Corria o ano de 1969. Ditadura terrorista (não é pleonasmo, é ênfase: depois do AI-5, de dezembro de 1968, a violência homicida do regime se intensificou muito). Eu era repórter do Jornal do Brasil, editoria de Cidade. Tinha 22 anos de idade e três anos de profissão.
Num sábado, dia de plantão, fui designado para cobrir um caso policial. De acordo com uma emissora de rádio, dois oficiais do Exército tinham praticado um “homicídio recíproco” na Vila Militar. Na caminhonete do jornal, dirigida talvez por um veterano que havia sido amigo de Noel Rosa na juventude, Luís, se não me engano, íamos eu e um fotógrafo mais experiente, Hamilton, se não me engano.
Fomos recebidos no quartel por um sargento muito mal-encarado, magro, grisalho, revólver na cintura, portanto fora do coldre.
“O que vocês querem saber?”
“Fomos informados de que um capitão matou um major e foi por ele morto, num tiroteio”.
“Foi. Os nomes dos dois são Fulano de Tal e Beltrano de Tal. Os corpos já foram removidos para o Instituto Médico Legal”.
Agradecemos e, acabrunhados, entramos na caminhonete para voltar à sede.
O fotógrafo, logo que saímos do quartel, disse: “Vale a pena passarmos pela delegacia de polícia de Realengo, onde o caso obrigatoriamente terá sido registrado”.
E para lá rumamos.
Fomos recebidos por um delegado de polícia veterano, de terno branco de linho, desses que há muito não se usam, barriga algo proeminente, cigarro à mão.
“No quartel nos confirmaram que houve um ‘homicídio recíproco’ e que ambos os oficiais usavam pistolas calibre 45. O que o senhor pode nos dizer?”
“Meu filho, você já viu o efeito que um tiro de 45 provoca num corpo humano?”
“Nunca vi, delegado”.
“A pessoa, se estiver de frente para o atirador, cai de costas”.
“Hã...”.
“É impossível que os dois tenham se matado com tiros de 45”.
“Mas o que houve, então?”
“O capitão e o major foram mortos por um...
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Corria o ano de 1969. Ditadura terrorista (não é pleonasmo, é ênfase: depois do AI-5, de dezembro de 1968, a violência homicida do regime se intensificou muito). Eu era repórter do Jornal do Brasil, editoria de Cidade. Tinha 22 anos de idade e três anos de profissão.
Num sábado, dia de plantão, fui designado para cobrir um caso policial. De acordo com uma emissora de rádio, dois oficiais do Exército tinham praticado um “homicídio recíproco” na Vila Militar. Na caminhonete do jornal, dirigida talvez por um veterano que havia sido amigo de Noel Rosa na juventude, Luís, se não me engano, íamos eu e um fotógrafo mais experiente, Hamilton, se não me engano.
Fomos recebidos no quartel por um sargento muito mal-encarado, magro, grisalho, revólver na cintura, portanto fora do coldre.
“O que vocês querem saber?”
“Fomos informados de que um capitão matou um major e foi por ele morto, num tiroteio”.
“Foi. Os nomes dos dois são Fulano de Tal e Beltrano de Tal. Os corpos já foram removidos para o Instituto Médico Legal”.
Agradecemos e, acabrunhados, entramos na caminhonete para voltar à sede.
O fotógrafo, logo que saímos do quartel, disse: “Vale a pena passarmos pela delegacia de polícia de Realengo, onde o caso obrigatoriamente terá sido registrado”.
E para lá rumamos.
Fomos recebidos por um delegado de polícia veterano, de terno branco de linho, desses que há muito não se usam, barriga algo proeminente, cigarro à mão.
“No quartel nos confirmaram que houve um ‘homicídio recíproco’ e que ambos os oficiais usavam pistolas calibre 45. O que o senhor pode nos dizer?”
“Meu filho, você já viu o efeito que um tiro de 45 provoca num corpo humano?”
“Nunca vi, delegado”.
“A pessoa, se estiver de frente para o atirador, cai de costas”.
“Hã...”.
“É impossível que os dois tenham se matado com tiros de 45”.
“Mas o que houve, então?”
“O capitão e o major foram mortos por um sargento. Eliminados devido a conflitos motivados por contrabando em Guaratiba”.
O litoral de Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, é território de contrabando desde que, clandestinamente, negros escravizados eram desembarcados aí durante o Segundo Império.
Nas décadas de 1950 e 1960, cigarros americanos e uísque (em geral falsificado) eram um filão importante de contrabando. E tinha gente do Exército envolvida, como se sabe.
Voltei para o jornal e escrevi a reportagem. Não tenho cópia dela. Não sei dizer se me limitei ao registro da dupla morte no quartel ou se relatei também o que o delegado nos contara.
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