, mas tinha um presidente da Cepa que dizia, no Brasil, na América Latina, ou inventamos ou erramos. Eu acho isso fantástico. Então, se você trabalha com crianças, se você trabalha com uma determinada patologia, você vai ter que inventar para dar uma resposta para aquela mãe, para aquela criança.
P/1 - Aí a gente estava falando desse processo, como foi se constituindo a escola.
R - Pois é, mas é exatamente isso. As coisas não estão acabadas em situação alguma. E as coisas estão aí para serem inventadas. Porque não é possível que as coisas não avancem, seja na área médica, seja na área da educação. Temos que fazer com que essas coisas possam se avançar e você dar o atendimento que a criança merece e não ficar só na medicação, não ficar só nessa questão técnica. Mas não sei, as coisas estão paradas, não têm as discussões, entendeu? Tem uma mesmice nas discussões, muito grande. A gente não está avançando mais.
P/1 - Márcia, quando você disse que fazia esse atendimento, lá atrás, lá atrás não, você falou um pouquinho agora, e que foi daí, que foi nascendo esse relacionamento, que tipo de atendimento você fazia junto com esse médico?
R - Não, é exatamente isso. O Médico é Médico, passava o pingo d'água, que chamava, chamava pingo d'água por conta de... Era um pinguinho d'água dentro dessa situação. Era onde a criança ia conviver com crianças, aspas, normais, que não representava uma categoria. Então, essa criança é fruto, o nascimento dela deixou marcada por uma paralisia cerebral. Então, você vai medir o grau dessa paralisia. Isso é conta do médico, não tem nada a ver com isso. Agora, o que a gente pode fazer de positivo com isso? Ela pode cantar, ela pode dançar, ela pode brincar com outras crianças que não têm paralisia cerebral. E também não vão pegar, não vão ter seu desenvolvimento, porque essas crianças não frequentam escola. Lá é um lugar de segundo turno, de brincadeiras, de poder até fazer a lição, entendeu? E tem a parte técnica também.
P/1 - E quando vocês foram para o Pacaembu, por que nasceu essa ideia de ficar lá no Pacaembu?
R - Não, a gente foi para o Pacaembu porque a gente não era bobo. A gente achava que a gente lá conseguiria construir, fazer a escola integrada. Mas não aconteceu. Então, a gente foi para a Vila Brasilândia, onde a gente conseguiu fazer a escola integrada. Porque no primeiro turno vinham as crianças de famílias mais pagantes, no sentido de ter seus médicos e tudo mais, e no segundo turno vinham as crianças da comunidade para fazer o mesmo trabalho junto com as crianças portadoras de deficiências e de complicação que pudessem estar convivendo, entendeu? Sem problemas.
P/1 - Como é que era essa convivência?
R - Veja, isso era, primeiro que isso era sempre no sentido de crianças que faziam música, teatro, dança. Eram aulas mais de artes, e terapias. A terapia era fisioterapia, fonoaudiologia, de forma geral, e comportamental. Não comportamental enquanto... E trabalhar o comportamento. Então, criança que não conseguia falar, como é que a gente fazia? Estimulava para falar, estimulava para contar história. Era mais de estimulação em relação... e conforto, isso é muito importante, aconchego, conforto. E aí as crianças, porque é muito fácil, as crianças, mesmo aquela criança, que está com o diagnóstico de autismo e tudo mais, mas daquele outro... Pode ser aceita pelo outro menino. Essa possibilidade de convivência é uma socialização. No meu trabalho tem crianças abrigadas na mesma casa, meninos que têm, a gente pode ter um, senão cria muito problema, muito problema no atendimento. A gente tem as condições de atender e as crianças aceitarem. O mundo é assim. Isso tem que ser representado desde pequeno. A minha filha, mais nova, estudou numa escola que, em cada sala, desde pequenininha, em cada sala tem uma criança com um tipo de dificuldade. E minha filha vai lá ser médica. É a pediatra que é, certamente, para essa experiência de convivência desde pequeno com o diferente e que precisa correr para ele brincar. Eu me lembro claramente disso. Para ele brincar, ela tem que correr mais devagar, entendeu? Ela tem que ajudar a coleguinha com a mão, segurando na mão da menininha para ela não cair. A outra que tem hipoacusia, como é que ela vai? Então, isso era cada um em cada sala. Porque, é claro, não dá para ter vários, senão você não dá um atendimento adequado.
P/1 - Tem algum caso marcante, alguns casos, você deve ter vários nesse momento?
R - Na Santa Fé?
P/1 - Não, nessa outra experiência.
R - Tem, tem, tem. Até hoje.
P/1 - Você lembra de algum pra contar pra gente?
R - Hã?
P/1 - Você lembra de algum?
R - Lembro, lembro. Por exemplo, tinha uma menina que me ligou agora no meu aniversário. Imagina, isso é... Tinha uma menina que não falava, não falava, ela era... e se machucava, entendeu? Se feria e está bem, entendeu? E ela tem uma vida, ela está com 40 e poucos anos, e ela tem uma vida normal, claro. É uma família, no caso dela, ela é de uma família que pode provê-la de conforto. A mãe faleceu. Mas ela tem uma vida normal com os irmãos. E ela era bastante prejudicada. Ainda bem cuidada também.
P/1 - E você foi vendo essa transformação dela.
R - Você participou do processo. Sim, em vários, em vários. Pode ser que eu não saiba dizer agora em quantos e como de cada um, etc. Mas, por exemplo, se você pegar meu trabalho hoje, tá? Eu te conto história que você não vai acreditar, de histórias de meninos que estiveram na rua, vivendo o absurdo que começa com um estupro coletivo, voltando da escola, com 12 anos de idade, e hoje está se formando em engenharia no Mackenzie, com bolsa de estudo, obviamente. Então, essa trilha, essa menina, que é superinteligente, essa menina que viveu essa questão do estupro coletivo, em decorrência disso, ela achou que o esses senhores estavam drogados. E o que ela fez? Ela mapeou o Grajaú para achar os lugares, não vou falar as expressões, os lugares onde vendiam a droga. E acabou ficando lá. E lá ela ficou com o gerente do espaço, até que engravidou. Aí foi para a gente. Aí ficou de auxiliar com a gente, isso que importa. Ela era, como você pode imaginar, uma guria, com essa vida, como foi difícil para ela. Para nós, a gente não podia sequer atender. Ela é muito difícil. Vai ser engenheira daqui a pouco. Um dia desse eu fiz uma consulta com ela sobre uma caixa de amianto. Me senti orgulhossíssima. Nem sabia direito o que era amianto, mas eu precisava da informação. Eu adoro ela. E tem várias assim. Eu estou com uma menina que morava embaixo do viaduto da Vila Mariana, que eu esqueci o nome, é um viaduto lá, com a família. Ela terminou o mestrado dela e está entregando a questão da tese de doutorado dela na USP em Educação. Então, o poder da educação e da educação que eu acredito e que, às vezes, eu consigo fazer junto com outras pessoas, é uma coisa extraordinária. Quer dizer... Sabe qual é o que a... Como é que chama? Eu queria tanto te dizer do viaduto, mas a tese dela é sobre educação em abrigos. E a gente está fazendo junto algumas coisas, porque se você usa determinadas expressões, que são, mesmo os pesquisadores, que são categorias, entendeu? Então, por exemplo, egresso de abrigo. O que é egresso? Egresso é da cadeia, egresso é da fundação casa, sabe? Por que confunde isso aqui? Vamos embora, tira esse nome aí e vamos inventar outro. Porque o egresso não pode juntar. E a gente está fazendo junto. “Você tem razão, tia, você tem razão.” E às vezes você pega o historiador falando isso. Usando a mesma terminologia para coisas que... Isso é uma categoria. Você cria uma categoria. E aí eu cortei tudo isso agora mesmo em uma pesquisa. Porque é um absurdo. Não, está bom.
P/1 - Está maravilhoso. Dá um aprendizado. Estou falando, é um PhD. Márcia, e aí quanto tempo você ficou nessa experiência?
R - No Pingo d'Água? Quando eu vim para, por causa do estatuto. Eu deixei o Pingo d'Água, né? Ele existe até hoje já com outra configuração. E... E fui trabalhar o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente. E aí fui a conselheira mais eleita, ou melhor, mais votada, lá pela Vila Brasilândia. Então, me candidatei à conselheira tutelar, porque eu entendi que o conselheiro tutelar era o pilar do estatuto. E aí eu fui votada. São Paulo, foi na época da Erundina. São Paulo tinha 20 conselhos, na época. Então, essa era muito pequena, muito pouco, mas não avançou nada. Não avançou porque tem que trazer o estatuto para a rua. E tem os conselhos tutelares, mas não tem os serviços necessários, a atenção necessária e tudo mais. E aí não tem a Santa Fé.
P/1 - Vamos voltar para o Conselho Tutelar. Essa experiência, como é que você foi eleita? E aí era um momento, aquele momento de criação ou revisão do estatuto?
R - Não, criação.
P/1 - E aí você foi uma das idealizadoras?
R - Não. Veja, o estatuto contém, ele está contido na Constituição. Artigo 222, esse é o estatuto. Está lá, mas não está...
P/1 - Implementado.
R - Não, e não está nem implementado, nem definido. É um artigo que consta lá. Depois, você já constitui o estatuto, a partir dos conselhos tutelares, da eleição dos conselhos tutelares, que vão fiscalizar o estatuto, se o poder público está cumprindo o estatuto da criança e adolescente. Ora, 20 conselhos tutelares em São Paulo não é nada. E nem as condições, você não tem condições ainda de dizer que em São Paulo tem o Estatuto da Criança existe. Porque tem aqui um pedacinho ali, um pedacinho aqui lá, mas não tem o estatuto da criança que você possa dizer, “olha, essa criança, você vê”, e cada um faz de um jeito. Quais são as mães que perdem a guarda do seu filho? Claro, mas solos, preta, periférica e daí vai. Por exemplo, tem cidades como Paulínia, se não me recordo, que tem o ______, a guarda subsidiada. Então, por exemplo, você está aí numa miséria danada, tem filho para criar, você pode ganhar um dinheiro para ficar com o seu filho e depois, claro que você vai ter que ser vista, se realmente você está cuidando, enfim. Então, a gente sabe que está sempre criando coisa para mãe pobre perder o filho. Você tem, por exemplo, três idades para você ser maior. Você tem 18 anos até 17, 11 meses para ser apoiada, o Estado cuidar de você, da criança. Aí você tem o IBGE, que fala adolescente, 19 anos. E você tem, para punir, alguém que comete uma falta de 17, 11 meses, até isso, você tem três anos, ele pode ficar na Fundação Casa. Então, como é que é isso? Tem que acertar isso. E quem discute isso? Para a gente saber, porque ninguém está pronto com 17 anos e 11 meses. Principalmente alguém que vem de uma família pobre. De um lugar em que a educação não é tão importante, que são os abrigos. Então, nossas crianças não estão protegidas. Então, a gente tem que brigar por isso. Essa é uma das nossas lutas, é a briga pela instauração do Estatuto da Criança e do Adolescente, que é uma das melhores peças, é uma peça muito importante para levantar esse país e nossas crianças não têm comida.
P/1 - Márcia, nesse momento que você é eleita, lá pela Brasilândia. Quem eram os teus interlocutores? Quem era do poder público que estava à frente dessa política?
R - Era o pessoal ligado à Erundina, era o pessoal ligado ao PT, mas eu não vou me lembrar desse nome não, isso foi há bastante tempo. 30 e tantos anos, entendeu? Mas era todo mundo do grupo. Tanto é que o grupo que foi eleito, nesses 20 conselheiros, todos foram comigo para Santa Fé. Todos fomos nós que montamos a Santa Fé, a partir desse grupo eleito.
P/1 - Foi daí que nasceu a ideia de criar a Santa Fé?
R - Foi aí que nasceu a Santa Fé, como ela é hoje, no sentido da escola ambulante, foi aí que ela nasceu. Porque a gente foi convidado, eu tenho até hoje uma conselheira tutelar da Fé, que a gente se conheceu na luta, e ela me chamou, porque tinha uma senhora que tinha ido lá no conselho, que ela queria fazer um... uma demonstração, porque ela tinha um terreno grande na Vila Mariana, uma demonstração a respeito dessas crianças que estão nas ruas, para elas não ficarem cada vez não percebidas. Quer dizer, essa coisa de... não sou vista, como hoje também é. E aí a Fátima me chamou para que eu pudesse conversar com essa senhora e ajudá-la a fazer essa festa. E nada mais tinha como pretensão ter a chamar a atenção do público, dos passantes e tudo mais. E eu achei interessante. Fomos, e você deve saber disso, e a gente conseguiu, a senhora socialite e tudo, conseguiu montar o recurso suficiente para montar aquele espaço como espaço de exilados de guerra. Aqueles campos de exilados de guerra que as crianças procuravam os pais, porque tinham um lugar para buscar as crianças e tudo. Arrumamos belíssimamente. E depois os projetos traziam as crianças nesse lugar. E estava lindo. Até tenda de circo, tudo para fazer as coisas. As crianças quebraram tudo de uma vez. Não ficou nada. No dia seguinte, o que a gente faz? Constrói tudo de novo.
P/1 - Mas quebraram tudo com os profissionais lá?
R - Foi assim. Sabe, para destruir, ia disparar ali dentro, uma pessoa aqui para destruir. Você foi segurar, como? Entendeu? Não tem jeito. Pega a cadeira, joga a cadeira em cima de você e tudo mais. Claro, isso é uma teoria que eu gosto muito do Winnicott, que é uma psicanalista, ele explica isso. “Nunca ninguém fez por mim. O que vocês estão querendo de mim? O que você querem por trás disso?” E construo de novo.
P/1 - Mas você vivenciou isso? Você viu isso acontecer?
R - Claro, eu estava lá.
P/1 - Como foi?
R - Sabe assim, as pessoas entram e vão quebrando, vão jogando no chão, vão pisando, entendeu? Não sobrou nada. Aí foi tudo de novo, entendeu?
P/1 - Mas aí o que aconteceu? Quebrou-se tudo? Eles saíram? Voltaram mais?
R - Não, no dia seguinte, tudo de novo.
P/1 - Aí vocês reconstruíram?
R - Reconstruímos, não exatamente com... Mas até, porque tinha banheiro, tinha todas as coisas, até tinha lá as enfermarias, que tivemos que buscar nos exércitos de novo, que eles tinham nos ajudado, aquela porcaria daquele exército perto do Ibirapuera, que era pertinho lá. E aí ficamos um mês nesse lugar, nesse espaço, e aí partimos para a Escola Ambulante. Por quê? Acabou o que era só uma demonstração. Era só chamar a atenção. Tanto que as crianças que quebraram tudo, nos últimos dias comiam com garfo e faca, mas sem a ponta, sem nada que pudesse machucar. Tudo de plástico, enfim. Fizeram um espetáculo, entendeu? Em função do tempo que a gente ficou ali. E não queriam ir embora, o que era extraordinário para nós. Tudo que a gente viveu ali era uma surpresa em cima de uma surpresa, em cima de uma surpresa, que você vai ter que olhar, processar, interligar e ver o que você vai fazer. Não é automático. E aí, quando a gente não tinha dinheiro, a gente não tinha nada. Quando as crianças não queriam ir embora, que elas queriam ficar e a gente não tinha projeto, a gente não tinha nada. E aí foi quando a gente disse, “a gente volta”, isso era dezembro, “a gente volta em fevereiro”, porque a gente achou que a gente poderia ter condições mínimas, e a gente voltou em fevereiro com a escola ambulante.
P/1 - Mas a escola ambulante vem antes do Santa Fé ou aí já é o Santa Fé?
R - Aí já é o Santa Fé. A escola ambulante já é o Santa Fé.
P/1 - Então, esse processo de você estar no conselho e a criação do Santa Fé nesse momento, como foram as discussões iniciais para se criar?
R - Veja, eu sou a mais velha do grupo e que tinha vivido vários períodos da educação no Brasil. Eu tive o privilégio de fazer sessões com o Paulo Freire, com o Darcy Ribeiro, e o grupo que estava comigo, que está comigo até hoje, que a maior parte ainda está comigo, só uma liderança que faleceu, teve um infarte, mas estaria comigo, conosco. E não tinha essa experiência política. E nem esse olhar na educação, do ponto de vista de que essa educação aqui não pode ser diferente dessa, só porque esse aqui é pobre, mas tem que ser uma forma diferente para se interessar, para dizer “eu posso”. Então, eles não tinham essa experiência. E eu tinha vivido experiências bastante ricas. Por exemplo, eu tive a oportunidade de ir no governo Brizola, foi aí que conheci Darcy Ribeiro, e, frente a frente, para poder discutir, vi a origem da escola ambulante. E o mais importante é que isso cabia. A escola ambulante era a única coisa que cabia naquele momento. E era lindo. Lindo barato. E barato no sentido de que a gente não tinha que ter espaço, não tinha que ter muitos profissionais e tudo, porque era um conhecer para depois se fixar. Então, a primeira coisa que você faz na escola ambulante é mapear onde estão as crianças, como é que você faz para localizar as crianças e qual é o espaço que você vai usar. Então, na época, as crianças ficavam na Praça da Sé. Aquele monte de crianças na Praça da Sé, não sei se você lembra disso. Então, quando a gente mapeou, a gente mapeou os limites dessa praça, porque pegava até um pouco da Liberdade, e tudo mais.
P/1 - Na João Mendes.
R - Isso. Mas eles se fixavam na Praça da Sé, que era grandona. E a gente conseguiu montar uma escola na Praça da Sé. De novo com a tenda, de novo com a biblioteca. Foi muito legal. Tinha a tenda para o teatro, tinha a biblioteca, tinha a coisinha de música, todas as oficinas. A gente montou na Praça do Sé Olha que extraordinário. E era bem na frente de todo mundo. As crianças faziam os desenhos, a gente pendurava no varal. Aí passava uma pessoa: “E quem fez isso?” “Por quê?” “Não, porque meu filho faz isso assim. Parece com um desenho do meu filho”. Então, isso era fantástico, porque aquela senhora estava reconhecendo naquele outro o filho dela. E não apenas uma categoria de menino de rua, porque ainda se falava assim. Ainda hoje também se fala. Mas, então, isso foi o fundamental, você reconhecer aquele outro seu filho. Então, aí a gente passou a ter uma relação muito legal com o coronel, porque os soldados da época, jogavam os cachorros dele em cima da gente. E por quê? Porque a gente estava atrapalhando o comércio. Estava começando a nascer o crack ali. E a gente estava atrapalhando o comércio dos traficantes com as crianças, para as crianças venderem a droga para a polícia, etc., aí eles jogavam o cachorro com a gente. E aí eu fui lá no... Como é que fala? Onde fica o coronel? No negócio militar lá.
P/1 - No quartel?
R - No quartel militar, no quartel da polícia militar, que fica ali perto da Praça do Sé, falar com o comandante para discutir o que estava acontecendo. Aí o comandante não estava, falei com o vice-comandante, ele me atendeu, viu uma mulher bem vestida, arrumada, indo lá procurar, o cara tem que se levantar da cadeira. Aí ele foi comigo na praça. Já deu uma bronca e virou nosso amigo, que foi a nossa salvaguarda, que foi uma coisa super importante, a ajuda desse coronel com a gente. Quando aconteceu o crack, apareceu o craque que as crianças nos avisaram, mostraram até onde tinha e tudo mais. Eu fui falar com o Ministro da Justiça, que na época, não vou me lembrar, era do Fernando Henrique. Era um baiano super sério. Porque a grande questão era as crianças, porque as crianças usavam naquela época cola de sapateiro, esmalte, só inalantes praticamente, vez ou outra, aquilo que se usa no carnaval.
P/1 - Lança.
R - Lança-perfume, também inalante, e maconha. Vez ou outra também, porque era caro, tanto a lança quanto a... Tanto a lança quanto... O lança-perfume, lança, e o outro também era caro, maconha. Então, se ficasse, olha só, se ficasse o crack, por isso que eu fui conversar com ele, o que aconteceria era que as crianças e os adolescentes entrariam no narcotráfico. Eu fui conversar com ele por duas razões. A USP tinha levantado a categoria daquele cara que estuda sobre a violência, eles tinham levantado...
P/1 - Paulo César Pinheiro?
R - Isso, eles tinham levantado a questão da, não sei se é exatamente esse, eles tinham levantado o prejuízo, a cocaína, o prejuízo que a cola de sapateiro causava na criança, porque ela queimava neurônios. Eu repito, porque isso aí é só em função de... Eu não sei lidar com essa informação. Ela é fidedigna, tanto que aí foi conseguido que o ministro tirou essa composição da cola de sapateiro. Mas é outra composição e tudo mais. Mas, em relação ao crack, a gente nunca soube nada e as crianças entraram na linha do narcotráfico. E só aconteceu situações mais abusivas, mais abusivas, mais abusivas. Mas a gente conseguiu, a gente não tirou da rua, a gente não limpou a rua, entendeu? As crianças vieram conosco, que é uma outra situação, que pudesse até ensinar a gente como trabalhar com as crianças, como conviver com as crianças. Essa foi uma experiência incrível. Incrível porque, com a ajuda deles, a gente pôde estar com eles até hoje. A semana passada, foi feita uma sistematização da nossa metodologia e eu fiquei muito feliz. Foi feita através do Pensi. Fiquei muito contente porque pegaram os pontos fundamentais da metodologia, para mostrar, reconhecendo, por exemplo, lá nós temos a Assembleia. Mas a nossa Assembleia não é de qualquer jeito. A Assembleia é chamar a casa inteira. Aconteceu, chamou. Para tudo, e bora conversar. Aí você vai pegar vários autores. Por exemplo, Hannah Arendt. O que tem a ver Hannah Arendt com o crack, com essas coisas? Porque Hannah Arendt fala sobre um livro que ela tem de violência, em que ela fala que a palavra substitui a violência. Então, na hora que essa criança consegue colocar a dor dela, a raiva dela, protegida pelos outros, em palavra, cada vez mais, essa violência que ela tem, que ela recebeu e ela tem como troca, ela vai conseguir colocar os sentimentos dela… Esse lugar tem de ser um lugar democrático. O meu peso na Assembleia, o peso de um educador na Assembleia, é tão grande quanto o de uma adolescente ou de uma criança, que vai dizer que gosta ou que não gosta. Então, eles pegaram isso super bem. Que é exatamente os aspectos da metodologia que são fundamentais para ter esse tipo de avanço em relação à vida das crianças. Então, não é nosso, entendeu?
P/1 - Márcia, e quem, essa metodologia, quem entra para trabalhar lá naquele momento, passa por um treinamento, como é que é esse grupo?
R - Tem uma capacitação, essa é uma questão para entender o que vai acontecer, por que a casa para para uma assembleia, entender o que acontece, como a criança entra. Por exemplo, a criança entra no abrigo. Primeira coisa, ela não é preparada. O que a gente faz? Essa criança vai chegar. Você não recebe quase nenhuma informação sobre essa criança. Então, a primeira coisa que a gente faz é uma assembleia com os educadores para escolher o tutor dessa criança, porque como são turnos, essa criança, esse educador entra, trabalha, você tem três turnos que troca o educador. Então, no primeiro momento, o educador, o tutor, se escolhe, se auto escolhe. Pode deixar, eu quero apresentada a criança ou adolescente, enfim. Aí tem um segundo momento, porque a criança não se vinculou, legal, entendeu? Mas se vinculou com uma outra educadora. Até com ele que vai ser o tutor. Esse tutor vai acompanhar, em vez dele ser uns pedacitos, vai acompanhar essa criança na sua totalidade. Quando você tem, aí você tem quem vai ser o amigo qualificado. Aí tem outra assembleia para discutir onde vai dormir, como é que vai fazer, quem quer, por que quer, etc. Aí você tem todo o enxoval da criança, porque ela pode chegar sem roupa, tem que estar o quarto arrumado, tudo arrumado, o perfuminho, enfim. Então, você tem um roteiro. Agora, é proibido você entrevistar essa criança e perguntar coisas para ela. É “seja bem-vindo, o que você gosta de comer?”, para depois, quando ela estiver menos tensa, “não sei o que vão fazer comigo aqui, etc.”, aí você entra nesse aspecto, fora isso, “bora ver o que você vai comer”, gostosinho, etc. Aí você tem toda a parte de capacitação para o educador entender, educador, psicólogo, enfim, que tem psicólogo, tem assistentes sociais. Aí você tem também, depois da questão de você Agora, o que é fundamental é que tem uma supervisão. O que é a supervisão? É um espaço onde todos, educadores e técnicos, estão reunidos com o psicanalista, que não trabalha na casa, para olhar esses... e fazer as previsões de como estamos tratando, o que está acontecendo, onde estão sendo os erros?
P/1 - Márcia, como as crianças chegam lá?
R - Eles chegam, eu não vou saber te dizer, entendeu? Tem um negócio da prefeitura, a gente tem convênio com a prefeitura.
P/1 - Daí que vem o recurso? O recurso vem para o repasse?
R - Não, total. Vem uma parte do recurso. A gente está compreendendo com a prefeitura. Então, para você ter qualquer criança em um abrigo, tem que passar por certos procedimentos, tanto jurídicos quanto a questão da prefeitura. Então, não pode ter lá dentro, criança que não tenha passado pela vara da infância e nem pela questão da prefeitura que tem os meios para fazer isso. Por isso que eu digo que sei que eu não vou saber porque eu não faço isso. Tem um departamento que sabe que tem a vaga e manda, entendeu? E que já passou pela vara da infância. E a gente está tentando melhorar isso e não está conseguindo.
P/1 - Márcia, desse começo para hoje, quais são as principais mudanças que teve no Santa Fé?
R - Olha, a mais lamentável mudança é que nós fomos os primeiros a trabalhar com menina, mãe, a partir de 12 anos, por estupro, de modo geral. Isso faz 30 anos. Agora tiraram isso da gente. Nossa casa, apesar de todos os esforços, não, essa casa que chama Vovó Ilza, apesar de todos os esforços, ela não está recebendo mais meninas mães. Nós estamos brigando para, porque não tem, não tem política para menina mãe grávida e estuprada. Pode ter 12 anos, pode ter 9. Dona Damares só está ganhando. A única casa que tinha em São Paulo. Não recebe mais. Eles estão colocando crianças com outros problemas e não meninas mais.
P/1 - E por que tiraram?
R - Porque não está tipificada.
P/1 - Quem que tirou?
R - A prefeitura. Não está tipificada. Então, quando, veja, essa questão de como você abriga, de que jeito, etc., tem que ter uma tipificação. Ao invés de eles corrigirem e fazerem, durante 30 anos a gente conseguiu fazer isso, porque a gente teve, de certa forma, o conluio das chefias, dos secretários e tudo mais, respeitando muito o nosso trabalho. O Nunes fala da tipificação. Aí ele está agindo em cima da tipificação, obviamente, que nós não estamos de mãos atadas, nós estamos tentando, tentando não, nós vamos conseguir fazer com que essa criar a tipificação, estamos em luta para isso, e para ter, não só na cidade de São Paulo, mas no Brasil, a questão do acolhimento da menina grávida. Imagina você, que sabe, com o índice de gravidez de adolescente que a gente tem, eu não tenho uma casa para atender essas meninas, sabe, nas condições que elas merecem, porque, veja, a gravidez para uma criança, a gravidez para uma criança, 12 anos é criança, a gravidez para uma criança afeta, já que ela não pode fazer o aborto, porque a cada hora é mais complicado, a gravidez para uma criança deixa essa menina muito pobre pro resto da vida. A família é pobre. Uma das razões para empobrecer, é a gravidez da adolescência, porque essa menina não vai poder estudar. Tem que mandar prender esses canalhas que fazem isso. Entendeu? Como é que pode? Quer dizer, se a menina não vai poder ir para a escola, se a menina não vai ter os cuidados médicos, se a menina não vai ter os cuidados emocionais, afetivos, ela foi estuprada pelo padrasto. O que você faz? E a gente está tolerando isso. Tem agora, né? Agora tem. Tem campanhas a respeito, tem um grupo excelente, eu acho o melhor grupo que apareceu por aí depois do estatuto, que é a Coalizão Brasileira de Combate à Violência a Crianças e Adolescentes. Não sei se você conhece. Muito bom.
P/1 - Do governo federal?
R - Não, é particular. A gente está na coalizão também. A gente ganhou um prêmio deles, que nos honra muito. Eles são sustentados, apoiados pelo Instituto Libertas, da Luciana, Childhood, PENSI, esse do Setúbal. Acho que umas cinco organizações que financiam. Depois, são mais de 60 organizações que participam desse grupo. E eles são excelentes, excelentes. Olha, fazia muito tempo que eu não via um trabalho com tanta qualidade.
P/1 - Márcia, como foi o começo para levantar recursos para pôr em funcionamento do Santa Fé? Já nasce com esse convênio? Quem cuidou disso?
R - Não, não tinha dinheiro. A gente ia na feira pegar comida, assim, o que sobrava. Foi do jeito que dava. De repente, um amigo dava um bocadinho, outro dava outro bocadinho. Aí eu conheci umas pessoas de uma empresa que começou a ajudar também com um bocadinho, cada um fazendo sacrifício. Acho que a gente ganhou um prêmio. Ah, ganhamos! Ganhamos um prêmio. No princípio, foi assim, de gotinha. E aí, a gente ganhou um prêmio com o projeto da Escola Ambulante, entendeu? Que deu... A gente foi reconhecido pela Ashoka. Eu fui reconhecida pela Ashoka, mas era gente ganhou da Ashoka.
P/1 - Você foi fellow da Ashoka?
R - Fellow da Ashoka.
P/1 - Porque uma vez na Ashoka…
R - Aí lá na Ashoka, eu conheci uma senhora que faleceu, que ficou 20 anos nos ajudando, com 250 mil dólares. Fora isso, convênio que eu fui preenchendo aqui e ali. Por exemplo, quando foi a dona Úrsula, ela apoiava a Ashoka, foi nos conhecer, e passou a nos apoiar. Ela faleceu há três anos. Primeiro, também, tem uma construtora que nos ajuda até hoje, a Suzano. Logo no começo, a Suzano nos ajudava, a Renata Suzano, que esse senhor da construtora nos ajudava. E os conhecia, então acabou ajudando, somaram. Aí começou a fazer jantar, começou a fazer essas coisas, e a gente começou a equilibrar.
P/1 - O que era da Ashoka nesse momento? Quais eram as outras iniciativas que você teve contato quando entrou para a Ashoka?
R - Não, é da Escola Ambulante que a gente fez.
P/1 - Não, pela Escola Ambulante. E quando você se candidatou, você entrou em contato com outras iniciativas sociais que eram apoiadas pela Ashoka?
R - Sim, essa dona Úrsula, por exemplo, ela... Eu não sabia fazer essas coisas, né? Então, eles próprios faziam para mim. Então, por exemplo, uma menina aqui que eu conheci na época, que hoje é conselheira da Santa Fé, foi ela que mandou o projeto da Escola Ambulante para Petrobras. Ah, o primeiro dinheiro foi Petrobrás e “Melhor Tecnologia Nacional”. E foi a Claudinha que mandou. E disso, quando a gente ganhou o prêmio da Petrobras, foi para a Ashoka. Agora, como chegou lá, não sei te dizer. E a partir daí, a dona Úrsula, que é essa senhora de Liechtenstein, vem à Santa Fé, e faz um acordo conosco para a doação. E ela só para de doar a hora que falece. E ainda deixa um ano. Quer dizer, na época em que as organizações internacionais davam no máximo por cinco anos. Então, a primeira coisa que aconteceu é uma pessoa que eu gosto muito, que faleceu também, que era assistente social da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, que viu o nosso trabalho na rua, né, e gostou demais da conta, né, e ela fez o convênio conosco. Então, aí você tinha um dinheiro garantido, e aí a gente foi organizando o trabalho, entendeu? E buscando dinheirinho aqui, até hoje assim.
P/1 - Márcia, por que chama Santa Fé?
R - Porque essa senhora que inaugurou o pedaço lá que eu te falei, entendeu? Ela tem a ver com cactos que resistem, tanto que o símbolo era um cactos com uma florzinha. Entendeu? Então, o cactos eram as crianças, dentro da visão dela, e a florzinha era o que a gente ia fazer. Eu gostava mais do que esse que tem aí, que não dá para decifrar o que é, o logo.
P/1 - Márcia, você falou dessa experiência que você teve com o Darcy Ribeiro, com o Brizola. Como se deu esse encontro seu com o Darcy Ribeiro?
R - Veja, o Brizola estava em campanha. Eu era, a essa altura, eu fui filiada ao PDT, em função da questão do Darcy Ribeiro. E eu fui para uma reunião no Rio de Janeiro. E foi uma coisa muito emocionante, porque eu fui visitar uma construção dos CIEPs e daquele negócio todo. E estava lá na construção, os operários da construção. E numa alegria, os caras cantando, enfim. Eu falei, “mas o que é isso?” Não tinha nada a ver com construtora. Aí teve um operário que disse, “a gente está construindo a escola para o nosso filho”. Era muito emocionante. Aquilo tinha um olhar, uma vivência, sabe? “O mundo vai mudar”, o próprio cara que estava lá. Então, como aquilo era concebido, tudo... Você sabe que os CIEPs, nunca ninguém fala disso, mas os CIEPs, eles tinham uma... que foram destruídos, os CIEPs. E eles tinham um casal que trabalhava nos siapes, um ou dois, dependendo do tamanho, que moravam no último andar. Então, se a criança, por alguma razão, tivesse sofrido violência em casa, que precisasse ser abrigada, era lá mesmo. E essas crianças, não iam estranhar, porque essa senhora trabalhava na escola, então conhecia. Então, toda essa questão de ter medo e tudo mais, já era uma situação, não perderia os amigos, tinha um pensar de outra natureza. E a gente perdeu isso.
P/1 - Márcia, você tinha uma militância no PDT do Brizola? Como você entrou para o PDT? Como foi que você entrou para o PDT?
R - Não, eu entrei para o PDT por conta da visão socialista de Brizola e pela educação. Essa questão sempre foi fundamental dentro de todo o processo de Brizola. Brizola, Darcy, enfim.
P/1 - Mas você fez plano de governo? Como é que você foi?
R - Não, não, eu fui massa.
P/1 - Mas você chegou a ter contato mais próximo com Brizola, com o Darcy?
R - Eu tive um pouco de contato com Darcy. Era massa, entendeu? Agora, isso permitia, pertencer ao PDT, permitia você ter acesso a informações e tudo mais que eram importantes em relação, sobretudo, à minha formação em relação à educação.
P/1 - Márcia, voltando um pouco, você disse que teve a oportunidade de ter contato com Paulo Freire. Em que período foi isso?
R - Isso foi um pouco, olha, eu estou com 78. Isso foi um pouco antes da ditadura. Como que foi? Quando Paulo Freire estava no auge. Isso foi, inclusive, no Rio. Foi no Rio de Janeiro, que estava mais avançado, se você pegar até pelos nomes, que estava mais avançado que em São Paulo. Você estava começando a ter Brasília, Brasília já no Jango, isso tudo antes da ditadura. E aí, desmoronado.
P/1 - Márcia, pegando a trajetória do Santa Fé, quais são os principais momentos, os momentos de inflexão da instituição?
R - O fundamental é ganhar o prêmio da Petrobras. Caso contrário, não sei se... Ah, não. Teve essa senhora da Secretaria Municipal de Desenvolvimento. Sem ela, nada poderia ter sido. Que deu a possibilidade de a gente pensar a Santa Fé. Segundo, a questão do prêmio da Petrobras. Melhor tecnologia social... Isso foi muito importante, que nos colocou na esfera. Eu não conhecia nada desses negócios. E a gente passou a entender um pouco, por ter cadeira na sala de uma instituição importante para discutir a questão da assistência em São Paulo. O que a gente ver, fazia? ter uma relação mínima que fosse com empresários. Porque é um ambiente muito complicado. É um ambiente que você tem que ser visto, ver, ver para ser visto, tem que ser amigo do dono, para saber como é que você vai ser recebida? É um ambientinho desse tamanho. E aí a gente começa a ter a possibilidade de se manter. Mas não ainda é fazer o que nós gostaríamos em relação à qualidade de vida das nossas crianças. Essa ascensão que eu te falo, de como tem a compreensão também, sabe? Por exemplo, eu acho que quando eu te digo da menina terminando a universidade, menina terminando o mestrado, essa coisa toda, eu acho que a organização é obrigada a isso. Se ela fala em cuidar dessa menina, sobretudo da mulher, porque a mulher é a pobreza da mulher que é pior. E em função de seus compromissos maternos e tudo. Isso não acontece. E aquilo que eu te disse da contradição, eu posso criar uma menina até 17 anos e 11 meses, depois ela tem que ir para outro campo, e eu não tenho nada a ver com isso. Já te dei, entendeu?
P/1 - Márcia, pegando sua trajetória lá, um fato assim que você tenha vivenciado, que você traz com você, deve ter mil casos, mas um momento assim que te vem agora?
R - Quando você pergunta, eu me lembro de um dia que o lugar que a gente estava, que era aberto, era com uma cerca pequena, e a casa lá dentro, que fomos embatidos pelos mulheres traficantes da Praça da Sé. Saiu tudo assim. E não aconteceu nada. Porque aí um amigo nosso, traficante, entendeu? Foi lá salvar a gente, que estavam começando a aparecer as irmãs, que antes não era, era uma situação menos complicada. Hoje eu não sei o que é, porque a gente não trabalha na rua, mas a gente trabalhava na rua, e aí tinha essas coisas, essas perseguições tanto de um lado quanto de outro, tanto da polícia quanto dos marginais. Mas essa é uma questão, não é? E tem coisas, tem isso, e até você ter que, como você se adapta a essa cultura. E no sentido de saber lidar com essa cultura, não chegar, não vou chamar isso segundo, Como é que chama? Segundo poder? Me recuso a isso. É segundo poder porque alguém deixou que fosse. Porque a gente tem essas corrupções todas. Então, como é que se lida com isso? Nós não somos incomodados. De jeito nenhum. Faz muito tempo, já fomos, né? E eu fico muito brava quando eu tenho que falar com pessoas que lidam com isso, para pedir que tal criança seja protegida, que eu não quero que mexa. Fico muito brava. Vou falar. Porque eu... mais importante é salvar a menina de qualquer represália. Mas é muito ruim.
P/1- Alguma história que também te venha agora? Eu sei que você tem milhares de casos com uma criança que você pegou e bancou uma história. Não é bom como história, porque todo o seu trabalho é esse, né? Mas que você consegue lembrar agora de uma situação dessas que você foi negociar?
R - Sim, eu tenho... Veja, eu tenho uma menina que estava jurada, tá? Porque nesse meio, se você, se alguém, a mulher do cara acha que você está afim dele, é chamada de talarica. E a talarica não vive muito, não. E aí eu fui, quando eu soube, já estava completamente fora de si. Aí eu fui no lugar falar com a chefe e entrei aqui. De repente, eu estava fechada aqui, essa me lembra agora. Aí eu fiquei no semicírculo, aqui, até a senhora descer. Aí me apresentei, ela falou “pode deixar, a gente se conhece”. Aí falei para ela, aí ela na hora falou para um cara lá, para que ele fosse em tal lugar, dizer que estava com ela agora, que ninguém ia mexer. “Até logo. Passe bem. Muito obrigada”. Mas posso dizer a você que não fiquei feliz de ter que ir lá. Essas coisas hoje, essa anarquia que você permitiu, essa não indignação, essa não cobrança do Estado, entendeu? Há quantos anos a gente está nisso? Só de trabalho na Santa Fé, eu tenho 31 anos. E a gente fala poder, como é que chama? Eu fico sempre... Segundo poder, entendeu? Como se fosse natural. Aquilo que a gente estava falando naturaliza essas coisas que são terríveis, que podem nos levar ao caos. Eles que mandam. E cada vez piora. Então, eu acho que a gente tem que cobrar o Estado, tem que cobrar a sociedade. O jeito que está, cobrar... Um dia desses eu estava ouvindo... Não, a questão da droga, a liberação da droga, eu acho que tem que liberar. Tem que liberar, porque aí você não vai precisar do traficante. E por que não fazem isso? Se você compra droga onde se quiser. Vai ver Uruguai, vai ver Portugal, vai ver Holanda, como diminuiu tudo. E o Brasil, pelo moralismo, continua do jeito que está. E as nossas crianças, sobretudo na periferia. Ela me falou assim: “Mãe, você é a única mãe que a filha diz que vai largar a música para fazer medicina e você fica desse jeito”.
P/1 - Ela já estava em Paris.
R - Não, ela estava indo para Paris, já tinha terminado o curso de francês, estava com apartamento alugado, tudo. E aí resolveu ser médica e é pediatra. Ela diz que não é médica, ela é pediatra.
P/1 - Pegando esse gancho que você está falando da sua filha, Márcia, no seu primeiro casamento você teve dois filhos, um casal. Como foi você com o trabalho, essa sua vida super comprometida com o trabalho? Como foi ser mãe do primeiro filho? Como é o nome dele?
R - Marco. Marco é... Eu chamava ele de anão de jardim. Você lembra do Anão de Jardim, que tinha nas casas assim? Hoje não tem mais, acho que nem ele já viu o Anão de Jardim. Porque ele era tão bonzinho, que parecia... Com a não. Não dava trabalho nenhum. A Melissa já dava trabalho. Hoje ele faz teatro e circo. Ele faz arte. Meus filhos... Minha filha Melissa também.
P/1 - É irmã dele.
R - Irmã de pai. E a Melissa, que mora na Suíça, pertence a uma companhia de teatro na Suíça, uma companhia muito importante na Suíça. E agora ela vai estrear a peça da Falabella que estava Prima facie. Estava na Itália super nervosa com isso e tudo mais. E Maria é pediatra. Marco tem dois filhos, Melissa tem dois filhos mais velhos do que ele, do que o Marco, né? E Joca tem... João tem 28, Antônio tem 26, O Joca tem 19, 16 tem o José, que é dançarino. Aí tem Maria com três anos, a filha, a Mônica, a menina. E aí tem o Martim, que vai fazer nove meses. E eu sou babada.
P/1 - E você se separou? Quantos anos tinham os seus filhos quando você se separou?
R - Eram pequenininhos. Bem pequenos. Eles eram três, quatro anos. Eles têm diferença pequena. Todos os meus filhos são de fevereiro.
P/1 - A outra menina também, a do segundo casamento.
R - Não sei porquê, só deu pra fevereiro. Foi muito difícil essa coisa de você mudar todo o seu padrão. A ditadura interfere, sobretudo em quem é ativista, nas relações pessoais. Você passa a viver situações tão absurdas, cada hora se tem a notícia de um assassinato, de que a sua casa pode ser invadida. E aí você ser tranquilo não é possível. Então, os filhos da ditadura sofrem muito. Nós éramos filhos da ditadura.
P/1 - Você chegou a ter algum problema com a polícia, com perseguição?
R - É, a perseguição, veja, todos nós, isso sim. Por muito pouco a gente não, não, não foi, não caiu. Muito pouco, muito pouco. Foi sair naquele momento para não ter, não ter caído. Mas essa era uma questão. A outra questão, era você dormia assim. Sabe, você não conseguia dormir assim, porque você ouvia os gritos. Ainda que o grito não estivesse aqui, você sabia que lá, aquele amigo estava gritando, aquele companheiro estava gritando. Então, não dava para tirar a mão do ouvido. Por isso que essa coisa de... Aí a gente tem Bolsonaro, tem Trump, tem essa coisa toda como se nada tivesse acontecido antes. E muita gente importante morreu, muita gente que sofreu horrores. Você pega, você estava falando de jornalista. Aquele jornalista, o Herzog. E aquilo. E até hoje essa situação está aí como se nada tivesse acontecido e outros tantos. E ainda os caras tiveram a cara de pau de botar o cara enforcado. Veja, essas coisas, obviamente, induzem muito mais a violência. Seja na sua casa, seja na rua, seja em qualquer canto. Por isso que a gente não pode ficar de braços cruzados. A gente tem que fazer alguma coisa e tem aí. Estamos aí, de novo, com essa possibilidade de esses senhores voltarem como se não bastasse o 8 de janeiro. E as nossas crianças, quer dizer, quando você fala de 8 de Janeiro, quando você fala lá, e as crianças, e as crianças, e a periferia, e as mulheres. Você viu a coisa do feminicídio? E isso tem a ver com o mundo. Quer dizer, o feminicídio não é só no Brasil. Paris, França, Portugal, entendeu? Que mundo é esse que a gente está criando. Você sabe que a gente... Eu recebi na La Santa Fe um homem que eu quase desmaiei quando vi a cara dele, tão lindo que ele é. Ele era marido da Demi Moore. Sabe aquele que vinha aqui de vez em quando para fazer desfile? Quando eu abri aquela janelinha ali e vi... Sabe o que você faz assim? Impressionante de bonito o cara, né? Ele, e eu preparei um material para ele, ele veio recomendado lá para Santa Fé, e eu preparei um material para ele que colocava o Brasil em relação a, esse homem sumiu, não sei onde ele anda mais, né? E fiz uma pesquisa em relação a outros países. França, Portugal, vários países da América Latina e tudo mais. Eu fiquei assustada quando vi o resultado de não ser só o Brasil que apresentava esses números tão altos. A ONU tem estudos a respeito. Que educação a gente está dando para esses homens? Porque isso só tem piorado. Seja nas classes mais favorecidas, seja nas classes mais pobres. O que é que acontece? Que tem a ver com educação, com a Damares. A Damares fica na boa e a gente fica correndo atrás. Enfim, quando falo desses assuntos, eu me esquento um pouco.
P/1 - Márcia, hoje, como é seu cotidiano de trabalho, de vida? Você continua no trabalho, você tem outras atividades, como é que...
R - Não, eu trabalho, veja, eu tenho um tratamento intenso, que não é mais tratamento, eu tô no paliativo, porque eu tenho um linfoma, que primeiro chegou até a ser negativado, e depois ele voltou. E esse linfoma que eu tenho não é como o outro, que é o meu e não Hopkins, que tem uma possibilidade de cura bastante grande. Mas eu estou bem. Bem no sentido que eu não sinto dor, tenho dificuldade de ambulação, algumas coisas assim, mas não perdi minha autonomia. E eu não quero ser um linfoma. Eu sou Márcia, a mãe do Marco, da Melissa, da Maria, entendeu? Trabalho na Santa Fé. Acho que a Santa Fé está segura com a equipe que tem de direção. O Rogério tem... De vez em quando eu brinco com ele, que ele é um CEO perto de uma senhora, mas ele é bastante competente e sei que a Santa Fé, isso para mim é um privilégio. Sei que a Santa Fé vai continuar, né? E podendo, o que eu acho bacana, ver essa singularidade, de ter uma estratégia de lidar com as crianças, que elas dão uma resposta, que não é uma resposta qualquer. “Ah, tiramos da rua”. E daí tirar da rua? Deixa da rua, ué! É muito melhor ficar na rua do que ir para um lugar que te aprisione e que mande em você e que não dá de volta nada. Você tem que ser libertada. Não pode ficar naquela situação social que seja a rua ou um lugar que você vê de depósito. E eu acho que a gente está conseguindo fazer isso. Precisamos mais, eu acho, que a gente precisa mais de um reforço no sentido de ter mais gente perto da gente, mais um trabalho político. Nós, Santa Fé, e a coalizão, vários movimentos que hoje existem, que precisam tomar, ter peso para mudar o que está aí, para exigir que os governos mudem suas políticas em relação à infância e adolescência, a questão da mulher, a questão da mulher grávida e tudo mais, porque senão deixa na rua, porque vai ganhar um dinheirinho melhor que o traficante. Então, eu estou, assim, apesar da doença e tal, como eu não sou linfoma, a minha médica, eu digo que ela é, ela é muito bonita a minha médica. Ela é do AC Camargo. Eu digo que ela é misto da Maria Bonita com Clarice Lispector, sem a depressão da Clarice Lispector. Ela é muito legal. E lá no AC é um lugar fantástico, as pessoas são de uma delicadeza que você não acredita, porque não é a faxineira, é a médica, é o cara da máquina, é impressionante, a gente estava falando de capacitação, essa coisa toda. Quer dizer, como aquilo é administrado e como as pessoas são capacitadas para um volume tão grande de pessoas ter essa delicadeza com todo mundo. É um lugar que vai da sala de espera, aquela sala de espera ampla que tem, assim, você chega no seu horário de consulta, claro que você vai atrasar, seu horário de consulta, tem mais de 100 pessoas na sala de espera, rapidamente aquilo tá esvaziado. Você vai demorar meia hora lá, tudo bem, né? E você sai de lá super legal. Então, pra mim, óbvio, é uma experiência, a finitude fica mais próxima. Porque na nossa cultura a gente não pensa na finitude, né? É proibido pensar na finitude, porque se é mórbido pensar na finitude, porque pessoas da cultura ocidental têm que acumular, têm que fazer um monte de coisa, pode adiar. Então, eu acho que pra mim tá bem. Meus filhos estão lidando com isso, porque se você lida, os filhos também lidam. Lá também tem a questão paliativa, que os filhos podem conversar com os médicos paliativistas. E eu ainda não sinto essa coisa de debacle. Então, eu estou trabalhando, eu tenho na parte da manhã, de modo geral, que é como funciona, eu faço o tratamento, se é quimioterapia, faço a químio pela manhã, e eu faço ambulatorial agora, só, e à tarde eu trabalho. Eu saio da químio, vou trabalhar, normal. Se eu tiver cansada, marco para depois a reunião. Mas não sou um linfoma. Então, vocês foram ótimos. Tiveram muita paciência comigo.
P/1 - O que você achou dessa experiência de contar sua história aqui para o Museu da Pessoa?
R - Ah, eu não mereço. Primeiro que eu não mereço. O convívio é estar com vocês. Eu contei minha história para o Museu da Pessoa, entendeu? Porque eu não mereço isso. Eu contei minha história para você e para ele, entendeu? Aí vocês aqui vão dizer o que você achou da minha história, mas diz em voz baixa que eu não quero saber. Muito bom, muito bom. Eu vou tentar pegar as fotos que a gente possa ilustrar isso aqui. Para ser mais fidedigna, mostrar a Isabel, mostrar a minha mãe, mostrar... E tem umas fotos assim, bem antigas, que parecem muito com essas fotos, os cabelinhos curtos, sabe assim, tem uma foto que está aí, pendurada de alguém, enquadrada de alguém, que reconheço a mim e as minhas irmãs, porque tem os cabelinhos curtos, naquela época, como se usava, está toda aí também exposta.
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