Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Rozimar Mucuá Lima Karipuna
Entrevistada por Márcia Mura e Márcia Trezza
Entrevista concedida via Zoom (Porto Velho), 24/10/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV013
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Puranga Ara, Puranga karuka. Bom dia, boa tarde Mucuá, minha parenta. É com muita alegria que eu te recebo aqui junto ao Museu da Pessoa, para termos uma conversa entre parentes. E aí eu quero que você se sinta bem à vontade, em casa, na maloca querida, e que a gente possa ter essa conversa entre uma parente Mura e uma parente Mucuá. E aí eu te convido para você falar, antes de tudo, começar a falar por onde você achar melhor. Como você gostaria de começar essa conversa?
R – Sou mãe, primeiramente, sou filha, sou neta de indígena, e sou raiz indígena, sou raiz da Amazônia e sou raiz desse rio nosso aqui, parenta. E eu sou muito agradecida a você pelo convite e não tenho palavras para descrever como é bom compartilhar com você as nossas raízes tradicionais.
P/1 – Nemeguere, minha parenta. É uma felicidade também estar aqui nesse momento, fazendo essa conversa com você. Você poderia falar sobre seu nome, nós sabemos que nossos nomes eles têm bastante significado para gente, então gostaria que você falasse os seus nomes, o nome oficial, o nome indígena. Como esses nomes foram escolhidos e o que significam esses nomes?
R – Primeiramente, o meu nome é Rozimar Mucuá Lima. Meu nome Rozimar é um nome civil, que foi colocado quando chegou no cartório. Eles não queriam aceitar Mucuá. E Mucuá, na época, quando eu nasci, eu era a última para manter o nome do meu povo. As raízes, as tradições, o meu avô ainda era vivo e colocou em mim em homenagem ao meu povo, Mucuá. Mucuá significa que é o seu cantinho novamente, é o lugar onde você nasceu, o lugar onde foram criadas as suas raízes, aquele local. Isso que significa Mucuá. São as...
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Entrevista de Rozimar Mucuá Lima Karipuna
Entrevistada por Márcia Mura e Márcia Trezza
Entrevista concedida via Zoom (Porto Velho), 24/10/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV013
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Puranga Ara, Puranga karuka. Bom dia, boa tarde Mucuá, minha parenta. É com muita alegria que eu te recebo aqui junto ao Museu da Pessoa, para termos uma conversa entre parentes. E aí eu quero que você se sinta bem à vontade, em casa, na maloca querida, e que a gente possa ter essa conversa entre uma parente Mura e uma parente Mucuá. E aí eu te convido para você falar, antes de tudo, começar a falar por onde você achar melhor. Como você gostaria de começar essa conversa?
R – Sou mãe, primeiramente, sou filha, sou neta de indígena, e sou raiz indígena, sou raiz da Amazônia e sou raiz desse rio nosso aqui, parenta. E eu sou muito agradecida a você pelo convite e não tenho palavras para descrever como é bom compartilhar com você as nossas raízes tradicionais.
P/1 – Nemeguere, minha parenta. É uma felicidade também estar aqui nesse momento, fazendo essa conversa com você. Você poderia falar sobre seu nome, nós sabemos que nossos nomes eles têm bastante significado para gente, então gostaria que você falasse os seus nomes, o nome oficial, o nome indígena. Como esses nomes foram escolhidos e o que significam esses nomes?
R – Primeiramente, o meu nome é Rozimar Mucuá Lima. Meu nome Rozimar é um nome civil, que foi colocado quando chegou no cartório. Eles não queriam aceitar Mucuá. E Mucuá, na época, quando eu nasci, eu era a última para manter o nome do meu povo. As raízes, as tradições, o meu avô ainda era vivo e colocou em mim em homenagem ao meu povo, Mucuá. Mucuá significa que é o seu cantinho novamente, é o lugar onde você nasceu, o lugar onde foram criadas as suas raízes, aquele local. Isso que significa Mucuá. São as raízes do meu povo.
P/1 –Tem um nome que foi acrescentado, que é Karipuna. Você poderia explicar pra gente esse nome?
R – Karipuna, eu me casei com meu esposo, meu esposo é cacique de outra etnia, é do povo Karipuna, e eu me casei no civil com o André Luís Karipuna. Eu me casei no civil e adquiri esse segundo nome na etnia, para fazer parte do povo Karipuna.
P/1 – Então, você poderia falar para gente, também, sobre o local onde você nasceu? E foi contado para você alguma coisa sobre o seu dia de nascimento?
R – O dia que eu fui nascer, só sei que houve uma preparação, primeiro espiritual, ancestral. Tiveram uns certos cuidados. Minha avó já morava aqui na cidade, todos nós, do meu povo, meu avô, minha avó, na época, já tinham sido praticamente expulsos do lugar onde eles viviam, que era no Amazonas, próximo ao local do Rio Juma. Nesse local, foram retirados à violência. Então, vieram para cá em busca de segurança, de sobrevivência. Acho que é a palavra correta, sobrevivência. Se manter, sobreviver. E a gente veio para cá, eu praticamente fui gerada já na cidade, mas meus irmãos, meus dois irmãos mais velhos, foram trazidos ainda na barriga da minha mãe, quando foram retirados do Amazonas. E aí, teve aquele cuidado, uma separação da galinha, a questão das ervas, que são preparadas para um nascimento, para receber uma criança, o banho sagrado. Eu fui batizada com banho sagrado. E tem aquela preparação da família para receber um bebê, para receber uma nova esperança, uma vida, uma luz. Como minha avó falava: “Uma luz está chegando aqui para lutar por essa...”, para se tornar uma guardiã. E hoje estou aqui na luta da resistência do povo Mucuá. Ainda morando na cidade, eu ainda tenho aquele resgate da alimentação tradicional, da medicação tradicional, dos banhos tradicionais. E vai passando de geração em geração. Ao decorrer do tempo, a gente vai resgatando também, aos poucos, a questão de alimentos e outros remédios naturais.
P/1 – Minha parenta, deixa eu te perguntar uma coisa: Mucuá é o nome do seu povo, você sabe me dizer onde fica esse território do seu povo e se ele ainda existe fisicamente? Como está essa situação do seu território?
R – Hoje já virou uma área de garimpo, área de ‘florestação’ de outros moradores. Eu, na verdade, não conheço o local, porque a gente foi retirado de lá e nunca mais ninguém voltou, porque alguns foram mortos, outros foram estuprados, que é o caso da minha avó e da minha outra tia mais velha, que foram estupradas. E o meu tio Aloísio Mucuá, foi cortada a língua dele. E ninguém tem coragem de voltar num lugar onde foi violentado. Foi passado um genocídio. Outras pessoas, parentes meus, faleceram também nesse combate. Então, assim, a gente não voltou mais nesse local. Eu só sei que é para o lado do Amazonas e próximo do Juma.
P/1 – Sabe o nome do rio?
R – Não. Eu sei o local de referência que eles procuraram ajuda mais próxima. Era um seringal e foi lá onde eles conseguiram um pouco mais de – como é que se diz – auxílio para se apoiar. Um seringal e depois foram para um local chamado Três Casas: era uma Igreja católica que fazia os nomes civis. Aí lá a Igreja católica colocava [os nomes] “Maria Fulana”, “Maria Cicrana”, e aí olhavam para a sua aparência e diziam: “Você tem ‘tantos’ anos de idade”. Minha avó foi registrada dessa forma. E os nomes também, a maioria, é engraçado que foram colocados nomes de algum santo, na época, católico (risos) e a gente não sabe de onde saiu Maria, de onde saiu Helena, de onde saiu o Maria Antônia, algum nome assim. E as datas são todas de nascimento de algum santo que nasceu naquele dia: o da minha avó foi no dia que Jesus nasceu, aí colocaram a data de nascimento dela no dia que Jesus nasceu. E aí, assim, foi uma interferência, uma intromissão católica. Mas a gente realmente não sabia dessa questão religiosa e não conhecia naquela época.
P/1 – São memórias muito doloridas que nós temos com nossos antepassados, mas também são memórias que precisam ser lembradas, parenta, para que a gente não esqueça e para que a gente continue fazendo a nossa resistência. Parenta Mucuá, você acabou de contar um pouco sobre como foi esse processo violento de saída de vocês do território e gostaria de perguntar para você, também, um pouco sobre a sua mãe e seu pai. Você poderia falar o nome da sua mãe? Como você descreve a sua mãe, como você poderia descrever a sua mãe? E aí você já falou um pouco já, dessa origem da parte da família, se você quiser falar mais um pouco sobre essa origem materna, fica à vontade, por exemplo, para falar tudo que você sente à vontade.
R – Atualmente, falar sobre a minha mãe hoje, perdeu um pouco da sua identidade, perdeu um pouco da história do seu povo. Por causa da interferência religiosa, minha mãe perdeu muitos costumes e até as questões de bebidas tradicionais. Eu aprendi várias bebidas com ela, tradicionais, mas na base da ‘escondida’, hoje em dia, porque ela entrou numa religião em que os seus costumes indígenas são praticamente excluídos. O que é certo para nós, para o nosso povo, para a religião é errado, e isso bagunçou muito a nossa questão cultural, tradicional, a nossa crença mesmo, nossas raízes. Isso bagunçou muito. E hoje, assim, eu vou falar da minha mãe, minha mãe se chama Maria Argentina Mucuá. Esse segundo nome foi civil, eu não sei de onde saiu, disseram que, na época, ocorreu a Segunda Guerra Mundial e, por algum motivo, colocaram Maria, nome católico, e Argentina por interferência da Segunda Guerra Mundial. E Mucuá era o nome da etnia, porque o cartório não aceitava de forma nenhuma, o nome da cultura indígena, era muito rejeitado naquela época. Era como se fosse cometer um crime, você colocar o nome da sua descendência, das suas raízes. E não podia colocar o nome, então sempre colocavam o nome civil, o nome que foi posto por alguém branco. Uma interferência, uma intromissão, então sempre tem um nome. O meu pai era seringueiro e, naquela época, conheceu a minha mãe, os dois se casaram e são casados até hoje, já tem mais de 48 anos dos dois juntos. E a minha mãe, ela tem ainda um pouco das suas raízes reprimidas, mas eu estou tentando expor isso para fora. Aos poucos, a gente vai conversando para se sentir mais à vontade sobre as alimentações e os costumes.
P/1 – E o seu pai, como é o nome dele e como você o descreveria?
R – Meu pai é filho de nordestinos, meu pai foi seringueiro, filho de seringueiros, descendente de seringueiro, e o nome dele é José Moreira Lima. Ele é descendente de lá do Amazonas e, praticamente, virou amigo das minhas raízes, da minha família indígena. E, aos poucos, ele foi fazendo amizade e se casou com a minha mãe naquela época, numa época que era difícil, numa época que ocorria fragilidade, como até hoje ocorre. Ele se casou e teve cinco filhos com a minha mãe e virou essa mistura de seringueiro com uma indígena mesmo. E aí, a minha mãe, aos poucos, foi se acostumando. Não sei, acho que até hoje ela não se acostumou direito, mas a gente teve que se reestabilizar para se colocar dentro de uma cidade, dentro de uma população com os costumes totalmente diferentes. E não é nem se colocar, é tentar se introduzir no modo branco.
P/1 – Parenta, você já mencionou que tem irmãos. Eu só gostaria que você me dissesse, se você se sentir à vontade, quantos irmãos, e como é a relação de vocês, entre irmãos.
R – Eu tenho uma relação boa de amizade, mas em questões de acreditar numa crença, nós temos um ponto diferente, de observar e até mesmo de fazer o ato acontecer. Eu acredito numa coisa e eles já estão na cidade, com costumes dos brancos, então eles acreditam em outros costumes. Eu não rebato essas questões, porque as pessoas escolhem seus caminhos. O vento os levou em direção ao que o meu povo não era acostumado, então eles foram introduzidos e não se declaram, muitas vezes não se declaram como indígenas, se declaram como pardos, sei lá, por algum motivo, tem aquele receio, aquela repressão dentro de si, pelo tanto de sofrimento na escola também. Meu irmão mesmo, meu irmão mais velho se chama Oziel Mucuá e isso o levou a [sofrer] vários “bullyings” dentro da sala de aula. “Por que o seu nome é Oziel Mucuá?”, ninguém nunca chegou a perguntar isso, mas sempre zombavam. Então, essa adolescência veio trazendo revolta, ele foi se reprimindo, ao decorrer dos anos, foi se reprimindo. E quando você entra numa igreja religiosa, de outra descendência, de outro costume, você tem que esquecer que você já pertenceu a uma comunidade que tinha costumes totalmente diferentes dos atos de hoje, dessa nova religião. Não sei como, me coloco nessa posição. Então, assim, foram praticamente excluídos, seus costumes, seus hábitos e a gente sempre tenta resgatar aos poucos, até mesmo com artesanato, aos poucos, a gente vai conversando: “Ah, quando criança era artesanato ‘x’ lá”. Ai meu Deus, esqueci o nome. Falava sempre dos objetos diferentes, porque aqui na cidade não tem esses objetos, só encontramos na floresta. Então, a gente vai sempre conversando e, ao mesmo tempo, vai deixando a água ‘levar’ esse assunto adiante ou deixando se espalhar o assunto.
P/1 – Você falou o nome do seu pai completo?
R – É José Moreira Lima. É descendente de cearenses, nordestinos. Ele veio trazido na Segunda Guerra Mundial para trabalhar nessa borracha. Nordestino.
P/1 – Então parenta, perguntei sobre sua mãe, seu pai, seus irmãos, mas eu sei que tem uma figura muito importante na sua vida, que você traz presente nessas memórias e nessa recuperação do pertencimento Mucuá, a partir desses ensinamentos que você recebeu, que é sua avó. Como era o nome da sua avó? Era avó materna? Você quer falar um pouquinho sobre ela?
R – Minha avó materna, eu falo com muita alegria, se chamava Miloca e ela faleceu, e ela gostaria... naquela época, quando ela era viva, ela já faleceu há muitos anos. E ela morreu falando que ela era Miloca, ainda que o povo viesse dizer que o nome dela é Helena. Ela não se chama Helena, o nome dela, nas raízes dela, é Miloca. Miloca foi uma grande guerreira, fez mais de cem partos. Ela recebeu esse dom quando ela era muito moça e aí ela fez os partos na aldeia onde nós morávamos, ela fazia os partos. Depois ela foi morar no seringal e aí ela desenvolveu o trabalho dela de parto também, e com as suas medicações tradicionais, os seus artesanatos e com seus remédios sagrados. Seus remédios, a chicha, as bebidas, a bebida do... que esses dias eu descobri que ela fazia o suco. É um vinho da raiz do açaí. E outros: tinta, textura, a mistura de textura de tinta. muita coisa assim. Eu era muito criança, mas eu ainda lembro muita coisa sobre, ela comentava sobre os banhos, e depois ela pintava nossas pernas, (risos) que dizia que aquilo ali ia trazer uma energia positiva e também ia trazer uma energia negativa. riscava com galho de árvore para trás e aquelas coisas negativas ficavam para trás, ____ uma energia boa. E em seguida tinha um banho que era de ervas preparadas com sereno, com as suas, com o conhecimento que ela tinha, né? E, também, tinha aqueles remédios muito gostosos que ela fazia, que era – Jesus Amado – com semente de mamão, semente de abóbora... de jerimum, né? Eu não conhecia abóbora, eu conhecia jerimum, que ela comentava, né? E, também, tinha os remédios tradicionais através do leite, do leite de sorva. A gente foi criado com leite de sorva e banana, a gente não foi criado, na nossa infância, com leite de vaca. Vaca não era nossa amiga não, mas sim o leite de sorva, as seivas naturais da floresta. Era muito importante na época fazer aquele alimento para oferecer para criança e, também, para ter uma resistência imunológica no organismo da criança. Então foi muito importante essa questão de a minha avó estar presente desde a época em que a gente estava sendo gerado. A vovó, ela fazia todo o seu acompanhamento, ela fazia praticamente o pré-natal, ela fazia massagem, o bebê ficava desencaixado e ela dava um jeitinho, com as mãos de Sabedoria, de colocar a criança no local, através dos seus óleos, das essências naturais e do banho. Novamente, tudo tinha seu banho. Era um pré-natal completo e o pós-parto também. O pós-parto era uma coisa muito mais sagrada do que qualquer coisa na nossa época, porque tinha um resguardo, tinha questões de alimentação restrita, que não poderia comer, não podia comer _____ ‘x’ porque era _________, e tinha aquele cuidado. E ela fazia esse levantamento de introdução alimentar. E aí tinha a questão dos pés também, que ela passava um óleo quando a mulher ganhava neném. Tinha todo um preparamento, era como se fosse um momento sagrado da mulher, porque a mulher, a minha avó acreditava que na mulher o que tem de mais sagrado é o útero, que gera neném e em seguida vai dar uma outra criança e vai trazendo uma nova esperança. Então aquele resguardo era sagrado. E ela acompanhava até acabar o resguardo, depois de várias luas. Ela não acompanhava data, minha avó não sabia lidar com o número, ela acompanhava através de lua: uma criança em parto normal é gerada em dez luas, aí depois de uma certa lua, vem o nascimento, aí vem mais tantas luas em que você vai cumprir aquele resguardo da criança e da mãe. Calendário indígena era realmente a lua, vendo a temperatura. E ela não conseguiu, ela faleceu e não conseguiu entender essa questão de calendário.
P/1 – O calendário do não-indígena, porque ela tinha o seu próprio calendário, né, só uma temporalidade própria. E você sabe alguma coisa sobre o seu avô?
R – Meu avô, ele foi um grande apoiador das causas da minha avó. A minha avó tinha uma voz de liderança e o meu avô, ele era uma pessoa muito calma e ao mesmo tempo ele era apoiador. Se minha avó falasse assim: “vamos fazer xixica”, ele acompanhava o ritmo. E ele sempre apoiava aquela questão de defender o coletivo, sempre estar no coletivo, porque, por algum motivo, sempre precisa de uma voz masculina para manter aquele coletivo, aquela energia coletiva. Ele era muito da paciência e do coletivo, daquela questão de esperar, uma pessoa, assim, que era muito calma. Eu não tive quase muito contato com ele, ele era uma pessoa muito resguardada, uma pessoa muito, que observava mais e falava menos, mas ele mantinha as tradições. faleceu como Seu Marcos Aurélio Mucuá, colocaram o nome também Aurélio por interferência. E ele foi um dos grandes apoiadores da minha vó. minha vó foi estuprada e ele, mesmo assim, falou que nunca ia abandonar minha avó. ele foi praticamente um psicólogo da minha avó Miloca. então, assim, ele era uma pessoa muito calma, muito apoiador e muito bajulador dos netos – acho que era essa era a palavra correta. tinha aquela calma de cortar uma castanha artesanal sem usar faca e mostrar isso para os netos. seguia essa descendência de cortar as Castanha e aí ele mantinha aquele coletivo, todas as crianças ia ter que comer aquela Castanha junto. eu lembro desses momentos. e quando tomava o chá, sempre alguém queria fugir do chá ruim, o chá ____, o chá de sucuba, por exemplo. E aí tinha um momento da lua, que minha avó pegava tudo que era neta... tudo que era Curumim, perdão. Tudo que era Curumim e aí tinha que tomar aquele chá e sempre um fugia, _____ na água e meu avô tinha aquela paciência de chamar com jeitinho, que é aquela didática de conversar com cada neto, com até mesmo com cada pai, com cada mãe, explicando qual é o foco daquele remédio tradicional. E aí ele sempre dava aquele apoio. E aí, assim, até mesmo no resgate, quando ele tirava ervas - minha avó tirava erva da floresta e entrava numa floresta muito fechada _____ da Coca–Cola, que tem aqui em Porto Velho. E aí entrava numa floresta que existia invasores também. Mas sempre dava aquele apoio para minha avó. Minha avó se sentia segura para fazer as Preparações e carregava também, minha avó, por onde ia, carregava um pote que ela colocava as ervas, fazia aquela mistura. E tinha a questão também do Pilão, né, que o pilão era muito pesado, então, nas minhas raízes, na minha descendência, faz parte do homem cuidar do pilão, ter aquele cuidado de manusear, de lavar, de fazer a parte de carregar mesmo o pilão. E o grande guerreiro na minha descendência é o homem guerreiro que carrega o pilão. A mulher faz o que ela quiser de alimentação, mas o homem que carrega, o pilão é do homem, pra carregar. Então meu avô foi um grande apoiador da minha avó. Eu não lembro em nenhum momento da minha infância em que eu o vi ‘descontrariar’, ser contra minha avó. Sempre apoiava.
P/1 – Seu avô era carregador de pilão, né, que representa ser um grande guerreiro Mucuá. muito linda essas memórias que você traz da sua avó e seu avô, minha parenta.
P/2 – Márcia, eu posso – desculpa interferir – fazer uma pergunta só, para ela?
P/1 – Eu posso encerrar só mais essa pergunta e, em seguida, você entra? Assim, só para a gente trazer presente a figura dos avós, que para nossa cultura é muito importante. Sem as avós, sem os avôs, nós não estaríamos aqui. Então, assim, você trouxe aí essas memórias da sua avó e do seu avô maternos. E os avós paternos, você tem memória deles?
R – Não, avós paternos foram abafados da história, eu não sei o que aconteceu. Certas coisas que aconteceram na minha família, por trauma, por alguma coisa, eles não passavam adiante. Algumas coisas, por causa de vários traumas que ocorreram naquela época, foi deixado de mão. É igual a história do meu primo que sumiu na floresta, não sabe se até hoje ele está vivo, se até hoje ele tá lá ainda. Mas, assim, foi deixado de mão algumas coisas, não foi citado. Tentava-se preservar mesmo daqui para frente, porque teve vários traumas, então, assim, não ficava à vontade para contar para os netos. Isso foi abafado, essa história, meus avós paternos e dos outros.
P/1 – Márcia, por favor, pode fazer a pergunta.
P/2 – Eu ia perguntar se _____ tem lembrança de alguma história que a avó contava ou que contou para você alguma história assim que pudesse contar pra gente. Além de todo ensinamento, né, lógico.
R – Falar de Miloca é escrever um livro, um livro aberto. Ela passou vários ensinamentos sobre, eu lembro muito da nossa... porque sempre tinha uma neta que era escolhida. Na época era outro nome, mas sempre tinha uma menina que ia praticamente adquirir os conhecimentos dela. Eu tenho primas hoje que já são grandes, casadas, são revoltadas com isso, porque vovó me escolheu para ser a – naquela época eu era a caçula –, para eu levar esse conhecimento, a questão da massagem. E eu lembro que era muito pequena e eu não conseguia entender a questão da massa de gergelim, essa questão da importância de não querer tomar o leite de vaca. Eu lembro que criança, por curiosidade, um leite sagrado era o leite de sorva, o bolo, o pão do índio, né, que é conhecido. E sempre ela mantinha segredo e, ao mesmo tempo, ela queria que observasse a lua, ela queria que eu ficasse amiga da lua. E todas as vezes ela contava uma história diferente: “Nessa lua, é uma lua de luz; é uma lua de esperança; é uma lua que vai trazer cura espiritual; é uma lua que vai trazer uma criança; é uma lua que vai morrer...”, (risos) era a parte triste, né? “Nós vamos perder.” E ela falava de várias luas, né, até mesmo quando acompanhava uma gravidez, então falava assim: “Nessa lua, a criança tá virando” e era certeza, o pessoal podia fazer pré-natal há um tempo, né, e realmente a criança ia estar virando naquela lua. Minha avó contava muita história de lua, lua e essas questões de galho de árvore, que era riscado e passavam umas energias, né, positivas, negativas, e os resgates da terra, né, ela contava muita história, como é que nós pegava força da natureza, colocava exposta a terra em cima da palma da mão. E aí tinha também o banho da argila, o banho da argila era como fosse você renovar suas forças interiores e suas purezas, e ela contava muito essa história da questão da argila. O gergelim também, para nós era muito sagrado a questão do gergelim. aí tinha o dia da lua, que – eu tô falando de mim – eu praticamente tinha que deixar o que eu estava fazendo para viver aquele momento daquela lua, que era o banho de gergelim, entendeu? Além do banho de gergelim, eu tinha que tomar a erva que ela preparava no pilão. E aí o restante da Família tinha que respeitar naquela época. Para mim foi muito bom esse banho de gergelim, até hoje não tenho espinha. Eu lembro muito dessas histórias, que ela falava assim: “Você vai crescer uma mulher muito bonita de rosto, você tem que fazer isso” e eu era mocinha, criança, aí eu não entendia na época. Eu achava, assim, um momento muito chato: “Ah, só eu vou ter que tomar banho de gergelim”. E aí as minhas primas hoje lembram – minhas primas já são adultas, casadas – e falam assim: “Nossa, você viveu momentos com a vovó que nós não podíamos viver”. E, às vezes, eu ficava chateada naquela época, mas hoje eu vejo assim, que eu tive o privilégio de estar ao lado de uma grande mulher sábia. Aí tinha também aquele negócio que ela cortava a cuia, colocava na cabeça. Eu não consigo lembrar, mas eu lembro dela falar coisas no meu ouvido. Eu era muito pequena, não consigo lembrar mais. mas tudo era para trabalhar o espírito da gente, para a gente quando em uma fase adulta, a gente pudesse ter a resistência de falar com confiança que eu pertenço ao povo Mucuá. Eu sou muito grata.
P/2 – Obrigada ______. Não vou mais perguntar agora. (risos)
P/1 – Então a gente cresce ouvindo histórias dos nossos mais velhos e segue a vida seguindo histórias, porque nós somos conduzidos por elas. E mesmo que você tenha dito que não consegue lembrar muito do que sua avó falava e ‘soprava’ nos seus ouvidos, mas de uma forma ancestral você segue tudo isso que a sua avó ‘soprou’ no ouvido. Então, tem alguma narrativa específica que você gostaria de compartilhar com a gente, que você ouviu da sua avó, de alguém mais velho? E hoje, você continua escutando histórias, quem conta história para você? E o que essas histórias dizem para você, para aquilo que você se coloca diante do mundo hoje, fazendo todo esse trabalho de retomada, de recuperação do seu pertencimento Mucuá, da existência do seu povo. Pode compartilhar com a gente um pouco, né, quem mais contou história para você, conta ainda hoje e compartilhar alguma das histórias que representa mais para você, para o seu caminho, para o seu caminhar?
R – Voltando à minha avó e meu avô, sempre existia uma voz, eles falavam quando era criança e, também, foi dito para os outros primos, irmãos e irmã, foi também conversado, que contava história ou até mesmo uma forma de carinho ou até mesmo uma forma de acolher. Ela sempre falava para nós ouvirmos os pássaros, que a gente ficasse quieto ouvindo os sons dos pássaros. E quando ela teve AVC... minha avó já faleceu, ela tinha 75 anos, e ela faleceu ouvindo os pássaros. Os pássaros eram os grandes sábios. A grande inspiração de que está tudo bem, eram os pássaros contando, os pássaros se comunicando do modo deles, eram os pássaros. Para ela eram grandes sábios, os pássaros. E até hoje o meu filho, ele fala: “Mamãe, os pássaros estão vindo morar na cidade, porque eles estão ‘sentados’ já na floresta” e eu lembrei da minha avó.
P/1 – Nossos avós passam esse ensinamento de escutar muito os pássaros, minha avó também me ensinou isso e a gente segue, então, ouvindo esses cantos que nos trazem a memória das nossas antepassadas. Parenta, hoje tem alguém especial que conta essas histórias para você? E tem alguma história dessa pessoa atual que te conta histórias que você gostaria de compartilhar? E como é essa história que, possivelmente, você possa compartilhar conosco, te marca ou te marcou?
R – Meu tio Aloísio é mudo e surdo, ele me ensinou recentemente a fazer o chocolate orgânico... o chocolate tradicional, perdão. E aí o modo que eles prensaram o pilão, o modo de ele fazer o colorau, que eu não sabia como é que fazia. Na minha cabeça, eu pensei que fazia com fubá, ele falou que não é com fubá e são introduções do homem branco. Ele mostra que cor de pele não é da cultura indígena, não é. Um colorau tradicional, ele é feito em várias etapas, em várias luas. E aí meu tio resgata muito essa questão de artesanato, a questão de introdução alimentar. Ele me acompanha, muitas vezes tem certas coisas que eu não lembro da minha infância, ele ainda consegue contar a história através de riscado na perna e, também, um desfolhamento, ele tritura as folhas contando como é que ele está sendo destruído dentro da cidade, as suas raízes. Então ele me conta as coisas através de sinais, através de algum gesto ele mostra como ele se sente reprimido numa sociedade que ele não... ele não é daqui, foi praticamente introduzido aqui e ele é uma das pessoas que me conta... ele faz barquinho, ele desenha e faz esses Barquinhos que ele via na época, na beira do rio. Ele não conhecia o homem branco, mas ele via aqueles barcos passarem. Era o barco da Segunda Guerra Mundial, tinha de seringueiros, que trocavam mercadoria por tabaco, com alguma coisa, por alimento. E aí ele conta isso. Hoje em dia, ele faz artesanato e ele mostra através do artesanato o que ele via naquela época, era a imagem que ele tinha, passando no rio. Ele faz canoas e faz outro tipo de barquinho também. E, assim, ele me conta coisas assim que, às vezes, eu fico surpreendida. Ele desenha e mostra no céu na perna, e ele mostra e me conta as coisas que, às vezes, eu lembro, às vezes, eu não lembro desses fatos, eu era muito pequena. Mas ele sempre tenta de algum modo expressar e falar do que ele viveu.
P/1 – Como isso tudo que você nos fala sobre o seu tio nos ensina, parenta, porque normalmente a gente acha que contar uma história, narrar, só é possível quando se tem uma fala oralizada, e você tá trazendo outras formas de narrar, outras formas de contar, outras formas, outras maneiras de repassar conhecimentos, de geração para geração. E ainda dando continuidade nessa conversa, até agora, você já falou muita coisa sobre as suas memórias da infância, já falou muita coisa sobre os conhecimentos que foram repassados por sua avó e que vêm sendo atualizados pelo seu tio. Mas aí, dando continuidade dessa conversa, então eu gostaria que se você tem mais alguma coisa pra falar sobre quais essas funções, dessas atividades culturais especificamente para sua família e para o povo Mucuá, quais esses conhecimentos que foram repassados para você de geração e em geração e quais as lembranças que você tem do tempo de criança? Tudo isso você já trouxe muita coisa, mas você gostaria de falar um pouco mais sobre isso?
R – Eu lembro da questão que a gente fazia aquela pamonha coletiva. Quando a gente era criança, tinha o dia, a lua, né, a lua para nós fazermos a colheita do milho e tinha aquela roda de música e de conversa, de interagir com vovó e todas as netas, podiam morar do outro lado da cidade, do outro lado do rio, mas tinha que participar daquele momento. era um momento sagrado familiar, era aquele momento que a gente fazia o bolo de macaxeira, e o bolo de macaxeira tinha que ser feito por nós crianças para ralar e para nós compartilharmos, virando mocinha. E aquele momento era muito gostoso. E a outra questão também que eu lembro, que era um momento muito gostoso, que não consigo esquecer, era o bolo do pé de moleque, né, que é conhecido aqui, e tinha aquela preparação no fogão à lenha, no forno à lenha, e a gente fazia aquele momento coletivo que a gente ficava uma quantidade de pessoas que cortava as folhas e tinha que ser daquele modo de vovó, da Miloca. Você retirava as folhas, tinha que ter cuidado de tirar as folhas para fazer o pé de moleque. E tinha a questão também que a gente enterrava alimentos, então tinha aquele cuidado de escolher aquele espaço para ser preparado aquela alimentação e serem enterrados. Depois que enterrou, joga aquelas folhas que são selecionadas, colhidas, na época, para cobrir aquela terra que foi, que tinha que ser descansada. Aquele alimento tinha que ser respeitado. E só ia ser retirado daquela lua ‘x’... não lembro, mas é mais ou menos sete dias assim, uma lua para outra. Começa uma lua, termina na outra. Aí tinha um dia que era um momento muito esperado. Criança é muito ansiosa, queria tirar aquela alimentação. E era um momento mais gostoso que eu lembro da minha infância, era um momento que a gente comia junto, nós todos comíamos juntos. E aquele também, aquele momento gostoso, era trabalhar com a terra. Vovó Miloca sempre ensinou nós a trabalhar com a terra, ter contato com a com a semente. Era muito sagrado, era a coisa mais valiosa para Miloca, era aquele cuidado, era a semente, porque aquela semente alimentava de alguma forma, aquela semente era sagrada. Algumas seriam para ser remédio e outras seriam para a gente plantar no dia da lua. E tinha o cuidado até mesmo de dar aquela manutenção no espaço que estava cuidando, da roça, né, no caso, na roça, na horta. E o cuidado da chicória também, da pimenta e até mesmo dos molhos que eram feitos, né, naquela época, e até hoje eu tô tentando resgatar esses molhos que a gente ainda tem uma rejeição ainda, né, essa nova geração, mas a gente vai aos poucos resgatando a alimentação.
P/1 – Parenta, você poderia falar um pouco mais sobre o que você mais gostava de fazer quando era criança? Se tinha alguma brincadeira específica que você brincava na infância, que você traz na sua memória, quais brincadeiras eram essas, como eram essas brincadeiras? Você pode falar um pouco mais sobre isso?
R – A coisa que eu mais gostava era nadar, (risos) criança gosta de água, tipo os meus filhos, e esse era o momento em que eu mais gostava da minha infância, era quando a avó levava e a gente caía na água, tomava banho na água. E até mesmo aquele momento quando ela catava a gente: ficava uma fila de neto, vovó ‘abria’ a cabeça da gente e catava. Era um carinho gostoso. Vovó tinha essa tradição que sentava todos os netos e a gente ficava conversando no banco debaixo de uma árvore, e aí tinha um pouco de árvore, ficava todos os netos e a gente ficava naquele momento: “Agora é minha vez! A vovó vai me catar!”. E a gente, era um momento assim, que acho que não existe mais aqui. Mas a brincadeira era um momento muito gostoso. tinha uns brinquedos que meu tio Aloísio sempre ele era um rapaz do Artesanato, e meu avô também, né, tinha bola, tinha o esconde–esconde naquela época e tinha a brincadeira de... tinha pé de limão, né, que fazia, espremia limão e quem aguentar tomar mais suco de limão. Isso aí, até hoje não gosto de limão, mas assim, era uma brincadeira gostosa, a gente nem conhecia o que era gripe naquela época porque vovó mantinha a gente no pé de limão. (risos) Mas era, se tornou uma brincadeira, porque quem aguenta tomar um copo cheio, dois copos de suco de limão, sem açúcar, sem nada. E a minha avó não gostava que colocasse açúcar, ela acreditava, o conhecimento dela, que o verdadeiro suco tinha que sentir o gosto da fruta, não tem interferência de açúcar, de outros aditivos. você tinha que sentir o azedo da natureza para trazer uma energia gostosa para você, para trazer uma resistência para você. Assim minha avó acreditava e a gente criou uma brincadeira naquela época, era uma brincadeira para nós.
P/1 – Então você trouxe aí presente as brincadeiras que vocês faziam quando criança. E você chegou a mencionar que o seu tio fazia brinquedos, que brinquedos ele fazia, que material ele utilizava?
R – Ele usava um material, era tipo... não tem o cupuaçu? Ele tinha um jeito de tirar o cupuaçu e fazer os encaixes, que ficava tipo um chocalho. Ele faz até hoje, na verdade, faz até hoje. Até hoje na minha casa ainda tem esses brinquedos. É uns brinquedos que ele tirava da fruta e tentava manter junto, com equilíbrio com a semente. Sempre ele conectava o ouriço de castanha... a questão do caroço do tucumã. Aí ele criava certos brinquedos que a gente brincava de bolinha com aqueles brinquedos de fruta, caroço de tucumã. E tinham outros tipos de brinquedo que ele fazia assim, que não tem para vender, né? Mas assim, são brinquedos pedagógicos (risos) indígenas, né, modo de falar: canoinha e outros brinquedos assim que eram de montar, pedacinhos de pau misturado com outros resíduos de outra madeira. Fazia aquela combinação de respeitar uma cor, de outra cor de brinquedo, de madeira. Sempre ele mostrava esse lado da textura da madeira. E quando ele tirava uma madeira da floresta... até hoje ele é assim, quando a gente vai na madeireira, em algum lugar, ele tenta respeitar o cheiro de cada madeira. Ele nos obriga a cheirar cada madeira. Para ele é muito especial esse momento de a criança ter contato com o cheiro da madeira, madeira vermelha, madeira branca, madeira amarela. E cada madeira tem um __________ e tem um tipo de material diferente. A nossa brincadeira com meu tio, com meus avós, foi também, praticamente sentir o cheiro das madeiras. Quando vovó achava uma semente diferente, uma flor diferente, ela fazia questão que nós cheirássemos. Ou aquela árvore não podia ser tocada, porque, por algum motivo, aquela árvore, ela não trazia remédio para o corpo humano, mas trazia pro animal, cachorro ou com pássaro. Eu conheci um remédio que não servia para nós seres humanos, mas servia pro pássaro, pra perna do mutum, pra perna de alguns animais. O mastruz, ele foi um dos grandes remédios presentes na minha família, até hoje, na família Mucuá, quebra alguma, bate, cai da bicicleta, o mastruz, sempre o mastruz ele está presente.
P/1 – Então parenta, muitos aprendizados que a gente vai adquirindo por meio das brincadeiras quando somos crianças. Tu lembra da casa onde você morava na infância? Como era essa casa? O que você lembra dela?
R – É uma casa que tinha muita planta, tinham muitos remédios, tinha muito lugar pra pôr rede. Todo lugar que tu olhasse para aquela casa tinha rede, local para amarrar, um localzinho. Sempre vovó dizia que tinha sempre um lugar guardado para você. A casa dela cabia todo mundo, nunca ficava alguém desamparado, sempre tinha alguma comida, sempre tinha um caldo para ser oferecido, sempre tinha um chá a oferecer para quem chegasse. Então, assim, era um lugar aconchegante que tinha, um local acolhedor e, ao mesmo tempo, de ser respeitado a questão do idoso, né, que o idoso para nós são os grandes sábios, os anciãos. São as pessoas mais sábias, que têm que ser ouvidas. Se você chegasse na casa da minha avó, era um lugar que você tinha que ouvir ela falar, porque ela ia passar muito conhecimento para você. E por algum motivo, sempre alguém queria cortar, né, e o meu avô sempre tinha aquela paciência de dizer: “Vamos ouvir sua avó”. Miloca tinha que ser respeitada. Até ele mesmo considerava minha avó uma grande guerreira, uma grande sábia.
P/1 – Essa casa era em que lugar e ela era feita de que, que materiais?
R – Mas ela já foi feita de madeira paxiúba, acho que é paxiúba o nome que fala, da madeira. Até hoje minha mãe ainda sabe fazer, falo pra ela _____ para ela fazer para mim, de paxiúba. Bom, e o chão argila, né, aquele material em barro, lá na
casa da minha avó tinha muito material de argila, até hoje o filho da minha avó ele tem de herança um pote, aquele pote, a minha avó fazia chicha. todo mundo chegava, (risos) tinha uma chicha guardada naquele pote. um pote enorme assim. E aí assim, a minha avó faleceu e ainda existia, muitos anos. Tem mais de 40 anos, esse pote. Quem não bebeu chicha dele, bebeu água dele. Todo mundo queria beber água do pote da vovó. Era uma água ______.
P/1 – Então a casa era feita de paxiúba, né, o chão batido e coberta de quê?
R – Era tão pequena que eu não consigo lembrar. Mas eu acho que não consigo, Márcia, me perdoa. Posso perguntar isso pra minha mãe em outro momento.
P/1 – Tudo bem, sem problemas. Porque geralmente essas casas são feitas de paxiúba, batida no chão e ou é coberta de palha ou é coberta de sapê ou é coberta de algum material da floresta mesmo, por isso que eu te perguntei. Mas se você não lembra, não tem problema não. Vamos seguindo em frente. O lugar que essa casa foi feita era na cidade ou era num espaço de floresta? Onde que era esse lugar?
R – Minha avó morava perto... era um local que era uma chácara retirada um pouco da cidade. Sempre a gente escolheu o local retirado da cidade. E depois a cidade chegou até ela. Não foi nem ela que chegou à cidade, a cidade chegou até ela. E foi ocorrendo, já criou vizinhos, já criou moradores, como se fosse uma chácara em retirada.
P/1 – Mas isso era aqui em Porto Velho?
R – Isso. Era próximo da coca–cola, na estrada da coca–cola.
P/1 – Ah sim, na estrada que vai para Areia Branca.
R – Isso! E aí muitas pessoas iam atrás dela, considerava, chamava ela de rezadeira ou (risos) considerava ela macumbeira, porque ela fazia aqueles remédios. E ela fazia as massagens, as massagens milagrosas, que falava na brincadeira. Mas a vovó sempre tinha os seus óleos, as suas seivas, que ela mantinha tudo dentro de casa. E aquelas seivas, ela tirava quando chegava alguém já precisando de ajuda. E aquilo ali dava prazer a ela, não era questão de comércio, era questão de estar dentro daquele lugar e sentir que você tá ainda compartilhando com você o seu conhecimento na área indígena. A questão mesmo do leite do gergelim, né? E aí pessoas que iam lá, acabavam tomando esse leite de gergelim que era preparado com todo carinho. E aí tinham as seivas. Mas era um local que você poderia ir lá, sempre tinha alguma coisa a ser oferecida.
P/1 – Então foi essa casa que você morou na infância e, assim, hoje, que descrição você faria dessa casa? E como que, por exemplo, para chegar até a casa, como que era o caminho para chegar até lá?
R – Na verdade eu fui praticamente... Eu morei em vários lugares, né? Mas assim, a casa da minha avó é um local que ela, por algum motivo, não sei, ela sempre tentava me colocar naquele lugar e me separar das meninas para eu pegar uns conhecimentos. Igual o caldo de caridade. O caldo de caridade, a gente tinha que tomar, mas era somente aquela pessoa, então, assim, ela praticamente me separou até mesmo da minha mãe e do meu pai, porque a minha mãe e meu pai tem certos momentos que não aceitavam alguns costumes que iam ser repassados. Então, o conhecimento dela, ela tinha que passar somente para mim naquela época, né? Tem certas coisas que eu tive que morar com ela, daí depois ela me devolvia para minha mãe. Mas assim, minha mãe foi morar em outro lugar e a minha avó ____ morando lá, faleceu, mas ela nunca mudou de lugar. Ela tinha que sentir a natureza próxima dela, ela tinha que ouvir todas as manhãs o som dos pássaros, ela tinha que adormecer ouvindo o som da coruja. Ela sempre tinha que ouvir os pássaros. Então a cidade não tinha isso e ela nunca conseguiu se estabilizar dentro da cidade.
P/1 – Nas histórias que você vem contando para nós, você já trouxe assim bastantes elementos que são da cultura Mucuá, que foram repassados de geração para geração e já tem falado de algumas questões de interferência, né, da cultura não-indígena. Então, você descreveu aí a casa da infância, que era a casa da sua avó e dessa relação com a floresta, com os pássaros. Mas você disse que também viveu em várias casas, na casa dos seus pais também. Nessas outras casas que você viveu na infância, você teve acesso a ouvir alguma música? Ouvia música, assistia TV? Teve contato com essas coisas na sua infância?
R – Eu tive depois, porque a minha mãe, como a gente era muito pobre, tinha uma casa em um bairro, aí se mudou para um outro bairro. E aí meu pai conheceu a igreja evangélica, né, e aí ‘pintou’ de colocar na nossa na nossa mente que a cultura indígena tem que ser esquecida, então a gente tinha que viver o modo dos branco, né? E aí eu conheci a igreja evangélica muito pequena. Eu fui batizada, não sabia nem para que que servia esse batismo naquela época. Então assim, a interferência religiosa vem vindo acho que eu tinha uns nove anos, eu não sei, mais ou menos, e foi a época que minha avó bateu de frente com os meus pais. A minha avó sempre bateu de frente. Ela morreu e ela sempre acreditou na natureza, sempre acreditou nas suas raízes tradicionais. E aí virou aquele conflito familiar, a divisão familiar. Mas assim, eu conhecia a televisão, já conhecia outros, mas eu acho que eu não consegui me encaixar, igual o meu tio Aloísio. Então assim, a gente vai levando, né? E aí eu fiquei morando com a minha mãe, com meu pai, mas assim, tinha aquela – como é que se diz – divisão familiar, porque eu não acredito em uma coisa, o outro acredita em outra. E nunca mais foi a mesma coisa.
P/1 – E você teve acesso a televisão, a rádio, essas coisas?
R – Acho que eu ouvia mais o rádio na casa de vizinho. Vizinho ficava colocando televisão, rádio alto, né? E a gente brincava muito de terreiro, era muito menino, né, e brincava várias crianças no quintal da casa e ajudando no serviço doméstico, com a mãe, né? E depois fui para escola, eu já entrei na escola com oito anos, nove anos, entrei já muito tarde na escola. Quando eu entrei... até hoje tenho dificuldade de leitura e outros, né, tive dificuldade até em interagir com o pessoal na escola. Pelo meu sobrenome Mucuá, as outras crianças mangavam... até professor mesmo, não vou mentir. professores falavam assim: “Mas por que você é Mucuá?”. E teve até certas situações que eu cheguei a mijar dentro da sala de aula, porque eu me sentia reprimida. Eu me senti excluída da sociedade naquela época. E aí eu tinha um desenvolvimento muito atrasado, eu tive um problemas psicológicos. E hoje eu sou mãe, hoje já tem outro olhar de observar isso, mas naquela época eu me senti muito reprimida, eu demorei muitos anos para me encaixar.
P/1 – Então você falou que ____ da igreja evangélica ainda criança, né? Ali, então, você escutava que tipo de música? Que tipos de músicas você escutava quando era criança?
R – Música evangélica. As outras músicas eram de criança: “Parabéns”, “Atirei o pau no gato”, “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar, vamos dar a meia volta...”. E outras músicas que eram da época de quadrilha, mas a minha mãe batia, meu pai batia, porque aquilo ali era errado. E aí meus irmãos, que eram maiores, traziam pra nossa brincadeira, dentro do nosso quintal e a gente era punido. Se chegasse com a música que não era evangélica, a gente era punido. De alguma forma, nós éramos punidos.
P/1 – Tem alguma canção que a sua avó cantava, cantarolava, que você lembre?
R – Lembro que ela mandava nós ouvirmos os pássaros cantarem. Ela sempre ficava... eu tinha aquele problema de inquietação. Acho que até hoje ainda tenho. E ela brigava, (risos) colocava nós sentado no colo dela e fazia nós ouvir os pássaros cantando e se a gente ouvisse os pássaros cantando, nós, de algum modo, ia saber respeitar a nova estação, a nova chuva que ia chegar, o sol nascer do Sol, até mesmo curar nossas feridas, que traumatizavam a gente. Mas assim, eu sempre lembrava que ela falava assim: “Deixa Fulano que tá com _________. Deixa, deixa”, eu lembro muito bem dessa palavra “deixa, deixa, tá com _________”. Aí ela falava: (cantando) “Cuiará, cuiará, cuiará”. (risos) E eu sempre lembrava da voz dela cantando na rede. Até hoje a gente ainda lembra disso, essa história da __________. Era um momento que tinha que ser respeitado, era um momento de ___________.
P/1 – Tem algum pássaro assim em especial que você aprendeu a gostar a partir da sua avó, que você lembrou o canto dele?
R – O bem-te-vi. O bem-te-vi até hoje me visita, até hoje ele vem trazendo um som diferenciado, ele vem trazendo uma clareza que eu às vezes não consigo ver, eu não consigo ouvir às vezes, muitas vezes, uma esperança, um foco, o bem-te-vi vem dizendo: “Estou aqui. Bem-te-vi, bem-te-vi”. Até os meus filhos acreditam. Meus filhos falam: “Mamãe, vem ver o bem-te-vi! Mamãe, o bem-te-vi chegou!”, e aí tá passando de gerações em gerações. Até minhas primas falam: “Olha, hoje, prima, eu acordei e o bem-te-vi veio me visitar, o bem-te-vi da vovó”. O bem-te-vi ele foi bem “bem-te-vi” mesmo.
P/1 – Que lindo, porque a gente tem muitas coisas em comum, parenta, porque também tenho uma relação muito forte com o bem-te-vi. Então é muito feliz saber um pouco mais daquilo que a gente tem de identificação comum. Parenta, você já falou de várias memórias aí dos alimentos, que fazem parte da memória da sua avó, que você está trazendo o presente como fortalecimento da memória Mucuá, mas eu vou perguntar para você, especificamente, se tem alguma comida da infância que te marcou?
R – A carne de caça com chicória me marcou, com a folha de mandioca, com a folha da Macaxeira, que tem, aí eu tinha que saber selecionar o que é mandioca e o que é macaxeira. Então era fundamental uma indígena naquela época, você saber a diferença. Então eu tinha que cheirar, tinha que, de alguma forma, sempre diferenciá-los. Por exemplo, a folha de macaxeira é uma e a de mandioca era outra. E tinha o caldo que eu não vejo na casa de ninguém: era chicória, era folha... aí, esqueci o nome agora. É uma folha que tem lá em casa, ela é feita para fazer caldo. Era utilizado macaxeira, folha de cheiro verde, a folha de jambu também e tinha outras folhas também, que a gente colocava na comida. Não tinha aquele sabor de hoje, com outros temperos, mas assim, o caldo e a preparação de cada alimento da caça, era diferenciado. O modo de preparar, né? Caldo de farinha, né, chibé, coisas assim que ficaram na memória. O açaí feito em coletivo também. Esses dias atrás fizemos, até a Ana participou, minha filha. Eu tenho uma filha de dois anos chamada _________, e a Ana participou, ela gostou muito. Ela fez grafismo pelo corpo inteiro, de açaí. Eu tenho açaí na minha casa. Eu lembro isso da minha avó, também era um momento gostoso aquele momento de tomar açaí, se pintar, se melar toda. Esse era um momento muito maravilhoso, um momento açaí.
P/1 – Parenta, seguindo essas memórias afetivas todas que você vem trazendo, compartilhando com a gente e embora você já tenha falado que você foi separada pela sua avó para que ela te passasse os ensinamentos, eu vou te perguntar mais diretamente agora se você, dentro da cultura do seu povo, foi preparada para assumir alguma função específica. Se sim, qual função foi essa, e se você se sente feliz e se você seguiu essa função que foi dada a você e é o que você quer fazer? Você queria estar fazendo outra coisa?
R – Falar sobre alimentação. Alimentação, para mim, Mucuá, está resgatando a identidade do Mucuá, a identidade da resistência do meu povo com aquela saúde diferenciada de hoje. E hoje em dia eu gostaria de conseguir ainda comprar o meu pilão e conseguir manter aquela alimentação que eu não tenho muita acesso aqui por estar na cidade, mas eu tenho vontade de voltar a mexer com que minha avó falava, que cada árvore de seiva tinha um jeito de tirar, de extrair, né? Tinha aquela extração. E mexer com os óleos, o óleo de copaíba, andiroba. Recente, agora, eu plantei na terra do meu marido, território do meu esposo, Karipuna, eu plantei pé de andiroba ____ Amazonas e os grileiros, madeireiros... não se foi madeireiro ou foi o que, tacaram fogo no meu plantio. E aí eu tinha uma expectativa de vida, até chegar na minha velhice, mexer com os alimentos tradicionais: com milho, com a macaxeira, com a farinha, com açafrão, gengibre, os molhos de açaí com pimenta e outros tipos de molho que meu tio Aloísio ele vem me auxiliando: “Não é dessa forma, é desse jeito”, do jeito dele, né, falando, explicando, que ele não fala verbalmente, mas ele me orienta com gestos, com degustações e mostrando. E dar uma melhor vida para minha família e para quem chega lá na minha maloca, futuramente, que eu tô construindo, e receber uma alimentação de qualidade, uma alimentação tradicional. Eu poder oferecer isso para quem chegar, uma alimentação que lembra o meu povo. Ainda que tenha as interferências alimentares, poder oferecer... não é nem oferecer, é compartilhar com você.
P/1 – Mucuá, você já trouxe para a gente bastante lembranças, memórias, sobre os conhecimentos que você adquiriu durante essa infância, durante a sua vida, repassado de geração em geração, que corresponde a essa educação tradicional, nossa, ancestral. Agora, nós vamos entrar no assunto sobre a questão da educação formal. Você estudou em uma escola da cidade, e como foi essa experiência sua nessa escola formal?
R – Falar sobre a minha infância primária, sobre a escola... eu estudei em uma escola normal, até a quarta série eu tive um problema muito sério com questão de estar dentro de uma sala de aula que não tinha ninguém que era do meu povo, que não tinha nenhum parente, né, essa é a palavra correta. Não tinha nenhum parente, então era um local que eu era muito discriminada, muito excluída. “Se você é índia, por que que você não tá no mato? Por que que você não tá na aldeia?” E aquilo ali me deixava reprimida, eu não conseguia ter um desenvolvimento escolar que eu me sentisse à vontade. Eu senti que aquele lugar não era um espaço legal, então eu tive muito medo da minha infância. E a minha mãe acompanhou isso: todos os dias ela me levava na escola, mas eu tinha vontade de vir embora, porque eu tinha contato com outras crianças e as crianças toda vez quando era o horário da chamada, a professora falava “Rozimar Mucuá” e tinha piadinha: Mucuá, mucura, palavras assim que constrangia uma criança da minha idade. E aí ficava por várias horas aquela brincadeira ruim para mim, né, não me trazia uma coisa legal. E sempre eu conversava com minha avó, mas a minha avó falava que eu tinha que ser forte para eu crescer uma pessoa forte. Eu era guerreira, eu era muito forte por dentro e não podia desistir da escola. E falar sobre a minha infância (chora) me trava muito, porque eu não gostava daquele lugar. Pra mim era um lugar horrível a escola, porque eu sabia que os alunos iam ‘mangar’ de mim e iam falar para mim: “Por que você é índia e você não mora na aldeia? Por que você não vai voltar para o mato?”, e faziam piadinha. Muitas vezes, colocavam chiclete, eu me sentava, faziam eu cair. E aí, assim, não só eu, como meu irmão; e aí na hora do recreio, eu ficava perto do meu outro irmão, que nós somos dois anos de infância diferente. Mas assim, eu não me encaixava naquele local e eu não gostava daquele momento escolar. Até hoje eu não gosto de lembrar. Hoje sou muito amiga do meu filho e ele passa situações que hoje eu compreendo. Foi muito difícil minha infância, querer ao mesmo tempo estudar e ao mesmo tempo não estudar. Naquela minha infância, eu não tinha maturidade para entender que os estudos iam trazer sabedoria para mim, não, eu só queria que terminasse logo o horário de escola, que minha mãe ia tá lá na porta e ia me levar para casa. Eu não gostava do lugar da escola, eu demorei muitos anos. Até hoje, na fase adulta, eu ainda consigo lembrar. É muito triste (chora) uma criança indígena estudar em uma escola normal e você não ser amparado. Não sei falar, o que realmente passou foi muito ruim.
P/1 – Tá bom, parenta. Eu sei que é muito difícil, uma memória difícil de lembrar, mas essa é a realidade infelizmente das crianças indígenas que estão no contexto urbano e que vão para escola não-indígena. Depois que você passou dessa fase de infância, dessa relação de violência no espaço da escola, conforme você foi crescendo, essa relação continua assim? Como foi que se deu tua formação e essa tua relação com a escola?
R – Eu acho que foi através de uma professora de Geografia, que ela tentava, todas as datas comemorativas, o Dia do Rio, dia do março, Dia da Água e eu me sentia encaixada, eu comecei a me apaixonar pela escola através de Geografia. Quando vinha aula de Geografia, na quinta série em diante, eu já comecei a me encaixar e a professora sempre me colocava assim, que falava assim, que nós tínhamos que respeitar o meio ambiente. Aí tinha também a questão do mês de abril, já tinha uma preparação... essa professora ela trouxe um outro olhar para mim, para eu ver que a escola não era um bicho papão. E aí ela começou a se aproximar e ela viu que eu era um pouco tímida, reprimida, né, e aí ela foi trabalhando através de recorte, árvores, até mesmo de árvores no colégio. E aí tinha, aí eu comecei me sentir em casa novamente. Ela trabalhava com colagem... e aí, assim, por algum motivo, eu me sentia à vontade, pegava semente e levava para nós, levava para aquele espaço: “Vamos plantar uma árvore aqui, daqui uns anos isso aqui vai ser uma árvore bem grandona”. E aquilo ali foi me destraumatizando da escola, e aí foi, chegou História, né, chegou um outro olhar falando sobre genocídio e outras coisas assim na história... história de Rondônia, já comecei ao mesmo tempo ficar triste e ao mesmo tempo ficar, assim, curiosa – é a palavra correta. Na quinta série, bateu bastante curiosidade. E na quinta série, eu reprovei, mas só que eu tinha umas notas muito boas em Geografia, História, porque eu tinha curiosidade: “Por que será que morreu Fulano? Mas ali ele tinha parente meu”. História, eu ficava com aquela coisa na cabeça, aquela curiosidade: “E por que o mundo tá acabando?”. Geografia, eu já pensava dessa forma, como pensava uma criança: “Por que as pessoas que moram na cidade tão acabando com o planeta? Por que a água está acabando? Por que está tendo muita enchente, muito vento?”. E veio várias perguntas na minha cabeça. Em seguida veio o falecimento da minha avó. Quando minha avó faleceu, eu, novamente, me reprimi, porque todas as vezes quando eu me sentia frágil, quando me sentia excluída, eu comia para os braços da minha avó. Sempre minha avó me balançava na rede, esse era o melhor remédio que existia (chora) na minha vida, era quando minha avó me abraçava e balançava comigo na rede. Então aquilo ali não tinha mais, não tinha mais. E aí foi uma grande perda, Miloca faleceu e uma parte minha parece que faleceu, foi junto com ela. Eu senti isso. E eu falei: “E agora? Como é que vai ser agora?”. E aí eu foi uma grande perda assim na minha infância pra adolescência, eu não sabia mais lidar, como é que eu ia lidar com medo, de dificuldade, com as pessoas. E aí veio esse pensamento de: “Por que as pessoas tão acabando com o mundo?”. Na época, eu pensava desse jeito: “Como eu posso salvar o mundo? Como é que eu posso salvar a floresta? Como é que eu posso salvar a diversidade?”, assim, naquela época eu pensei. Eu vim a ter umas notas melhores com História e Geografia, ter um desenvolvimento.
P/1 – Essa tua formação, depois tu teve alguma experiência que tu pôde trazer presente os teus conhecimentos? Dentro do espaço institucional, da Educação.
R – Depois eu tentei fazer o Enem, tentei vários anos passar na redação, para fazer no Enem e quis me identificar na área da Nutrição, porque, por algum motivo, a Nutrição me resgatou a introdução alimentar na minha vida. Eu só não consegui concluir, mas eu tentei colocar Miloca na faculdade também. (risos) No meu pensamento, no primeiro dia de aula, no primeiro dia que eu entrei na universidade atrasada, eu já tive um dia negativo, porque eu já tinha perdido uma semana de aula por questões administrativas da faculdade na época, então eu falei assim: “Ah, pode dar tudo errado, mas eu vou porque eu tenho sangue de Miloca e Miloca não é de deixar para trás”. E eu falei assim: “Eu vou fazer essa faculdade e vou compartilhar o conhecimento de Miloca aqui”. E quando veio a questão das ervas, uma matéria que tinha, né, que era para respeitar cada sensorial de cada semente, ervas, madeira, me trouxe a Miloca de volta. Parecia que a Miloca estava dentro da sala de aula comigo. E tem matéria que é muito difícil, mas eu falei: “Se Miloca tivesse aqui, ela não ia desistir”. E muita coisa assim eu consegui ‘levar’ para, dentro de mim, naquele local. E eu me senti muito mais à vontade na faculdade do que nos meus outros anos de empenho. E aí eu queria dar um futuro melhor pros meus dois filhos e para a nova geração que vem, os meus netos, compartilhar esses conhecimentos de outras gerações.
P/1 – Qual era essa instituição que você estudou no ensino superior? Que curso era? E por que você não conseguiu terminar o seu curso?
R – Eu tive uma gravidez bem complicada e eu fiquei praticamente um ano morando dentro da Casai (Casa da Saúde Indígena). A primeira vez que eu tranquei a faculdade foi quando o meu filho teve um problema na escola de bullying. Eu tenho um filho autista, Samuel, e eu tranquei a faculdade pela primeira vez. E a segunda vez foi por causa da minha gravidez, que eu tive problema de toxoplasmose. Eu tive que morar na Casai, na Casa da Saúde Indígena, e quando eu voltei, veio a pandemia, essa Universidade ela é privada, é uma universidade particular, a São Lucas, e com essa pandemia eu não tinha recurso financeiro para comprar um notebook, meu esposo desempregado, eu também desempregada e eu não tinha renda e eu não tinha notebook, nem internet. Quando eu voltei para faculdade, eu levei um papel de licença maternidade para eu retomar a faculdade e quando eu voltei, eles me deram um prazo de 24 horas para eu providenciar um notebook e um Wi–fi. E eu falei a verdade: “Eu não tenho renda”. E aí naquele momento de nenenzinho novo, pós-parto, qualquer coisa eu já chorava e já desanimava. Então assim, o pós-parto, depois de 30 dias, a mulher fica muito sensível, o psicológico da mulher fica abatido. Então, eu fui, procurei a instituição, ___________ administrativo, que conversou sobre minha situação financeira e aí eles me falaram: “Você tem 24 horas para voltar. Se você não voltar, vai ser cortada a sua faculdade”, e aí foi o que aconteceu, foi cortado. Voltei, mandaram uma outra carta, uma solicitação no e-mail, eu só fui lá assinar. Procurei a Funai, a Funai não deu assistência nenhuma e a Funai praticamente disse que ligou lá, não sei se é mentira, se é verdade, e falou que eu tinha perdido mesmo a bolsa. E ela em nenhum momento tentou lutar pela minha bolsa. E meu esposo também não tem muito – como é que se diz –, conhecimento, né, e veio a pandemia, nos fragilizou. E tudo era online, e aí eu tive que parar de fazer a faculdade. Já ia para o quarto período, faltava só mais um ano para me formar. Hoje já era para eu estar formada, era pra eu estar fazendo mestrado. Mas, assim, eu vivi um momento de perda, foi esse momento que eu pedi a bolsa. E aí fui cuidar de outras coisas, minha filha pequenininha. A pandemia tinha suas restrições que não podia ter contato e teve muita coisa assim que, por falta de informação da minha parte, eu não levei adiante a causa e assinei o papel e perdi a bolsa. Eu não tenho mais direito a bolsa. Mas assim, eu tenho só fotos, artigos que eu fiz junto com meus colegas, da biomassa, que não é biomassa, é farelo de banana, e eu consegui compartilhar algumas coisas que eu conseguia fazer na época da minha avó, consegui compartilhar com meus amigos de classe.
P/1 – Parenta, sobre a questão de trabalho, alguma vez na vida você trabalhou em algum trabalho para fora? Sem ser o trabalho importantíssimo que hoje você faz, que não é um trabalho de empresa, nem nada, é um trabalho de construção e de afirmação. Mas assim, a pergunta em relação ao trabalho aqui é se referindo a um trabalho formal enquanto empregada de alguma instituição.
R – Eu já trabalhei numa loja de tendas, e já trabalhei em feira. Eu gostava muito de vendas porque a gente trabalhava com muitas pessoas e a feira também eu me sentia à vontade, porque era um lugar que vovó nos levava para passear, era como se fosse um shopping. Então eu gostava muito da feira, daquela ____. E eu trabalhei na loja de confecções, trabalhei em várias lojas de confecções, de roupa, de atendente e de babá, cuidava do filho de outras pessoas. E hoje, atualmente, trabalho com meus alimentos artesanais: geleia de cupuaçu, colorau, pimenta do reino. Agora estou com uma ideia do molho de açaí, que tem algumas rejeições, as pessoas têm medo de degustar uma alimentação diferente. E aí a gente vai levando.
P/1 – Então você teve essa experiência de trabalho formal e agora você tem essa experiência de trabalho cultural enquanto fortalecimento, mas também como geração de renda. Então assim, você poderia me dizer como é que foi... qual que é a diferença dessa relação do seu trabalho quando era um trabalho formal, você era empregada de alguma empresa, e assim se você lembra como que foi o primeiro trabalho, como que foi essa primeira relação. E hoje, como você se sente, qual é essa diferença desses dois tipos de trabalho? E quando você trabalhava enquanto empregada, essa renda servia para quê? E hoje, esse trabalho que você faz onde além de você recuperar a memória do seu povo, você também tira sua sustentabilidade, como é essa relação? Quais são as diferenças?
R – Primeiro eu tive que trabalhar a questão de horários. Eu comecei a trabalhar muito pequena, quando eu era criança, pela quantidade de criança, na casa do meu pai morava cinco crianças e tinha mais dois sobrinhos do meu pai, que a mãe faleceu, eles foram morar com a gente, então a renda familiar era muito apertada dentro da casa dos meus pais. Então eu já tava ficando mocinha, queria ter as coisas, queria comer coisas que eu não comi na minha vida, então assim, era para complementar a renda dentro de casa. E aí, assim, eu tive que primeiro, o meu primeiro emprego foi de babá e aí eu fui trabalhar numa casa que a mulher tinha uns hábitos totalmente diferentes dos meus. Ela era paranaense e tinha uns hábitos totalmente diferentes. Aí eu tive que me habituar com a questão de horário, costume e alimentação, que na minha época eu não conhecia vários alimentos: couve-flor; aquela folha amarga... vários costumes, Chimarrão. E assim, era totalmente diferente. E no meu segundo emprego, eu ainda era tímida, eu tive que praticamente deixar o que eu sou e viver uma outra pessoa para agradar o patrão. No caso, meu primeiro tempo foi na Banana Brasil e aí eu fui trabalhar e fui entender de uma coisa que eu não entendia, que era moda, era como é que eu ia tratar as pessoas e eu era muito reprimida, era muito fechada. Eu não era uma pessoa comunicativa, era uma pessoa muito fechada, então muitas vezes eu tinha vontade de abandonar um emprego porque eu tinha que trabalhar com comunicação. E aí eu tive uma pessoa que na época quando eu trabalhava era uma senhora que me ajudou muito a desenvolver essa questão de timidez. Mas eu tive um aprendizado nesse trabalho, tive aprendizado para eu me comunicar melhor. Eu não sabia dar uma entrevista, não sabia me comunicar, eu simplesmente abaixava a cabeça e me recolhia. Eu tinha um trauma dentro de mim. Então o emprego me tratou também, me tratou aquela coisa reprimida... eu acho que é da minha infância. Então eu tinha medo das pessoas me reprimirem, eu tinha medo de que as pessoas me mandassem voltar para a aldeia. Acho que a palavra mais dolorosa era essa. “Por que você não vai morar no mato, morar na aldeia?”, tipo assim, né, modo de falar. Mas eu tinha aquilo reprimido desde a infância, e aí foi habituando os costumes, os horários totalmente diferentes de casa e a gente teve que trabalhar junto com a escola, porque não podia faltar à escola. E aí depois de uns anos, veio um acidente e parou a minha vida novamente, parei uns três, quatro anos na minha vida, eu fiquei praticamente em coma no João Paulo e aí eu tive que me restabelecer novamente ______ ter quebrado e aí eu tive que parar minha vida um pouco. Aí depois eu me casei, não deu certo o relacionamento e eu fui adiante. Entrei na universidade com trinta anos, nunca é tarde para estudar. Aí depois desse acidente, eu falei “Quero estudar, nem que as pessoas me discriminam lá dentro”, voltei mais forte. Eu falei: “Nem que eles me discriminem, mas eu quero ficar dentro da Universidade, quero levar Miloca para dentro, eu quero descobrir o mundo que eu não conheço ainda lá e posso levar a minha resistência indígena para dentro da Universidade também”. Os meus filhos, futuramente, terão uma força interior, vão falar: “Mãe lutou”. E vou ficar lá dentro para compartilhar a Miloca, a pessoa que eu mais tinha identificação. E aí ela ia gostar de me ver dentro de uma Universidade, levando nosso conhecimento.
P/1 – Mucuá, então, você falou sobre sua experiência de trabalho formal. E aí você agora poderia falar sobre a sua experiência atual? O que que você tá trabalhando? Como é que é esse trabalho? Com quem você faz esse trabalho? E se isso, qual é a proposta dele, né, por meio desse trabalho, o que você quer alcançar? E a partir dele, você consegue gerar renda e essa renda, como você utiliza dentro do seu contexto? Como você trabalha isso?
R – Primeiro, é um desenvolvimento sustentável que vem gerando renda tanto para mim como para outras pessoas que me auxiliam junto. E uma das pessoas também que eu tenho que agradecer é a Tatiane Mura, que vem me auxiliando com as sementes, eu consigo compartilhar um material que seja tradicional e eu consigo resgatar um pouco da minha identidade também, porque tá saindo de um local que faz parte da minha raiz. E outro local que tá saindo a banana, é do território Karipuna e desse local, eu consigo tirar um alimento saudável para cuidar primeiramente da minha família e eu tenho um horário melhor para estar junto com a minha família, estar trabalhando em coletividade, o meu tio, os meus dois filhos e até mesmo com meu marido, o André, ele fica muito pouco, mas ele manda, às vezes, envia produtos orgânicos de qualidade que vêm do território, então assim, eu consigo gerar renda também para lá. De alguma forma, a gente consegue ter uma ponte de horários também, de organização, né? De organização, horário, fica mais tempo junto com... meio ambiente também, trabalhando com reciclagem também, eu trabalho na minha casa com reciclagem. E levando um pouco do conhecimento pro meu filho, que eu aprendi na aula de Geografia, falando que se a gente reciclar um pouco das embalagens, a gente vai mudar um pouco essa ‘página’ destruindo a floresta, né? Então assim, para a gente manter a floresta em pé, nós precisamos reciclar também, não jogar mais lixo, mas sim reciclar. E aí a gente trabalha também na rua com as crianças. Na frente da minha residência, de vez em quando, eu utilizo essa atividade com crianças para a gente reciclar o lixo urbano e vai gerando renda para dentro da minha casa. Através de um pote de colorau, que eu vendo, eu consigo levar um produto de qualidade que Miloca me ensinou, que o meu tio Aloísio me auxiliou, ele se tornou um ‘livro de receita’ muitas vezes. Então assim, eu vou me encaixando nos meus horários e, também, principalmente, no meu momento cultural, no momento que eu me sinto dentro da floresta novamente, eu sinto que eu tô trazendo a floresta pra uma cidade urbana. E depois da pandemia, tá praticamente com vários tipos de patologias, então a gente, através do alimento, pode trazer um bem-estar até mesmo para nossa família e para quem compra esse alimento. E que eu possa compartilhar também um pouco com os meus filhos que minha avó Miloca trabalhava comigo no pilão, trabalhava com questões de horários climáticos. Recente, agora mesmo, eu tô trabalhando com semente de cacau, né, e aí eu conversando com meu filho a importância do cacau ser bem cuidado essa época de inverno, época de safra do cacau, a gente pegar um alimento que seja saudável e _____ a questão de saúde da gente, levando um produto de qualidade também para quem não conhece um produtor orgânico, sem agrotóxicos. A gente pode mudar essa ‘página’, eu acredito muito. Eu posso ser 1%, mas eu quero ser 100% para lutar pela existência, que ainda existe resistência para produzir um produto de qualidade, mas sem agrotóxico e sem causar patologia, causar uma doença que venha, consequentemente, futuramente, causar um dano maior no meio ambiente também.
P/1 – Parenta Mucuá, nós conversamos sobre a questão do território. No começo você falou que seu povo veio de um território ali nas proximidades das Três Casas, que foi um antigo seringal e, também, por onde passa o Rio Madeira, e trouxe todo esse contexto da violência e da expulsão da sua família desse território, indo para a cidade. Durante toda a sua vida até agora, vocês passaram a viver na cidade e tiveram muitos deslocamentos dentro da cidade, né, de espaço que vocês viveram. E hoje, você teve algum deslocamento para um território, tem intenção de se deslocar? Quais são os territórios que vocês já percorreram e que você percorre hoje?
R – Mas eu não consegui entender, Márcia, direito a pergunta.
P/1 – Tá. Agora nós vamos falar da questão dos deslocamentos territoriais. Você já trouxe a memória de que seu povo foi deslocado do território originário, que veio de uma região nas proximidades das Três Casas, onde passa o Rio Madeira, né? Trouxe toda a memória de violência, discussão do seu povo, da sua família que veio para cidade. Chegando na cidade, você tem lembrança dos espaços e dos lugares por onde vocês percorreram? Se houve deslocamento de um espaço para outro, de um lugar para outro, de um território para outro. E se você já passou por outros territórios, já viveu nesses territórios, que territórios são esses que você se relaciona e que você percorre, você faz suas trocas de vivências?
R – Primeiro, aqui na maloca querida, né, eu me sinto em casa. estou aqui no Porto Velho, morando num momento humano, sou casada com Karipuna e assim, aos poucos, quando eu posso, vou até o território Karipuna e tento voltar algumas coisas de resgate familiar dentro do território Karipuna, até mesmo com esse plantio de andiroba que eu tinha lá. E aí, por esses desmatamentos que ocorreram, eu perdi minhas andirobas, mas assim, lá eu consigo ainda degustar uma alimentação de caça, que da época de Miloca ela fazia aquela preparação. Então assim, eu ainda consigo ir até o mais próximo que eu posso, que é o território Karipuna. E aqui na cidade o que eu desloco é no local lá da aldeia Cassupá, lá eu ainda consigo fazer algumas coletas: ouriço de castanha, compartilhar a planta, pegar plantinha, essa troca de planta com a Dona Helena e aquele carinho, aquele respeito dos grandes sábios que moram lá e eu respeito muito. Moram vários sábios e pessoas que fazem parte da minha vida também. Então, é um lugar que eu consigo pegar energia e voltar a ter um pouco do território também. Essa questão de tirar o pé, tirar a sandália e pisar numa terra que seja uma energia legal, né, uma energia pura, um ar puro. Então é trazer uma energia positiva. E até mesmo compartilhar com meus filhos, levar os meus filhos para estar junto nesse desenvolvimento de cada fase.
P/1 – Você poderia falar um pouco do ritual que você fez, sobre o nascimento da sua filha Karipuna?
R – A minha filha, a Ana Claudeir, tinha um ano de idade e segundo a cultura indígena Mucuá, da etnia Mucuá, convidei a Márcia Mura e sua nora, o seu filho e o seu netinho para fazer um ritual dos Karipuna, que é questão de proteção e respeito. Primeiro, respeito a cada espécie de animal e aí nós fomos para a beira do rio, me lembrei muito da minha avó naquele momento e aquele momento foi sagrado, aquele momento me trouxe muita coisa, assim, da minha infância, trouxe muita lembrança de como eu gostaria de não ter saído daquele lugar, como eu gostaria de ter a floresta e como eu gostaria de ter ficado naquele local. Aquele momento foi tão gostoso, foi tão sagrado pra mim e até mesmo para os meus filhos, e a gente compartilhou coletivamente, eu, mais a Márcia Mura, o filho dela, o Tainã, a nora dela e participou de um ritual muito importante na minha vida, que eu não consegui lembrar de outra coisa a não ser minha avó Miloca, o meu avô Aurélio. E assim, eu não sabia – como é que se diz –, ter outro pensamento a não ser minha avó lá passando aquela ______________ passa na perna da minha filha, para passar na minha filha para ela ter uma resistência, uma força melhor para saber lidar com as adversidades. E não é uma proteção, logicamente, de proteção para cobra não morder, mas sim para cobra respeitar e viver junto, cada animal no seu lugar. A cobra respeitou minha filha e a minha filha respeitou a cobra. E aí na beira do lago foi passada aquelas folhas, aqueles momentos, aquela energia espiritual e aquela areia da beira do rio, o pouco que têm de resistência da floresta, ela me ajudar a cuidar da Ana. Mesmo que acontecesse algo com a minha filha, a minha filha foi apresentada a natureza e a natureza vai cuidar da minha vida. É como se eu compartilhasse com a natureza: “Natureza, você é responsável um pouco pela minha filha”. Eu tô entregando a minha filha pra natureza e a natureza vai instruir ela e estar dentro do seu do seu espaço. E ali foi um momento muito lindo, foi um momento muito bonito, o momento que a minha filha teve uma energia com a água, teve o primeiro contato com o rio, um momento, assim, familiar, espiritual, ancestral e uma energia muito gostosa que ficou, ocorreu. E assim, aquele momento foi incrível assim, não tem palavra pra descrever não, não tenho palavras para eu ir escrevendo no papel como foi incrível aquele momento, que passou um filme na minha cabeça.
P/1 – Eu pedi para tu trazer um pouco desse momento, que eu sei que foi um momento muito importante para você e, também, que demonstra que mesmo que a gente possa viver na cidade, a gente consegue manter relação com a floresta, com os rios, né, e trocando, vivendo experiências também com outros parentes em diferentes territórios, diferentes contextos. E aí eu queria saber de você, por exemplo, da infância até hoje, vocês sempre viveram dentro da cidade ou vocês tiveram mais afastado, em ambiente de floresta? Se vocês se mudaram muito de um lugar para outro, como foram essas mudanças?
R – Na casa da minha avó a gente sempre morou mais próximo da floresta. Agora, com os meus pais já foi mudança de lugar. Quando eu cheguei a uma certa idade, estabilidade adulta, na fase adulta, eu quis meter meu cantinho próximo da natureza também. Eu escolhi um local próximo da natureza e naquele local que era próximo da natureza, foi logo quando o Samuel nasceu, meu filho nasceu, o meu filho mais velho e aí eu queria que meu filho crescesse no ambiente onde eu fui criada, onde eu me senti bem recebida, e aí, onde fui bem recebida, onde os pássaros moravam, onde os animais moravam e onde tinha um riacho de riozinho na época. Agora está poluído, mas na época quando eu cheguei era um local limpo. Então assim, eu sempre fui à busca de procurar um local que seja mais próximo da natureza, trabalhar a questão do reflorestamento. Quando eu cheguei estava tudo destruído, e aí teve que trabalhar o local, fazer um reflorestamento de tudo do solo e aí eu tive que começar do zero a cara. E a gente trabalhou de novo com coletividade, parentes. E o meu filho se dá muito bem lá, cria os animais respeitando cada um no seu espaço.
P/1 – Mucuá, falando agora um pouco mais, a gente já está chegando aos finalmentes. Sobre a... se você se sentir à vontade, de falar, né, sobre os seus relacionamentos, seus casamentos, filhos, cotidiano. Você se casou dentro da cultura do povo ou dentro da cultura não-indígena? Como foi? Se você pode contar para gente. Os filhos você já falou, mas aí você poderia falar novamente o nome dos filhos, quem escolheu os nomes, o que significam os nomes, como foi esse processo da maternidade para você e como é que é dentro da sua cultura o papel da maternidade e da paternidade. Conta um pouco aí então para a gente hoje como está a sua família, como são os momentos de lazer dentro da sua cultura e no diálogo também, como você já trouxe _____ com outros territórios com outros parentes.
R – Hoje eu vejo assim, que hoje eu sou mais realizada na vida conjugal, porque antigamente o pai do meu filho Samuel, ele era uma pessoa branca e ele não aceitava meus costumes. Eu me casei no costume da religião evangélica na época e aí eu pensei que eu ia conseguir manter um relacionamento na época, acompanhar o desenvolvimento da religião e não consegui. E aí os meus costumes como indígena eram excluídos, meu relacionamento não deu certo. Aí veio o nascimento do meu filho, meu filho quando nasceu eu descobri que ele era especial, mas não sabia o que que era na época. E aí eu fui levando um relacionamento adiante até levar a uma violência, e quando veio essa violência, eu não quis mais casar e fiquei sete anos sem querer me casar com ninguém, que eu achei que todo homem não ia respeitar os meus costumes, nem meus hábitos. Fiquei traumatizada. Casar com homem branco, para mim não foi uma experiência muito boa não. E depois de sete anos eu conheci o André numa reunião do Cimi (Conselho Indigenista Missionário), uma reunião de ecologia sobre defender o meio ambiente na época. E aí eu vi que um relacionamento de parente com parente é totalmente diferente, a gente tem um olhar diferente, tem um pensamento diferente e tem uma causa focada: a causa indígena. Aí eu falei: “Não, essa é a pessoa que eu quero terminar minha velhice”. (risos) Eu espero que ainda consiga, mas se não der, amém. Mas assim, é totalmente diferente você se relacionar com uma pessoa não-indígena e com uma pessoa indígena: os costumes são mais respeitados, você tem um apoio melhor, você tem um olhar, um apoio que vem te completando. Mesmo você sendo diferente com suas atitudes, mas vai te completando de alguma forma. A diferença desse relacionamento com uma pessoa não-branca... não foi uma experiência muito boa não. Então hoje eu vejo que eu me dou melhor com os meus parentes. E hoje eu tenho dois filhos lindos, maravilhosos e respeitam também o meu tio Aloísio, consegui trazer ele para morar comigo. Meu antigo relacionamento não aceitava o meu tio Aloísio, que trazia, ele traz para mim uma energia muito forte de contexto indígena, ele traz pra mim, para dentro de casa. E nunca vai mudar isso. Mesmo que as pessoas tentem introduzir, ele não muda, então ele me fortalece como pessoa. Ele me fortalece. Como hoje em dia eu não tenho Miloca, me apego com meu tio Aloísio. Então hoje em dia eu moro mais próxima do meu tio Aloísio, meu tio Modestino Mucuá também, ele frequenta muito a minha casa e a gente compartilha alimentos que Miloca fazia: tapioca, açaí. A gente trabalha coletivamente até mesmo nessa troca de informações que vem resgatando a questão indígena nossa. E meu esposo também vem junto comigo descobrindo, nós vem compartilhando coisa de tempo atrás e através dele também eu consigo acompanhar a luta da causa.
P/1 – Então Mucuá, você falou do casamento anterior que foi na religião evangélica e do filho que você teve nesse relacionamento, que é o Samuel. E no segundo relacionamento com um indígena do povo Karipuna. Nesse casamento, foi dentro da cultura? E o nome da criança, quem foi que escolheu? Qual o significado que tem? E aí o nome do Samuel também, quem escolheu, qual o significado que tem.
R – O do Samuel, eu não tive uma gravidez muito legal, eu tive uma coisa muito, batia muito de frente, eu não tive direito de escolher o nome do meu próprio filho. E na época eu não acompanhei minha gravidez direito, era uma menina, eu não tinha direito nem de escolher o nome da minha filha na época. E aí quando o Samuel nasceu de 6 meses, eu descobri que ele era homem, mas eu estava tão abalada que eu não tinha ação para escolher o nome do Samuel, e como na época, o pai do Samuel era evangélico, ele escolheu um nome bíblico, mas eu não sabia significado nenhum. Era um nome religioso, entendeu? Agora, o da Ana já veio com respeito da grande, da grande mulher que eu tenho um olhar totalmente inspirador, a dona __________. Ela é mãe do meu esposo. Dona Katika é uma grande guerreira, uma grande mulher e ela tinha esse desejo de escolher o nome do meu filho ou minha filha que nascesse, ela pediu essa autorização. E como eu gosto muito de ouvir os grandes sábios, eu autorizei e falei para ela que eu que ia ficar agradecida que ela escolhesse o nome da minha filha e ela falou para mim que ia ter que ter um tempo, ia ter que ter a lua ‘x’ para ela ver o nome da filha dela... o nome da filha dela não, da neta dela, perdão. O nome da neta dela. E aí quando meu esposo falou por telefone, que ela tava lá na aldeia na época, não tava aqui em Porto Velho, estava dentro no território Karipuna, ela falou para o André que o nome da minha filha iria se chamar Tuabeí. Aí ela falou: “Tem um significado. Tuabeí significa ‘renascer pura da natureza’”, e aquilo ali me deixou muito grata por a minha filha ter uma parte da descendência agora, que ela vai carregar, que ela vai “renascer pura da natureza”. E aí ela falou para mim que era como eu trouxesse um pouco também dela, renascer pura da natureza, Tuabeí ia nascer um pouco dela e eu fiquei muito feliz, fiquei muito feliz por ela ter me presenteado o nome da minha filha.
P/1 – E o casamento, foi nas duas culturas ou só em uma cultura?
R – A dona Katika teve AVC e ela não pôde conseguir fazer os preparamentos no contexto indígena, não conseguiu. E aí veio a questão de muitas invasões, meu esposo não conseguiu acompanhar essa questão de casamento, ele conseguiu só legalizar no civil, aí nós nos casamos no civil. Mas assim, tenho um desejo mais para frente de me casar lá dentro da aldeia, mas até o momento a gente ainda não conseguiu fazer isso, só conseguiu fazer o civil.
P/1 – Nós já conversamos bastante, estamos chegando já nos finalmentes, mas ainda tem algumas questões referentes... antes de entrar nessa questão, tem ainda uma pergunta sobre essa sua vida... uma pergunta específica assim sobre o momento de lazer, como que são esses momentos de lazer com a sua família? Nas comunidades, também, que você vivencia.
R – Primeiro é o rio, é o nadar, é ter o contato com a terra, é o contato na minha casa com a água, na horta, é o momento de nós estarmos juntos lá no meu quintal, cachorrinho, galinha, os pássaros cantando, o momento de colher as hortas e compartilhar com os meus filhos o conhecimento. E até mesmo acompanhar o desenvolvimento, do crescimento do pintinho, fazer um momento de pintura dentro de casa, entre nós, família. E até aquele momento de cada um vai pegar no pilão, o Samuel agora vai pegar no pilão, eu vou pegar no pilão e aquele momento de descascar as coisas: descascar banana. Pega uma bacia no meio, todo mundo se senta ao redor da bacia, lá em casa ainda consigo fazer isso. Meus sobrinhos quando vão lá em casa, eu pego, tiro as cadeiras tudo, nós nos sentamos no chão e vamos descascar: vai descartar uma banana, um milho. Você vai deixando a semente de alguma fruta, mamão, coisa, armazenar num vidrinho, porque vai ver uma época do inverno e a gente vai replantar aquela semente que a gente comeu agora. E pegar as cascas, fazer compostagem orgânica. E a gente sempre mantém esse momento de lazer familiar em casa, com os animais e as crianças. E o momento de lazer também é um momento da gente se pintar. Hoje mesmo a gente estava se pintando. Então, o momento é muito gostoso, fazer uma caminhada junto, ir ao espaço que fica mais próximo da floresta. A gente muitas vezes tá um pouco excluído, mas a gente ainda consegue ir em alguns lugares. A gente está mais perto da natureza, tem contato. É um momento de lazer.
P/1 – Mucuá, todas nós passamos por muitos momentos difíceis durante a pandemia. E aí a gente tem algumas perguntas referentes a questão do Covid. As perguntas são as seguintes: como vocês fizeram para se proteger do Coronavírus? Alguém chegou a falecer na sua família ou na sua comunidade? Como o coronavírus impactou a sua vida? Pensando na questão assim, dos aspectos culturais, profissionais e, também, pessoais, da sua rotina, do seu dia a dia.
R – A pandemia veio trazer primeiro a restrição... a primeira, particularmente, dizer, foi o psicológico, me bateu, porque eu não podia abraçar, eu não podia estar perto de pessoas que eu amava, eu não podia ter vida social entre amigos. E a segunda perda que eu perdi foi de amigos que frequentavam minha vida e faleceram, e eu tive que saber lidar e ao mesmo tempo conversar com amigos próximos e dizer assim que tá tudo bem, você não tá bem psicologicamente, porque você tá presa dentro do seu, dentro da sua restrição, né? E a gente se protegeu como pôde, com máscara, álcool em gel, mas eu mesmo assim fui contaminada. Eu tive Covid, eu mais o meu filho, eu fiquei um período bem, o outro mal. Até hoje eu acho que eu fiquei com a sequela do Covid, problemas de esquecimento neurológico. E a outra coisa foi a questão financeira, doeu muito na minha vida questão financeira, que eu perdi minha faculdade, perdi essa bolsa de estudo, eu não consegui acompanhar o desenvolvimento do meu filho, que é autista. Ele perdeu muito tratamento, ele perdeu fonoaudióloga, perdeu terapeuta ocupacional, perdeu uma parte da sua infância e o contato mesmo com os parentes. E a gente ficou, num momento, muito mais isolados do que toda nossa vida, a gente teve que se reinventar – a palavra correta – desde o planejamento familiar, o custo financeiro ficou muito caro, o custo familiar, a educação ficou mais cara, eu não consegui suprir as necessidades da minha família. Eu consegui só me reinventar. Consegui me estabilizar totalmente? Não, não consegui. Eu não consegui uma meta como eu gostaria de ter conseguido. Mas assim, foi difícil, foi muito complicado educação, saúde. Acho que foram as partes mais afetadas e a outra, financeira, todo o planejamento familiar, assim, eu perdi o controle. E aí tem que se reinventar tudo novamente e virar, como fosse um ciclo da vida, é um ciclo que eu tive que me adaptar e, ao mesmo tempo, ser forte, ao mesmo tempo eu me sentia frágil, então não conseguia suprir as necessidades daquele momento.
P/1 – Mucuá, como foi que vocês conseguiram se medicar? Trazendo presente aí a forma de tratamento que vocês utilizaram para combater o Covid.
R – Eu vou falar a verdade, no primeiro momento, eu não sabia que eu estava contaminada, eu não sabia. Eu fui cuidar do meu filho Samuel, que apareceu os primeiros sintomas, e o meu filho tinha onze anos na época e aí ele tem muita restrição com alimentos que têm cheiros fortes e eu apresentei-o aos alimentos tradicionais, as ervas tradicionais, mastruz, o jambu, o manjericão. E aí ele teve uma rejeição, aí a gente entrou com a medicação na época. Não foi muito sucesso. E aí depois de dois dias caiu eu com o Covid. Caiu eu com o Covid, bateu psicológico porque deu um medo de perder meu filho, a pessoa que, o homem que eu mais amo na minha vida é meu filho, então assim, eu senti muito medo de perder meu filho. E aí assim, mesmo assim, foi um momento muito difícil para mim, porque eu queria curar o Samuel, mas ele tinha uma rejeição e entrou nas medicações, ele piorou. E aí eu fui correr atrás do atendimento médico, por ele ser autista, ele não tinha direito, não tinha saúde adequada para ele e aí eu bati em várias portas pedindo socorro, sem financeiro, amigos me dando carona. O seu Erimar também me acompanhou, me ajudou com alimentos, com algumas coisas de proteção. E assim, foi um corre muito grande, desesperador. Eu estava contaminada, depois eu fiquei boa, mas assim, com aquele medo de perder meu filho, porque eu tinha uma segunda opinião médica, que meu filho tem problema de convulsão, e eu tinha medo de qualquer hora, após o Covid, ele ter uma convulsão novamente. Eu vivi momentos muito de medo, não dormia à noite de aflição e uma cobrança como mãe: “Será que eu vou dar conta de cuidar do meu filho?”. E aí consegui introduzir a alimentação tradicional para ele, mas ele resistia e empurrava, com o meu jeito de mãe, empurrava a medicação dele. A alimentação tradicional mesmo, o mastruz, o jambu.
P/1 – Mucuá, então, apesar de ser um assunto muito difícil de falar a respeito da pandemia, foi um momento também que a gente teve muita resistência, um parente apoiando outro parente também. E assim, durante a pandemia, antes de você pegar o Covid, durante, antes e depois, você fez uso mais da medicina tradicional, da não-tradicional? Como que foi?
R – Na verdade eu não consegui me adequar com a medicação que foi oferecida no posto de saúde médico na época. Aqueles remédios, aquele kit Covid tão falado, famoso, não consegui... me deu muita falta de ar, não consegui sentir resultado e eu não tive reações fisiológicas muito boas não. Eu tive uma recaída muito grande do coronavírus. E aí eu fui para alternativa, minha mãe com medo também de me perder, (risos) eu acho que a palavra correta, ela entrou na minha casa, mesmo eu contaminada com coronavírus, a minha mãe entrou dentro de casa e fez remédio tradicional, fez o mingau de caridade, que era a única coisa que eu conseguia segurar na barriga, meu estômago era... mingau de caridade, macaxeira, farinha d'água. E aí eu consegui sair daquele nível de fraqueza também. Eu comecei a tomar os chás tradicionais, a __________ do meu quintal. Da minha horta, tinha manjericão, tinha jambu e a chicória também, foi colocada no meio. Os remédios tradicionais foram essenciais na minha vida. E os parentes também compartilharam. Eu não consigo excluir os parentes, tanto foi Mura, como foi __________ também, me deixavam lá no portão. Esse carinho, eu senti que eu sou querida ainda em outros povos. Esses outros povos deram o seu apoio também, cada um compartilhou com a sua erva tradicional diferente. E os ___________ vieram de tão longe e compartilharam suas ervas também, deixaram tudo com o maior carinho, limão. A Márcia Mura também foi uma das pessoas fundamentais. Ela não imagina o quanto me ajudou no psicológico, porque eu estava muito fragilizada, porque meu filho estava com Covid e aí tinha aquele medo de perder mesmo que já tivesse passado os sintomas do Covid, mas as sequelas... E aí, assim, veio um apoio psicológico, que me ajudou muito.
P/1 – É, parenta, como eu falei, a gente foi se ajudando, umas às outras. Vamos então para as perguntas conclusivas. Bom, sobre o que você faz hoje, você já falou bastante. Quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R – Minha família, meus filhos, a _______ e Samuel, meu pai, minha mãe, meu tio Aloísio, meu tio Modestino Mucuá. Ele é muito reprimido, porque ele só tem dois nomes e ele é uma pessoa fechada também, mas ele compartilha umas histórias também, uns resgates familiares. E o meu marido também, ele também me fortalece nas causas. Ele sempre está apoiando também, mesmo ele estando lá dentro do território dele, ele sempre está me apoiando nas causas.
P/1 – Parenta, quais os seus sonhos e o que você gostaria de deixar como legado?
R – Respeito aos povos indígenas, não importa a etnia, não importa raça, não importa cor, não importa os nossos costumes, não importa o hábito e não importa a indiferença. É o respeito ao próximo. E assim, o que eu quero deixar para os meus filhos é que eles tenham respeito ao próximo, respeito a todos que queiram construir a Amazônia em pé.
P/1 – Qual é o seu sonho, parenta?
R – Meu grande sonho eu acho que chegar a ver meus netos, eu balançar, poder compartilhar meu caldo de caridade junto com os meus netos e eles, de alguma forma, conseguirem falar assim: “Eu tive uma avó indígena que ainda faz o chá tradicional e ainda usa o pilão”. (risos) Acho que é o meu grande sonho chegar numa velhice e ainda _____ o pilão. É um dos grandes sonhos que eu tenho na minha velhice. E podendo morar em um local que seja próximo do rio, acho que é o meu grande sonho mesmo, morar perto da natureza, com rio, uma água de qualidade, um ar puro que eu posso ouvir os pássaros cantarem livres e os meus filhos saudáveis, crescendo.
P/1 – Parenta, mesmo sabendo que o seu território hoje é ocupado por outras pessoas, você tem vontade de conhecer, de voltar lá?
R – Às vezes, sim, às vezes, não. Eu acho que esse governo atual me enfraquece muito. Agora, futuramente, quem sabe. Agora eu tenho muito medo do que ainda pode acontecer nesse momento. Eu não sei, tem hora que eu penso, tem hora que não. Ainda não estou bem segura pra levar nesse local. Minha mãe conta muita coisa, diz que assim, que me causa medo nesse local. Não pelos animais, não pela natureza, mas sim pelo que ocorreu, o que pode ocorrer também.
P/1 – Esse local que você está falando é o seu território?
R – Era o meu território. Lá já tem, acho que já virou uma pequena colônia, uma pequena cidade já, não sei, e virou um local de garimpo, um local que já tem outro tipo de agricultura e já não existe mais acesso àquele local que a gente conhecia, que os meus avós conheciam, né? Tabatal, ____. Já não é a mesma coisa, a violência lá traumatizou.
P/1 – O nome do lugar em si vocês não lembram?
R – Não, não é nem questão que eu não lembro, a questão é que foi excluído. Foi apagada uma página da minha família.
P/1 – Tem mais alguma coisa que você gostaria de falar que ainda não foi falado?
R – Agradecer. Agradecer a você por esse convite, agradecer toda a equipe e pedir desculpas (risos) também, meus ‘atrapalho’ que deu, aconteceu. Então, agradecer toda a equipe de vocês e eu quero que vocês que estiverem ouvindo essa mensagem, que tenha respeito à natureza, que a floresta precisa de nós e nós precisamos da floresta. Mantê-la em pé. A fauna e a flora precisam desse habitat muito melhor, nesse habitat que culturalmente vai trazer muito mais vida do que a gente pensa. A vida é esperança, ___________ um contexto de páginas que podemos virar e criar nossos filhos num local que seja mais puro e a gente possa ainda poder reciclar tanta coisa que aconteceu de ruim nessa pandemia, nesse momento desse governo e a gente ainda pode se replantar, se reinventar. Eu gostaria que mantivesse a floresta, a Amazônia precisa muito de nós e nós precisamos da Amazônia.
P/1 – Parenta, você é do povo Mucuá, teve sua família expulsa do seu território e você vive no contexto indígena urbano, na cidade, mas tá trazendo aí uma outra forma de trazer a sua cultura e recuperar essas memórias. Então, você poderia falar um pouco o que que representa ser indígena no contexto urbano e que tipo de políticas públicas você acha que deveria ter para os povos indígenas em contexto urbano?
R – Primeiramente agora, nesse momento, nós povos indígenas que moramos em urbano, dentro do seu território está muito vulnerável, mas eu gostaria que tivesse uma atenção maior na gestão ambiental, um respeito maior na gestão ambiental e até mesmo na saúde, porque se tiver uma atenção melhor na saúde, você tem um atendimento exclusivo para nós povos indígenas que mora, tanto urbano, como aldeado. Eu moro na cidade, eu sou praticamente excluída da questão da saúde indígena, da Casai, então assim, a gente não tem aquele olhar que a gente é respeitado os nossos direitos, mas a gente tem aquela resistência de ser uma indígena dentro da cidade ou fora da cidade ou dentro da aldeia ou não dentro da aldeia que ainda a gente pode gritar, eu posso dizer que eu sou e vou morrer sendo da etnia Mucuá e eu sou indígena, não importa o que essas pessoas pensam ou deixam de pensar, ou não importa que as pessoas acreditam ou deixam de desacreditar. Eu gostaria que tivesse mais respeito pelos direitos da gente, em vários setores, tanto na educação, como na questão da saúde e na questão ambiental. São três pontos muito críticos e vulneráveis.
P/1 – _________, minha parenta. Como foi, para você, contar sobre a sua história de vida?
R – Foi assim uma evolução que voltou na minha infância, voltou na minha adolescência e entrou uma emoção, dificuldade de pôr para fora o que estava reprimido. Foi bom compartilhar com vocês e ter a companhia de vocês dois. E, assim, foi um momento único. É um momento da minha página que eu vou guardar com carinho. E eu gostei muito de conseguir colocar a minha resistência e contar um pouco, compartilhar um pouco com vocês sobre o conhecimento da Miloca e a questão familiar também.
[Fim da Entrevista]
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