Programa Conte Sua História
Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Paula Francinete Rubens de Menezes
Entrevistada por Sofia Tapajós
Petrolândia, 11/06/2025.
Entrevista n.º: PCSH_HV1457
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 - Bom, Paula, obrigada por estar com a gente, pela disponibilidade. Queria começar perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
00:00:31 R - Eu sou Paula Francinete Rubens de Menezes, nasci em Petrolândia em 9 de julho de 1959.
00:00:40 P/1 - Qual o nome dos seus pais?
00:00:43 R - Meu pai é Francisco de Assis... Eita! Francisco de Assis é o marido. Francisco... É muito Francisco na família. É Francisco Gomes de Menezes e minha mãe, Austriberta Freire de Menezes.
00:00:57 P/1 - E de onde eles são?
00:00:59 R - Eles são da Bahia, do município de Glória, na Bahia. Na verdade, eles eram da área rural do município de Glória. Família de agricultores.
00:01:10 P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
00:01:13 R - Ah, é muito interessante, porque o meu pai, quando casou com a minha mãe, ele tinha 56 anos e ela 27. Então, ele viu ela nascer e era amigo da família. Aí, com o passar do tempo, convivia lá e a família resolveu ir embora pra São Paulo. Precisou, não resolveu, precisou ir embora para São Paulo. E minha mãe não gostaria de ir, não queria ir. E nessa época já fazia um curso de corte e costura na cidade. E meu pai era muito amigo do casal que eram os professores desse curso de corte. Então ele deu uma de cupido, juntou os dois. Ele era um violonista, tocava seresteiro, não queria nada com casamento por esses 56 anos. Mas aí ela foi... Quando ele soube que ela ia embora, ele teve que decidir, ou vai ou racha. Chamou, ela topou, casaram, a família toda foi e ela ficou. Eles vieram para a Petrolândia porque a família dele foi um dos primeiros colonos do Núcleo Colonial de São Francisco, que era um projeto Federal que convidou muitos agricultores a fazerem parte desse...
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Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Paula Francinete Rubens de Menezes
Entrevistada por Sofia Tapajós
Petrolândia, 11/06/2025.
Entrevista n.º: PCSH_HV1457
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 - Bom, Paula, obrigada por estar com a gente, pela disponibilidade. Queria começar perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
00:00:31 R - Eu sou Paula Francinete Rubens de Menezes, nasci em Petrolândia em 9 de julho de 1959.
00:00:40 P/1 - Qual o nome dos seus pais?
00:00:43 R - Meu pai é Francisco de Assis... Eita! Francisco de Assis é o marido. Francisco... É muito Francisco na família. É Francisco Gomes de Menezes e minha mãe, Austriberta Freire de Menezes.
00:00:57 P/1 - E de onde eles são?
00:00:59 R - Eles são da Bahia, do município de Glória, na Bahia. Na verdade, eles eram da área rural do município de Glória. Família de agricultores.
00:01:10 P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
00:01:13 R - Ah, é muito interessante, porque o meu pai, quando casou com a minha mãe, ele tinha 56 anos e ela 27. Então, ele viu ela nascer e era amigo da família. Aí, com o passar do tempo, convivia lá e a família resolveu ir embora pra São Paulo. Precisou, não resolveu, precisou ir embora para São Paulo. E minha mãe não gostaria de ir, não queria ir. E nessa época já fazia um curso de corte e costura na cidade. E meu pai era muito amigo do casal que eram os professores desse curso de corte. Então ele deu uma de cupido, juntou os dois. Ele era um violonista, tocava seresteiro, não queria nada com casamento por esses 56 anos. Mas aí ela foi... Quando ele soube que ela ia embora, ele teve que decidir, ou vai ou racha. Chamou, ela topou, casaram, a família toda foi e ela ficou. Eles vieram para a Petrolândia porque a família dele foi um dos primeiros colonos do Núcleo Colonial de São Francisco, que era um projeto Federal que convidou muitos agricultores a fazerem parte desse projeto de irrigação, era a primeira experiência. Então, a família do meu pai e os irmãos vieram para esse núcleo. Então, quando ele casou com a minha mãe, já não tinha mais como entrar no projeto, porque já tinham completado. Ele comprou um terreno do outro lado, na Bahia, ficava em frente ao projeto, mas do lado baiano, e uma casa em Petrolândia. E nessa casa foi onde eu nasci.
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E como era essa casa?
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Ah, eu tenho memórias ótimas dela, porque ela era bem diferente das casas da cidade normal, porque ela foi feita para um médico deste núcleo colonial. Ele trabalhava no núcleo, que era na área rural, e morava na cidade. Então, essa casa era solta. As casas do sertão, das cidades coloniais, eram todas pegadas, são casas conjugadas, e essa era solta. Era solta, tinha uma varandinha, um terraço, que também não era comum na época. A gente tinha uma sala de rádio. Hoje, no lugar de ter uma sala de TV, a gente tinha uma sala de rádio. Você entrava no terraço, tinha ao lado esquerdo uma sala de rádio, e ao lado direito, a sala de estar. Depois, um corredor infinito com os quartos, uma sala de jantar e a cozinha. E, detalhe, os banheiros não ficavam dentro de casa. Eles ficavam no fundo do quintal, que era uma ladeira. Você descia uma escada e subia outra pra ir pro banheiro. Veja que coisa! Mas tinha uma maravilha, que é a grande memória minha de casa. Duas coisas que eram maravilhosas, diferentes de todas as outras. Tinha um piso de ladrilho decorado. Por quê? Porque no núcleo se fabricavam esses ladrilhos. A igreja que hoje está submersa tinha esse ladrilho. Então a minha casa tinha esse luxo, diferente das outras. E os fundos da casa davam para o rio. Dava para o chamado Porto da Rua. Ele se chamava Porto da Rua porque era o local onde as canoas que vinham do lado baiano para a cidade, aportavam ali para ir diretamente para o centro, ali da cidade. Tinha um outro porto que ficava mais próximo do comércio. Quando se vinha para a feira, ia direto para esse outro porto. Mas do muro do meu quintal, eu debruçava e ficava vendo esse movimento das canoas chegando e tal no meu quintal. Outra coisa, era localizada numa esquina onde passava o trilho do trem, na lateral da minha casa, Então, quando meu pai negociava com cebola, ele plantava lá do lado baiano, trazia a cebola por canoa, aqui embarcava no trem pra Penedo, em Alagoas, pra de lá ir pro mar, né? Pro porto. Então, meu pai ia entregar essa cebola lá no trem, voltava de trem, e a gente ficava naquela espera. Quando o trem apitava, corria a gente pra esquina de lá de casa pra ver o trem chegar. Então, é uma lembrança privilegiada, porque tudo que acontecia na cidade passava pela minha casa. Do outro lado, tinha o cinema. Então, eu tenho até hoje uma paixão pelo cinema. Adoro ir ao cinema. Para mim, assistir filme em casa não é a mesma coisa. Gosto de ir para o cinema, porque tinha um cinema quase na frente da minha casa, e uma praça. Então, ficava o trem, a praça e o cinema. Vê? O que é que eu queria mais? Na frente desse cinema tinha um poste com uma difusora, que era a grande rádio local, onde anunciavam os filmes, o que ia passar, a programação de cinema. E aí, às seis horas, tinha a Ave Maria. Depois da Ave Maria, tinha uma historinha infantil. Eles se colocavam para tocar. Todo dia era a mesma história dos três porquinhos lá derrubando as casinhas. E eu e a turma inteira, as crianças da cidade inteira, quando ouvia a Ave Maria, já começava a juntar embaixo do poste, todo mundo sentado no chão para escutar as historinhas. Ninguém acompanhava, não tinha esse negócio de mãe de olho. A gente andava sozinho na cidade. Eu gosto de literatura até hoje, acho que agradeço à difusora do Cine São Francisco, que fez isso comigo.
00:07:11 P/1 - Você comentou desse rio, essa vista. Você pode descrever mais como era essa vista?
00:07:18 R - Então, nesse porto da rua, ele tinha um bastil, uma coisa de terra, barro puro, não era areinha, era barro. Era uma ladeira assim e tinha de um lado coleta de água, que hoje seria o tratamento de água. O local, a estação de tratamento de água. Mas tinha uma pedra enorme, uma laje de pedra enorme que ficava perto desse tratamento de água. O rio era fundo, fundo, muito fundo nesse local. Não era um local próprio para banho. Mas as mulheres da cidade lavavam roupa lá. Porque a pedra era interessante, elas estendiam a roupa lá e secavam. Então, ensaboa, a técnica é essa para branquear a roupa: esfrega, ensaboa e coloca no sol. Então, aquela pedra esquentando. E o sol também ali em cinco minutos estava pronto para lavar a roupa, aprontar. Então, eu tenho muito essa lembrança das roupas estendidas nessa pedra e das canoas chegando ali do lado. Quem se atrevia a tomar banho lá eram os rapazes que sabiam nadar, e eu via muito eles atravessando o rio. Em frente a esse local, muito próximo dele, tinha uma ilhota. Então, o desafio era chegar até a ilhota nadando, num rio forte, com correnteza forte. Esse rio também, por conta da profundidade das pedras, fazia aqueles redemoinhos dentro da água. Então era o sinal de que era correnteza mesmo. Você tinha que ter braço pra enfrentar. Mas era assim, esse rio era tão corrente que, antigamente, os mais velhos contam que se jogava a madeireira, as madeireiras. Quem trabalhava com madeira em Petrolândia e encomendava em Juazeiro madeira, ele jogava as toras de madeira no rio e ele colhia aqui. Para você ter ideia de como chegava. Então, eu digo muito que o que eu mais sinto saudade é do rio vivo. Porque esse rio que a gente tem hoje é um imenso lago parado. Quer dizer, não é totalmente parado, mas a água se move muito menos porque é um reservatório, né? Que enche e seca à medida que se entende que deve secar. Não é mais naturalmente correndo. Era lamacento, mas era bonito, porque tinha essa imagem das pedras, do rio e das canoas. Um cenário bem bonito de ver. Ficar no muro ali olhando era uma diversão. Se você estava chateado, você ia para lá olhar. Você estava feliz, queria tomar banho, mas a mãe não deixava.
00:10:26 P/1 - Paula, você tem irmãos?
00:10:28 R - Tenho dois irmãos, mais velhos que eu. Sou a mais nova. Tenho um irmão mais velho que, quando meu pai casou, já tinha ele. Ele foi criado por umas tias nossas que moravam nesse núcleo vizinho da gente. Morava aqui próximo. E aí, quando ele completou a idade de escola do ginásio, que era o primeiro grau maior na época, aí ele veio morar com a gente. Então, eu fui aprendendo a ter irmão a partir daí. E era assim, uma figura meio que o protetor da irmã mais nova, que já era quase adulto, ele tem dez anos de diferença. Quando eu tinha oito, ele tinha dezoito. Era bem o adulto da casa. E o meu outro irmão, que é de pai e mãe mesmo, e esse é dois anos mais velho do que eu. Então, era o parceiro de todas as coisas mesmo. Convivemos mais perto. Eu morava numa rua que era de muito adulto. Tinha pouca criança. Então, a gente tinha que brincar muito entre si. Dentro de casa mesmo e tal. Na rua, muito pouco.Aí é aquela história, os meninos tinham mais liberdade. Esses se largavam, as meninas ficavam mais restritas a brincadeiras mais perto de casa.
00:11:49 P/1 - E o que vocês brincavam, você e seu irmão?
00:11:53 R - Então, eu tinha uma menina na rua que, na verdade, tinha uma criança na rua da minha faixa etária. Os outros eram todos colegas do meu irmão mais velho. Então, eu frequentava muito a casa desse pessoal, que eram uns oito filhos, era muita gente. Então tinha sempre alguém próximo da minha idade lá. E eles eram muito estudiosos, muito inteligentes, são até hoje. E era uma diversão brincar de charada, de matar charada, e fazer coisas de matemática. Era um negócio... Primeira qualidade mesmo. E aí chegou essa menina pra morar na rua, que era mesmo da minha idade e era uma menina, porque nessa casa era só uma mulher e o resto tudo homem. E a mulher era da idade do meu irmão mais velho. Até hoje é minha amiga e era com quem eu ia pro cinema, pras coisas da rua, porque a mãe confiava porque era mais velha. Mas aí chegou essa criança lá. E lá, a brincadeira maior naquela época era fazer casinha, brincar de casinha, mas era “à vera”. A gente cozinhava de verdade, em fogo e tudo, porque a mãe comprava umas panelinhas de barro e dava as dicas pra gente cozinhar. Fazia o fogo no quintal e montava toda a casinha. Meu Deus, hoje ninguém permitiria uma coisa dessas. As crianças brincando com fogo mesmo. A brincadeira melhor que tinha lá era essa, de rua. Eu nunca fui de esporte, de jogar, essa coisa. As meninas rodavam bambolê. Eu ficava morrendo de inveja, mas nunca levei jeito para aquilo. Mas a casinha é bem presente.
00:13:50 P/1 - E sobre a escola, Paula? Que lembranças você tem da escola?
00:13:55 R - Olha, minha primeira escola ficava bem no centro da cidade, era a única escola pública, na verdade, de Petrolândia. Eu acho que fui a última turma dessa escola, antes dela fechar e se tornar um grupo escolar mesmo. Ela funcionava multi-seriada, mas eu fiz o jardim da infância lá. E ela tinha uma peculiaridade interessante, porque o quintal dela dava para o clube. Então, a parte externa do clube era onde a gente fazia o recreio. Então, tinha quadra, tinha um verde, um gramado verde, a gente fazia piquenique lá e tal. E dentro da escola era um mesão grande, onde as crianças ficavam todas juntas. Brincava, estudava. A minha professora era bem jovenzinha e eu adoro ela até hoje. Ela tem o maior carinho comigo e eu com ela, porque ela começava ali também. Então, ela tem muita memória também dessa época, porque era a primeira experiência dela como professora. E ela era de uma ternura, sabe? Que me fez bem para o resto da vida, porque eu entendi sempre a escola como um negócio acolhedor, um lugar acolhedor. Lembro de minha mãe fazendo costura. Minha mãe costurava, então ela... Ela fazia uns bornal, que é uma bolsa de pano, né? Não tinha lancheira. Ela colocava o lanche ali pra levar pra lá. Então, era uma farra fazer o lanche junto com todo mundo, né? No quintal lá do clube. Armava o guardanapo no chão e fazia lá. Foi uma experiência boa. Depois, eu mudei para o primeiro ano, aí eu já peguei uma professora, uma outra professora, que acompanhava a gente até o ginásio, até a quarta série primária, a mesma professora. Que também era uma maravilha, porque ela virava meio mãe. Sabia da vida da gente, conhecia a família, tinha toda a intimidade de saber como lidar com a gente. E ela alimentava uma disputa bem interessante, que as três melhores notas do boletim eram premiadas. Ela trazia presente para a gente, para alimentar essa disputa de quem queria ser o primeiro lugar. E aí, essa escola onde eu fui chamava Escola Delmiro Gouveia, e foi a primeira escola de primário lá. Mas durou pouco, foi um ano só. Depois eu fui para uma escola nova, porque essa minha professora mudou e dividiram as turmas. A minha foi para essa escola nova, que era do projeto Aliança para o Progresso, do governo americano. Escolheu-se algumas escolas, à época, aquela coisa de combater o perigo do comunismo na América Latina. Investiram aqui na Aliança para o Progresso e Petrolândia foi uma das contempladas com uma escola. Então, a escola era novinha, moderna, porque a outra era num prédio antigo, então a gente foi pra uma escola com janelas enormes, bem ventiladas, claras. Minha lembrança de uma biblioteca fantástica, de livrinhos cheirando a novo e tudo muito iluminado. Então, eu estava começando a aprender a ler e essa minha professora, eu fui rápida consegui ler muito cedo, ela me levava para a sala dos professores com o livro na mão e me pedia para eu ler na frente dos outros, para ela mostrar que o trabalho dela estava sendo bom. Que ela estava conseguindo me fazer ler tão cedo. Outra coisa interessante dessa escola era que os americanos forneciam leite e chocolate. Então, o nosso lanche era só chocolate quente nesse inverno do sertão. Mas o cheiro daquele chocolate ainda está em mim. Leite com chocolate americano. E aí o povo espalhava assim “Olha, os americanos estão mandando isso para matar todas as crianças da América Latina, exterminar todo mundo”. E a gente queria lá saber? A gente queria tomar o leite, que estava muito gostoso. Então, essa professora me seguiu até a quarta série e me orientou também. Eu fiz parte da última turma que fez a admissão ao ginásio, que era uma espécie de vestibular para você entrar no ginásio. Como não tinha vaga suficiente para todo mundo, eles faziam você passar por uma seleção. Então, o conteúdo que você estudou no primário inteiro ia ser colocado à prova ali numa argüição oral. A criatura com 10 anos se submetia a uma banca para fazerem perguntas sobre todo o conteúdo e uma prova escrita de português e matemática para selecionar 50 alunos, que era o que comportava na turma. Então, a gente fazia um cursinho para entrar nisso aí. Essa minha turma foi a última. Depois disso, entrou a questão da escola ser para todos de fato, então não tinha como fazer essa seleção e acabaram com esse tormento das crianças. Mas eu ainda passei por ele. Ainda hoje tem o livro, viu? Da Admissão ao Ginásio. Era um tijolo, assim, que você tinha que aprender aquele troço todinho em um ano, para dar conta.
00:19:50 P/1 - E como era o seu caminho para a escola nessa época?
00:19:55 R - Eu morava na primeira casa que eu morei. Quer dizer, essa escola primeira era muito perto da minha casa. Era na mesma rua, inclusive. Eu morava na esquina e ela ficava no meio da avenida. Então eu era muito pequena, minha mãe ia comigo ainda. Na outra a gente ia só, eu ia com meu irmão, que também estava na mesma escola, no mesmo horário. E aí eu seguia uma avenida inteira, era sempre linha reta, depois outra linha reta à esquerda. Subia direto, ela ficava também quase numa esquina. Depois, tempos da minha adolescência, eu fui morar nesta rua dessa outra escola. Engraçado, viu? Quando casei, fui morar também numa outra rua, que aí já era do colégio onde eu terminei. Também quase na mesma rua do colégio. Era tudo calçamento, eram ruas calçadas até lá. Quando chegava na esquina da escola, a rua não era calçada. A rua em frente da escola era areia pura. Que virava uma diversão também, né?
00:21:05 P/1 - Você lembra um pouco da vegetação, da cidade, nas ruas?
00:21:11 R - Petrolândia inteira era arborizada por uma planta chamada, que a gente apelidava de Mata-Fome, mas ela, eles chamam também de Acácia Sertaneja. Mas ela é um Ingá, Ingá Doce, na verdade. Ela é uma planta que eu acho que veio da América do Norte, da América Central, que aguenta seca. Ela não cresce de estourar as calçadas. Arborizaram as ruas principais com essa árvore que dava uma vagenzinha que a gente se divertia comendo, por isso que era Mata-Fome. Ela tinha uma vagem e uma massinha dentro dela, que aí se comia essa massa. Na verdade, o gado come isso, e a gente comia. E achava uma farra, achava uma delícia. E sombreava, porque nessa terra quente a gente andava esse caminho todo para a escola acompanhando essas árvores na calçada toda arborizada. Não sofria muito com o sol. E era bonito de ver, porque em cada casa tinha uma árvore. A distância era próxima mesmo, porque era para você caminhar a calçada inteira [embaixo] da árvore. Hoje, nós temos um exemplar desse aqui na praça, que veio de lá, justamente para contar essa história. Para poder contar.
00:22:39 P/1 - E na sua adolescência, o que você fazia para se divertir, fora da escola? Como era a sua rotina?
00:22:44 R - Na minha adolescência, eu tive a sorte de acontecer a chegada de um padre alemão, que era também a primeira paróquia que ele assumia. Ele era jovem, cheio de ideias, querendo movimentar a juventude, e eu estava aí com uns 9 para 10 anos, na pré-adolescência, e ele envolveu a cidade inteira. E aí eu cresci nesses grupos jovens. Então a gente inventava muita coisa. Ele promovia teatro. Tenho uma apresentação de balé, que não levo o menor jeito, mas até isso se inventava. Fazia no Natal a encenação do nascimento de Cristo no clube. A gente tinha um Domingo Alegre todos os domingos. Era um show de calouros criado por gente daqui mesmo, os jovens daqui. A programação do domingo era essa: de manhã ia pra missa, minha mãe gostava de ir, meu pai não era muito de igreja não, mas minha mãe gostava de ir e eu acompanhava. A igreja ficava fora da cidade, bem afastada, porque ela foi construída quando a cidade era lá, depois houve uma série de inundações, mudaram a cidade de lugar, afastaram um pouco mais. Então, a igreja ficou um pouco afastada. Já era um caminho a se fazer indo para a igreja. Depois, quando voltava, na rua, que a gente chamava Rua da Frente, era essa rua que eu morava, era a Avenida D. Pedro II, era a principal da cidade, e todo mundo chamava Rua da Frente. E lá na Rua da Frente tinha o clube. No clube faziam esse Domingo Alegre. Então a gente saía da missa e já ficava no Domingo Alegre. Que era uma farra, né? A torcida… você premiar o calouro que você achou que cantou melhor. E tinha disputa de prêmios, de brincadeira, quem come mais bolo, quem consegue mastigar mais não sei o que, aquela loucura de Chacrinha, meio um programa de Chacrinha, né? Que era a grande diversão. À tarde, o clube ficava aberto, com música de radiola. O pessoal jogava xadrez, jogava dama. Xadrez a gente nem conhecia na época, não tinha gente aqui fazendo nada disso, mas tinha uma quadra de vôlei. Eu não fazia nada disso, mas gostava de ir para lá ver os outros e encontrar com o povo, se encontrar e conversar. E, à noite, o costume da cidade era rodar na praça. A praça não tinha absolutamente nada, mas tinha o povo que se encontrava na praça. Era um acordo tácito, ninguém combinava, mas todo mundo ia para a praça. Então ficavam algumas pessoas sentadas ali nos bancos e as turminhas iam se juntando naqueles bancos. E a gente se juntava com duas amigas ali e ficava circulando para ver quem estava na praça e ver o que interessava na praça, as paqueras e tal… E essa praça ficava próxima ao cinema. Então, era caminho também de quem ia e quem saía do cinema. Era meio o ponto de encontro de todo mundo, é uma coisa que eu sinto muita falta nessa nova cidade. Não há um ponto de encontro. Lá tinha essa coisa que acontecia naturalmente. Então, na juventude era isso. Os bares, o carnaval, que era carnaval de rua muito bom, essa liberdade de todo mundo brincar com todo mundo, porque todo mundo se conhecia. A cidade tinha 9 mil habitantes, era pequenininha. As mães tomavam conta dos filhos de uma das outras, não precisava dizer. A gente obedecia a qualquer mãe que dissesse “Tá bom, tá na hora de ir pra casa, tá na hora do almoço, bora”. Todo mundo obedecia e não precisava ninguém ficar com acompanhante. Então, para o Cristiano, eu atribuo a ele um desenvolver de uma geração inteira de petrolandenses, porque ele colocou a gente nesse espaço, dando espaço de você ser protagonista das coisas. Eu assumi uma época, uma das coisas da difusora, por que tinha a difusora do padre também, que era a difusora da igreja, que tinha uma programação durante a tarde. Então eu assumi a locução de um desses programas, que era fazendo leitura de texto para jovem, direcionado para jovem. Poesia, os textos, umas crônicas, umas coisas assim. Aí botava música e comentava. Era meio um podcast de hoje, na difusora lá. Então a gente se achava muito importante, fazendo esse tipo de trabalho para a igreja e também fazia o trabalho como voluntário comunitário de ir para as áreas mais carentes e ver a situação do povo. Ele era muito ligado nessa coisa do social. Ele tanto ia para dentro da escola como levava a gente para fora, de entender esse ambiente à volta da gente. Eu atribuo à minha professora, que acompanhou a minha vida inteira esse estímulo pela leitura e por gostar de estudar, de pesquisar. Eu até hoje gosto muito de pesquisar e acho que por isso, porque eu sempre gostei de estudar. E ela foi quem fez esse estímulo. E essa coisa de se soltar para o mundo e topar o desafio. Não sei dançar balé, mas vou lá, vou experimentar como é que faz. Eu devo a esse momento aí da juventude, desse movimento.
00:28:54 P/1 - Você comentou do carnaval, tinha algumas outras festas na cidade?
00:29:00 R - A cidade tinha duas festas mais fortes mesmo, o carnaval e a festa do padroeiro. E essa parava a cidade inteira, porque vinha o parque. Existe um parque aqui que até hoje, desde que eu nasci, este parque ainda hoje vem para cá, na Festa do Padroeiro. Montavam rodas gigantes, cavalinhos, aquela coisa toda de parque de diversão na avenida em que a gente passeava na praça. Então, durante a festa, essa praça era ocupada pelo parque. Nas laterais do parque se formavam as barracas de vender comida, bebida, que a turma do colégio montava para angariar fundos para formatura, para passeio, para excursões e tal. Além das pessoas que trabalhavam mesmo com bar, tinha esse movimento dos estudantes também montarem barracas. Então, era uma farra antes e depois da festa. Você organizar a festa e viver a festa. E tinha o movimento na igreja das novenas. Depois das novenas, a rua, que era toda na rua. A festa acontecia ali na rua. Eventualmente, um baile no final, para fechar a festa ou no final de semana, porque aí vinha uma banda de fora e tal, e era uma festa. Porque as festas mesmo de clube eram o carnaval, que tinha na rua e no clube, e as festas de formatura. Eram as grandes oportunidades de bailes bons. Porque no dia a dia, tinha as matinês do clube que ficavam lá ao som de radiola. E a noite também que a gente ia namorar no clube, dançar com o som de radiola durante a semana. Não tinha dia não, todo dia tinha. Mas as grandes festas eram essas. O carnaval era... Todo dia tinha rua, tinha um entrudo. Essa é uma memória: o entrudo da Petrolândia. No começo, depois foi proibido porque começou a ficar violento. Mas eu lembro de criança morando nessa esquina e minha mãe dizendo que eu tinha que ir na casa da costureira pegar alguma coisa. E aí eu tinha que atravessar a avenida inteira para chegar na casa da costureira, e era num dia de entrudo. Minha amiga, era guerra. Você tinha que sair driblando esses meninos correndo atrás de você com lata d'água, com pó, com o diabo a quatro. Porque a grande farra era pegar o desavisado. Movimentava a cidade inteira e não tinha confusão, viu? Era adulto, era criança, todo mundo brincava com isso. Depois foi ficando violento, começou a usar xixi, coisa assim, aí dava briga, né? Acabou-se com a história. Tem uma coisa interessante também que faziam lá, que era na Semana Santa, eu acho, que tinha a história da malhação do Judas. Em Petrolândia se fazia isso. Eu, menina, nesta casa lá da esquina, eu assistia algumas vezes essa malhação. Eles, sem ninguém ver, de madrugada, prendiam um boneco de palha no poste da giratória lá, na rotatória da praça. E aí, de manhã, estava lá, um monte de bilhete pregado no Judas, deixando as heranças, cada uma pior do que a outra, para os políticos, para você que já fez… as indiretas e algumas diretas mesmo. Mas era uma farra, depois a meninada ia rasgar o Judas, a grande farra, era arrastar e rasgar o Judas. A gente se vingando do Judas, que traiu Jesus. Mas o carnaval era muito bom, porque tinha assim, tinha pra criança, naturalmente, e tinha pra adulto, porque tinha um senhor aqui que era dono de um hotel, ele montava um desfile de carnaval, paetês, carro de som... A turma que trabalhava com ele, tinha muita gente, que ele enfeitava como se fosse para um desfile de escola de samba. Então, a cidade inteira esperava esse povo descer. Começava no sábado à noite. Eles faziam sempre um desfile sábado à noite e no domingo à noite. Com esse brilho todo. E aí eles desciam e a cidade depois descia acompanhando. Era muito bom.
00:33:46 P/1 - E como você descreveria a sua relação com a natureza durante esse período na cidade?
00:33:53 R - A relação maior, natural mesmo, era com a margem do rio. Era diretamente ligada ao rio. Porque era perigoso, mas era bonito de ver. Então, a gente tinha alguns locais de banho. Que a gente ia para tomar banho. E tinha locais de contemplação mesmo. A área mais afastada da cidade, que se direcionava mais para o lado da cachoeira, era uma paisagem belíssima, porque tinha esse rochedo todo. E eu ficava muito impressionada porque o rio era muito largo, mas você ouvia as pessoas do outro lado, do lado baiano. Conseguia ouvir. Então, eu achava bonito ficar vendo aquele movimento lá do outro lado, o povo plantando. E tinha uma coisa assim, se você tivesse necessidade de atravessar, o barco não estava aqui, estava lá do outro lado. Por exemplo, meu irmão chegou a trabalhar do outro lado, catando algodão. Tinham uns plantios de algodão. Então, chegava na época da colheita, Petrolândia não tinha emprego pra nada, não tinha onde se trabalhar. O emprego era quem conseguia na prefeitura e era meia dúzia, o resto não tinha. Então, na época da colheita, eles vinham aqui e chamavam a juventude toda e para ganhar um trocado lá, para as festas, colhendo algodão. Então ia para lá, então a canoa estava lá, e alguém estava aqui querendo ir e gritava de cá: “Ei, manda canoa!”. Escutava, rapaz, do outro lado. Eu achava isso fantástico. E a correnteza do rio também era uma coisa que me chamava muita atenção, da força dessas águas descendo, o volume de água descendo é bem marcante em mim. E a gente fazia muito essa travessia do rio. Como meu pai tinha terra lá no lado baiano, nas férias a gente passava a semana lá. Então ia de canoa, subia de canoa. Ninguém sabia nadar, criatura. E a gente ia de canoa. Meu pai, minha mãe, nenhum sabia nadar. E nós três íamos pra lá. E meu pai confiava muito porque o canoeiro era um canoeiro experiente, então ele sabia todos os caminhos do rio. Eu tive a experiência de voltar uma vez à noite e nunca tinha visto o rio no escuro. E é horrível. Era uma imagem que nunca tinha presenciado. É assustador o rio. Mas é isso, não tenho muita coisa da natureza. Minha mãe, vez por outra, nos finais de semana levava a gente para a roça de alguém aqui na margem do rio, para passar o dia por lá. Então, era mais essa experiência. Lá na roça do meu pai, a gente brincava de fazer os canais de irrigação. Eles abriam lá para aguar a plantação da cebola, e a gente saía fazendo desvio, desviando os caminhos da água, brincando com isso, brincando muito com isso. A gente fazia boneca da boneca de milho. Quebrava o milhozinho, penduando ali e fazia de brincadeira com aquela coisa e tal. Outra coisa interessante era que, à noite, quando estava na época da colheita da cebola, se juntava num galpão um monte de gente trançando a cebola, porque não vendia como se vende hoje a cebola solta. Ela era trançada, como uma trança de alho. Eles faziam a trança enorme de cebola. Então, passava a noite, aquele monte de gente, conversando, cantando. Eu achava maravilhoso ir pra lá, tentando aprender. E elas deixavam a gente fazer de conta que a gente tava ajudando, né? Trançando também, mas não servia pra nada as tranças da gente. Mas era gostoso. O cheiro, esse cheiro da terra, sabe? Molhada. E o cheiro da cebola sendo colhida também é uma coisa bem forte. Que lembra muito.
00:38:17 P/1 - Legal. Avançando um pouco, você lembra do dia do seu casamento?
00:38:22 R - Ah, como não, né? Não tem como. Eu casei no dia da minha conclusão do ginásio. Do ginásio não, minto, do curso de contabilidade. Eu terminei o ginásio com 14 anos. Meu marido foi meu primeiro namorado e é até hoje, viu? É o mesmo até hoje. A gente começou a namorar aos 13 anos, eu tinha 13, ele tinha 19 ou 18. É 4 anos [de diferença], 17 por aí. A gente casou, eu tinha 19, ele tinha 21. Nossas mães já se conheceram há muito tempo, antes da gente se conhecer. E aí... quando a gente resolveu casar, eu era muito nova e eu achava que a minha mãe ia achar ruim esse negócio. Meu pai era muito tranquilão e disse assim: “Os dois querem? Querem. Mas são dois meninos. Mas dois meninos se entendem. Ruim era se fosse um adulto e uma criança juntos”. Ele era uma experiência, né? Aí, graças a Deus, deu certo. Mas assim, eu sempre fui muito madura. Eu acho que eu cresci no meio de muito adulto. Eu sempre fui uma adolescente muito adulta, acho que eu tinha muito essa consciência da gente conversar e dizer “Olha, se isso der errado, vai dar errado logo cedo, porque a gente é muito novo. Bora tentar!” e deu certo. A gente era um casal muito queridinho da cidade, todo mundo queria muito bem, os dois muito jovenzinhos, e os professores tinham aquela coisa, aquele carinho com a gente. Quando souberam que a gente estava pensando em casar, a diretora da escola me propôs isso “Paula, por que você não casa na conclusão? Porque já aproveita uma festa só”. E meu pai não tinha condição de fazer festa. E a gente era amigo de todo mundo, ia ser complicado fazer uma festa e não chamar a cidade inteira. Então, a alternativa foi maravilhosa. Arrumamos para a missa da formatura, ser a missa do meu casamento. E o coquetel, que foi depois dos formandos, foi lá onde eu parti meu bolo. As damas de honra eram todas da minha turma, a minha turma de concluinte, porque eram várias turmas, mas a minha turma de concluinte foram as minhas damas de honra. Tem uma foto interessante com eles. Aí, de última hora, uma colega resolveu casar junto. E aí ficou aquele constrangimento, a diretora disse “Poxa, e agora?”. O outro casal eram meus colegas. Eu disse: “Problema nenhum, bota a colega, vamos casar todo mundo junto!”. Somos amigos até hoje. Tem umas fotos que aparece o meu marido e as duas noivas. Deram um corte assim, ficou esquisito o negócio. Mas esse a gente não bota no álbum, tá tudo certo.
00:41:30 P/1 - Depois, então, que você casou e terminou o curso, o que você foi fazer? Como que era a sua vida nesse momento?
00:41:39 R - Então, a gente só conseguiu casar porque o meu marido tinha acabado de entrar no BANDEPE, que era o Banco do Estado, que tinha se instalado aqui. A gente se casou em 1977. Esse movimento da barragem de Itaparica, estava começando, as empresas chegando, então a cidade começava a se movimentar economicamente. Então vieram os bancos para cá. Então já abriu ali o leque de empregos. E aí meu marido entrou, se ele trabalhava antes na prefeitura, aí passou no concurso. Na verdade, não era um concurso, era uma seleção, indicado pelo prefeito da cidade, essa arrumação, que era um banco do Estado. Então, ele começou a trabalhar lá no BANDEPE. Então, a gente já pode casar, já tem salário, já pode casar. E aí, assim que a gente casou, chegou o Banco do Brasil na cidade. Era um concurso nacional. Eu me animei, eu agarrei isso como a tábua de salvação. Uma oportunidade dessa, eu não vou ter mais nunca. Então era pegar ou largar. Eu já estava grávida do primeiro filho quando surgiu o concurso. A gente começou a estudar.
PAUSA
00:43:05 R - Chegaram os bancos e a oportunidade de trabalho. Eu já era casada, estava recém-casada e chegou a notícia de que ia haver concurso para o Banco do Brasil. O banco já estava instalado aqui, tinha um ano, um ano e pouco só, mas o movimento cresceu, precisava de mais gente. Vamos fazer o concurso. Então, eu estava grávida, mas agarrei-me a estudar, porque eu queria muito não depender de político para trabalhar. Então, achei que era ali. Consegui passar e passei em uma colocação muito boa, mas quando chegou o resultado do concurso, eu estava grávida já do meu primeiro filho. Eu tinha acabado de ganhar neném. Saiu o resultado, eu tinha sido aprovada em primeiro lugar, inclusive, dos da cidade. E eu não podia nem sair para fazer os exames admissionais, porque eu estava com um recém-nascido, amamentando, aquela confusão, primeiro filho. Então, eu dei um tempo e os outros colegas assumiram antes de mim e eu assumi aqui mesmo na cidade. Meu primeiro trabalho. Nunca tinha trabalhado na vida. Já comecei lá com concursada. A minha mãe dizia com muito prazer que, graças a Deus, ela nunca precisou pedir emprego para a gente, porque a gente conseguiu entrar, eu e meu irmão também. Depois que eu entrei no banco, eu incentivei os outros a fazerem também. A primeira oportunidade que teve, eu botei o meu marido, “Vá que vale a pena”. E quando ele viu meu salário comparado com o salário do Banco do Estado, ele viu que valia a pena, então ele cuidou de entrar também. E meu irmão fazia vestibular na época, estava se preparando para o vestibular em Recife, morando em Recife, na casa do meu irmão mais velho. E eu digo: “Vem-se embora, faça o concurso, que é mais negócio, depois você faz o vestibular. Melhor garantir o emprego”. E ele fez isso. Eu comecei a trabalhar aqui e a gente não pensava, não passava pela hipótese de sair da cidade. Nossa vida era aqui, o mundinho era aqui. E eu tinha minha mãe e tinha muita essa coisa de “quero ter logo os meus filhos”. Eu queria ter todos os filhos logo em sequência porque eu queria aproveitar a rede de proteção que eu tinha com minha mãe e meus pais morando perto de mim. A gente morava quase na mesma rua, então facilitava muito a minha logística para trabalhar e ter filhos. Então, meus filhos têm uma diferença de um ano e meio de um para o outro. Eu tenho três e os três eram assim um ano e meio. Já trabalhando, já comecei com as duas tarefas ali emendadas. Depois, a gente foi transferido, porque, quando ele passou no concurso, não tinha vaga mais para a cidade. Então, ele teve que assumir na cidade de Cabrobó, que é aqui no estado de Pernambuco também. E a gente tentou o tempo todo que ele não fosse. Encaminhamos carta para o banco. O gerente da agência aqui fez tudo, porque, em vez de perder um funcionário, ele queria ganhar outro. Então, ele tentou trazê-lo para cá. Não, porque o concurso dizia que ele tinha que ficar pelo menos dois anos na cidade para onde ele foi lotado. Então, eu tive que ir. Aí eu fui, a gente passou dois anos certinho, quando completou os dois anos, “vamos voltar para perto da Petrolândia”. Então isso aí foi 1981, por aí. Então já estava em andamento a coisa da barragem, que a cidade ia ser inundada. Já estava caindo a ficha, porque quando começou esse processo, os bancos e tudo, e trabalhando, até aí era tudo festa. A gente achava tudo maravilhoso, porque agora tem emprego. A minha geração de colegas, da minha faixa etária, todo mundo estava trabalhando. Que coisa boa. Então era tudo bom. Mas a gente não tinha essa noção de que a cidade ia sumir do mapa, não, viu? A gente sabia que ia inundar, mas não achava que ia inundar assim, de cobrir a cidade toda. Então, a gente levava de boa. Nessa época que eu saí daqui, parece que quando a gente sai, a gente começa a olhar para o seu lugar com outros olhos. A gente ficou tentando voltar, até porque eu já me preocupava com minha mãe, vivendo esse processo de mudança sozinha em Petrolândia. Ela só tinha a gente. A família do meu pai já tinha saído daqui há muito tempo. Então, a gente tentou voltar. E voltamos para Delmiro Goveia, que é em Alagoas. Surgiu vaga lá, a gente pediu transferência, viemos os dois para Delmiro, passamos cinco anos em Delmiro. E nesse morar em Delmiro, todo fim de semana a gente estava aqui, porque era perto. E aí, depois de cinco anos em Delmiro, eu muito preocupada, porque eu queria voltar a estudar, eu só tinha feito o que tinha em Petrolândia. Eu fiz técnico em contabilidade, que foi o que me ajudou a entrar no banco. Tinha tudo a ver, as matérias eram as mesmas do concurso, isso me ajudou, e depois fiz pedagogia porque tinha o sonho de ser professora, até hoje. Sou uma professora frustrada, porque eu queria ser professora na vida. Tentei e me meto em tudo que tem a ver com educação, porque acho que era o que eu gostaria de ter feito. O banco foi assim, o que surgiu, eu agarrei. Nunca imaginei que eu fosse trabalhar numa coisa burocrática e voltada a dinheiro, eu não sou nada exata. Não sei fazer nada que não possa errar, pra mim tem que poder errar e poder consertar. Com número não é assim. Mas eu vivi 28 anos no banco e fui feliz, porque dentro do trabalho eu tentei encontrar. Como eu tinha feito tudo que tinha para fazer aqui, de estudo, comecei também a me preocupar com os filhos, porque aí a gente já estava morando em Alagoas, o nível de educação era bem ruim. Porque só tinha escola pública e a escola pública era muito deficitária. A de Petrolândia não era, até que era boa, mas a de Alagoas era bem ruinzinha. A gente tinha que contratar professor particular para fazer esse acompanhamento ser menos mau. Então, eu tinha essa preocupação com os meninos de ir logo para o Recife ou para uma cidade onde eles pudessem começar bem. E juntava as duas coisas, eu queria ainda estudar. Então a gente foi para Recife e eu fiz vestibular no mesmo ano que o meu filho fez, o meu mais velho fez. Porque aí também não pude chegar lá e começar a estudar, porque ainda tinha toda essa adaptação, e filho numa cidade grande não é a mesma coisa. Em Delmiro Gouveia, por exemplo, os meninos estudavam, a escola ficava um pouco depois do banco, onde eu trabalhava, da agência. Então eles saíam comigo até o banco e do banco iam sozinhos para a escola, era perto. E na volta eles passavam pelo banco, também me viam para ir para casa. No Recife, a história era outra. Então, lá eu abdiquei, por exemplo, de trabalhar o expediente de oito horas. Eu podia escolher trabalhar só seis horas, eu fiz a opção de ganhar menos e trabalhar seis horas para ter esse tempo de acompanhar os filhos, tarefa de casa, essa coisa. Eu não tinha minha mãe mais por perto. Aí já começava a complicar. Então eu esperei eles crescerem um pouco mais, ficarem mais independentes e ter outras atividades e tal, para fazer cursinho e fazer vestibular. E passei para quê? Pedagogia. Fui fazer pedagogia, que era o sonho. E aí meus colegas de banco diziam: “Mas, Paula, por que você não vai fazer economia, administração, alguma coisa assim?” Porque contava ponto para o currículo do banco, para promoção estar na área do banco, né? “Não, eu vou fazer o que me dá prazer, porque isso aqui eu já faço o dia todo, eu quero uma coisa totalmente diferente, que vai ser para desanuviar, não vai ser uma carga”. Era meu lazer. E foi, de fato, viu? Consegui entrar na Federal, uma turma muito boa, toda jovem, bem mais jovem do que eu. Eu era fora da faixa, mas assim, muito bem aceita, porque a turminha nova me queria em todos os grupos para fazer trabalho, todo mundo me queria nos grupos. Assim, foi um período muito rico também. Ficamos 28 anos lá até a aposentadoria. O banco convidou, lançou um pacote de antecipação da aposentadoria. Se você quisesse se afastar, ele complementava a aposentadoria oficial. Por exemplo, eu não tinha ainda tempo e idade para me aposentar pelo INSS, faltava dois anos. Ele pagava esses dois anos para eu já sair. Então, eu nem pensei duas vezes. Estou feliz da vida, nunca me arrependi nem um segundo. Dentro do banco, eu trabalhei na agência, no atendimento. Cheguei até o cargo de gerente adjunto, eu trabalhava mais como gerente administrativo, mas cuidando do funcionamento da agência, não de negócios, porque o gerente geral cuida dos negócios, eu cuidava dos bastidores do negócio, vamos dizer assim, da equipe. E o banco tinha essa proposta de você podia se candidatar a ser educador da Universidade Corporativa do Banco. Para fazer curso para os funcionários do banco. Então eu me candidatei, passei por uma seleção, aí eles faziam um treinamento e uma formação com a gente, e eu passei dois anos, depois de aposentada ainda, fazendo essa parte, trabalhando na educação, que era tudo que eu gostava de fazer. Durante o período, mesmo estando como gerente numa agência, eles, de vez em quando, convocavam a gente. Então a gente se afastava 15 dias, por exemplo, para a universidade, ficar à disposição da universidade, dando aula lá. Então, assim, eu procurei dentro do banco o que me fazia ter prazer. Gosto de conversar, gosto de gente, eu trabalhava no atendimento. Gosto de educação, encontrei uma brecha e fui trabalhar com ela lá, porque eu sempre achei que eu não precisava esperar me aposentar para ser feliz. Eu tinha que ser feliz enquanto estava lá. E fui, foi puxado. Não foi fácil, não, mas foi bom.
00:54:01 P/1 - Voltando um pouco, você falou dessa época da construção da barragem. Como era esse sentimento na cidade com a sua mãe? O que você sentia?
00:54:11 R - Pois é, eu vivia essa coisa meio de visita, porque eu vinha, via e voltava. Conversava com minha mãe muito sobre isso. Eu assistia a angústia dela, era um misto de sentimentos. Minha mãe tinha um pequeno comércio, então, para ela, era muito bom aquele movimento. Então era animador ver a cidade ter essa coisa toda, desse movimento assim. Mas também era assustador porque você não sabia o que ia ser depois. Quando se determinou uma data, em 1988, a cidade tem que ser transferida. A água vai cobrir. Tinha data para cobrir. Quando chegou aí nesse ponto, que as pessoas começaram a indenizar suas casas, minha mãe tinha terreno da família para resolver, da Bahia, esse terreno do meu pai na Bahia, o terreno da família dos irmãos dela, que ainda era lá de onde eles nasceram também, todo mundo não tinha mais família aqui, todos em São Paulo, ela era a única responsável para resolver tudo isso, a indenização da própria casa, e outra coisa, era um jogo pesado, porque você tinha que negociar o preço, porque senão você recebia um valor que depois você não conseguia construir sua casa. Então tinha uma tabela e ela chegava para você e oferecia. Se não fossem as orientações que foram tendo, o povo foi se organizando, o sindicato aqui teve um papel fundamental de organização da área rural, a cidade hoje, só é o que é, porque esse movimento conseguiu bater de frente com esse processo pesado que Chesf vinha, de outras barragens, sem ninguém se opor. Até Juazeiro, a Chesf empregava, desapropriava sua terra, sua casa, lhe dava um valor e você se vire. Aqui houve resistência. Já tinha um movimento organizado. Esse padre que eu falo, que é o Padre Cristiano, ele percebeu o que vinha, o que ia acontecer. E ele já começou lá atrás a mostrar para as pessoas que elas precisam ter a titularidade da terra, que elas precisavam ter o documento, porque essa coisa é muito informal, de todo mundo ser parente e herdando. E ficava sem documento. Se vendia de um para o outro, sem precisar de muita coisa. Então, ele foi fazendo essa orientação e foi à sorte. Minha mãe, eu assisti muito ela preocupada com essa coisa de ter que ir atrás de cartório, resolver essas coisas na Bahia. Para completar, nos últimos anos, meu pai sofreu um AVC e ficou de cama e ela teve que dar conta de construir uma casa nova, se mudar, modernizar tudo isso, sem eu estar aqui. Eu vinha muito nos finais de semana tentar ser esse apoio e ver com isso. E o sentimento era assim: a rua da minha mãe, para você ter ideia, como ela foi uma das pessoas que preferiu receber o dinheiro e ela própria construir a casa dela, ela demorou mais. Porque quando você optava em receber a casa que a Chesf construía, era mais rápido, já estava pronta a casa, era só se mudar. Ela teve esse processo de construção. Enquanto ela construía, os vizinhos foram indenizando as casas e as casas iam sendo derrubadas. Passava o trator e ficava aquela metralha lá no chão. Então, a casa da minha mãe, eu cheguei a presenciar a casa dela em pé e a dos vizinhos todas no chão. Era um cenário horroroso, horroroso. Já não dava mais prazer de ver aquilo. Mas minha mãe estava naquela, então ela agora ia ter uma casa feita por ela do jeito que ela queria. Então, de certa forma, era animador. Saí logo dali, tinha esse sentimento também, mas essa angústia de saber se será que essa cidade vai dar certo? Será que a gente vai continuar a ter o movimento que tinha aqui e vai ter lá? Porque a barragem vai acabar, as empresas vão embora. E aí, vai ser o quê desse povo? Havia tudo isso. Ainda para completar, a cidade passou por um processo do solo ter que se adaptar a essa chegada da água, desse volume imenso de água. As casas foram construídas antes da represa ser formada. Então, quando a represa chegou com a água, o terreno meio que sofreu uma bala, as casas racharam. Muitas casas rachadas, era outro desespero. Depois da sua casa pronta, você vê a casa rachar. Essa casa aqui, que é a casa que ela construiu, sofreu pouco. Teve uma pequena coisa, porque já foi construída prevendo que já tinha começado a acontecer em outras casas. A prefeitura aqui da cidade foi demolida e construída novamente, porque rachou a ponto de não ter condição de consertar. Então era assim, esse fim de feira, parecia um fim de feira, o sentimento era exatamente de fim de feira o negócio. E era um troço tão doido, porque hoje a gente se pergunta como é que a gente não fotografou cada cantinho da nossa cidade? A gente parece que não acreditava que ela ia desaparecer, e fomos deixando a coisa correr. Não tinha muito essa coisa de se despedir do seu lugar, a gente não teve isso. Foi se acabando aos poucos. É interessante.
01:00:27 P/1 - E além das indenizações do patrimônio material, teve algum processo para o patrimônio imaterial da antiga cidade?
01:00:37 R - Absolutamente nada. Isso é o que dói mais. Porque é uma das coisas que me fez me envolver com memória é exatamente isso. Porque o que é de material, a gente ainda tem como ver foto, não é? Mas as manifestações culturais mesmo, a gente não tem como ver. A geração do meu neto não sabe o que é um São Gonçalo, uma roda de São Gonçalo. Pouca gente nessa cidade sabe o que é uma roda de São Gonçalo, que a gente tinha condição de assistir. Por quê? Porque era uma manifestação espontânea de quem mora na zona rural.
PAUSA
01:01:58 R - Então, era uma manifestação espontânea, normalmente. O povo tinha uma comunidade aqui do Riachão, que eles tinham o costume, dia de domingo à tarde, todo mundo trabalhava na agricultura, e nos domingos estavam ali descansando nos terreiros das suas casas e de repente alguém dizia assim: “Bora dançar um São Gonçalo!”. Começava a bater ali uma coisa e começava a roda. Porque o São Gonçalo é um misto de religiosidade e de profano. É um misto disso. Mas tem uma herança também indígena, porque a marcação da dança tem um pouco do Toré, que aqui a gente tem uma influência muito forte indígena. Os Pankararu ainda hoje têm aldeia aqui na cidade. E aí quando as pessoas, por exemplo, eu que moro na cidade, queria pagar uma promessa, eu convidava um São Gonçalo para vir na minha casa. Então, era fácil de você ver isso. Como os penitentes, a gente tinha também um grupo de penitentes, que é uma coisa da Igreja Católica, muito inspirada na Idade Média, que as pessoas se flagelavam, autoflagelo, com a intenção de expiar os pecados do mundo, pouca coisa não. São homens que ninguém sabia quem eram. Eles, de capuz, de roupa específica para aquele momento, saíam nas Sexta-feiras Santas. Então, a gente criança, ficava nas brechas das janelas, morrendo de medo, porque eles passavam arrastando corrente, batendo a matraca e se chicoteando mesmo. Eles colocavam, pra você ter ideia, lâmina de ferro de gilete nas pontas do chicote pra se cortar mesmo, mas não podia dizer quem eram. Então, eles voltavam para casa e se tratavam sozinhos. No máximo, a esposa sabia, mas nem os filhos sabiam quem eram. Rezando, cantando e parando, tudo quanto era de cruz na estrada. Eles vinham normalmente da área rural e vinham até o cemitério. A conclusão era rezar para as almas no cemitério. Isso sumiu, também. O Pastoril também era uma manifestação que era um costume. Toda menina de Petrolândia participou um dia de um Pastoril, eu nunca dancei, mas a maioria participou disso. E sempre tinha alguma que tomava a frente no outro ano, e isso, de mulher para mulher, iam se levando. Isso normalmente começava com as primeiras damas, e aí outra pessoa... Aqui na Cidade Nova, já uma senhorinha ainda tentou continuar, mas ela não tinha condição financeira e não teve apoio e morreu. Então, quando eu cheguei aqui, essa foi uma das primeiras coisas que me incomodou muito, porque a minha sogra, que era avó, meu marido é adotado e foi a avó dele que criou ele. Então, ela foi professora e ela era das que organizavam o Pastoril, e ela me contava muito sobre a época dela do Pastoril. E eu, quando cheguei aqui, vi que ninguém sabia mais o que era, eu apresentei um vídeo para as crianças saberem o que era um Pastoril, porque não tinha como elas saberem. Aí comecei a história da recuperação dessas memórias, porque o imaterial foi o que mais me incomodou. De não ter repasse, de ninguém ter se preocupado, sabe? De manter nada disso inteiro. E aí teve mais, nas indenizações, as pessoas da área rural foram distribuídas. Elas não permaneceram no mesmo local. Elas foram distribuídas em várias agrovilas. Então, esse povo que, domingo de tarde, não estava fazendo nada e se juntava, não se juntava mais. Foi um corte. Não demorou uma geração para outra por falta de repasse. Houve a falta de encontro mesmo, dessas pessoas serem apartadas. Então, perdeu-se. O carnaval de rua morreu, não tem mais. Outra coisa, que era muito um sentimento, que antes era bom e depois a gente se sentia incomodado, a mim me incomodava muito, era a invasão dos que vieram trabalhar aqui na barragem e acabaram ficando na cidade. Então, por exemplo, a cidade tinha 9 mil habitantes, hoje tem 32 mil. O acampamento da obra era no município de Petrolândia, então todas as empresas se instalaram aqui. Muita gente veio de fora. E os daqui pegaram as indenizações e se mudaram. Aproveitaram, ninguém sabia se a cidade ia dar certo ou não ia, acabaram indo embora daqui. E aí essa nossa identidade meio que se diluiu no meio de uma cultura nova, diferente, de gente que veio de fora. Sem contar que a gente está aqui muito do lado da Bahia, as escolas, é comum o pessoal sair daqui para estar em Paulo Afonso. Tem escolas melhores, escolas particulares melhores. E aí a influência da cultura baiana também tem muito aqui. Então é uma retomada. Eu acho que está começando agora, depois de quase 40 anos, fizemos 37 anos já de cidade nova, está começando agora o movimento de tentar recuperar essa nossa cultura pernambucana, com o frevo, com o forró, com tudo isso que a gente sempre teve. Mas existia tanto essa coisa, essa sensação da invasão, que a gente chamava, tem o povo da gente e o povo de fora. Até hoje ainda incomoda um pouco, porque a gente diz: “mas essa pessoa é de fora”. Você morava numa cidade em que, quando qualquer pessoa que viesse novo na cidade, todo mundo sabia que chegou alguém de fora. “Quem é? Filho de quem? Vem fazer o quê?” Era identificado. Hoje em dia, você não sabe mais quem era de fora e quem não era mais de fora. Já misturou muito.
01:08:17 P/1 - Como que começou essa sua ideia de pensar as memórias das pessoas?
01:08:23 R - Então, quando eu me aposentei, eu me aposentei em 2007, e minha mãe começou a dar sinais de Alzheimer, mal de Alzheimer. E aí ela morava sozinha aqui, morava uma parente nossa aqui com ela. Quando eu me casei, ela chamou essa amiga, é prima nossa, filha de um primo dela. Morava na área rural, ela convidou pra vir pra cá pra estudar, ela queria estudar, ficou morando aqui com a mamãe.
PAUSA
01:09:42 R - Como é que começou essa história de eu me preocupar com memórias? Eu me aposentei, eu não tinha nenhum plano de voltar a morar em Petrolândia, porque eu achava que essa cidade não me pertencia. Essa não é a minha, a minha era aquela que ficou debaixo d'água. Eu vinha aqui de passeio ver minha mãe, tanto que eu mal saía. Eu vinha por ela. Mas aí a gente vinha menos também, porque eu já estava morando mais longe. De Recife pra cá são seis horas de viagem. Mas aí, quando ela começou a dar sinais de mal de Alzheimer, a médica que atendia ela aqui disse que não atendia mais ela sozinha, porque percebeu que ela já ia começar a fazer confusão. Eu disse pro meu marido: “olha, tá na hora”. Minha mãe nunca quis ir pra Recife. A gente tentou, porque meu irmão foi morar lá, eu fui morar lá, e ela não arredava pé de sair da casa dela. Ela tinha construído essa casa com muito carinho. Então, ela tinha um amor por ela muito grande. Não queria sair. E tinha as amizades, participava de grupos de mães, tinha toda essa coisa envolvida aqui. Então, eu tive que vir. Quando eu vi que ela não tinha condição de ficar só, eu tive que vir. A princípio, eu vim morar aqui numa casa que era dela também, aqui do lado. A casa vizinha era do meu sogro e a do outro lado era dela também, e ela deixou para a gente vir morar. Então, era minha casa, a casa do meu sogro e a casa dela. Meu sogro também já estava idoso, tinha quase 80 anos, e aí meu marido também, ele também era só, meu marido também achou bom a gente vir cuidar dos dois, e facilitava o fato de serem vizinhos, que foi proposital. Na hora da mudança da cidade, ele tentou ficar junto justamente para facilitar, quando a gente viesse, ficar todo mundo junto. Então, quando eu vim pra cá, eu me senti uma estranha na minha cidade. Eu não conhecia ninguém. Meus contemporâneos, quase nenhum morava mais aqui. Porque os poucos que ficaram trabalhando na Chesf, moravam no acampamento da Chesf, que virou uma outra cidade aqui vizinha. Petrolândia mesmo era mais o pessoal que veio de fora. Quando a mamãe ainda tinha a cabeça boa, eu andava com ela nos finais de semana que eu vinha, que eu encontrava alguém e eu dizia “Mamãe, é filho de quem?” Aí ela dava todo… você se situa novamente. Depois ela não tinha mais essa condição de me dizer, então eu fiquei perdida. O que é que eu fiz? Vou arranjar um jeito de me enturmar. Aí eu fiz o concurso do Estado para ser professora aqui, a história de ser professora! Meu marido quase me interna, porque como é que a pessoa, depois de aposentada, quer ir para dentro de uma escola pública nesse país, no Estado? Mas eu queria, aí fiz. Passei. Como eu ainda estava dando aula lá no banco, eu tinha me aposentado, mas ainda dava aula lá na Universidade Corporativa do Banco, eu não assumi logo aqui. Quando eu resolvi vir, quando eu me livrei dos compromissos de lá e vim, só tinha vaga na área rural, no Icó Mandantes, que é um distrito daqui do município. Eu fui pra cuidar da minha mãe, como é que eu vou ficar o dia todo fora, na área rural? Dependia de transporte e tal pra ir. Ia passar o dia inteiro fora. Aí eu não aceitei. Fui tentar negociar pra eu não assumir agora. Quando surgisse uma vaga, eu assumisse aqui na cidade, expliquei a situação da minha mãe e não teve acordo. Aí eu desisti, com o coração apertado, desisti da história da escola. Daí, um ano depois, surgiu outra vaga, outro concurso. Fiz novamente, só que agora era para técnica educacional, não era mais para professora. Fiz, assumi numa escola que fica quase na mesma rua aqui. E eu trabalhava meio expediente, só a parte da manhã, tinha tarde toda para ficar em casa com a minha mãe. Foi aí que eu retomei as amizades e comecei a me enturmar de novo. Aí entramos no Lions Club, que existia um Lions que era herança do pessoal da Chesf. O pai do meu marido fazia parte do Lions, aí fez tudo para a gente entrar lá. A gente também, como estava aposentada, aí meu marido assumiu a presidência da ABB, que estava prestes a fechar, porque não tinha quem tomasse conta. A ABB é a Associação Atlética Banco do Brasil, que é o clube do pessoal do banco, que é aberto ao público, as pessoas se associam. E era um local lindo, uma piscina com tudo, e estava prestes a fechar. Como eu usei muito as ABBs com os meus filhos, a gente se sentiu na obrigação de retribuir, aí fomos cuidar da ABB. Então, comecei a entender a cidade nova, porque até então eu ainda era uma estrangeira, a gente começou a se entender aqui. E aí me chocou muito ver que não tinha nada de memória. Eu comecei a conviver com as pessoas que não nasceram em Petrolândia, que estavam trabalhando aqui já há 20 e tantos anos, mas não sabiam nada da cidade, não sabiam nada do passado. E aí tem uma geração nova nascendo na cidade que nunca pisou na outra e pensa que tudo começou aqui, do zero. Isso me incomodou demais. E aí a coisa de não encontrar mais um São Gonçalo para ver, não tem mais Pastoril, não tem mais a praça que a gente se encontrava. E para encontrar uma amiga, eu tenho que ligar para ela e dizer, posso ir hoje à noite na sua casa? Isso não existia em Petrolândia. Você ia, encontrava. Ou ia para a praça e já sabia que ia encontrar. Então, assim, eu tenho poucas casas aqui que eu tinha liberdade ainda, ainda tenho hoje. Acho que duas casas nessa cidade que eu entro, vou na cozinha, sento e tomo café. Não preciso pedir licença nem marcar a hora. Mas o restante não é mais assim. Meu neto veio morar aqui, meu filho veio com um neto que tinha 4 ou 5 anos. Ele ouvia muito a gente falar sobre a velha cidade e ficava muito curioso, perguntando muito. Eu disse “Meu Deus, como é que eu vou explicar essa história a esse menino, para ele saber a história da cidade antiga?”. E aí eu resolvi escrever um livro para criança, para ele, pensando nele. Vou contar de um jeito lúdico, interessante, senão quem é a criança que vai querer saber disso? Então eu lancei “O Jatobá que virou mar” é um livrinho infantil que eu fiz para ele e para as avós, para facilitar a vida das avós. Aí que começou. Quando eu lancei esse livro, eu fui convidada para uma bienal que estava acontecendo em Paulo Afonso, era da região aqui. E aí conheci o Instituto Geográfico e Histórico de Paulo Afonso. O pessoal estava lá dando uma palestra. Não tem isso aí, existe isso. Procurei saber o que eles faziam. Petrolândia precisa de um negócio desse, porque lá não tem um lugar onde pesquisa-se sobre a história, sobre a memória. E aí tentei fazer, me encaixar já lá, mas aqui é Bahia, você teria que fazer uma coisa voltada para Pernambuco. E aí eu conversando com uma amiga aqui, que é blogueira, escreve e tal, e ela dizendo que sentia muito essa falta, que não tinha um local onde se pesquisasse, as pessoas perguntam e não tem onde buscar. Aí eu disse “Olha, eu topava formar, se você entrar comigo, eu topo, a gente começa aqui um instituto feito que eu vi lá em Paulo Afonso”. Aí, claro, ela topou e a gente juntou uma meia dúzia de amigas aposentadas, a grande maioria professoras, ninguém, nada a ver de história, e elas muito pouco interessadas nessa doidice minha de ir atrás do que já passou. Mas, para ajudar e para compor, elas se juntaram e a gente está aí até hoje. Estamos fazendo nove anos de Instituto. Claro, depois fomos tentando buscar mais gente para ajudar nessa coisa de ir atrás, de pesquisar mais sobre a cidade, sobre a história. Acabei deixando de dizer uma importância muito grande de um professor meu... Quando voltei, nessa volta aqui para a Petrolândia, o professor Gilberto Menezes, que é Menezes, mas é um parentesco muito longe, não tem um vínculo assim. Ele me chamava de prima por carinho, mas não tinha essa ligação direta. Ele estava há dez anos com um livro para lançar sobre a história de Petrolândia. E ele, sim, a família dele foi um dos primeiros moradores da cidade. Então, ele sabia muito. Era a fonte de referência de todo mundo que queria saber alguma coisa. E aí, um amigo comum disse “Paula, você precisava ajudar o Sr. Gilberto, porque ele vai morrer e não lança esse livro, porque ele é desorganizado, ele não está conseguindo concluir. Precisa de alguém que ajude.”. E ele fazia tudo à mão ainda. Bom, eu vou me oferecer para digitar pelo menos o material, e foi nessa coisa de ajudar ele que eu comecei a descobrir o quanto eu não sabia da minha própria história, da história da cidade também. Meu Deus, como é que eu não sei disso? Ele foi me apresentando coisas que eu nunca tinha ouvido falar. E aí ele também me fez essa provocação. Ele disse “Paula, eu queria tanto que esse meu livro, uma criança não vai ler. Isso aqui é um livro para adultos. Eu queria tanto que essa história fosse contada para criança.”. Isso plantou a sementinha. Então, quando meu neto começou a perguntar muito, eu já tinha essa coisa dele. “Seu Gilberto, eu tenho lá a capacidade de escrever livro, rapaz? E ainda mais para criança, que tem que ter uma linguagem própria.”. Não é assim, não é fácil escrever para criança. Mas aí deu certo que eu usei meu neto como cobaia e aí, saiu. As pessoas gostaram e até foi tranquilo. De lá para cá, eu fiz outros, inclusive sobre a cultura imaterial, já com essa visão do que eu não encontrei mais aqui. Porque hoje as pessoas se condenam: “Mas por que o povo daquela época não lutou com a Chesf por um memorial?” Se tivesse pedido, tenho certeza absoluta que a Chesf ia se obrigar, ser obrigada a fazer. Mas ela, de livre e espontânea vontade, não tinha nenhum interesse em fazer. Por que ela ia querer guardar uma memória que depõe contra. Ela estava do outro lado, foram eles que destruíram o meu espaço de memória. Não tem nenhum interesse em manter isso. Mas o povo, daquela época, eu perdoo aquele povo, tranquilamente, quem estava à frente desse movimento, as autoridades da época. Tava todo mundo muito preocupado em saber como é que ia ser sua vida, ninguém tava nem pensando na falta que esse passado ia fazer. Eu queria saber do futuro, o que é que vai ser de mim, da minha família, onde é que eu vou morar, como é que vai ser, será que o dinheiro que eu recebo vai dar pra construir uma casa, entendeu? Então, eu entendo perfeitamente que essa falta foi sentida depois. Hoje a gente sabe como teria sido diferente, né? Olha, a gente tinha um tablado aqui de umas inscrições rupestres, chamava O Letreiro, na margem do rio, que era uma coisa de milhões de anos. Indecifrável até hoje. Tinham uns rabiscos assim, geométricos, figuras geométricas, figuras de gente, figuras de bicho, inscritas em baixo relevo nas rochas de granito. Fantástico. E isso tudo ficou debaixo d'água. Salvaram-se alguns pedaços, porque, no final, a Chesf trouxe uma equipe da Universidade com a chamada “Operação Salvamento”, que era para dizer que a gente não ia ter prejuízo cultural nenhum com essa inundação. Então, eles vieram aqui fazer um levantamento do que tinha de cultura que ia ser atingida. E o máximo que eles conseguiram desse letreiro foi tirar algumas pedras que hoje tem na Universidade, tem amostra lá no Museu do Estado de Pernambuco. Petrolândia não tem uma foto desse letreiro. Nada, absolutamente nada. Uma falta de respeito com a memória total, sabe?
Se a gente tivesse, naquela época, o conhecimento que tem hoje, a gente talvez tivesse impedido, inclusive da cidade ser inundada. Porque só esse letreiro justificaria desviar esse rio para onde quisesse, mas não cobrir um negócio desse.
01:22:28 P/1 - E a cidade hoje, como você descreveria a paisagem dela?
01:22:36 R - Olha, essa cidade… o local onde foi instalada essa cidade foi disputado também, porque, a princípio, não era para ser aqui. Ela era para ser onde foi construído o acampamento para os funcionários da Chesf morarem enquanto construíam a barragem. Então, eles fizeram um mega bairro com toda a infraestrutura de clube, de cinema, de tudo. Então, na intenção de que este fosse o lucro da futura cidade. Só que na hora de dizer que ia ser lá, não foi todo mundo que aceitou. E aí o prefeito da época não tinha nenhum interesse de que fosse lá. Ele preferia que fosse em outro local. Ele tinha algumas justificativas. E aí muita gente embarcou nessa. Uma parte queria que fosse lá, outra parte queria que fosse em outro lugar. Teve várias opções. Então ele resolveu fazer um plebiscito. E as pessoas diziam, e ganhou esse espaço aqui. Que, no final das contas, eu acho que, assim, dos males, foi o menor. Porque deslocou pouco, a cidade mudou pouco de lugar, a paisagem não mudou quase. O que a gente tinha antes para o que tem hoje, a grande diferença de paisagem é o lago morto. A falta da presença do rio, corrente, faz toda a diferença na minha concepção da paisagem que eu vejo hoje. Para mim, isso aqui é uma paisagem fabricada. Eu vejo Petrolândia, uma cidade bonita, mas é uma paisagem que não é natural, ela foi fabricada pelo homem. A mudança da geografia aconteceu em função da inundação. Que foi sofrida, que é bonita, mas a gente não pode esquecer o sofrimento que se causou. Então, eu olho para aquela igreja que todo mundo festeja e faz ensaios fotográficos maravilhosos lá, com dor. Para mim é doído. Aquela igreja ali não era a igreja que eu frequentava, era uma igreja que ficava num distrito, nesse distrito do núcleo colonial, que era um projeto federal, por isso que ela é uma mega igreja, ela não foi construída pela população, ela foi construída por uma empresa, vamos dizer assim, um órgão público, que depois abandonou, porque o projeto se encerrou e o povo tomou conta. Ela nunca foi concluída por isso, porque o projeto se encerrou, a partir dos anos 70 houve a proibição de não se construir mais nada, então tudo parou. As pessoas não podiam nem fazer um puxadinho na casa, porque era proibido fazer. Depois fizeram, na marra, todo mundo fez, mas a ordem era não fazer. A localização não poderia ter sido melhor dentro das condições que se tinha para a época, mas tem essa falsa... Fico com a impressão de que ela foi fabricada. É um cartão postal. Foi feito para atender aí.
01:26:03 P/1 - E como você vê o futuro da cidade, o futuro da paisagem? Como você imagina?
01:26:11 R - Eu tenho sérias preocupações com essa paisagem daqui, porque não há nada planejado para o futuro. Essa cidade foi entregue, muito mal entregue, porque um outro sofrimento foi receber a cidade por acabar. Porque as pessoas se mudaram para cá, não tinha rua calçada. Por quê? Porque a Chesf, se tinha 100 metros de calçamento [na cidade antiga], eles chegaram aqui e fizeram 100 metros de calçamento. Construíram o triplo de casas que tinha lá, mas a área calçada era aquela que tinha na antiga lá, nem um tijolo a mais. A praça da Matriz, para você ter ideia, lá na velha cidade, como eu já falei, a igreja foi construída afastada da cidade e a cidade se mudou. Então, na frente da igreja, existia um terreno imenso, que no plano antigo, lá do século XIX, ela era para ser uma mega praça na frente da igreja, mas nunca foi feita, era só o terreno. Pois a igreja veio pra cá, pra Nova Cidade, foi construída e entregaram o terreno limpo do mesmo jeito, sem uma praça no lugar. Pra dizer que era assim, grão a grão, não tinha nenhum benefício a mais. “Tô destruindo sua cidade, mas você recebe o que você tinha lá, nenhuma vírgula a mais”. O resto não conta, o que você tá perdendo de imaterial não conta. Essa não entrou em indenização nenhuma, não tinha dinheiro pra indenizar. Veja só, que indenização paga eu não poder mostrar para o meu neto a igreja onde eu casei.
01:28:14 P/1 - É uma ambulância mesmo.
01:29:06 R - No momento das indenizações, o que contava era o concreto. Nada disso foi levado em conta. Nada do sentimento, do imaterial, do cultural, foi considerado. Não se pensou em nada disso. Nenhuma das partes. Nem a parte que estava fazendo a destruição e nem quem estava sofrendo ela, na hora, pensou nisso, né? Porque é isso que eu sempre digo. Que indenização pagaria também eu saber que não vou poder levar meu filho a conhecer a escola onde eu estudei, meu neto, né? Meus filhos ainda conheceram, mas meus netos não. Agora, é interessante, porque tenho muitos amigos que trabalham na Chesf. Então, você conversa com muita gente de Petrolândia que chama de Mãe Chesf, ainda acha que a Chesf foi uma mãe, porque arranjou emprego, deu emprego a muita gente, construiu a cidade, entregou uma cidade. Porque lá era uma cidade muito mais acanhada, uma cidade pequena. Agora, você vê um comércio grande, com tudo que você precisa, tem aqui e tal... Ninguém me perguntou se eu queria isso. Se perguntar a qualquer um petrolandense que nasceu lá: “Você desiste dessa cidade e volta para aquela atrasada?”, ninguém te recusaria. Então, esse dinheiro não tem quem pague, não tem indenização que vá pagar. Acho que por isso nem se falava no assunto. É dolorido, só sabe quem viveu, viu? Essa situação de você não ter pátria. Eu digo que sou uma exilada, né? Sou uma exilada da minha própria terra, um exílio forçado, né? Eu não pedi pra sair daqui, não pedi pra tirarem minha família daqui, mas eu fui obrigada a fazer isso. Meus amigos foram obrigados. Hoje tenho mais amigos fora daqui do que aqui. Não era isso. Olhe, voltar de férias, quando você morava fora... Meu irmão que estudou fora, eu nunca estudei fora, mas meu irmão que chegou a estudar fora, voltar de férias para a cidade a gente que recebia, os que estavam estudando fora, era uma festa. A gente que estava fora, que chegava, também era uma festa. Hoje em dia, não me toca. Voltar para cá, ou voltar para Delmiro, ou voltar para Cabrobó, é a mesma coisa, não faz diferença. Não estou voltando para o meu lugar. A gente gosta daqui, sabe? Não é que eu não goste da cidade aqui. Eu gosto. Até que gosto. Mas, assim, entre Recife e Petrolândia, eu até continuaria morando aqui. Mas o sentimento é outro. Não é a mesma coisa. É outro tipo de relação. É uma relação diferente. Totalmente.
01:31:33 P/1 - E para o seu futuro, o que você imagina no seu futuro.
01:31:40 R - Eu imagino que vou dar adeus à Petrolândia de vez. Minha programação é essa, é deixar alguma coisa encaminhada, que a nova geração possa tocar, porque a ideia do Instituto é nesse sentido, o Instituto Geográfico e Histórico de Petrolândia, a gente fundou nessa intenção de ter um local de memória, que as pessoas pudessem saber onde encontrar sua história, mas também de ser um lugar em que os mais novos fossem se apropriando dessa memória e fossem tocando, tendo gosto em tocar do jeito que a gente tem. Então, assim, pro futuro eu penso em ficar no Recife, num lugar onde tem uma assistência médica, que foi o que me fez voltar mais cedo. A gente acabou passando 12 anos aqui. Então, estou voltando para Recife, mas não voltei totalmente, porque eu continuo com a casa aqui, eu tenho dois endereços, eu passo temporadas aqui e passo temporadas lá. Ainda estou nessa transição, mas a tendência, eu vejo como a gente ficar lá, porque hoje Recife é mais minha cidade do que essa. Tenho mais carinho, tenho mais ambiente, tenho mais amigos, tenho mais o que fazer do que aqui. Embora aqui tenha me envolvido em muitos projetos. Cheguei uma hora que meu neto perguntava “vó, quando é que você vai se aposentar mesmo?”, porque eu entrei no movimento da Igreja, eu fui catequista, eu fiz cantinho de leitura nesses movimentos junto do Lyons, eu fiz festa no ABB, a gente organizou “Encontro dos Petrolandenses”. Tinha uma vez por ano, durante a festa de São Francisco, que era tradição as pessoas virem para a festa do padroeiro, a gente organizou essa festa, que era o grande encontro de quem estava fora, voltava para se encontrar. Então, assim, não fiquei parada aqui. Foi bom, foi muito bom ter voltado. Eu acho que me fez bem também. Eu converso com algumas contemporâneas minhas que dizem que sonham, inclusive com coisas que se passavam na velha cidade e tal. Eu nunca sonhei com a velha cidade, nunca tive nenhum sonho. E aí alguém me disse outro dia, disse assim “Paula, eu acho que é porque você fala muito sobre ela, por isso você não precisa sonhar, você fala o tempo todo”. Então, eu acho que foi uma forma de me curar dessa dor é lidar com esse assunto. É mexer nessa memória o tempo todo e mostrar, expor essa memória. Me incomoda essa memória escondida. Apagar, não. A minha luta é sobre isso, de não deixar apagar essa memória. Porque eu digo sempre, essa cidade não nasceu de chocadeira, ela tem mãe, ela tem uma cidade anterior que a gerou. Essa população que está aqui é do jeito que é, porque passou por uma coisa anterior. Essa transição é que foi muito forte, foi muito violenta. Não deu tempo de uma geração ir repassando pra outra. Foi destruído tudo de repente. Então, assim, há uma intenção, não dita, mas de apagamento mesmo. “Ah, deixa pra lá, esse negócio já passou. Vamos tocar o barco. Essa cidade tem muito pra oferecer, tem muito pra crescer”, não duvido. Tem um movimento agrícola aqui muito forte, mas muito preocupante, porque não há controle contra pesticida, contra nada disso. Tá todo mundo fazendo o que bem entende aí, sem muita preocupação com isso. O turismo chegou, ótimo, que bom, fonte de renda, vamos explorar as belezas que nós temos, ótimo, mas qual o cuidado? Estamos tendo? Não temos. Eu ia dizendo, quando a Chesf entregou a cidade, entregou sem iluminação pública, as ruas escuras, o calçamento sem concluir e tal, uma água sem condição de consumo, que essa foi a mais grave de todas, que gerou mortes, inclusive. Muitas crianças morreram na chegada da nova cidade aqui. Porque o lago encheu, e as pessoas não podiam se abastecer dessa água porque ela vinha trazendo todo o troço. Ela veio cobrindo a cidade com todos os esgotos, com toda a sujeira de uma cidade inteira. Então, era sem condição. Então, tinham dois poços artesianos para abastecer a cidade toda de água. Veja que barra, né? Então, não se teve nem nessa transição esse cuidado de como que seria essa questão ambiental. Estamos com uma cidade nova, com a condição de fazê-la redondinha, porque entregaram a cidade assim, mas entregaram com um Plano Diretor, dizendo as áreas que deviam ser preservadas. Esse Plano Diretor não existe mais. Então é preocupante, o que vem por aí, a gente não sabe porque é uma cidade que cresce sem controle de nada. A tendência não é um resultado muito bom. Espero que até lá, até a destruição ser maior, as pessoas vão se conscientizando. É um trabalho que o Instituto também tenta fazer, sabe? Da educação patrimonial e ambiental, mostrando que uma coisa está atrelada à outra, não adianta.
01:37:29 P/1 - Você queria trazer?
01:37:30 R - Acho que já falei tanto.
01:37:32 P/1 - Como foi contar a sua história?
01:37:35 R - Menina, que coisa estranha, não é isso? Porque você conta a sua história, eu já contei em vários locais, mas não assim, do começo ao fim. Você criança até hoje e de pensar no futuro, não pára para pensar muito nisso, nessa linha do tempo. É interessante, não é? É uma passada de filme que dá, né? É bom, é bom. Bota pra fora aqui um bocado de coisa. Acho que ajuda na cura também, né? É um processo também. E não tem como não se emocionar, é interessante isso, né? Porque eu tô tão acostumada a falar disso e ainda assim a gente se emociona. Eu fui participar de uma roda de conversa no Recife, e era sobre paisagens. O projeto das meninas lá era “paisagem em trânsito”. E Petrolândia elas escolheram porque elas estavam vendo essas paisagens que mudam, que são transitórias. Então, elas queriam saber disso, dar a impressão que a gente tem da paisagem que passou e que se constrói uma nova. E aí, quando eu entrei, eu estava muito tranquila, muito segura, porque era um bate-papo, uma roda de conversa. Mas, quando me chamaram para o palco, na hora que me chamaram, botaram a tela da rua principal da minha cidade velha. Rapaz, eu desabei. Eu falo e me emociono de novo. Eu desabei e não conseguia mais falar nada. Falei nada com nada, conversei tanto, não disse nada. Me tirou de tempo. Veja como é, a gente nem sabe o quanto ainda mexe. É por isso que acho que a cidade aqui tem que... É uma questão até de saúde, de você ter um memorial. Um memorial em que as pessoas se vejam, que possam chorar, que possam ver as suas coisas, porque não vê... A gente teve agora a experiência da Covid mostrou bem isso. Você não poder passar pelo processo de sepultamento, os ritos de um sepultamento. Só quem viveu isso agora na pandemia sabe exatamente o que eu vivi com essa cidade mudada. Porque é igual, é um sepultamento que não deram tempo pra gente cumprir os ritos. A gente não teve direito de cumprir esses ritos. Então fica o troço entalado, né? Mal resolvido. Tá mal resolvido até hoje. São 37 anos. Eu acho que morro sem resolver, mas trabalho para que isso se resolva para os outros, pelo menos, né? Essa é a luta.
01:40:35 P/1 - Se não tiver mais nada que você queira trazer, eu vou finalizar.
01:40:41 R - Obrigado.
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