Projeto Memórias e Conflitos
Depoimento de Claudia de Freitas Vidigal
Entrevistada por Marcia Trezza e Virginia Toledo Santos
São Paulo, 12/09/2018
Código: PSC_HV018
Revisado por Fernanda Regina Ferreira
P/1 - Nós vamos começar a entrevista. Fala seu nome completo, a cidade que você nasceu e a data.
R - Meu nome é Claudia de Freitas Vidigal, eu nasci no dia 30 de setembro de 1974, em São Paulo.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - Minha mãe é Sonia Maria Lima de Freitas e meu pai é Alvaro Augusto Vidigal.
P/1 - Que lembranças você tem deles de quando você era criança?
R - A gente morava nessa mesma casa onde estamos realizando essa entrevista, e onde o instituto atuou por 10 anos. É uma casa onde eu cresci e continuo frequentando com meus filhos. A
P/1 - Você fala dessa casa, de quando era criança, como você lembra da casa e depois como ela foi ficando na sua memória?
R - Eu até tenho a impressão que ela não mudou muito, mas ela sempre foi uma casa aberta, com muita circulação de pessoas, de amigos, festas, música, festinha com as minhas amigas, elas sempre viam e dormiam cinco ou seis meninas. Era uma casa que tinha sempre gente entrando e saindo. Eu acho que até hoje continua assim, a minha tia mora na frente e vem visitar, e eu mesma venho aqui, às vezes, passo aqui no meio do dia, encontro a minha mãe. Quando eu me lembro dela, me lembro de uma casa com música e com gente circulando.
P/1 - E você brincava na rua? Você lembra das brincadeiras?
R - Pra mim, era difícil encontrar um espaço para brincar com as crianças da rua porque tinham muitos meninos, eu era a única menina, e a maioria eram meninos mais velhos, eu estava sempre procurando um espaço para brincar junto, em parte eu ficava tentando brincar com eles e em parte eu ficava construindo as minhas casinhas no jardim. A casa tem um jardim muito grande, eu ficava a maioria do tempo ao ar livre, e ficava fazendo minhas casinhas no meio dos arbustos. Minha grande brincadeira era pegar um monte de jornais para fazer de tapete, levar a minha mesinha e ficava brincando de casinha. Até hoje eu gosto muito de brincar de casinha, mesmo na minha própria casa, invisto um tempo em colocar flor no vaso, em organizar os espaços, em pensar nos cheiros da casa. Lá em Guaranésia, na fazenda onde eu cresci, também tinha uma casinha centenária, que era réplica da casa da fazenda, eu lembro que eu ficava limpando, e, um dia, eu fui limpando e descobrindo um piso novo por debaixo, que eram os azulejos antigos, eu nem acho que foi isso mesmo que aconteceu, mas na minha cabeça eu limpei tanto que os azulejos apareceram.
P/1 - Você tinha bonecas? Ou era você com outras pessoas?
R - Eu nunca gostei muito de boneca, tinha uma ou outra, mas boneca nunca foi muito a minha pegada, a minha pegada era brincar com as outras crianças mesmo, de mamãe e filhinha, fazer os faz de conta nas nossas casinhas, meu quarto nunca teve bonecas, nunca tive uma Barbie, eu gostava muito de bola e de esportes, tinha que ser assim com irmão mais velho, dois primos mais velhos, eram meninos e eu fui descobrindo mais de movimento.
P/1 - Você lembra alguma sensação do seu corpo nessa época? Você falou de deixar perfumado.
R -
P/1 - E como chama seu irmão?
R - Ele tem o mesmo nome do meu pai, mas é o Guti.
P/1 - Você lembra de algum momento com ele? Alguma história que vocês passaram mesmo lá na fazenda?
R -
? Na minha família, e acho que até hoje, são pequenas batalhas que a gente vai enfrentando no ambiente familiar e que depois se refletem para o mundo maior. Eu fico muito com essa imagem de eu protegendo a minha casinha e falando que quem mandava era eu. Eu lembro até de uma briga, tinham os meninos que moravam lá na fazenda e eram muito amigos, eu lembro de um que conseguiu entrar pela janela, achou um caminho, eu lembro de puxar o cabelo dele com muita força e ele chorar, e eu ficar muito impactada por ter sido agressiva, mas para mim, estava tão claro que eles estavam querendo destruir algo. Mas hoje, faz um certo sentido, porque eu nunca fui uma criança agressiva ou de brigar, pelo contrário, meu irmão brigava e eu ficava tentando agradar o tempo inteiro. Eu lembro que quando eu vi ele chorando, eu pensei que eu podia me tornar agressiva também, eu tomei um susto com isso, mas eu não gostei. Eu lembro de pedir muitas desculpas e ficar muito envergonhada, até porque ele já era um menino mais simples, então parecia que eu estava mais ainda impondo um jeito, mas eu lembro de pedir desculpas e dizer: “Mas aqui não”.
P/1 - Tinham meninas em alguma situação?
R -
P/1 - Lá ou aqui?
R - Lá na Onça. N
P/1 - Em que sentido?
R -
P/1 - Como você descreve seu pai e sua mãe?
R - T
alvez tivesse um encontro importante com a minha avó, que tinha um lugar importante
P/1 - Você tem alguma história?
R - Eu me emocionava, eu não tinha um senso de julgamento, hoje eu tenho. Eu tinha só uma certa vergonha, quando eu via alguém chegando, a casa da fazenda tinha uma escada e a minha avó era aquela figura que ficava naquele alto, e as pessoas chegavam muito vulneráveis. Essa fazenda que eu cresci tinha 80, 100 famílias, era quase uma prefeita de um município, só que uma prefeita não eleita, em um modelo antigo, colonial. Eu me lembro de que cada vez que alguém chegava muito vulnerável, ou doente, ou mancando, ou alguém se machucava e não conseguia ir para a cidade - não tinha transporte público -, de eu ter uma vergonha de essa pessoa ter que ir lá pedir, e, ao mesmo tempo, um orgulho porque a minha avó sempre respondia lindamente, eu acho que era uma vergonha misturada com orgulho. Um orgulho que passava pela potência de poder resolver, impactar, transformar, ajudar, e que me tocava, e, por outro lado, essa vergonha desse lugar de impotência, de precisar pedir, de precisar estar ali nesse lugar de que se o outro não quiser, eu não me curo, de dependência mesmo.
P/1 - Você acha que da Claudia de hoje, tem muito dessa época da Claudia de antes?
R - Muito.
P/1 - Pensando em acontecimentos, se você lembrar de algum momento que você fez essa relação, seria interessante se você conseguir lembrar.
R -
. Eu acho que ali foi todo o começo, e eu queria ficar mais lá na fazenda, com as meninas, e, ao mesmo tempo, tinha uma coisa muito interessante que eu também acho que marca muito quem eu sou, é que as meninas eram minhas amigonas, e como quaisquer amigonas de dez anos, tinha briguinha, me deixava excluída, tinha dias que eu ficava super chateada. Eu vivia uma dinâmica ali, de meninas potentes, de meninas que eu admirava, que eu queria ser amada e amar, e brigava, tinha toda uma dinâmica que as colocava em um lugar de muita igualdade comigo, e de muita potência, eu queria ser igual a Tata, que era super bonitinha, a Claudineia era super firme nos posicionamentos, brigava, e eu achava muito legal. Então eu acho que essa dinâmica de nós quatro, mais a minha avó, porque na minha casa era tudo muito fácil, eu não vivia essas intensidades aqui, era tudo mais suave, eles me apoiavam. Eu fui viver depois, na adolescência, foi quando eu comecei a questionar tudo, o lugar onde você senta na mesa, as pessoas que trabalhavam na casa. Não que eu pensasse que fosse uma casa de pessoas arrogantes, teve uma menina na fazenda que veio trabalhar aqui em casa como cozinheira, ela era um ser super divertido, trazia sempre quebra de paradigmas na casa, e eu acho que foi aí que começaram algumas quebras de paradigmas, mas isso foi mais adolescente. E a Vera morreu, ela teve um acidente, foi atropelada aqui em São Paulo, logo depois de ter saído da casa depois de umas confusões, então para mim foi super intensa a perda dela e foi uma coisa que me deu mais força para discutir e debater as coisas. M
P/1 - Falando agora da adolescência, que lembranças você tem desse período?
R - Eu tinha minha turma de amigas aqui também, uma turma super firme e forte, super amigas, são amigas até hoje, eu tive uma turma de amigas muito fortes.
P/1 - E de onde essas amigas?
R - Do colégio, do Santa Cruz, que cresceram comigo desde os sete anos de idade, há um tempo atrás nós fizemos uma festa de 25 anos de amizade, mas a gente é amiga há 35 anos, muito tempo. É uma coisa de adolescente, de festinha, de se divertir, curtir, a gente tinha essa pegada de andar muito de bicicleta pelo bairro, a gente fazia tudo de bicicleta, ia uma para a casa da outra. Eu acho que foi um período gostoso, mas paralelamente a isso,
P/1 - Você estudou no Santa Cruz o ensino fundamental e o ensino médio?
P/2 - E como você decidiu fazer esse trabalho voluntário?
R - Era uma oferta, e eu fui e gostei. Eu acho que eu gostei, egoisticamente falando, muito mais pelas emoções que essa possibilidade de mergulhar em um universo distinto me causava. Eu
Teve um tempo que eu trabalhei em um asilo, fiquei dois ou três anos nessa coisa com os idosos, e depois voltei para as crianças, e, no final do colegial, já estava muito claro que eu queria contribuir para a questão da infância, das crianças. Eu já tinha tido uma trajetória com as crianças, tanto do colégio, do trabalho voluntário, quanto da rua, porque eu circulava muito na rua. Eu ficava aqui na rua, eu andava de bicicleta, eu me encontrava com crianças que viviam na rua.
P/1 - Você lembra de alguma situação de você se encontrando com crianças, o que ficou na sua memória de marcante? Alguma cena, alguma situação.
R -
às vezes, a mãe estava também e eu falava com ela, foram algumas vezes, não foram muitas, mas eu imagino que umas cinco ou seis vezes, e cada vez que vinham e eu começava a me relacionar um pouco mais com uma criança ou outra. E
e eu começar a me questionar “Será que seria bom?”, eu lembro até da minha mãe me perguntar: “Você acha que a Claudineia e a Tata gostariam de morar aqui?”, e eu tinha convicção de que elas não iriam querer, a família delas era super legal, o pai delas era o máximo, a mãe também, então que comecei a pensar que essa vulnerabilidade que eu vejo não é o todo, tem um monte de outras coisas, de amor, de afeto, de coisas boas que ela tem e que eu não enxergo.
P/1 - Se você puder contar com detalhes de você chamando a criança, trazendo ela para cá, a primeira vez que alguma delas tomou banho de banheira, a reação.
R - Não, eu acho que depois, essa coisa de trazer para casa continuou, eu não tenho uma cena disso. Eu lembro de eles virem, eu achar muito gostoso, e ser um momento divertido, eu lembro até da Ana Claudia, que morava aqui na rua também, era uma menina que morava aqui na rua e devia ser uns dez anos mais nova que eu, era filha de uma moça que trabalhava em uma casa, a mãe trabalhava o dia inteiro e ela sempre queria ficar comigo. Então ela ficava muito aqui comigo, era uma menina que eu tinha certeza que a vida dela seria melhor se ela estivesse comigo porque ela gostava muito, ela pedia para vir, eu cuidava dela, eu dava oportunidades para ela, era essa a minha sensação, mas muito rapidamente, conversando com a mãe dela, que também foi uma pessoa que eu conversei muito, foi ficando claro que era óbvio que não, era óbvio que tinha uma oferta, mas que tinham outras coisas da vida dela que tinham muito valor.
P/1 - Isso você foi aprendendo.
R -
A relação da Ana Claudia com a mãe dela é lindíssima, aliás, a vida dela deu super certo, a vida dela decolou, e eu acho que é por causa dessa relação que ela tinha ali, de suporte, de amor, de afeto, isso sim é oportunidade, nesse sentido, me sinto muito privilegiada, porque eu vivi aqui em casa relações de amor, de suporte, de afeto, às vezes, eu acho que eu era diferente e eles sempre me apoiaram nos meus projetos mais diferentes, mais diferentes dos deles.
P/1 - E pelo o que você falou, sua mão conversava com você sobre as suas ideias.
R - Conversava, ela mais dava corda. Eu lembro quando eu fui fazer a primeira comunhão - eu cresci em uma família católica -, eu passei um mês na fazenda fazendo a catequese, que quem dava era a minha avó, eu tinha, mais ou menos, doze anos e ia ter a primeira comunhão na fazenda. Eu, naturalmente, não ia fazer lá porque eu ia fazer aqui no Colégio Santa Cruz, com todas as minhas amigas, eu falei que eu fiz a catequese, e que eu queria fazer aqui. Eu lembro dos meus pais falando: “Eu acho que você vai se arrepender porque depois no colégio todo mundo vai fazer, vai ser um momento importante e você vai querer fazer com as suas amigas de São Paulo”, e eu lembro de falar que eu tinha certeza absoluta que eu queria fazer lá, na igreja de lá, com o padre de lá, era bem tradicional, com aquele vestido, com o véu, era quase uma fantasia. Eu lembro que foi um dos momentos mais importantes para mim, do meu pai e minha mãe orgulhosos de eu fazer a minha primeira comunhão lá, que não era o projeto deles para mim, que era o meu projeto e eu vi eles com orgulho de eu ter um projeto para mim. Eu acho que isso se repetiu muitas vezes na minha vida, em vários momentos, o projeto que eu tive para mim era muito diferente da expectativa, e ele vinha acompanhado de um orgulho, da quebra de expectativa.
P/1 - Da parte deles ou de quem está com você?
R - Deles principalmente, do meu pai, da minha mãe e do meu irmão também, ele tem um jeito muito diferente do meu, mas que o tempo inteiro eu vejo que ele acha interessante.
P/1 - Você lembra desse momento de você fazendo a primeira comunhão?
R - Eu lembro muito, eu lembro do meu vestido, eu lembro das fotos. Uma coisa legal, era que todo mundo usava o mesmo vestido, eu lembro de a gente pensar se eu não queria escolher um vestido porque aqui em São Paulo tinha essa história de escolher um vestido, lá era meio que uma bata branca, e eu lembro muito de querer fazer com essa bata, de estar igual as meninas, o quão importante era essa experiência de igualdade, de estar no mesmo lugar, compartilhando de uma experiência muito rica para cada uma de nós, muito significativa, em que a gente estava juntas. Eu lembro de ir andando para igreja, não era tão pertinho, era uma caminhada, e eu me lembro de quando teve no Santa Cruz, que eu não tive a menor vontade, foi gostoso de ver minhas amigas, mas eu não tive o menor sentimento de que eu tinha perdido algo.
P/1 - Falando do Santa Cruz, teve algum professor ou professora que foi importante para você? Em qualquer período, alguém que te marcou de algum jeito, ou teve alguma influência.
R - Eu acho que eu tive dois professores que foram importantes, não assim, completamente transformadores. Uma é a Suzana, que era a pessoa responsável pelo trabalho voluntário, que era meio orientadora, ela era uma pessoa que se envolvia em vários projetos, estava sempre ajudando todo mundo, fazendo mil coisas, ela era alegre, gordinha, toda animada. Eu não sei, ela era um espírito de amor, que para mim era uma coisa muito bonita, eu pensava que eu queria ser como ela quando eu crescesse. Ela até faleceu ano passado, eu lembro que fazia quinze anos que eu não a via, mas quando eu soube da morte dela, eu fui sozinha na missa de sétimo dia, e na missa tinham todas as sobrinhas delas, uma turma cantando muito, eu fiquei feliz de poder estar lá, e falar para a filha dela o tanto que ela tinha sido importante para mim, e para sobrinha dela. Foi muito interessante, porque eu não tinha a consciência da importância que ela tinha tido na minha formação, e quando ela morreu, eu chorei imediatamente, e, apesar de muitos anos distantes, quis estar lá e celebrar a vida dela. E outro foi um professor de matemática, que é o Belezia, que era um professor super rígido. Eu lembro de achar que eu não ia dar conta, ele passava essa expectativa, uma coisa de exigência, eu acho que foi uma coisa que me deu uma consciência muito grande de que eu tinha que ser exigente comigo, e querer fazer melhor, que eu era um pouquinho melhor do que eu achava que eu era, eu lembro direitinho do Belezia e falar: “Ai meu Deus, eu vou tirar nota vermelha, eu não vou conseguir passar de ano”. Eu não conseguia dormir porque as provas iam ser muito difíceis, eu sempre fui boa aluna, não era uma questão. Eu lembro da minha mãe marcar uma hora com ele e com a orientadora porque eu estava muito nervosa, e a orientadora falar que não, estava tudo certo, eu estava indo super bem, que apesar de ele ser exigente, estava tudo bem, para eu ficar tranquila. Eu acho que isso aparece em alguns momentos da minha vida, de que eu não vou dar conta, que eu não sou boa o suficiente, não vai dar, e eu lembro que não, eu preciso de algum reconhecimento externo, alguém que me diga que eu dou conta, é possível, que eu vou fazer direito. Teve uma pessoa que trabalhou comigo no Fazendo História que um dia me falou isso: “Você é ótima, você só não é perfeita”, e você lembra que você é ótima, mas mesmo assim eu vou errar, mesmo assim eu não vou ser super legal o tempo inteiro com todo mundo, vai haver momentos em que eu vou estar errada, e tudo bem, contanto que a gente vá ampliando a consciência sobre quem a gente é e como está atuando, acho que está tudo bem.
P/1 - E falando de namorados, quem foi o primeiro namorado, ou o primeiro encantamento? Teve alguém?
R - Obviamente, o primeiro encantamento era o goleiro do time da Onça, eu acho que isso também, ele nunca olhou na minha cara, às vezes, eu fico pensando se, caso eu encontre ele andando em Guaranésia, vou falar que ela era a paixão da minha vida, ele foi uma grande paixão platônica, era um cara que morava na fazenda, ele era muito diferente de mim, mas ele nem olhava na minha cara.
P/1 - Você tinha que idade?
R - Eu devia ter uns doze, ele devia ter uns dezessete e eu era apaixonada.
P/1 - Vocês iam ver jogo dele?
R - É, porque na fazenda tinham os jogos do domingo, e eu ficava lá o tempo inteiro fazendo de tudo para chamar a atenção, anda para cá, anda para lá, vai comprar sorvete, mas ele nunca me deu bola. Depois eu me apaixonei por outro também da fazenda, mas a Claudineia levou a melhor, ela que ficou com ele, também não me deu bola.
P/1 - E qual o primeiro que deu certo?
R - Aqui em São Paulo eu tive um namorado logo em seguida, acho que com 12 anos, aquele primeiro beijo, uma coisa horrorosa, fiquei com febre, depois eu falei: “Nossa, como eu fui fazer isso, que coisa horrorosa esse negócio de beijar”, eu fiquei absolutamente desencantada, acho que eu era muito criança para aquilo.
P/1 - Foi roubado?
R - Não, eu até achei que estava na hora, minhas amigas estavam todas dando o seu primeiro beijo, mas não gostei, tanto não gostei que eu fiquei uns dois anos sem beijar ninguém, e, depois, eu tive um namoradinho, desses bem certinho, que me pediu em namoro, e aí eu ia ter que beijar, não ia ter jeito, já tinha pedido em namoro, era o Xandó, namorei um tempo com ele.
P/1 - E como foi com ele?
R - Deu certo, eu decidi que eu gostava de namorar, e na adolescência eu tive uma vida normal, tive alguns namoradinhos, não tive nenhuma relação muito importante, tive um namorado mais importante aos 18 anos, que era o Dega, foi uma coisa muito legal e gostosa.
P/1 - E a pessoa que você casou, como foi que aconteceu?
R - Eu voltei para as minhas origens, ele é de Guaranésia também, eu tive alguns namorados, e me casei com uma pessoa, que hoje é super meu amigo, uma pessoa que eu adoro, mas deu errado e me separei um ano e meio depois.
P/1 - Aqui em São Paulo?
R – Isso. Logo que eu me separei, eu quis fazer o caminho de Santiago, quis ir fazer uma caminhada, um retiro mesmo, pensar na vida, o que eu queria ser, para onde eu ia, quais eram os caminhos, isso lá pelos vinte e dois, vinte e três anos, estava muito mobilizada depois de uma faculdade de psicologia, cinco anos estudando e atuando nesse nosso país, que nos coloca no enfrentamento da desigualdade o tempo inteiro, uma coisa muito forte, então eu estava muito impactada, e decidi peregrinar. Fui com uma mochila fazer o caminho de Santiago, e fui treinar para fazer o caminho de Santiago, e o meu atual marido foi quem me treinou para fazer esse caminho, ele nem me cobrava, porque eu não tinha dinheiro, ele era personal de uma amiga minha, ele falou que ia me ajudar, e, em uma dessas ajudas, eu descobri que ele era de Guaranésia, e mais que isso, que ele era o príncipe do carnaval, que eu lembrava muito bem da escola de samba, que eu era a bruxinha no meio de outras vinte, e ele era o destaque, oito anos mais velho que eu.
P/1 - E como foi essa descoberta?
R - Um dia a gente estava correndo, e a gente conversou, ele comentou que era de Guaranésia, eu disse que eu também, ele disse que nunca tinha me visto lá, e eu disse que eu nunca ia para Guaranésia, ia só para a fazenda, ele falou que era filho do Raul, eu disse que já tinha ido na casa dele pegar a fantasia de bruxa, ele falou que estava nesse carnaval e a gente se descobriu ali.
P/1 - E foi ali que ele falou que era o príncipe.
R - Eu já tinha uma suspeita que ele era um príncipe porque a primeira vez que eu vi ele na vida, ele abriu um sorriso, um rosto iluminado, ele tinha um cabelo meio comprido, estava com rabo de cavalo, eu achei ele demais, mas eu não estava olhando para ele assim porque eu ainda estava casada, mas o sorriso dele me chamou atenção, tanto que depois de eu me separar, eu fui treinar, e uma amiga falou: “Por que você não pede uma ajuda?”, e eu achei uma boa ideia porque era aquele cara cheio de luz.
P/1 - E ele era daqui de São Paulo?
R - Sim, ele estava morando em São Paulo. E rapidinho, quando eu voltei do caminho de Santiago, a gente ficou junto e muito rápido, desde o dia que ficamos juntos, nós passamos a dormir juntos e ficar juntos todos os dias.
P/1 - Você acredita em coincidência ou acha que era coisa do destino? Em uma cidade como São Paulo encontrar uma pessoa de lá.
R - É muito louco, a avó dele era super amiga da minha avó, e algo tão marcante, de quem eu sou, para mim, na minha experiência subjetiva, esse lugar ali no sul de Minas foi que me constituiu. Eu não sei, mas eu acho que quando ele fala que ele é de Guaranésia, já acende dez mil luzinhas para mim, que era importante, e quando você sabe disso, você joga mais energia na história, e aí fomos.
P/1 - E um príncipe ainda.
R - Sim, não era qualquer um, era o príncipe.
P/1 - Não ficou com o goleiro, mas ficou com o príncipe.
R - Exatamente. Demorou, porque depois daquele carnaval a vida rodou, várias coisas aconteceram até que a gente chegasse a se encontrar.
P/1 - Vocês chegaram a se casar?
R - A gente foi morar juntos, depois de um tempo, a gente já estava há quatro anos juntos, morando juntos há dois, a gente estava pensando em começar uma família, e decidimos casar, e nós casamos. Fizemos um casamento na praia, bem tranquilo, todo mundo de branco, uma noite super bonita, fim de tarde, um casamento mais simples porque o meu primeiro casamento foi todo pomposo, mais de mil pessoas, foi uma loucura, eu nem participei do projeto, a coisa foi indo, e quando eu vi tomou uma proporção.
P/1 - E você era nova.
R - Eu era nova. E o segundo casamento foi exatamente como eu queria que fosse, só faltaram fogos, mas era aquela energia de réveillon, de vida nova, de luz, só os meus amigos, acho que tinha umas cento e poucas pessoas, uma coisa bem gostosa, um vestido bem simples, até lembrava o meu vestido de primeira comunhão.
P/1 - E você continuou com ele?
R - Continuei, a gente está junto até hoje.
P/1 - Teve filhos?
R - A gente teve dois filhos, logo no ano seguinte que a gente se casou eu engravidei, veio o João Pedro em 2005, e, dois anos depois, o Tomás em 2007, e hoje eles estão com treze e dez anos.
P/1 - E quando você teve os filhos, como foi para você esse momento do primeiro e depois do segundo?
R - Uma boa chacoalhada porque antes de ter meus filhos, eu estava trabalhando em oito lugares, eu tinha dez mil projetos, coisas acontecendo, bombando, e eu acho que quando eles chegaram, eu tive que rever, fazer escolhas, rever tudo o que eu estava fazendo, tudo o que ia permanecer e o que ia sair, porque eu precisava abrir espaço para eles, foi até um momento bem importante de poder fazer escolhas, mas dolorido, principalmente, o João Pedro, porque quando você se vê mãe e as coisas vão mudar, porque tem aquela primeira ilusão de que vamos manter a vida como é, a gente tinha uma vida com muita coisa ao ar livre, fazia muita expedição, escalada, eu trabalhava com coisas ao ar livre, e eu precisei abrir mão de muitas coisas mesmo, e escolher, organizar.
P/1 - Você consegue lembrar de uma situação para gente saber como que acontecem essas escolhas?
R - Tinha uma coisa, que
eu tinha Outward Bound, eu tinha o consultório, eu tinha muitas coisas acontecendo, e todas elas tinham um lugar, um sentido, um valor, um propósito, e também tinham umas empresas que eu trabalhava fazendo umas coisas de sustentabilidade, que me dava muito dinheiro, que era super bom, eu fazia um milhão de coisas, às vezes, até quando aparece alguém com 23, 24, 25 anos e fala que está fazendo muita coisa, eu falo: “Gente, é hora de fazer mesmo, faz mesmo”, é muito gostoso esse momento de produtividade, de experimentar, mas eu acho que quando os meus filhos chegaram, eu olhei com mais seriedade, tipo, onde eu vou colocar a minha energia, onde eu faço mais a diferença, e onde eu consigo integrar a Claudia mãe com a Claudia profissional no mundo, fazendo sentido. Eu fui realmente tirando, tirando trabalho nas empresas, tirando trabalho nas expedições, que eu amava, mas que exigia de mim estar 15, 10 dias fora, para mim não fazia o menor sentido, eu fiquei 5 dias longe do João Pedro ainda bebê, que foi horrível, e eu vi que não dava.
P/1 - E o consultório?
R -
P/1 - Eu queria que você contasse um pouquinho da época da faculdade, que a história inteira já mostrou essa angústia que você tinha, mas eu acredito que na faculdade de psicologia deve ter se intensificado, então como foi esse processo?
R -
de uma atuação social, era uma coisa que já estava muito claro, eu até prestei Publicidade, que eu entrei e na hora ficou muito óbvio que não era aquilo. Eu estava muito com essa ideia de trabalhar com as crianças, que já vinha, eu já tinha uma trajetória, de trabalhar com a infância, eu tinha cinco, seis anos de trabalho voluntário, olhando para essas questões.
, nesse sentido, até complementaram o que eu já vivia no Santa Cruz, mas em maior profundidade, em maior seriedade, pensando em espaços de atuação, eu amei a faculdade, eu adorei o período da faculdade, os encontros das pessoas diferentes que passaram pela minha trajetória universitária, e logo no começo da faculdade, eu já comecei com trabalhos voluntários.
P/1 - De que tipo?
R -
P/1 - Era uma unidade que era Febem?
R - Era FEBEM, mas veja, o Estatuto da Criança e do Adolescente é de 1990, e nós estamos falando de 1993, então o Estatuto já havia sido lançado, mas não tinha dinheiro nenhum para implementar o Estatuto, e estava todo mundo pensando no reordenamento, como íamos fazer, tem que haver o desmanche.
, e paralelamente, eu fui fazer estágio na faculdade, também em um abrigo, logo em seguida, teve um estágio formal que era em uma casa de convivência, que já fazia parte do reordenamento, eram casas para vinte crianças, era o primeiro momento que eles pegaram cem crianças e dividiram em cinco casas.
P/1 - Dentro do sistema da FEBEM.
R - Dentro do sistema que estava nesse processo que eles estavam chamando de casa de convivência, que era o reordenamento dos serviços de convivência, e lá foi a minha primeira experiência de um abrigo como os que temos hoje, um abrigo institucional, 20 crianças, e a gente fazendo um projeto de escuta das histórias de vida, de começar a entender como fazer um projeto mais individualizado, e menos grupal.
P/1 - Quem era esse grupo?
R - Era eu e a Adriana, que era uma menina que fazia faculdade comigo, e nós não fomos bem nesse estágio, a gente não conseguiu se organizar direito, eu não acho que a gente fez um trabalho bem feito, mas eu acho que aquilo me mobilizou, aliás, o estágio foi tão rápido, você começava em agosto e terminava em dezembro, até a gente se aquecer, quando viu já tinha terminado e não tinha feito nada direito.
P/1 - Mas vocês tiveram uma ideia de ouvir as histórias, você lembra como apareceu essa ideia?
R -
E lembra que eu falei que eu trabalhava nas empresinhas, criando os projetos de sustentabilidade? Eu tinha uns seis, oito clientes de empresas pequenas, que estavam pensando em responsabilidade social, desde reciclagem de lixo até vários eixos onde eles poderiam contribuir com uma sociedade melhor, mais justa e etc. E o Fazendo História entrou nisso, porque eu cheguei numa dessas empresinhas e falei: “Tem um abrigo aqui perto, vamos ver se a gente faz um trabalho voluntário lá para ouvir as histórias de vida? O que tinha dado errado lá no estágio, quem sabe a gente tenta fazer aqui, agora”. E para minha infelicidade foi uma catástrofe mais uma vez, porque os voluntários não estavam preparados, era um abrigo para adolescentes grávidas e recém mães, trabalho muito técnico. As meninas com quinze, dezesseis anos, ali com mil expectativas e ambivalências, uma coisa técnica, de psicologia em profundidade. E os voluntários ali, fazendo aula de lambada, sei lá. Então foi uma coisa meio confusa de novo, mas que de novo voltou para mim e falou: “Não, você precisa fazer isso direito com essas meninas”. Aí eu fiz com as meninas, eu comecei a fazer um grupo com as meninas e aí foi o primeiro álbum. Falei: “Vamos fazer um grupo e cada uma vai fazer o álbum do bebê que está para nascer”, que o álbum é uma mistura entre quem ela é e quem é essa pessoa que está nascendo, e o que ela deseja para essa pessoa, o que ela deseja para ela como mãe. E aí eu comecei a fazer os grupos com essas adolescentes com as quais eu me envolvi muito.
P/1 - Como que surgiu essa ideia de álbum? Me fala um pouco se você lembra, como é que foi isso acontecendo? Como que apareceu essa ideia?
R -
. E algumas já tinham bebês e queriam também se explicar para os filhos, sabe? Elas tinham o desejo de realmente dizer: “Olha, às vezes, eu fico muito brava com você porque eu também não sei ser mãe ainda e estou aprendendo”. Então eram relações muito cheias de emoção, vamos pensar, adolescentes, as meninas com quinze, dezesseis anos, os corpos mudando, elas super preocupadas com engordar, com a estria e o bebê chegando, então tinha muita coisa ali, foi muito rico esse processo. E ainda com aquela marca minha de levar para casa, que eu tenho algumas fotos. Outro dia eu estava procurando, não encontrei mais as fotos das mães com os bebês na minha casa.
P/1 -
R - Não, na casa que eu morava já, numa casinha que eu estava morando em Perdizes. Nós decidimos fazer um passeio com elas porque elas falavam muito que a gente fica muito fechada aqui, porque é muito difícil, adolescentes. Falei: “Então vamos ao cinema”, e fomos todas ao cinema, e quando chegamos ao cinema, fomos barradas, porque falaram: “Não, bebê não pode entrar no cinema”, a gente não tinha pensado nisso. Hoje até tem.
P/1 - Algumas com bebê?
R - Algumas com bebês e outras grávidas. Eu já estava até com meu atual marido, que eu lembro de ligar para ele e falar: “Eu preciso que você venha com um carro e eu estou com outro, a gente precisa levar todas porque deu tudo errado aqui no cinema, que a gente veio de metrô, e eu quero levá-las para casa, a gente vai alugar um filme e fazer um cinema em casa”. Aí ele me ajudou, a gente projetou e não sei o que lá, e fez um cineminha em casa. E acho que foram essas meninas aí que me inspiraram a pensar, foi tão legal o processo e o projeto com elas, e tão forte, acho que tão transformador para elas e para mim.
P/1 - Era você e elas? Tinha mais alguém?
R - Aí era só eu. Era eu e elas.
P/1 - Quantas meninas?
R - Eram doze. Doze meninas e os seus bebês, umas cinco com bebês. Nem sempre estavam as doze. Nesse dia do cinema, a foto que eu tenho é de uns seis bebês, eles até sozinhos assim, depois uma foto com elas e algumas grávidas.
P/1 - Umas eram grávidas e as outras já tinham tido?
R - Exato. Já tinham tido bebê.
P/1 - A gente pergunta sempre, se teve algum momento mais marcante? Uma situação que você disse, foi ali que começou mesmo, mas um momento assim que você acha interessante descrever.
R -
Falei: “Não é fácil você mudar, mas você pode, você tem essa possibilidade, você é a mãe agora, você tem a possibilidade de fazer uma história diferente aqui”. E essa menina foi mudando muito o jeito dela de cuidar do bebê, e vendo as outras meninas também porque tinham meninas muito amorosas. Então esse processo de um olhar para a história da outra e aprender com a história da outra, de circular as histórias, dela poder falar no grupo disso. Essa foi uma mãe que foi absolutamente transformada pela possibilidade de olhar para sua história, de pensar na história dela e de reescolher, ter mais consciência de quem ela estava sendo e o que ela queria ser. Isso aqui é muito transformador, é muito potente você parar para olhar para sua história e entender melhor, colocar tuas emoções ali para fora e reescolhendo as ações mesmo, porque, às vezes, as ações vêm muito como sintomas mesmo, um jeito de atuar. E como é que a gente vai transformando em palavra, tirando sintoma e ajudando.
P/1 - Você, Cláudia?
R - Eu, Cláudia. E aí eu escrevi um projeto. Falei: “Não, vou conseguir”. E aí entrou a coisa da literatura, que a gente também contava histórias no grupo com as meninas adolescentes, tinham momentos em que eu contava uma história para ser um disparador das discussões. Eu falei: “Nossa, literatura é um disparador”, então vamos pensar na literatura como disparador e isso ainda me dá a possibilidade de pensar num projeto que integre literatura infantil, a história das crianças e recurso, porque aí a gente teria a possibilidade de apresentar um projeto pela Lei Rouanet. Eu tinha uma amiga que fazia projetos com a Lei Rouanet, falei: “Escuta, Laís, você acha que funciona aqui?”, “Fala com não sei quem, lógico que funciona, vamos escrever”. Aí eu lembro que o primeiro projeto até eu que paguei para fazer e aprovar o projeto, aprovamos e quando a gente conseguiu o primeiro patrocínio, a gente falou: “Bom, então agora vamos mobilizar voluntários porque a gente vai fazer”.
P/1 - Você nunca tinha mexido com projeto?
R - Nunca tinha. Sozinha, aí contratei duas pessoas, quando a gente começou, tinham duas pessoas junto, era a Tati e a Tati, duas Tatis.
R - Elas eram de onde?
R - As duas da PUC, Psicologia também, ambas vindas de uma mesma formação. A Tati com uma experiência grande já em educação, já trabalhava na Escola Da Vila há um tempão e tal, ela veio e era psicóloga também, e a Tatinha também. E aí fomos nós três fazer as primeiras reuniões para pensar quais vão ser os abrigos, como é que a gente vai fazer, qual é o acervo, que biblioteca a gente vai montar, mas vamos fazer em dez. Mais uma vez a gente não conseguiu fazer em 10, a gente fez em oito.
P/1 - Cláudia, voltando um pouco, fique à vontade. Como que você descobriu que era pela história das pessoas? Você lembra? Porque você é psicóloga, tem outras formas de trabalhar ou não? Eu estou errada? Sem ser pela história, dessa forma? Teve a experiência lá na primeira casa.
R - É, mas eu acho que se a gente parar para pensar, a gente vai juntando algumas coisas. Eu tenho um lado que já tinha uma certeza para mim que espaços de muita vulnerabilidade, onde pouco trabalho gerava muita transformação, eram espaços que me interessavam. Então eu queria olhar para essa coisa, essa dimensão do quanto que eu preciso colocar de energia para gerar transformação. Então acho que tinha uma coisa ali que vai me dando esse eixo do serviço de acolhimento do abrigo como espaço importante de trabalho. Aí tem outro eixo, que eu acho que vem da psicologia sim, que eu não vou chamar de história, vou chamar de palavra. Eu acho que assim, como é que a gente vai nomeando as coisas, nomeando o mundo, nomeando o que está acontecendo, que vem da experiência clínica. E que com as meninas, com as adolescentes, quando a gente começa a construir histórias, histórias passadas e presentes, e, principalmente, com elas, porque tinha um bebezinho nascendo, histórias futuras, eu falei: “Nossa, aqui tem muita potência em imaginar uma história nova, imaginar uma história diferente para uma pessoa que está nascendo”. O fato de ter começado com as adolescentes com bebês na barriga, por nascer, eu acho que vem uma potência de transformação na história futura. Que história eu quero, que história eu imagino, que história eu quero fazer. Então ela começa muito mais por essa história futura, só que quando você vai imaginar a história futura, você volta para tua história e fala: “Por que eu sou assim? Por que eu cheguei nesse lugar? Por que eu estou nessa vulnerabilidade? Como é que poderia ter sido diferente? Quais são trajetórias?”. Então eu acho que foram essas meninas que me deram essa chance de perceber que ali tinha muita potência. E, depois, eu tive a experiência com a Natali, que era uma experiência de singularidade porque eu poderia ter ficado no grupo, mas para mim estava muito claro que esses encontros um a um eram muito transformadores. As transformações maiores que eu vi com as meninas eram muito mais nos meus encontros com cada uma do que no grupo. Apesar de eu ter vindo do psicodrama, de ter feito minha formação em grupo, a minha especialização, por isso eu fui trabalhar em grupo, mas a potência eu vi muito mais nessa singularidade.
P/1 - E vocês começaram, “Como é que nós vamos fazer agora?”, oito abrigos.
R - Como é que nós vamos fazer? Aí a gente sentou. Aí eu escrevi um projeto, primeiro era escrito, vai ser assim, vai implementar a biblioteca... Você tem que criar, depois você recria em cima, ajusta. Então o primeiro projeto era três meses, implementa uma biblioteca, são doze encontros, passado, presente, futuro, faz isso, vai, acontece, encerra e acabou.
P/1 - E já tinha nome o projeto?
R - Fazendo Minha História.
, mas eram doze encontros, tinha uma coisa bem assim, a gente falava: “Vamos trabalhar com três abrigos aqui, três aqui e quatro aqui”, obviamente não deu certinho isso, não conseguimos fazer todos eles. E tinha o conhecimento da Tati e da Tatinha, a gente tinha uma equipezinha. Nós três pensando, a Tati com muita experiência na literatura. Eu lembro de eu querer compor um acervo, nem precisava contar isso, de menor qualidade, mas com mais quantidade, aí a Tati fala: “Não, vamos pôr só livro bom, vamos pensar nisso”, então teve uma composição ali para ir construindo o projeto a partir dessa primeira escrita de projeto.
P/1 - E você, porque antes não tinha literatura, ela entrou e depois ela continuou ou saiu?
R - Não, depois ela veio para ficar. Porque aí a gente foi descobrindo a potência da literatura, a potência de criar atividades em cima desses encontros mediados pelo livro, o livro como um mediador mesmo da relação. E aí a gente foi estudando um pouco mais também, pensando na dimensão afetiva que contar história para o outro nos traz, até a possibilidade de você ter uma criança no seu colo e contar uma história, já te transporta para outra realidade e que permite uma vinculação afetiva, não é assim, agora faz isso, não é uma coisa mecânica ou pedagógica. Então a literatura vai trazendo em si essa dimensão afetiva, eu acho que isso que a gente foi buscar nos livros e veio, chegou junto. Aí hoje acho que tem formas muito diversas, tem gente que usa mais, tem gente que usa menos, que se sente mais confortável, menos confortável, mas eu acho que o livro foi um presente para metodologia, que aí foi se amarrando, o vínculo, a literatura, o contar histórias, ouvir histórias e registrar histórias.
P/1 - E nesse momento estão vocês três, e vocês, além de escrever o projeto, também faziam um voluntariado por outro lado ou já estavam formando nesse momento? Como que foi essa divisão? Sair de cena para entrar voluntário.
R - Exato. Olha, honestamente, foi o máximo, porque na primeira chamada para voluntários já vieram 200, claro que depois não ficaram os 200, a gente precisou qualificar, a gente foi aprendendo como qualificar esse voluntariado, mas foi um universo inteiro novo que se abriu de: “Poxa, tem um monte de gente nesse mundão querendo embarcar nessa e querendo contribuir, colaborar, e tenho certeza que tem coisa boa, muito boa por aí”. Logo em seguida teve um momento em que a gente achava que uma das nossas funções, - até por conta do meu trabalho lá, da coisa das empresinhas e tal -, que um dos objetivos do projeto era essa oportunidade de voluntariado, essa formação das pessoas como cidadãs. Depois a gente falou: “Não, isso aí é meio, o objetivo é a criança mesmo”. Mas durante um tempo tinham dois objetivos ali, objetivo é a criança, mas também é que pessoas entendam o seu papel na sociedade, se mobilizem, possam contribuir e colaborar com a formação de sujeitos em maior vulnerabilidade, já tinha toda essa história. Até um determinado momento, que não demorou muito, a contribuição das meninas também, porque eu tinha muito esse olhar e por conta das empresas, não, eles são meio.
P/1 - E nas empresas, só bem resumidamente, o seu trabalho era fazer o quê?
R - As empresas eram de médio porte, pequeno e médio porte, que não tinham uma área de recursos humanos ou de responsabilidade social, ou de sustentabilidade, naquela época, falava-se só em responsabilidade social, e que falavam: “Olha, a gente está mais ou menos em ordem e a gente quer contribuir, fazer alguma coisa, vem aqui nos ajudar”. Então
. Então no chão de fábrica era muito difícil olhar para fora sem antes olhar para dentro. Em uma agência de publicidade, a gente conseguia pensar em projetos mais sofisticados, então isso foi super importante porque até quando deu errado lá o primeiro projetinho que eu falei que os voluntários chegaram na casa com os adolescentes, deu tudo errado, nisso aí eu voltei para o meu chefinho lá e falei: “Olha, Fábio, deu errado, mas eu preciso cumprir uma missão ali com as meninas” e ele falou: “Então eu te banco, o que você precisa?”. Sei lá, acho que eram 500 mil reais por mês para revelar as fotos, fazer os álbuns, ter alguns livros, comprar algum material, e o meu trabalho. E ele falou: “Então beleza, eu te banco aqui”. Acho que ele foi o primeiro investidor ali que ajudou a fazer acontecer.
P/1 - Permaneceu a mesma?
R - Permaneceu tudo ali.
P/1 - Foi você que escreveu o projeto?
R - Sim.
P/1 - Vocês já tinham colocado os voluntários para executar?
R - Sim, já tinha colocado.
P/1 - E aí eles chegaram, vocês ficaram investigando a formação?
R - Eles chegaram e eu gostei mais ainda, foi muito legal. Porque aí a gente fez um processo de formação que também permanece até hoje, claro, teve algumas alterações, mas não muitas. Eram três encontros, um focado no serviço de acolhimento, um focado na metodologia de literatura, um focado em registro, três encontros de três horas. Assim, naquele momento, acho que a gente pensou direitinho porque permaneceu. A gente ainda tinha muita dificuldade de pensar no contrato, muitos voluntários desistiam, depois a gente foi se tornando mais seletivo mutuamente e rígido no sentido de quem vem precisa realmente estar comprometido, não dá para vir experimentar aqui. Acho que isso foi um aprendizado no processo.
P/1 - E o projeto, eram doze encontros?
R - Não, eram três encontros de três horas. Ah, eram doze encontros com as crianças, sim. Já de primeira a gente falou para os voluntários: “Olha, vai ter que ser mais”. E aí ficamos um tempo que seria um ano, quanto tempo seria, depois com um tempão que era eterno, não tinha tempo, não tinha prazo.
P/1 - E eram semanais?
R - Eram semanais, de uma hora. E aí para construção do álbum, mas naquele momento muito mais quadradinhos.
P/1 - E vocês ficavam trabalhando com que faixa etária? Vocês priorizaram uma faixa?
R - A gente priorizou de zero a doze. Então a gente pensou nas crianças, não tanto nos adolescentes. Aí começaram a surgir os adolescentes, a ter interesse e entrar, e, obviamente, eram bem-vindos no projeto, começaram a trabalhar também conosco, mas no começo eram as crianças de zero a doze.
P/1 - Nos abrigos?
R - Nos abrigos.
P/1 - Se chamava abrigo?
R - É.
P/1 - De novo vou te perguntar, se você puder contar um pouco de vocês com eles, vocês não atuavam diretamente, eram os voluntários que atuavam. Um pouco desse começo, alguma história também que foi...
R - Eu acho que assim, primeiro que vieram pessoas... Obviamente, a gente não tinha uma seleção, a gente estava aprendendo quem é o voluntário que a gente quer. Hoje a gente já sabe com muito mais clareza quem são as pessoas que vão funcionar, que vai dar certo. Naquele momento, não. Então acho que vieram pessoas que não tinham muito a ver ou que não iam se comprometer e tudo mais. Esse foi um processo meio dolorido porque coisas erradas aconteceram com as crianças também, de, algumas vezes, não gostar e não ir mais. “Poxa, mas como é que a gente vai fazer uma formação mais rígida para que isso não aconteça?”. Mas eu acho que também muitas críticas conosco naquele momento, porque a gente não tinha tanta clareza do que era o projeto, a gente estava construindo junto com eles. Eu lembro que tinha uma voluntária que trabalhava com... Que aí a gente chegou num abrigo que era grande, e que todas as crianças queriam participar, e aí tinham umas meninas que estavam fazendo Psicologia no quinto ano, a gente falou: “Acho que elas dão conta”, e aí era uma pessoa com um grupo de cinco crianças. E foi um caos porque é super difícil coordenar um grupo de cinco crianças falando de história de vida de criança que tem situação de violência, abandono, negligência, enfim. Então eu lembro dela falar: “Você precisa dar muito mais suporte, muito mais apoio, muito mais supervisão, estou me sentindo sozinha”. Acho que no começo a gente apanhou um bocadinho, até achar um modelo de acompanhamento e de realmente entender que esse voluntário também precisa de muito suporte do grupo, das supervisões serem em grupo. A gente teve sorte também porque vieram pessoas muito bacanas, muito boas e sabidas, que estavam no espírito colaborativo, de construção coletiva ali: “Olha, por que vocês não fazem assim?”, “Acho que deveria ser assim”.
P/1 - Os próprios voluntários?
R - Os próprios voluntários. Então a gente tinha uns encontros de capacitação, a gente tinha a formação inicial, aí tinham encontros de capacitação, que eram encontros assim: “Vamos falar sobre literatura”, então chamava lá o Ilan, pessoas ícones ali, a Regina Machado, de contação de histórias e tal, e pessoas de arte, estética, fotografia. Então a gente tinha esses encontros de capacitação, mas aí eles falavam: “Não, a gente precisa mais de supervisão, a gente precisa mergulhar nos casos e pensar como registrar isso, como fazer isso, como lidar com aquilo”. E ao mesmo tempo, os desdobramentos que o projeto vai trazendo e que vai dizendo, puxa, não vai dar para gente ficar só registrando história de vida porque a gente vai ter que conversar com os educadores, com os gestores e aí começa a surgir um instituto, uma demanda por trabalhos com os gestores, com os educadores, outros projetos adolescentes.
P/1 - Em três anos vocês perceberam essa demanda? Em três anos, porque 2002 até 2005.
R - É. Dois, três, quatro e em cinco a gente fundou o instituto.
P/1 - Qual o nome dele?
R - O Fábio. Que foi um super apoiador, uma referência para nós, ficou mais de 10 anos no conselho. Hoje está morando fora e tudo.
P/1 - Fala o nome todo dele.
R - O Fábio Liberman, e foi apoiador de diversas formas, muito presente. E depois a gente teve a Lurdinha, que era a professora, doutora, responsável pelo núcleo 32, onde a gente havia se formado, onde o estágio tinha acontecido.
P/1 - Lourdes o quê? Você lembra?
R - Maria de Lourdes Trassi Teixeira, ô se lembro, essa aí ninguém esquece, não. Mas a Lurdinha ficou muito tempo também conosco e a gente foi pensando em pessoas que pudessem também trazer outro universo, então a coisa da mobilização de recursos, como é que a gente vai fazer isso acontecer? Então convidamos algumas pessoas que tinham a ver com isso também.
P/1 - Cláudia, eu estou imaginando você desde aquela criança lá da Sampaio Viana e crescendo assim, tão rapidamente, esse movimento. Como você se via, não analisando, mas como que ia acontecendo tudo isso? Porque até virar o instituto, foi crescendo muito rapidamente. Aí você começou a perceber: “Nossa, a gente tem que trabalhar com os educadores, os gestores”, como que isso vai acontecendo?
R - Mas olha, é incrível. Porque isso é um motivo de maior alegria e orgulho que eu tenho no instituto.
. A gente desde o início sabia que tínhamos que ter um projeto e um programa para os adolescentes, a gente sabia que essa era uma demanda. Só em 2014, 13, que ele foi ficar mais constituído mesmo, ele teve outras formas antes, mas era uma demanda que estava ali colocada e que a gente foi experimentando estratégias. Então eu acho que a gente foi sempre olhando com muita atenção para o instituto, onde a gente quer chegar, quais são os próximos passos e assim, sem uma coisa megalomaníaca de queremos mudar o mundo amanhã, não. Vamos fazer esse passo, vamos fazer esse outro passo, e eu acho que os passos são sempre do tamanho que a gente tem capacidade, possibilidade e energia para realizar mesmo. O sonho ainda é grande, maior, acho que tem um sonho grande e eu acho que a gente vai contribuindo, mas dentro dos nossos, sabe? Então o instituto, salvo a questão do dinheiro, que o tempo inteiro, para qualquer organização social, é uma pedra no sapato, tem uma angústia ali, mas assim, em termos técnicos, de crescimento e de demanda, dos problemas e respostas que a equipe vai dando, é uma coisa tão orgânica, tão bonita, tão prazerosa, na verdade. Ele é um lugar gostoso de estar porque a gente vê os problemas, a gente enxerga, organiza a resposta e responde. Não acho que é tão simples assim, os problemas sociais são maiores, mas a gente vai medindo as nossas possibilidades. Eu gosto disso, e eu acho que desde o começo foi assim. Eu lembro, não era a primeira reunião do instituto formado, em 2005, 13 de março ou 17 de março, você faz também os editais? Não sei.
P/1 - Não.
R - 13 de março. Não, desculpa, acho que é 17 de março.
P/1 - Mas foi março.
R - É, em março.
P/1 - A primeira reunião você ia contar.
R -
P/1 - E você, Cláudia, como psicóloga e ao mesmo tempo como gestora, você se viu como gestora a partir daquele momento, como você se dividia? Você estava na questão da gestão, de pensar o instituto, de organizar aquilo que já tinha mais pessoas envolvidas, mas você continuava na linha de frente também, desde o abrigo. Como que você...
R - Muito tempo eu fiquei na linha de frente também, e eu acho que para mim foi fundamental, porque é combustível. Então eu acho que, para mim, fazer formação para colaborador também é linha de frente, encontrar os voluntários. Demorei muitos anos para deixar de fazer formação dos voluntários, eu fiz 2002, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11. Foi mais ou menos em 2012, 13, que eu fui soltar um pouquinho a formação de colaboradores. Foram muitos anos.
P/1 - E vocês chamam os voluntários de colaboradores?
R - Isso.
P/1 - E por quê? O que te fazia...
R - Porque era muito bom para mim, ver a ponta acontecendo, ver as pessoas chegando e querendo colaborar, querendo construir junto, eu acho emocionante. Toda vez que um voluntário liga e fala: “Eu quero ajudar”, eu falo: “Gente, isso aqui é muito legal”. É muito legal as pessoas saírem do seu rumo, da sua trajetória, da sua segunda, terça, quarta, quinta e sexta, e falarem: “Eu vou lá, na terça à noite, fazer um processo de formação que eu quero colaborar, eu quero participar desse movimento de olhar para as crianças, de cuidar, de amor, de afeto”, é lindo demais. Você se relacionar com os colaboradores ou com as crianças e adolescentes, e ver também ali a demanda, a vulnerabilidade, o desejo de encontro porque aquela coisa das crianças, quando você chega no abrigo, que todo mundo quer te abraçar e te beijar e tal, que tem um certo incômodo, se a gente lapidar aquilo, aquilo é um desejo de encontro, a gente lapida. A resposta que a gente dá a aquilo não é: “Vem cá com a tia tirar uma foto e dar um beijo”, a resposta que a gente dá para aquilo é formar pessoas que vão se encontrar semanalmente, para que a história dele, a vida dele tenha mais valor, não é que tenha mais valor, mas que ele possa perceber, notar e compartilhar o valor da vida dele. Eu acho que essa demanda, quando você chega no abrigo você vê, que ela incomoda de certa maneira, ela mobiliza, ela te dá força também. Agora teve um momento que foi inevitável, fui saindo da coordenação do Fazendo Minha História, entrando na coordenação geral, e num determinado momento, muito distante mesmo. Até o ano que eu morei fora, eu estava ainda coordenando muito junto com a Bel, falando diariamente, mas muito distante. Aí eu acho inviável. Para mim, ficar absolutamente na gestão institucional, sem estar nada na ponta, para mim não faz sentido. Aí perde o sentido para mim. Eu acho que foi perdendo, eu acho que fui me distanciando e precisando encontrar outro jeito de atuar que voltasse a fazer sentido. Hoje no advocacy faz sentido, porque é outra ponta, outro jeito de estar na ponta. Não precisa ser me relacionando com a coisa, mas é na ponta, na ação técnica também.
P/1 - Cláudia, eu vou ainda voltar um pouco. Está cansada?
R - Não. Vocês estão?
P/1 - Eu não. Estou achando ótimo, mas vou ficar até às três da tarde. Que horas são?
R - São 11:32.
P/1 - A gente não costuma fazer isso, de ficar perguntando as horas.
R - Não, fica à vontade, imagina.
P/1 - Mas é porque eu tenho preocupação com seu compromisso.
R - Não, estamos indo. Acho que está indo tudo bem.
P/1 - Ótimo.
R - Não sei se meio sem graça, gente, mas...
P/1 - Não, a gente se emociona também, posso te dizer, arrepia. Para o projeto e para nós, para mim, pessoalmente, que faço essas histórias, entender assim, como que você é nesse trabalho, como que você vai fazendo esses planos, porque é um jeito que acaba dando certo. E por quê que eu falei para pesquisa? Porque são essas histórias que a gente busca para entender como que essas organizações até hoje estão aí vivas. Esse trajeto foi feito muito por você. Então vocês estavam lá em oito abrigos, aí vocês foram percebendo várias demandas, e aí você: “Agora está na hora de chamar mais gente”, aí vai ampliando. Eu não sei se eu estou sendo clara, mas como que você se sentia nisso, sabe? Como é que você enxergava? Como que você sentia, principalmente, como que você enxergava tudo isso? Alguma história que te inspirou mais ou uma situação que falou: “Eu preciso trabalhar com diretores, com educadores”? Porque depois, na hora que conta, parece que foi tudo mais linear, mas não é linear.
P/2 - Teve algum momento em que você chegou a pensar em desistir?
P/1 - Mas ainda lá no começo, como que isso vai se construindo? E para você, como pessoa.
R -
Eu acho que hoje a gente ainda olha, por exemplo, para o advocacy, a criação do núcleo de advocacy foi uma coisa que a gente falou: “Está fácil, nós estamos com a faca e o queijo na mão”.
P/1 - Então, isso você que diz, sempre. Você disse, por um bom tempo, essa visão do está fácil.
R - É. Eu acho que, de verdade, o instituto foi, desde o começo, e a gente teve uma crise institucional importante, que eu acho que é um lapso, mas é um momento diferente. Mas eu acho que o instituto tem uma cultura, eu gosto demais da cultura que a gente conseguiu instituir ali, de acertos e erros, de rever os processos, de conversar muito sobre, sabe? A gente é uma instituição que acredita na palavra como mediação das situações. Então o tempo inteiro a gente está ali falando. Por muitos anos ali no começo, em que eu tinha uma menor maturidade como gestora, eu era muito mandona, eu esqueci de contar essa parte da minha infância, eu era super mandona, fazia tudo do meu jeito. As meninas lá na fazenda me davam muita bronca e me deixavam isolada porque eu era mandona, falava: “É assim”, “Não é assim, não para cima da gente”. E as daqui de São Paulo também. Então quando eu chego no começo do Fazendo História como gestora, eu era uma super mandona. Talvez as meninas ainda falem: “Ainda é”, não sei. Mas assim, muito mandona, com pouca maturidade. E aí a gente tinha uma supervisão. Acho que desde o começo de 2002 até 2006, 7, 8, a gente tinha uma supervisão institucional da equipe.
P/1 - Alguma história?
R - A Lurdinha. Ela ia lá dar chapoletadas em mim porque eu era a liderança, e o tempo inteiro, porque não deixa experimentar, porque não deixa tentar. Então acho que teve um processo de lapidação, do lugar de gestora, que é dolorido você achar que está arrasando e chegarem lá e falarem: “Não”, assim como hoje, de repente eu chego lá e falo: “Agora que eu estou madura” e falam: “Não, você que pensa”. Eu acho que esse processo que vai fazendo um crescimento pessoal junto com o crescimento institucional, é um compromisso que a gente tem com cada pessoa no instituto também, que a gente tem com cada profissional, que a gente sabe que ninguém está pronto, nenhum de nós. Então acho que tem um ciclo de amadurecimento pessoal, institucional, que vai se compondo e que tem muito, eu vou usar essa palavra mesmo, tem muito amor envolvido, sabe? Muito cuidado, muita afetividade também no cuidado. A gente tem que fazer críticas, é um valor nosso, a franqueza nas relações. Mas como é que a gente faz isso de forma a ajudar o outro a dar um passo à frente? Eu acho que eu dei muitos passos, de 2002 até 2012, pensando nessa primeira década em que eu era a liderança, muito à frente, muitos passos. Com muita ajuda da Lurdinha, muita crítica, apanhei bastante. O que culmina com uma crise institucional muito forte, mas que aí eu já tenho certa segurança do que é certo e o que é errado, tem algumas coisas que são inaceitáveis. Então essa crise só não acaba com o instituto...
P/1 - Quando foi?
R - Em 2012.
P/1 - Então conta o que aconteceu. Pode contar?
R - Claro. Acho que sim, espero que eu consiga, é uma narrativa. É a minha. Nós éramos quatro fundadoras, a Cacá, eu, a Renata e a Lola, e nós éramos um corpo gestor. Embora cada hora uma assumisse a presidência porque a gente achava que a presidência precisava ser alternada e tal, nós quatro sabíamos que eu era a liderança, era só eu que me dedicava 100%, era eu que estava à frente, eu que mandava assinar, organizava. E cada uma coordenava um programa.
P/1 - As Tatis?
R - As Tatis já tinham saído nesse momento. A Tati Filinto porque decidiu enveredar pelo caminho clínico mesmo, e a Tati Grinfeld ficou muitos anos e adoeceu, até trabalhou muito tempo no instituto enfrentando uma leucemia, um caso super bonito também, muitas reuniões do projeto foram no Einstein durante o segundo e o terceiro ano, por conta dela. Então já tínhamos nós quatro ali, fundadoras pensando nas coisas e equipes. E aí tínhamos divergências das equipes. Eu não sei dizer exatamente por onde foi passando, mas uma das equipes, que era a de formação, foi se distanciando das outras equipes do instituto. Se distanciando em termos de se reconhecer num lugar de maior potência, maior intelectualidade ou maior aprofundamento. Então parecia que havia um processo de desqualificação de algumas equipes e de superqualificação de outras.
P/1 - Essa desqualificação da equipe de formação?
R - Da equipe do Perspectivas, que era a formação. E a Lola estava à frente dessa equipe.
P/1 - E você supervisionando, gerindo mais o todo?
R - O todo.
P/1 - Desculpa, Cláudia, mas fala as equipes, para aí a gente também situar o que nós falamos aqui.
R - Nossa, está difícil de acessar a memória do que aconteceu primeiro, se foi a Lola sair ou se foi a ruptura com...
P/1 - Mas eram quantas equipes?
R - Tinha a equipe do Fazendo Minha História, tinha a equipe de formação, tinha a equipe do contato, que era a equipe de psicoterapia, tinha a equipe do ato vivo, que era a Cacá fazendo algumas coisas, que não era uma equipe, era meio que a Cacá só mesmo. Tinham pessoas da equipe de formação que não poderiam conversar com pessoas da equipe do Fazendo Minha História, o que para mim era uma coisa absolutamente inaceitável. Eu não consigo te contar a história da crise institucional.
P/1 - Não precisa, mas o que ficou, sabe?
R - Eu acho que o que ficou... Eu vou te falar a gota d'água, acho que foi uma coisa muito forte. Teve um momento em que a equipe do Fazendo Minha História precisava trabalhar um tema de sexualidade num serviço de acolhimento, ela voltou para equipe de formação e eu não lembro mesmo quem eram os personagens, vou falar de equipes, e pediu um texto sobre sexualidade: “Olha, vocês têm alguma coisa? Algum suporte? Que a gente está precisando trabalhar isso”. E a equipe respondeu dizendo que não podia compartilhar porque essa outra equipe não teria condições de lidar com esse tema, então ela não se sentia à vontade para compartilhar esse material, porque eles não estavam prontos e preparados. E para mim, isso foi a gota d'água, porque assim, não dá para, dentro de uma instituição, não ter essa generosidade intelectual, afetiva. Assim, muitas generosidades que a gente precisa dentro de uma equipe para gente avançar, e o instituto foi se constituindo dentro de processos generosos, de formação pessoal dos seus profissionais. Acho que as pessoas vão se ajudando, tem diferenças, tem divergências, mas a gente fala as coisas, a gente quer que cresça. E quando veio isso, eu falei: “Não, isso é inaceitável” e junto com isso veio uma crise financeira muito grande, porque a gente fez um projeto com a Secretaria de Direitos Humanos e a gente teve que devolver um recurso gigantesco para o Governo Federal por falhas administrativas nossas, de todos nós. Uma injustiça na relação com a secretaria também, teve toda uma sensação de injustiça mesmo porque os caras pediram uma coisa, a gente executou a coisa e depois falaram: “Não podia ter executado assim”, a gente falou: “Mas por que vocês não falaram?”, porque nós éramos inexperientes, quando a gente firmou aquele convênio, em 2007. Todas grávidas, as fundadoras, então num momento de fragilidade, a gente firmou um convênio, era uma coisa grande e a gente falou: “Vamos fazer”, na maior das boas intenções, trabalhamos muito para entregar, entregamos, mas tivemos erros administrativos. E quando a gente foi conversando com os advogados, eles foram demonstrando por A mais B que a gente ia ter que devolver o dinheiro. Só que era muito dinheiro, quebrava a instituição, era todo o dinheiro que a gente tinha em caixa. E aí devolvemos o dinheiro, foi um momento em que eu respirei fundo e acionei toda a minha rede, para pedir dinheiro para justamente continuar existindo, e fizemos isso, foi possível. Mas também foi uma oportunidade de virar e falar: “Aqui nesse barco fica quem está dentro”, porque a gente falou: “Olha, essa equipe de formação não está a fim de compartilhar” e tinha uma coisa de vocês, os gestores e nós, a equipe. Não é assim que o instituto funciona. A gente tem uma gestora, uma gestão, mas tem um processo horizontal de composição entre uns e outros, apoios de uns e outros, bom, o que você vai precisar? Quem vai ficar à noite nesse dia? Não é uma coisa na ponta do lápis, é uma coisa de compartilhamento de momentos de cada um. Enfim, nessa crise, então, a gente tomou essa decisão de que o núcleo de formação inteiro sairia do instituto, com todos os contratos, com o nome, com o logo, com tudo o que a gente tinha construído também, porque foram sete anos de construção, de contratos, de nome, de perspectivas, o logo, lugar na rede, 300 mil reais de contratos em andamento, e isso tudo saiu, que naquele tempo era bastante para nós. E aí, quem permanece fica muito claro, quem está aqui, está aqui porque quer fazer.
P/1 - E nesse grupo de formação, eles formavam quem?
R - Eles formavam educadores e gestores. Continuaram. Inclusive, a gente pensou, foi até uma parte da decisão mesmo, que a gente falou: “A gente não perde nada”, porque a nossa missão eles vão continuar executando, eles continuam fazendo, a gente só não pode perder a nossa missão. Se a gente mandar todo mundo embora e acabar esses contratos, a gente perde, porque os processos de formação que a gente está fazendo não param de acontecer agora, agora eles só continuam de forma autônoma e a gente começa um novo ciclo aqui de formação, começamos do zero de novo. Tanto que até hoje a gente não conseguiu um nome para esse programa de formação, porque o nome sempre foi Perspectivas, foi o nome da fundação e que veio. E hoje é um núcleo, Perspectivas, continua atuando, fazendo formação, mas veja, muito rapidamente ficou claro, é um desdobramento da nossa missão, só.
P/1 - É um desdobramento de formar educadores e gestores de abrigos.
R - De serviços de acolhimento, abrigos, eventualmente.
P/1 - Mas vocês continuam com voluntários?
R - Sim.
P/1 - E esses voluntários que atuam diretamente com as crianças?
R - Sim. A gente tem formação também, porque de 2012 a 2018, a gente foi ressurgindo das cinzas e fazendo formação novamente.
P/1 - Inclusive com educadores?
R - Sim.
P/1 - Agora, lá dentro, antes desse grupo sair, existia também uma equipe que fazia formação dos voluntários?
R - Não. As pessoas que faziam formação dos voluntários ou que faziam o núcleo de psicoterapia, o trabalho com adolescentes, todo mundo ficou, essa turma toda ficou. Quem saiu foi o pessoal da formação, que saíram em massa, com os contratos com o nome, com tudo, e nós ficamos aqui e falamos: “Vamos começar de novo”.
P/1 - E esse grupo que saiu com a marca, a marca era qual?
R - Perspectivas.
P/1 - Mas a logo era do Instituto Fazendo História?
R - Era Perspectivas, tinha uma logo e era casado com a do instituto.
P/1 - Saiu com a logo Perspectivas. Eu pergunto, estou repetindo, se tinha gente que fazia formação dos voluntários que não fazia parte desse grupo? Não, a formação eram só eles mesmos?
R - Não, eles faziam formação de educadores. A formação dos voluntários, quem fazia continua aqui, permaneceu. E, inclusive, nós não tínhamos dinheiro para pagar todo mundo que ficou. Então nós fizemos uma reunião com todo mundo e falou: “Gente, esse é um ano de crise, a casa caiu” e a gente sabia que o pessoal da formação não ia embarcar nessa possibilidade também, e a gente falou: “Tem duas maneiras de sair da crise, uma é mandar metade das pessoas embora, diminuir o trabalho pela metade e a gente continuar. A outra é a gente diminuir um pouquinho as horas de vocês, todo mundo trabalhar um pouquinho mais na verdade, mais eficiente e a gente chegar ao final do ano e rever o nosso contrato. E quem não quiser ou não puder, a gente entende completamente”. Aí todo mundo ficou e foi um ano em que todo mundo ganhou 10% a menos, trabalhou 10% a menos, a gente reorganizou os horários, os tempos, e em dezembro a gente chegou e falou: “Pronto, estamos de novo saudáveis e prontos para continuar”. E a gente até lembra de uma apresentação para o conselho, que era assim: “Sobrevivemos”. Porque foi um ano de sobrevivência, uma crise institucional, perdendo profissionais importantes, sem dinheiro, num momento muito difícil. Perdemos uma das fundadoras, também, que era a Lola, que era uma pessoa super importante no estudo, de poder aprofundar o pensamento. Era uma pessoa que realmente contribuía demais. Então, depois de todas essas perdas, será que a gente consegue? Então, foi um ano de muito trabalho.
P/1 - A Lola ainda tem relação com vocês enquanto profissional?
R - A Lola se distanciou. A saída dela foi bastante traumática. Acho que tanto para ela, quanto para nós. Foi uma encrenca mesmo a saída dela. Mas, o valor dela, eu acho que a gente pode ir com o tempo retomando e dizendo e reconhecendo. E, hoje, ela tem lugar de reconhecimento como fundadora que a gente admira e que quer poder colocar o nome dela nos materiais. Ela não tem mais nada a ver nem com Perspectivas, nem com o instituto. Ela está na clínica. Mas, ela tem esse lugar de pertencimento e a gente pergunta se ela quer e ela “Sim”, porque quando fala a fundadora, qual importância, às vezes, a gente precisa se livrar um pouquinho da síndrome dos fundadores para poder realmente profissionalizar. Concordo plenamente, acho que a gente conseguiu fazer isso, mas os fundadores têm uma importância bem grande, bem grande na sobrevivência da instituição, dos momentos de crise da instituição. Eu acho que os fundadores eu os vejo, e me incluo, como peças fundamentais, tanto para trás quanto para a frente.
P/1 - De fundar.
R - Exato. Tem um compromisso.
P/1 - De fundação, mesmo.
R - Exato.
P/1 - Até de fundamento.
R - É como se fossem os pais de uma determinada maneira. Como se fossem os pais. Os filhos crescem, viram adultos e vão para o mundo. Mas, os pais estão ali. E se, algum momento, for necessário eles podem ser acionados. Não é que eles vão voltar ser pais igualzinho, mas eles podem ser acionados e vão ajudar, vão conduzir num fio ético amoroso, cuidadoso e ainda alçando para a autonomia, que eu acho que é muito bonito. Acho que os fundadores do instituto têm esse lugar.
P/1 - E a essência do instituto acaba por ter um pouco de cada. Trazer um pouco de vocês quatro.
R - Acho que sim e acho também que o que veio de essência naquele primeiro momento, hoje já é institucional. Hoje, realmente eu me vejo na instituição espelhada e, às vezes, volto para casa e penso assim comigo mesma: “Isso aí é meu”. Eu sei que é meu, mas ninguém precisa saber. Assim, no fundo, eu tenho uma certa alegria ao me ver espelhada ali e ninguém nem saber que isso veio de mim. Mas, tudo bem.
P/1 - É como um filho mesmo.
R - É como um filho mesmo.
P/1 - Se lembra de alguma coisa, Cláudia, assim, “Olha, fui eu lá atrás e acabei trazendo isso”? De pronto, é difícil lembrar.
R - É, de uma cena especificamente? Não. Mas, eu acho que, por exemplo, os
P/1 - Mas você marcou nesse sentido. Mais algum?
R - Não. Acho que vale dizer assim quando eu vejo a Bel fazendo uma apresentação, que é gestora e que está lá há dez anos como uma liderança importantíssima no instituto e eu vejo ela usando as mesmas frases que eu. Eu, às vezes, usando as dela. Acho que já é uma mistura, mas eu realmente me enxergo muito ali, na fala dela. Então, eu acho que a gente tem uma unidade institucional. Que isso não soe como mitologia. Tem espaço para diferenças.
P/1 - Mais para princípios, talvez?
R - É, a gente tem um jeito de atuar, um jeitão que eu enxergo muito ali.
P/1 - E de 2012, o que ficou de organização de equipes, do trabalho? Mudou alguma coisa depois também? Para ter um desenho daquilo que pude assistir.
R - Eu acho que, desde o começo, a gente tinha uma preocupação das equipes serem muito separadinhas. Essa equipe de fazer histórias, essa equipe de não sei o quê, essa foi uma meta que a gente não gabaritou em todos os planejamentos estratégicos. A gente não conseguir integrar tão bem os programas. Acho que quando a equipe de formação se desliga e a gente começa um novo ciclo, a gente começa muito mais como instituto do que como programas. Então,
. Ele é um guarda-chuva de fato dos programas e que vão se relacionando, se apoiando, inclusive, nos papéis de coordenação, que eu acho que tem um
desse papel mesmo, de onde eu preciso me desenvolver. Acho que o instituto tem lá um programa de avaliação de desempenho que é uma de avaliação de onde eu estou, para onde eu preciso ir, onde é que eu tenho de crescer, uma conversa franca para cada um olhar no seu lugar profissional, para onde quer ir, quais são metas. Acho que isso são processos cuidadosos com cada um. Porque se não, como é que as pessoas ficam no instituto? Como é que as pessoas trabalham no instituto se elas não encontrarem outros valores que não o valor financeiro? Porque a gente tem um valor óbvio que é a transformação que a gente faz no mundo, mas o instituto tem outros valores não tão óbvios, que são espaços de crescimento profissional em que as outras pessoas vão me ajudar a crescer, eu vou me tornar um profissional melhor nesse espaço, não ir guardando ou ficar fazendo sempre a mesma coisa mecanicamente. Acho que tem um comprometimento com o espaço de crescimento profissional e acho que tem essa atmosfera afetiva que é algo, essa dimensão afetiva do trabalho, que eu acho que falta demais no mundo e que a gente tem no instituto e isso é um patrimônio, isso é um tesouro que nós temos no instituto. É você chegar num lugar de trabalho que você tem uma encrenquinha com o colega, você tem momentos em que é um saco, que é difícil, mas você tem um espaço que tem uma dimensão afetiva verdadeira, real de pertencimento, “Faço parte desse grupo, que me quer bem e que eu quero bem e que assim a gente vai também”. Sem qualquer demagogia, um (inint) [01:57:32], mas um círculo de coisas boas e de geração de coisas boas, que eu acho que é o que a gente tem de buscar.
P/1 - Mas vocês fazem o trabalho que os voluntários, estou achando assim, fazem diretamente com as crianças, adolescentes, já não vou falar mais de equipes. Tem esse trabalho e que vocês continuam fazendo…fala você.
R - Mas, olha que lindo, você falando eu vou me dando conta.
, voluntariado empresarial, que ia às oito da noite que era um horário péssimo para a criança. Enfim. Mas, aquele primeiro voluntário já não tem mais nada a ver com o de hoje. Desculpa, estou me perdendo.
P/1 - É isso.
R - O que eu queria falar é que acho que o voluntário assumiu esse lugar de maior importância do que a equipe técnica, porque, de fato, a gente tem uma equipe de padrinhos e madrinhas, e de famílias acolhedoras principalmente. Ou mesmo de psicoterapeutas voluntários. E não menosprezando os voluntários do Fazendo a Minha História, mas ainda é uma porta de entrada, é um trabalho um pouco mais restrito. Agora, a pessoa que abre a sua porta para receber um bebê, para acolher um bebê por seis meses, nove meses, que trabalho técnico pode ser comparado com esse tipo de oferta, de transformação do mundo? Então aí o instituto vira realmente uma plataforma, sabe? Para receber essas pessoas, porque realmente família acolhedora, quem se propõe, é muito fora da curva de especial.
Eu acho que a equipe técnica percebe isso, valoriza, lapida, contribui, colabora, forma, supervisiona, tem todo o seu valor, mas quão incrível é quando a gente vira uma plataforma para que a comunidade possa atuar de forma amorosa, comprometida como é hoje. Acho que se a gente pensar nisso que consegue ali, se a gente conseguisse isso em todos os lugares, em muitas esferas, de muitos jeitos “Poxa vida, que coisa incrível” porque também sai desse momento histórico que vivemos em que precisa sempre ter um outro culpado e que normalmente é o Estado e claro as políticas públicas. Nós somos absolutamente a favor de políticas públicas e por isso criamos o núcleo de
, mas é dever de Estado, família e sociedade. A sociedade tem que ser convocada, criar-se oportunidades, oportunizar participação social para transformação social é fundamental.
P/1 - E como começou? Porque não tinha antes.
R - O Apadrinhamento Afetivo e a Família Acolhedora? Foi planejado, nós achamos que dava para fazer. Conhecendo os voluntários do Fazendo Minha História, nós vemos pessoas que são tão incríveis, mas poderiam estar fazendo mais por essa criança, eu sinto que elas gostariam também e essa criança também. Vamos criar um cardápio de oportunidades e que cada um possa descobrir qual é sua possibilidade de contribuição nesse momento de envolvimento. Então você tem Fazendo Minha História, apadrinhamento, tem Famílias Acolhedoras, tem o projeto de mentoria com os adolescentes do grupo Nossa, tem o trabalho técnico de psicologia, de atendimento psicoterápico, você tem possibilidades diferentes.
P/1 - Em algum momento vocês disseram, “Vamos fazer esse cardápio” ou não, foram aparecendo possibilidades?
R - Eu acho que o Apadrinhamento. Contato e o Fazendo Minha História existiam desde sempre. Eu, inclusive, fui muito tempo terapeuta de um programa idêntico ao Contato no meu consultório.
P/1 - O Contato é?
R - Atendimento psicoterápico individual para crianças e adolescentes em serviços de acolhimento. Então esse voluntariado e esse aqui nós já tínhamos, já eram parte do DNA e é um valor. Trabalho voluntariado qualificado é um valor nosso. Agora quando percebemos que tem potência aqui, que dava para fazer mais, falamos “Por que não estamos fazendo?”. Os adolescentes, as crianças maiores que tem menos chances de reintegração familiar ou de ser adotados, precisam de experiências familiares e tem famílias disponíveis a vivenciar isso junto, a mergulhar nessa história com os meninos e as meninas, então vamos nessa. Então planejamos o apadrinhamento e começamos a executar. Ainda temos um monte de desafios.
P/1 - O apadrinhamento é constante? Não é periódico ou por um tempo? É sempre que ele vai ser padrinho ou madrinha daquela criança ou daquele adolescente?
R - Exatamente. Isso também vem de descobertas acadêmicas que vamos fazendo. Os ciclos de acompanhamentos afetivos, de mentoria, apadrinhamento, enfim, de maior duração tem impacto muito maior na vida da criança e do adolescente. Por um ano tem um impacto, por dois tem outro, por oito tem outro. Então temos estudos que vão comprovando que os relacionamentos de mais de dois, três anos tem um impacto muito maior. Eles realmente transformam a vida dessas crianças e adolescentes. E começávamos a ter um pouco de incomodo de fazer projetos muito bonitos, interessantes e bacanas que transformam, mas que transformam pouco a realidade da criança. Fazendo Minha História é muito bonito, é capaz de mediar e de trazer palavra, mas eu precisava transformar mais a vida dessa criança que está vivendo em um serviço de apoio e acolhimento. Então o Apadrinhamento Afetivo vem como uma potência nesse sentido e o Famílias Acolhedoras também. Eu acho que ele tem um respaldo em evidências acadêmicas que vão nos dizendo que uma criança pequena institucionalizada tem marcas no seu desenvolvimento em longo prazo importantes. Se nós pudermos oferecer o acolhimento familiar é melhor, deve ocorrer e nós temos a cidade de São Paulo dizendo que é impossível, muito difícil e não dá porque já foi tentado, que São Paulo não tem esse perfil. Então o instituto começa a fazer o acolhimento familiar nessa perspectiva de incidência política de mostrar que é possível fazer na nossa cidade e fazer bem feito, isso deve ser uma política pública. No instituto o que buscamos hoje como política pública é o acolhimento familiar. É a primeira coisa que entendemos que precisa de recurso público fazendo esse tipo de acolhimento e não esse, simples assim, está testado. Nós não ficamos aqui discutindo e debatendo para que todos nossos programas virem política pública. Nosso espaço como sociedade é experimentar e testar coisas e quando estamos muito seguros, falar vamos lá, vamos escalar, vamos fazer isso gigantescamente?
P/1 - A Família Acolhedora, eu li no material de vocês, mas para você contar rapidamente o que é.
R - O acolhimento familiar ocorre, mesmo modelo e processo, a medida do acolhimento. Uma criança precisa ser separada da sua família; negligência, violência, abandono, seja o que for e ao invés de ir para uma instituição, ela vai para uma família que vai acolhê-la. Tem uma equipe técnica que acompanha e supervisiona, que vai pensar também na reintegração familiar, nos encaminhamentos para essa criança, mas o acolhimento onde essa criança permanece durante o dia e a noite dela é com uma família. Até que ela possa retornar para sua família ou ser adotada. No caso das crianças pequenas, os acolhimentos acabam não sendo tão prolongados. Não corremos o risco de uma família acolhedora ficar por cinco anos com uma criança que depois terá que voltar para sua família de origem que talvez já seja desconhecida dela nesse momento. É um benefício do acolhimento familiar para criança pequena, o período mais curto de acolhimento.
P/1 - E para os maiores também tem?
R - Para os maiores pode haver família acolhedora, é um processo mais complexo que precisamos problematizar muitos pontos, é uma questão técnica mesmo da gente ponderar e não é a bandeira do instituto. A bandeira do instituto nesse momento é acolhimento familiar para todas as crianças de até seis anos, essa é a nossa bandeira. Temos uma outra batalha que estamos aprendendo com outros países e vendo as experiências de outros territórios que são quais políticas podem ajudar o adolescente que está se desligando do serviço pela maioridade, temos um grupo nosso. Então temos duas pontas em que percebemos uma maior vulnerabilidade. Uma maior potência do nosso trabalho que é a primeira infância, mas já temos uma resposta que é o acolhimento familiar, e a transição para a vida adulta que o grupo ‘Nós’ vem dando respostas, mas vem experimentando estratégias para ver qual o pacote perfeito ou o pacote que gostaríamos de propor que não seja só uma república. Sai do abrigo e vai para uma república. Mas vocês são contra a república? Não, somos completamente a favor, só que ela não é suficiente. Não somos contrários, só entendemos que ela está aquém da demanda necessária. Os meninos precisam de mais, precisam de um trabalho afetivo e de outros eixos e pilares que não só moradia para se sustentar no mundo.
P/1 - Cláudia, você vai falando assim eu fico imaginando tudo isso acontecendo e como é que vocês vão percebendo? Estudando, observando, mas como que isso vem para o instituto para vocês, como vocês discutem? Como é que é essa dinâmica, para você resumir? Para virar ideia, virar bandeira.
R - Eu acho que primeiro as reuniões de coordenação são espaços muito importantes onde vamos trazendo as questões, então somos alimentados pela prática cotidiana, pelo que está acontecendo nos abrigos. Para ir discutindo quais são os problemas que enxergamos e as oportunidades de atuação e de transformação.
Quantas pessoas existem hoje aqui no país que estão trabalhando com serviços de acolhimento há 20 anos, 25 anos ou há 15 anos que nem o instituto? Nós temos uma experiência acumulada, já sabemos do que estamos falando, não que a gente não tenha muito a aprender, mas isso nos dá também uma responsabilidade de pensar em oportunidades de atuação diferentes. Não é mais assim, às vezes, só no pequeno por isso entra no núcleo de incidência política. Ao mesmo tempo em que vamos fazendo nossos projetos lindos e maravilhosos, empacotando e crescendo, também temos uma visão macro de o que é o acolhimento no país, para onde estamos indo na nossa cidade, o trabalho e a contribuição com essa política pública. Não só de o nosso programa virar uma política pública, mas de ajudar a política nacional a se pensar. A minha passagem pelo conselho nacional dos direitos da criança e adolescente pelo governo federal é fundamental porque ela nos dá esse panorama e eu posso voltar para o instituto alimentada disso. Então nós temos uma agenda no panorama nacional, temos uma agenda no município.
P/1 - Essa agenda no panorama nacional veio com a sua permanência há um tempo no governo e no ministério?
R - Eu acho que ela veio com mais força sim, mas ela vem das ameaças que estamos vivendo. Estamos em um momento de retrocessos, sobretudo legislativos. É boa a gente não se enganar porque, às vezes, vira tudo o executivo. É muito fácil ter um bode expiatório e todo mundo atacar um bode expiatório. Nós vivemos um processo generalizado de retrocessos no âmbito municipal, federal, legislativo. Eu tenho a felicidade de enxergar hoje o judiciário como algo que não está em retrocessos, pelo contrário, acho que o judiciário é um dos três poderes que eu mais vejo avançando, compreendendo melhor, valorizando, ampliando seu olhar. Não tem mais aquela visão autoritária de querer tomar decisões sem escutar ninguém, não é isso que a gente vem enxergando, pelo contrário, temos diálogos lindos com o judiciário. Agora o legislativo e o executivo, nós enfrentamos uma batalha por dia em termos de retrocessos de direitos mesmo, de lei. Isso está colocado no panorama e a minha passagem por lá nos traz uma potência entre relacionamentos, possibilidades e estratégias de incidências, porque tenho um conhecimento maior agora por ter aprendido um pouco, muito pouquinho. No advocacy, na incidência política ainda somos bebê, nossa instituição é bebê.
P/1 - Conta um pouco o que aconteceu depois de 2012 com você e onde você está agora, porque você viajou e foi para fora do país.
R - Acho que 2012 foi o ano que respira muito, trabalha muito, consegue dinheiro, pede para todo mundo e mais um pouco, organiza, muito cansativo. E em 2013, sobrevivemos, mas eu começo o ano tomando umas cacetadas na minha vida pessoal porque eu sofri um assalto muito violento na minha casa e ao mesmo tempo uma perda familiar do irmão do meu marido, que era uma pessoa muito próxima a nós. Então começo o ano de 2013 muito balançada em todas as minhas bases e muito amedrontada de perder a esperança na humanidade, nas possibilidades. Eu fiquei muito triste em viver a situação de violência, não tive raiva ou medo de ser assaltada de novo, nada disso, uma tristeza profunda e falar, poxa, será que a gente consegue? Será que viramos esse jogo? Porque eu sempre me senti tão protegida pela minha própria energia, não achando que sou nenhuma mulher maravilha, mas sempre me senti tão rodeada de amor e colocando tanto amor no mundo, foi um contrapé chegar a uma experiência de tanta violência. Um contrapé que balançou mesmo minhas bases de pensar o que estou fazendo nesse mundo, como é que vou atuar, será que eu não tenho que cuidar de mim mesma, quais são minhas possibilidades, assim, uma descrença. Eu não sou super religiosa, fiz minha primeira comunhão, tenho minha fé em Deus sim. Deus para mim é uma certeza, não exatamente a forma, não existe a concepção no mundo sem Deus para mim e eu fiquei pensando, e agora? Foi um momento de pedido de ajuda mesmo. 2013 foi um ano de crise pessoal muito grande, de pedido de ajuda para não me deixar perder a esperança. Rouba tudo, mas não me rouba isso. Porque me roubou um pouco, saí muito desmotivada achando que não conseguiríamos virar. E aí quando fui morar fora em 2015, porque meus filhos também estavam muito impactados, realmente vivemos uma experiência muito traumática com muita força e intensidade, muito violenta. E quando ficamos um ano fora, acho que curamos, foi um momento de poder estar no mundo vendo um outro jeito das pessoas se relacionarem muito mais amoroso e de nos cuidarmos muito, de eu cuidar dos meus filhos e eles de mim e uns dos outros. Nós fizemos um novo ciclo de amor ali que no final de um ano - iríamos ficar dois e tínhamos visto para quatro, estávamos na dúvida - mas no final de um ano eu já disse, “E aí, vamos fazer o que viemos fazer?”. Vivendo na Califórnia, conheci políticas públicas de lá, visitei as famílias acolhedoras, as políticas para os adolescentes, mas era uma experiência muito mais no âmbito pessoal e de busca de cura mesmo do espírito e da alma do que de qualquer outra coisa. E logo no final do primeiro ano ainda estava amando, super feliz, adorando morar lá, mas não era aqui, para mim estava muito claro que eu precisava voltar e que era onde eu tinha que fazer o meu trabalho. E quando veio um convite para atuar no coração do país, em um momento de uma crise tão gigantesca, para atuar à frente da secretaria nacional dos direitos da criança e do adolescente eu falei: “Gente, eu nem queria voltar exatamente naquele momento”, mas foi tão óbvio que era o caminho a se seguir. E era muito difícil, porque você sair da montanha da Califórnia pedalando com seus filhos no momento de êxtase familiar, para deixar meus filhos em São Paulo e trabalhar em Brasília toda semana, ir e voltar em um momento político de filme de terror, mas as crianças continuam aí. Eu acho que foi muito legal. Nossa, deve ter sido horrível, super difícil e a crise política e o lugar que você se coloca no mundo, enfim, muito difícil. Mas foi maravilhoso eu poder estar lá, no sentido de potência, de falar eu tenho muito a fazer aqui e vou fazer, e todas as vezes que me surgiu oportunidade de fazer eu não meço esforços e vê o tanto que eu tinha vivo dentro de mim, isso de não medir esforços porque foi muito esforço. Em nenhum segundo eu me arrependi de pensar: “Poxa, que trampo”. Nesse sentido de acordar 4:30 da manhã, pegar um voo, ir para Brasília, deixar filho aqui, fazer uma mudança de casa, abandonar. Saí com uma mochila da Califórnia e fui para Brasília. Então foi quase um carimbo de você tem força mesmo, é isso que você gosta de fazer e é isso que você acredita. Isso me deu uma tranquilidade quanto à minha própria força e desejo de trabalhar, transformar e de contribuir. E vamos descobrindo os caminhos.
P/1 - E você voltou com a família para São Paulo e toda semana passava a semana lá e a família aqui.
R - A família aqui em São Paulo. Foi super difícil, foi um ano bem difícil para minha família, principalmente, para meu filho menor. Meu marido ajudou muito, ficou muito presente, estava lá. Mesmo quando eu estava em casa, é um volume de trabalho gigantesco então eu não conseguia. E com o instituto também foi importante. Porque foi o primeiro momento que eu cortei de fato. Hoje eu voltei, ainda bem, mas eu tive um ano em que falei não me ligue mais, não me pergunte opinião, eu não consigo apoiar o instituto nesse momento.
P/1 - Foi 2014? Em 2014 você ainda ficou lá?
R - Não, em 2015 eu fui, 2016 eu vim e fiquei 2016 a 2017. Fiquei um ano em Brasília.
P/1 - Mas um ano fora também que você não tinha mais o contato com o instituto?
R - Tinha. Quando estava na Califórnia, o instituto estava bem sob o meu guarda-chuva ainda. Claro, a Bel estava à frente e com todo o mérito. Acho que foi super importante esse processo de transição, mas eu falava com ela todos os dias e por muito tempo, e ela chorava muito e era muito difícil. As decisões eram muito compartilhadas, mas acho que ela foi crescendo. Você consegue, você pode. Realmente ela é muito boa, foi trazendo a marca dela, me contrapondo em alguns momentos e eu tendo que administrar isso também, não vai ser do meu jeito e tudo bem, então foi muito interessante. Acho que coroa com essa minha saída, vou para lá e volto com uma outra experiência e em um outro lugar que não é mais um lugar de gestão, é um lugar de contribuição.
P/1 - E quando você volta para o instituto é que se cria essa ação?
R - Sim, exatamente.
P/1 - Conta o que é.
R - É um núcleo de incidência política. Fomos vendo muitas leis sendo aprovadas sem uma reflexão maior, sem audiências públicas, debate, contribuição, então tem uma agenda legislativa. Temos mais de 3000 projetos de leis circulando no congresso, muitos deles representando retrocessos e muitas vezes são aprovados por falta de conhecimento dos deputados.
P/1 - O que você faz? Você, representando o instituto? Você foi nos contando com muita clareza e emoção qual é a do instituto, como foi funcionando, atuando. E agora?
R - Eu acho que agora temos na agenda legislativa o compromisso de trazer outra narrativa para a questão da criança e adolescente que estão separados das suas famílias. Tem uma narrativa social pública que é, a solução é a adoção? Tem que ser tudo muito rápido. E que é uma narrativa incorreta. Para qualquer técnico e para qualquer pessoa que trabalha na ponta, sabe que essa narrativa não corresponde à realidade ou do que essa criança precisa mesmo. Então como é que tornamos pública a narrativa técnica? Esse é o pano de fundo da área de incidência política do advocacy no âmbito do legislativo. Tem esse eixo que são posicionamentos públicos, notas técnicas, audiências públicas, criando espaços para se falar sobre esse assunto que muitas vezes ninguém estava olhando. Não existiam organizações de incidência política no âmbito da convivência familiar e comunitária. Esse assunto não está pautado. Então grupos super potentes, técnicos bons como a rede nacional da primeira infância, movimento de proteção integral, movimento nacional de convivência comunitária está falando pouco disso.
P/1 - E você consegue juntar agora esse pessoal?
R - Eu consigo pautar, consigo chegar e mandar um WhatsApp no grupo e falar: mas ninguém vai falar nada sobre isso? Claro que não é desse jeito, mas falando: “Olha, acho que tem um assunto importante para olharmos”. Então tem um aspecto da minha atuação que é a provocação de tanta gente potente boa, técnica, especialista que não estava se colocando no mundo da forma mais adequada ou mais estratégica. Só que quem dorme e acorda pensando em qual estratégia para você se colocar no mundo? Eu, eu durmo e acordo pensando nisso. Como damos voz para isso, como damos mais visibilidade para isso, como falamos daquilo. Essa é uma questão. Essa narrativa, essa outra versão que precisa circular e posicionamentos técnicos mais qualificados mesmo sobre projetos de lei. O artigo 37 do Estatuto da Criança e do Adolescente está assim e eles estão propondo assim, qual a alternativa que podemos propor? Nós, o instituto, ou nós esses grupos maiores que aglomeram diversas organizações e, portanto, tem uma representatividade. O instituto não tem uma preocupação tão grande de ficar nota pública dele o tempo todo e muito mais desses movimentos irem trazendo, inclusive, porque as notas desses movimentos são mais qualificadas do que as nossas, porque elas aglomeram conhecimento de outras pessoas, gente que já trabalha há muito tempo com essa linguagem. Estamos descobrindo como potencializamos a nossa estratégia.
P/1 – Inclusive, eu queria entender se é assim. Vocês estão mobilizando, o instituto está mobilizando grupos, está potencializando como você falou, estou falando assim, mas vou perguntar de outro jeito. O que o instituto está acrescentando e está trazendo de novo com essa atuação?
R - Eu acho que é isso: mobilizando, é provocando. Mesmo que em alguns momentos a gente se arrisque um pouco e receba algumas críticas. Porque quando você faz o trabalho de incidência política de advocacy, você se coloca no mundo com um posicionamento que nem todas as pessoas não vão pensar iguais a você. Então tem um risco. Ainda mais para nós que somos bebês em termos de advocacy. Institucionais não, mas somos criança pequena no advocacy, estamos aprendendo estratégia, estamos ouvindo muito os mais experientes, bebendo da fonte e buscando aprender. Em alguns momentos, nos arriscamos e vamos. Já tivemos que responder algumas coisas, umas saias justas mais difíceis e assumir que erramos ou que o jeito que atuamos não foi o melhor. Isso tudo faz parte do processo. Agora, só vamos aprender fazendo.
P/1 - Essas organizações que vocês têm mobilizado, elas têm também esse tipo de ação?
R - Se eu te disser que há um ano e meio não tinha nenhuma e que a rede nacional da primeira infância não tinha convivência familiar e comunitária como tema de atenção. O movimento de proteção integral não existia enquanto grupo e o movimento nacional de convivência familiar e comunitária não tinha nenhuma ação de incidência. Eu acho que estamos contribuindo muito, que esses grupos hoje já tem uma identidade de incidência política e eu não gosto de falar isso porque acho que esses movimentos são compostos por muitas pessoas, mas nós vemos um valor importantíssimo no que estamos fazendo. Que é um trabalho mais de bastidor, de provocação, de trazer à pauta, trazer informação, compartilhar o que está acontecendo nesse grupo. Estamos em todos, então se eu compartilho o que está sendo discutido aqui com esse, esse e esse que irão pensar também. São experiências que estamos vivendo nesse âmbito mais amplo e que vai amadurecendo uma narrativa, construindo e fortalecendo uma narrativa de todos nós. Às vezes, criam brigas políticas ou dificuldades, mas acho que o grosso mesmo é irmos ganhando nessa narrativa e tendo mais consistência no que estamos colocando no mundo. Isso no âmbito do legislativo e do governo federal. Temos também o âmbito municipal, no território nossas metas específicas como a Família Acolhedora que estamos participando dos conselhos, trazendo argumentos técnicos explicando por A + B porque é importante ter Família Acolhedora em São Paulo e não só por A + B, mas por A + B e nossa atitude. E realizando e mostrando que é possível. Então no âmbito do município, no advocacy também tem uma agenda muito clara de implementação de Família Acolhedora como política pública, é isso que nós queremos. Estamos fazendo e descobrindo caminhos para que isso seja implementado. Agora, por exemplo, estamos participando da construção do plano municipal da primeira infância. Se a gente diz no plano municipal da primeira infância queremos que todas as crianças de zero a seis sejam acolhidas em acolhimento familiar, estamos estipulando uma meta para o município que o instituto está incidindo diretamente para que no médio prazo as crianças pequenas não irão para um abrigo mas sim para uma família acolhedora. Claro, sempre que possível, há perfis que tem grupos de irmãos que não queremos que separe, ponderadas todas as questões técnicas que devem ser ponderadas.
P/1 - Só mais uma pergunta, já estamos indo embora.
P/2 - Na verdade, eu queria agora, enfim, passar do meu papel de saber um pouco mais da vida da Cal, uma vez ela me falou uma frase que ficou marcada e pode complementar. Estávamos em uma reunião e ela falou que o nosso mundo ideal seria que um dia não precisássemos mais trabalhar sabendo que todas as crianças estão com suas famílias, no respaldo afetivo necessário e tudo bem fecharmos o instituto, o dever está cumprido. Enquanto isso não for atingido vamos estar aqui, vamos trabalhar. Isso ficou muito marcado, foi bem no começo. É a tua marca?
R - Eu acho. Vi, isso que você traz vai dizendo quanto que para nós, quanto mais pudermos atuar na prevenção em projetos anteriores. Estamos na ponta da vulnerabilidade, precisamos ir chegando antes, ir trabalhando antes de precisar ter chegado lá, idealmente. Hoje trabalhamos no auge da vulnerabilidade. Um segundo ponto seria na prevenção e quem sabe.
P/1 - Mas para trabalhar na prevenção é preciso ter ideias.
R -
P/1 - Mas pode ser uma meta mais para frente, trabalhar com as famílias.
R - Exato.
P/1 - Acho que só faltou você dizer como surgiu a ideia de trabalhar com incidência política ou já era uma coisa que vocês tinham pensado e aí você volta?
R -
Estamos com muitas conquistas, estamos muito felizes. Quando fazemos o relatório de cada mês e olha tudo que fizemos, falamos: “Poxa, que bacana”. Agora, estamos errando também, estamos construindo um terreno aí. Era muito mais fácil ser a Cláudia do Fazendo Minha História do que ser eu hoje em um grupo de incidência política com um monte de críticas. Nem todo mundo tem a mesma visão. Quando eu era gestora do Fazendo Minha História, era um lugar muito protegido. Quem não ama o Fazendo Minha História? Difícil mesmo é amar a incidência política que, às vezes, vai divergir, que acha que apadrinhamento afetivo quem é pai adotivo pode também não pode, enfim, tem divergências. E colocamos essas divergências no mundo e vai defender e ter posicionamentos, levantar bandeiras. É mais difícil e mais poderoso e acho que o resultado é maior. Só para finalizar, eu volto, e acho que por isso estou muito motivada, eu volto ao momento de experiência, de desafio, de erro e acerto, de precisar rever postura. Eu já não estava mais nesse lugar como gestora, estava, mais ou menos, ali assentado. Agora estou em um lugar que acho que estou me atirando de novo, tomando pedrada, voltando e tendo que entender. Preciso chamar a Lurdinha para supervisão de novo também.
P/1 - Seria bom. Você quer falar alguma coisa, porque nós vamos terminar. Eu faria mais duas horas, porque para cada resposta sua queremos saber mais e mais. Mas você quer falar alguma coisa que não perguntamos? Que você acha importante registrar hoje?
R - Não. Você tem alguma coisa que você acha que devo contar?
P/1 - Uma curiosidade, por que o seu apelido é Cal, quem colocou esse apelido em você?
R - Eu que coloquei. Você sabe que tenho virado Cláudia de novo, não é? Nos grupos de incidência política ninguém me chama de Cal mais. Teve um momento que eu resolvi que iria mudar. Eu era Cláudia criança, depois fiquei um tempo sendo Claudinha que era meio adolescente. Nunca gostei de Claudinha e, por volta dos vinte e poucos anos, decidi que queria ser a Cal, que era uma outra pessoa. Então falei, eu que pus, criei meu e-mail, nome, comecei a me apresentar para as pessoas assim.
P/1 - Que época foi essa?
R - Vinte e poucos anos.
P/1 -Mas o que acontecia nessa época?
R - Eu acho que era o momento de me colocar no mundo como um ser adulto, diferente do ser que eu vim, era um outro ser mesmo. Foi um apelido que eu me dei. Não que eu o ame também, mas me dei e virei em algumas instituições, na Outward Bound que foi um lugar que trabalhei, na Adventure Camp, no Fazendo História sou a Cal. E hoje, começo a retomar um lugar de Cláudia, me apresento como Cláudia Vidigal, acho que vou me apresentando novamente nos espaços como Cláudia. Mesmo no instituto quando chego hoje em uma reunião, eu me apresento como Cláudia. É um novo ciclo começando.
P/1 - Cláudia ou Cal, você nos contando e construindo sua história agora, você nesse momento faz alguma relação com aquela cena da sua avó no alto escada, você ali naquele contexto, hoje você faz alguma relação ou não? De sentimento, não precisa construir, entendeu?
R - Acho que aquela cena me acompanha todos os dias. Só que não do alto da escada, na verdade descendo a escada. Acho que desci a escada, mas eu vejo aquela cena todos os dias.
P/1 - Quem estava na escada com a imagem, era sua avó?
R - Isso. E na cena lá, a criança estaria no lado meio com vergonha e eu acho que não tenho mais vergonha nenhuma desse lugar de atuação, de potência e poder descobrir potência também. Mas acho que não do alto da escada, mas baixando e estando junto mesmo, podendo escutar e sabendo das minhas vulnerabilidades também. Porque acho que o que me ajudou muito no percurso todo é eu poder ir olhando o tempo inteiro para minhas potências e vulnerabilidades e, assim, enxergando no outro também. É sempre esse jogo. Agora estou fazendo meu mestrado, é esse jogo dialético que é o que compõe a nossa vida. É uma eterna dialética entre potência e vulnerabilidade. O problema é quando estacionamos em uma delas, ou na potência ou na vulnerabilidade, congelamos uma delas. Essa dialética é o que tem que compor o humano que compõe as relações que o instituto estabelece com o mundo e comigo também, meus outros significativos.
P/1 - Como foi para você contar a sua história? O que você achou disso?
R -
Eu fico assustada como isso vem da primeira forma que me veio lá com os seis aninhos de idade, que vai começando, continuando e chega igual, que me dá vontade de chorar toda vez, de pensar nisso. Eu acho que esse foi meu grande medo, perder isso que era achar, bom, uma descrença que não deixa eu cuidar de mim e do meu mundo. N
P/1 - Contando a sua história mais um pouco.
R - Exato.
P/1 - Nós também nos emocionamos te ouvindo, eu pelo menos. Quer falar mais alguma coisa?
R - Não, eu acho que é isso. Eu queria agradecer, é uma honra poder estar aqui com o museu e estar aqui com vocês. Obrigada Vi também por tocar esse projeto, super gostoso de contar para você também aqui, que é quem representa a comunicação do instituto e quem representa como a gente se coloca no mundo. Para mim, é uma honra contar para você especificamente. Aliás, porque temos outros encontros, nós não falamos, mas a Vi e a família dela se encontra com a minha família em outros espaços desses, Adventure Camp e outros lugares.
P/1 - Foi um privilégio para mim. Eu estava em uma expectativa e queria muito ouvir tudo isso mesmo. Que potência que é a tua trajetória, desde aquela menina que brincava na casa.
P/2 - Eu acho que as pessoas têm luzes, todo mundo tem uma luz, um propósito, mas a Cal não podemos negar, é muito especial.
R - Obrigada, muito gostoso. Estou fazendo no meu mestrado um núcleo com a Martinelli, não sei se você conhece a Maria Lúcia Martinelli e ela é especialista em história oral. Então estamos estudando muito essa coisa das histórias, de como coletar e ouvir. Está sendo muito gostoso participar do lado de cá.
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