Projeto Conte Sua História - PARTE 1
Entrevistadas Vilma Guimarães (R/1) e Heloísa Teixeira (R/2)
Entrevistas por Rosana Miziara (P/1) e Flávia Constant (P/2)
Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 2025.
Código: PCSH_HV1438
Revisão: Nataniel Torres
R/2 - Ontem, a Catarina, minha neta, fez 19 anos. Dezoito. Aí deu uma festança, forró, pé de serra. Mas foi de matar. Eu não fui, não, mas eu estou... E veio depois um tal do Edmilson. Já ouviu falar? Teclado do Oledinho.
R/1 - Ah, o tecladista, sei. O cara que só bota pra quebrar no forró.
R/2 - É. Edmilson.
R/1 - Esse cara é bom. Quando ele vai numa feira de São Cristóvão, arrasa.
R/2 - É esse. E o Edmilson fechou o forró. Diz que foi uma coisa.
R/1 - A praça ontem também era forró. Nossa! Tava uma loucura!
R/2 - Forró é uma coisa tão...
R/1 - Eu adoro.
R/2 - Eu não sei dançar.
R/1 - Eu levei… Não? Claro que sabe. Todo mundo sabe dançar forró.
R/2 - Eu sei dançar, sim, sozinha. Mas eu gosto daquele samba.
R/1 - Aquele que vem, que volta, agarra...
R/2 - É esse que eu gosto. Esse eu não sei.
R/1 - Isso é bom.
P/1 - Uma pegada...
R/1 - Se pegar firme, então. Se pegar firme, é melhor ainda.
R/2 - Mas aquele é ótimo. Aquele eu não sei. Não sei mesmo. Fui tentar...
R/1 - Vamos na Feira de São Cristóvão. Se a gente for três sexta-feiras ficar só observando você, você se levanta e dança igualzinho.
R/2 - Aquele? Então vamos lá. Vamos deixar a Rosana trabalhar
R/1 - Vamos deixar a Rosana trabalhar.
P/1 - É muito bom estar aqui com vocês, sem palavras para agradecer a Flávia, a Vilma, eu tive a oportunidade de conhecer, entrevistá-la, e mexe com esse assunto. E eu acho mesmo um privilégio estar com você, alguém que eu sempre acompanhei do lado intelectual, então, saber, assim, da sua vida mais de pertinho, a Vilma estar junto, de verdade, é um privilégio. Gratidão por estar aqui, todo o meu respeito. O que eu imaginei, vê o que vocês acham da...
Continuar leituraProjeto Conte Sua História - PARTE 1
Entrevistadas Vilma Guimarães (R/1) e Heloísa Teixeira (R/2)
Entrevistas por Rosana Miziara (P/1) e Flávia Constant (P/2)
Rio de Janeiro, 18 de janeiro de 2025.
Código: PCSH_HV1438
Revisão: Nataniel Torres
R/2 - Ontem, a Catarina, minha neta, fez 19 anos. Dezoito. Aí deu uma festança, forró, pé de serra. Mas foi de matar. Eu não fui, não, mas eu estou... E veio depois um tal do Edmilson. Já ouviu falar? Teclado do Oledinho.
R/1 - Ah, o tecladista, sei. O cara que só bota pra quebrar no forró.
R/2 - É. Edmilson.
R/1 - Esse cara é bom. Quando ele vai numa feira de São Cristóvão, arrasa.
R/2 - É esse. E o Edmilson fechou o forró. Diz que foi uma coisa.
R/1 - A praça ontem também era forró. Nossa! Tava uma loucura!
R/2 - Forró é uma coisa tão...
R/1 - Eu adoro.
R/2 - Eu não sei dançar.
R/1 - Eu levei… Não? Claro que sabe. Todo mundo sabe dançar forró.
R/2 - Eu sei dançar, sim, sozinha. Mas eu gosto daquele samba.
R/1 - Aquele que vem, que volta, agarra...
R/2 - É esse que eu gosto. Esse eu não sei.
R/1 - Isso é bom.
P/1 - Uma pegada...
R/1 - Se pegar firme, então. Se pegar firme, é melhor ainda.
R/2 - Mas aquele é ótimo. Aquele eu não sei. Não sei mesmo. Fui tentar...
R/1 - Vamos na Feira de São Cristóvão. Se a gente for três sexta-feiras ficar só observando você, você se levanta e dança igualzinho.
R/2 - Aquele? Então vamos lá. Vamos deixar a Rosana trabalhar
R/1 - Vamos deixar a Rosana trabalhar.
P/1 - É muito bom estar aqui com vocês, sem palavras para agradecer a Flávia, a Vilma, eu tive a oportunidade de conhecer, entrevistá-la, e mexe com esse assunto. E eu acho mesmo um privilégio estar com você, alguém que eu sempre acompanhei do lado intelectual, então, saber, assim, da sua vida mais de pertinho, a Vilma estar junto, de verdade, é um privilégio. Gratidão por estar aqui, todo o meu respeito. O que eu imaginei, vê o que vocês acham da dinâmica que eu pensei, mas inteiramente pode ser um bate-papo aqui para a gente… Que seja um bate-papo mesmo, para ficar uma coisa solta, onde eu posso fazer algumas provocações de trazer a temática. Então, eu trago uma temática, você fala sobre, você fala sobre, uma pergunta para a outra dentro dessa temática. Eu não sei quanto tempo seria legal ficar, mas aí a gente vai equacionando o tempo, ou no tempo que for possível. Acho que fica assim, solto. Eu não sei se deu para entender o que vocês acham?
R/1 - Eu não sei o que você está chamando de temática. É uma temática, são conteúdos?
P/1 - Uma questão que vocês colocam.
R/2 - Faz uma pergunta.
P/1 - É, uma pergunta.
R/2 - Pergunta é mais fácil.
P/1 - É, não é assim: “Fale sobre o Brasil”.
R/2 - Faz uma pergunta. Isso aí eu não sei, mas fala uma pergunta que eu sei.
P/1 - É uma pergunta, e é sempre uma pergunta. Eu tenho até vergonha de falar pra vocês que tipo de coisa, que eu tô esperando que vocês sabem tanto de tudo. Vocês já estão sabidas, mas é o seguinte: é uma descrição, a narrativa contada com o narrador, o flâneur, aquele que, como você viu e viveu, o “causo” por trás daquilo. Como vocês são pessoas públicas, já deram muitas entrevistas, é pegar o cotidiano da coisa, o detalhe, a fresta da coisa. Então, é isso. É contar aquele dia que eu recebi o convite da Academia de Letras, eu tava lavando, eu tava lavando no tanque, aí peguei ônibus e passou na frente, esse tipo, mas fiquem livres pra falar do jeito que quiserem. Eu tô aqui também pra ensinar, não. Então, posto isso, queria começar que vocês falassem, uma e a outra, como vocês se conheceram e as diferenças e semelhanças que uma vê na outra.
00:04:17
R/2 - Olha, eu me lembro de uma coisa, que era do Tuinho, um amigo comum, falando: “você tem que conhecer a Vilma”. Agora, como é que isso aconteceu, eu não me lembro. Mas tinha essa coisa “não pode não conhecer a Vilma”.
R/1 - E ele disse pra mim a mesma coisa. “Você tem que conhecer a Heloísa”. Eu disse: “Então, marca”. E o que aconteceu?
R/2 - Marcou?
R/1 - Marcou. Sim, mas não foi o Toinho, porque o que aconteceu? Entre o Toinho pensar que a gente tinha que se conhecer e ele marcar, as quebradas, as quebradas, precipitou totalmente o nosso encontro, porque aí eu não lembro se foi… Quem foi das quebradas? Eu não me lembro.
R/2 - Que te chamou?
R1 - Sim, que disse assim: “Está precisando de escolaridade, de escrever correto”. E alguém disse assim: “chama a Vilma para você”. ‘Ah, é a Vilma de Toinho”. Aí recebi um telefonema que eu não sei se foi da nossa amiga, que está lá o tempo todo, Rosangela. Ou seu foi Rô que me telefonou e nós marcamos o encontro. Eu avisei pra Toinho. Toinho chegou logo depois que a gente já estava conversando.
R/2 - Ele fez a benção.
R/1 - Foi. Deu a benção, participou do final da nossa conversa. Mas já foi planejando o que a gente ia fazer nas quebradas.
R/2 - Mas foi tão importante esse primeiro… Foi tão importante. Porque foi uma identificação assim meio magnética, sabe? Imã. Puxa, aí eu comecei a falar com ela como se já falasse há 50 anos, peguei do meio e comecei. E a gente pegou no tranco uma coisa assim “o que eu penso?”. A primeira pergunta que eu fiz, eu me lembro tão bem: “Vilma, por que eu tanto abraço esses quebradeiros?”. Porque é inacreditável, eu entro na sala e começo a abraçar todo mundo, beijar todo mundo. É um tal de abraço antes de começar qualquer coisa. É corpo, é puro corpo. E são umas pessoas longe da minha realidade. Eu jamais faria isso no meio da rua. Que diabo que acontece ali? Aí ela olhou pra mim e disse assim: “É cumplicidade de causa”. Eu me lembro tão bem desse diálogo. “É cumplicidade de causa”. Aí eu pensei, e realmente era. Quando a gente entra na quebrada, a gente realmente… Cada ano é diferente, mas a gente pesca uma bandeira para aquele ano. Pesca mesmo. E essa bandeira, eles falam que é quebrar. Eles acham que é bom quebrar a universidade. Quebrar, quebrar, quebrar. Quer dizer, se calcular isso direito, o que eles estão falando é inclusão, mas eles chamam de quebrar. “Vamos quebrar tudo, quebrar tudo, quebrar tudo”. É quebrar muro.
R/1 - E quebra mesmo.
R/2 - Pois é, mas eles pensam que é quebrar mesmo. Quer dizer, quando eles falam isso…
P/1 - Não é metafórico.
R/2 - Eles significam quebrar mesmo. E eu traduzo como inclusão, esforço de inclusão. Mas, para mim, é tudo ao contrário, porque o que eu quero não é que eles quebrem a universidade, é que a universidade se toque que eles existem. E mude aquela coisa, universalidade, universidade. Tinha que ser “pluriuniversidade”. Aquela universidade tem que se sensibilizar com coisas fascinantes, Rosana, que acontecem na cidade. E não sabe de nada. É aquela cultura letrada, totalmente alienada e que não anda para frente por causa disso, porque não tem intervenção, porque ninguém vem no meio. Então, a minha política é acadêmica, não é social. E eles contam como social, é interessante que tenham, mas a causa é a mesma. A causa é abrir as instituições. Abrir as instituições para reconhecer esses sujeitos. E esses sujeitos abriam a instituição para ficar mais fácil a performance deles lá. Tanto que, nos primeiros anos, aumentou potencialmente, exponencialmente, a entrada na universidade. Todo mundo entrou. E tinha gente que já tinha entrado e tinha saído porque não tinha aguentado. Porque o que eles faziam com a cota? Eles faziam com a cota uma coisa horrenda. Eles deixam o cara entrar. Aí o cara vai e senta na aula. Aí aquele cara não sabe nada do ponto de vista do professor, nada. Então, ele tem que ter uma atenção especial. Então, mandam ele fazer coisas extras que os normais não fazem. Aí, ele tem que saber alemão, latim, espanhol, pelo menos inglês, que é uma coisa de classe, só fala inglês quem tem dinheiro para pagar aula de inglês. Essa exclusão pela língua já é pirada, porque quando você faz concurso, você tem que falar uma língua. Quem fala língua? Playboy. Fala, não precisa aprender. É por classe mesmo, é uma coisa de exclusão mesmo, a prova da língua. Porque qualquer idiota faz um cursinho de seis meses e está falando igual o playboy. Um cursinho de imersão que a faculdade devia pagar. Sai falando, isso não é uma prova de desqualificação.
R/1 - Feito de inteligência.
R/2 - Não saber falar inglês. Então, o que eu queria mesmo, se eu só fechar para falar, o que eu queria mesmo era que a academia reconhecesse essas pessoas. E essas pessoas começam a hackear a universidade, o que é muito bom. Começa a botar os seus assuntos lá, começa a aparecer tese sobre isso. Elas começam a dar aula lá, porque nos primeiros anos, que eu estava muito na UFRJ, tem uma menina trançeira que deu aula até para medicina, cursos de… Como é o nome daquela coisa? Terapia… Quando você tem que dar lazer para as pessoas, estimulado.
P/1 - Terapia ocupacional.
R/2 - Terapia ocupacional, que virou um sucesso com as tranças. Porque as tranças têm uma simbologia complicada, é lindo aquilo. Então, virou top na medicina, olha que loucura! Então, começa a ter uma interação fraquinha, que é o que a gente consegue. Muito fraquinha, mas tem. Agora que eles começam a ser reconhecidos, começam. Então, é isso. Foi assim que a gente se casou. E eu sou apaixonada pela Vilma. Mas total, total, deixa eu falar de frente, totalmente apaixonada, totalmente.
00:11:22
R/1 - Acho que teve uma coisa nesse ímã da gente que foi um pouco no meu trabalho não encontrar na universidade justamente esse acolhimento. Fiquei à margem dela. Eu fiz tentativas, mas todas deram errada, porque não batia nada que eu fazia, que eu acreditava e que eu queria. Eu já era diretora de escola e me matriculei para fazer pedagogia. Tudo que eles diziam lá, eu fazia o contrário na escola. Eu passei três meses e até logo, o que eu ia fazer lá? Eu não acreditava. Eu fazia totalmente o contrário. Então, eu tinha uma questão com a universidade. E, quando eu encontrei a Heloísa, eu encontrei a universidade que eu desejei a vida toda. Era ela! Era ela. Porque a gente podia ser universidade, podia ser o povo, podia ser os excluídos, podia estar diante deles com toda a ética, com todo o respeito, com os abraços. Com os abraços. Porque queríamos a mesma coisa. Eles e nós. E precisava estar junto. Tem outra coisa que você fala muito: o Tapete Vermelho. Você conta porque pegou a história do Tapete Vermelho. Um dia, ela contou a história e eu esqueci de falar as coisas.
R/2 - Eu fazia confissões. Sabe aquela pessoa que supervisiona na lista? Você conta o que você fez no convívio para elaborar. Era o que eu fazia com a Vilma. Tudo que eu fazia, eu ia perguntar para ela depois. Estava aí elaborando.
R/1 - Então, teve, de fato, esse encontro assim. Foi possível encontrar a universidade encontrando a Heloísa. Quer dizer, que papel, tudo isso que ela acabou de falar.
R/2 - Conta do tapete.
R/1 - O Tapete Vermelho, quem sabe conta melhor é você, porque ela me pegou com a história. Quando ela falou, eu liguei. Conta aí.
00:13:28
R/2 - É porque eu, na formatura… No primeiro lugar, eu botei as quebradas sempre, em lugares maravilhosos. Na universidade, eu botei no Fórum de Ciência e Cultura. Top! Tudo dourado, igrejas… Depois, pegou fogo, eu fui para… A Casa de Estudantes, Salão Nobre, que era enorme. O melhor lugar que tinha, o melhor ponto de vista, luxo. Aí, peguei também o Mar. O Mar, junto com o Museu de Punta, uma sala linda, toda maravilhosa.
R/1 - Dentro da Escola do Olhar.
R/2 - Depois, fui para a academia. Estava na biblioteca da academia. Então, a ideia é entrar em lugares de alto luxo, para verem o que eles merecem. Não é num cantinho da universidade, num cantinho reservado, não. É no melhor lugar que tem ali. E aí eu perguntei para ver, porque eu faço as coisas sem saber. Aí eu perguntei para Vila: “Vilma, que cara é essa? Por luxo, será que eles gostam disso?”. Por que isso quem faz sou eu, né? Quem faz sou eu. Aí ela veio com o tapete vermelho. Conta, aí. É a minha sessão de supervisão.
00:14:44
R/1 - Ô, irmão, você precisa ir nas formaturas e ver o tamanho de tapete vermelho que eu boto para receber os estudantes e eles têm que caminhar naquele tapete vermelho. E foi muito difícil argumentar nas instituições bem conservadoras, mas conservadoras eu acho pouco, distantes de fato da causa pública, da inclusão, do direito de todos. É uma questão de direitos. Quando você não pensa neles, você não pensa em nada disso. Pensa que camiseta é luxo, que tapete vermelho é para doutor Ph”deu”. Como eu gosto de chamar, com todo o respeito, PH “deu”, entendeu? Com todo o respeito. Tem que ser PHD para ter direito ao tapete, para ter direito a receber uma farda. Outra, na Academia Brasileira de Letras. Então, assim, as nossas formaturas, os nossos rituais, e isso a gente conversou muito, temos que trabalhar muito os nossos rituais, porque eles foram negados da população excluída do Brasil.
R/2 - Tem que ser o melhor.
R/1 - Não tem direito a ritual. Então, tem que ser o melhor. Era o melhor apresentador, aquilo que ia ser sentido. Era a melhor apresentação musical. Então, eles tiveram de tudo. Mas o tapete começava lá. Descia do ônibus, dali já começava o tapete. Era um tapetão vermelho. Porque eles iam andar muito, que eram 30 mil estudantes, 20 mil, 15 mil. Então, você tinha que ter muito tapete para entrar naqueles Centros de Convenções de Pernambuco, por exemplo. Mas as pessoas se espantavam, diziam assim: “mas tapete vermelho?”. E eu: “É, tapete vermelho. É o que eles merecem. Hoje é o dia deles. Tapete vermelho”. Então, assim… E o tapete tem um impacto, né? E tem o resgate de direito também. Você devolve aquilo que foi tirado da forma mais violenta. Porque, se a gente for para o Cais do Valongo, aqui pertinho, começa ali e não acabou até hoje, né? Ainda hoje a gente vive esse processo de exclusão. Uma hora é cínico, outra hora, sabe, de formas muito feias, muito feias com as pessoas. Então, o tapete vermelho faz parte de você reconhecer, de estar ali, dizendo que hoje é o seu dia. E por isso que eles botam o vestido de baile. Eles vão lindíssimos, maravilhosos, os meninos cortam os cabelos, fazem aqueles penteados lindos, as mulheres lindíssimas, porque todo mundo nasceu para ser feliz, para ser belo, para ter dignidade, e quando eles encontram isso numa prática educacional, de fato, e não num discurso, porque o que faz a quantidade de abraço, que Helô falou, ou a quantidade de choro que um dia espantou muito, que Cacá Diegues me perguntou: “Quero saber por que as pessoas choram quando começam a contar a história? Eu quero saber por que as pessoas choram? Chorou no Acre, chorou em Pernambuco, chorou no Ceará… Porque as pessoas se emocionaram. Aquela história tinha significado para elas, mas tinha respeito. Tinha respeito. Então, é pra sempre, todas as vezes que a gente lembra de algo muito forte, a gente chora de alegria, de emoção, não de tristeza. Então, tudo isso faz parte de você conseguir a vida inteira da gente, porque é uma vida toda. É uma vida toda fazendo do mesmo jeito aquilo que você acredita de forma diferente, que é todo mundo ter o mesmo direito que a gente teve, de comer, de estudar, de brincar, de se divertir, de tudo.
P/1 - Vou pegar um gancho então, posso? De brincar, se divertir. Pegar um gancho das origens familiares de cada uma de vocês. Eu até pensando na entrevista que você me deu, que isso foi muito explorado em uma coisa que a Helô falou numa das entrevistas, quer dizer, que você estava trabalhando com mulheres negras e a ancestralidade te trouxe, quer dizer, assim, mas eu achei o máximo aquilo, porque elas conheciam a história da mãe, da avó...
R/2 - Eu não conheço.
P/1 - E aí você não conhecia, você viu que aquilo dá uma segurança. Sabe aquilo, então? Olha eu dando palestra.
R/2 - Não, mas não é assim, né?
R/1 - Mas é assim, você conversa, não é palestra, é diálogo. É diálogo, é identidade.
P/1 - Então, eu identifiquei, quando você disse isso, você trouxe essa história, essa narrativa. Então, eu queria propor assim, que cada uma falasse o nome completo, local, data de nascimento, nome dos pais, dos avós, e essas lembranças que vão sendo evocadas. E, se uma quiser também ajudar a outra perguntando para saber essa origem, também pode ser legal. Então, pode ficar livre.
00:19:51
R/2 - Eu te dou a ficha técnica, mas as lembranças você vai ter que perguntar. Branco. Total. “Omo”. O meu nome inteiro, o meu primeiro nome foi Heloísa Helena Oliveira Buarque de Holanda.
R/1 - Não foi!
R/2 - Não foi. Heloísa Helena Teixeira Oliveira… De Sousa Oliveira, esqueci. Repetir: Heloísa Helena Teixeira de Sousa Oliveira. Foi a primeira. O segundo foi Heloísa… Ah, não, fala só do primeiro, né?
P/1 - Não, pode falar o que você quiser, por favor. Começa no primeiro.
R/2 - Foi esse nome. Meu pai chamava Alberto de Sousa Oliveira. Minha mãe chamava Nair Jorge III. Minha avó chamava Natália Jorge III. Meu avô chamava Manoel José Teixeira. Por parte de mãe, eu tinha uma avó chamada Cântio Nília, acho que de Sousa Oliveira, e um avô, que acabo de me esquecer o nome, mas bem que sabia, foi, de Sousa Oliveira. E, pela essa pequena falta de lembrança, você vê a distância que eles estão de mim. É gigantesca! Eu me lembro do meu pai, da minha mãe, é óbvio. Da minha avó, pouco, mas muito pouco. Eu não me lembro de nada que ela tenha dito para mim. Eu me lembro dela fazendo tricô. E olha que eu morei com ela, porque a minha mãe teve tuberculose quando eu tinha seis anos. Aí a família toda teve que se deslocar para Belo Horizonte, que era onde se curava, era o clima que curava naquela época. Estamos falando de 1940. Então, antigamente era o clima. Você ia para Belo Horizonte, tinha sanatórios lá no alto e elas, pelo clima, se curavam. Então, fomos todos para Belo Horizonte. Minha mãe foi para o sanatório e eu fiquei com a minha avó. Por isso, ela foi para Belo Horizonte ficar comigo. Então, eu me lembro de coisas dela assim
É engraçado, é sempre a mesma imagem. É ela fazendo um tricô. Além desse tricô, a avó não existe. Caos. Não existe. Ela não me disse nada nunca, na minha cabeça. Deve ter dito muito, imagina, um momento sozinha com a neta, tomando conta o ano inteiro. No lugar da mãe, deve ter falado pra falado pra burro, mas eu não me lembro.
P/1 - E seu avô morava com ela?
00:22:33
R/2 - Meu avô morava com ela, veio também. O meu avô lembra ainda menos. Mas eu me lembro que ele era considerado uma pessoa aventureira, uma pessoa dona... A economia da minha mãe era fazenda, ela era fazendeira. Então, meu avô tinha várias fazendas, me lembro desse avô que… “Pocotó, pocotó, pocotó”. Mas acabou aí. Da minha avó Cantionilia eu tenho bem mais, porque meu pai é paulista, mas ele nasceu, mas logo voltou para a Bahia, porque a família toda é baiana. Então, foi um mini-acidente ele passar por São Paulo. O mais correto é dizer que ele é baiano. Então, ele tinha… Meu pai era completamente feio da minha mãe. A minha mãe era uma pessoa muito bonita, mas muito bonita. E vivia em torno disso, porque ela era muito bonita e tinha um cara que se apaixonou por ela. Então, a vida dela era isso, era cuidar desse grande amor. E eu não me lembro dela cuidando de mim muito. Lembro fazendo assim com a mão esquerda, qualquer coisa que eu perguntasse: “Fala com o seu pai”. Tanto que, no dia das mães, eu dava um presente pro pai e outro pra mãe. Ele era minha mãe. Então, ela era assim, uma mineira, que já tem tendências a ausência e uma mineira desconfiada. E o pai era um escracho, era um baianaço. Abraço, beijo, colo. A mãe do pai também, uma baianona, cheia de jóias. Sabe aquelas jóias baianas?
R/1 - Ouro do Juazeiro.
R/2 - Aqui no colar e toma de abraço, renda, parece uma mãe de santo, na realidade. E bota de abraço, não sei o que lá. Elas eu me lembro, me lembro da minha tia demais, que eu não lembro de nenhuma outra. Minha irmã tinha seis irmãs, são seis dias, não me lembro. Lembro do nome de cada um e da cara, eventualmente. Mas, do meu pai, lembro de todas as irmãs, porque era um afeto que rolava, meio translocado, de Bahia mesmo, aquela coisa… Mas, sempre, muito corpo, muito carinho, muito… O avô eu não conheci. Então, minha vida era por aí. Agora, o que você disse? O que lembrava? Não lembro, além disso. Eu tinha uma vida...
P/1 - De lembrar, que você está lembrando até agora.
00:25:18
R - É, tudo isso não houve, então. Essa é a ficha técnica, não é?
P/1 - Não, é mais a ficha técnica que você está trazendo.
R/2 - Eu me lembro que a minha infância foi muito chateada sempre porque minha mãe resolveu, como eu estava em Belo Horizonte, botou no Sion, porque ela era a única colégio particular que tinha. E eles não botavam em escola pública porque não gostavam do povo, provavelmente. O meu pai era escravocrata mesmo. Minha mãe dizia assim “a empregada”, ela contratava e falava assim: “os dentes dela são ótimos”. Coisa de uma violência. “Os dentes dela são ótimos”. “Mas como assim?”. Não, uma coisa bárbara, os dois eram monstros. Eu me lembro, então, que eles botaram no chão durante a minha mãe. Minha mãe durou um ano nessa coisa e voltamos para o Rio e eles transferiram para o Sion. Eu odiava esse colégio, mas eu odiava. Sabe o que é uma pessoa que vai chorando e volta chorando? Pequenininha. Eu tinha horrores e não tirava, porque era um colégio muito bom, para eu conhecer pessoas bacanas para casar? Não, não era nem para casar nada, era para conhecer alguém que me apresentasse ao marido, para ter as amizades de elite, uma coisa, e eu detestava.
R/1 - Nasceu, né? Nascia.
R/2 - Uma coisa horrível. Aquele colégio, eu estive até o final do segundo período, todo ano pedindo para saírem eles não tiravam. Então, me lembro dessa beleza com outro colégio. [intervenção]
R/1 - Como foi que você fez isso?
R/2 - Foi quando eu falei dos dentes.
R/1 - Foi dos dentes. Foi tão forte que caiu.
R/2 - Mas os dentes, não é bizarro?
R/1 - É demais, que coisa!
R/2 - Minha mãe, os dentes.
R/1 - Não era para ter um dente bom, né? Que espanto!
R/2 - Não, é porque é assim que você negociava escravo. Porque nas fazendas do meu avô tinha escravos. A minha mãe foi criada por uma escrava. Eu sabia até o nome. Era o nome. Uma pessoa que ela adorava.
R/1 - Uma ama de leite?
R/2 - É. Minha mãe teve ama de leite. Por isso que ela falava dos dentes.
R/1 - Exato. Ama de leite. A minha mãe, Rosana, o meu avô tinha fazendas. E a minha avó botou mãe de leite, tinha escravo.
P/1 - É mesmo?
R/2 - Por isso é que ela fala dos dentes. Tinha escravo.
P/1 - E seu pai, qual é a origem dele? De trabalho?
00:28:14
R/2 - É popular. Meu pai, depois do trabalho, virou médico. Mas meu pai era de uma classe média baixa baiana.
P/1 - Como é que eles se conheceram?
R/2 - Pois é, ele foi a Ribeirão Preto que era onde estava a minha mãe, a base de uma das fazendas. Então, ele estava lá, e se apaixonaram. Meu pai, além de médico, era violinista e tocava aquelas coisas bem ciganos, sabe? Aí meu avô… Sabe, fazia altos, agudos. Ele era danado, ele era baianinho danado. Mas ele tocava aquele violino pungente. E aí a minha mãe, obviamente, caiu de paixão. E o meu avô e a minha avó não deixaram eles se casarem, porque ele não era de uma boa família. Aí tanto a mamãe fez que casou. Casou e se mudou para o Rio, aí eu vim. Eu nasci lá e vim para cá depois. Mas foi uma luta esse casamento. E o que mais eu lembro? A minha mãe, a minha avó, teve ama de leite. Esse negócio dos dentes é uma convivência muito próxima com o escravo da fazenda. Eles continuaram, trouxeram para a cidade aquela… Os dentes, a qualidade dos dentes.
00:29:42
R/1 - A minha história é bem diferente da de Heloísa, muito diferente, porque ambos eram de origem muito pobre, muito pobre, baixíssima escolaridade. Papai fez três anos e mamãe fez um pouco mais de três anos e meio, ela dizia assim, eles competiam em seis meses, um semestre, era sempre uma brincadeira com a gente. Mas o papai começou a trabalhar com quatro, cinco anos, porque a minha avó, foi a única avó que conheci, a mãe do meu pai, tinha um banco de feira, num município chamado Bezerros, onde Jota Borges fez toda a sua história e onde tem um carnaval muito tradicional de Pernambuco, uma coisa muito linda lá. Ele levava as compras já com cinco, seis anos, das pessoas, das madames, de pessoas. E levava. Minha avó quis morar em Recife, veio para Recife, continuou com o banco de feira, mas foi trabalhar, não sei como, num posto de saúde da estrutura do Estado. Esse posto de saúde continua até hoje, é bem tradicional. E, nesse posto de saúde, ela chegou a ser chefe de um setor, ficou muito reconhecida. Ela se aposentou com 70 e tantos anos, mas ia para o posto todo dia. Não parou de trabalhar. Ela ia todo dia para o posto. E todo dia ia almoçar na casa da gente. E não gostava muito de mim porque eu era muito branca.
R/2 - O resto não é?
R/1 - Não, porque lá em casa tem tudo. Tem olho azul, olho verde, olho preto, o que chama negão, o que chama branquinho. Aí a gente brinca muito depois de adulto, né? O filho do holandês, o filho do português, o filho do africano. Tem todas. Somos nove.
R/1 - Cada um de uma nação.
R/1 - Então, você tem tudo. Então, eu fui a primeira mulher, eram três homens, três mulheres e três homens. Eu fui a primeira mulher, aí nasci mais branquinha. Foi uma desgraça, porque todos os outros eram pretinhos, vamos dizer assim, e ela cismava. E tem uma coisa, todo dia, ela levava presente para os outros, todo dia, e não levava para mim.
R/2 - Não levava?
R/1 - Não levava para mim. Não dava para mim. Toda vez, a mamãe olhava e tinha vontade de dar um murro nela. A mamãe tinha vontade de dar um murro toda vez. Ela abria assim. “Lorin”, chamava um irmão de Lorin, que tem os olhos verdes, lindo, Alberto, hoje é o mais velho, porque os dois mais velhos já partiram dessa terra. E aí chamava Socorro. Só ia ali e ia passando para os meninos. A mamãe ficava esperando. “E Vilma?”. “Não tem. Ela já tem tudo aqui, porque ela já tem tudo”, porque achava que mamãe gostava mais de mim e papai também. Mas eu sempre fui assim, muito papai, muito mamãe, no sentido dos abraços, dos afetos, muito junto com todos eles. Então, eu tenho uma história até hoje, que eu sou a preferida, fui a preferida do papai e de mamãe. Por mais que eles dissessem que gostavam de todos, mas eu era aquela que gostava de tirar o sapato do papai. Aí diziam: “olha, ela adora o chulé”. “Olha, ela é tão… Que ela vai sentir o chulé do papai”. Mas eu adorava tirar a meia. “Ele não tem chulé”. “Tem, olha o cheiro!”. Eu botava a meia dele, botava o chinelo quando ele chegava. Então, isso fazia. Na escola, eu levava, quer dizer, que eu corria pra pegar a professora quando vinha com aquela pilha de caderno. Ela corre logo, toma os cadernos pra levar pra professora, para a professora não carregar tudo. Então, esse jeito de fazer as coisas que eu ainda continuo, eu tinha muito de mamãe e de papai, dos dois, os dois eram muito, mas a origem é assim. Então, o papai foi trabalhar na feira com vovó quando chegou em Recife, com sete anos, mas o vovó logo foi para o posto de saúde. Mas tinha um vizinho, um amigo que era sapateiro. E aí o papai aprendeu a consertar sapato. Então, estava na escola e, quando deu uns nove para dez anos, já saiu da escola, porque ele já era o principal auxiliar do sapateiro. Ele já sabia fazer sapato, inclusive. Então, é essa história... Mamãe tinha que criar todo mundo. Não conhecia a mãe dela, a mãe dela morreu, a minha avó morreu com 46 anos. Ela ficou muito pequena, tinha sete anos. Com 13, ela trabalhava para uma fábrica em Goiana, Mata Norte, Goiânia, no nosso caminho para Paraíba. Ela já trabalhava costurando saco para essa fábrica, porque as irmãs dela já trabalhavam lá como funcionárias, já eram mais velhas.
R/2 - Ela tinha quantos?
00:35:09
R/1 - Ela tinha sete para nove anos, ela já costurava saco, tipo assim, trinta sacos por dia, mas ia para a escola e entregava. Mas tinha que costurar trinta sacos. Que é fechar o saco, né? Vem aberto o pano e fechar. Tanto que quando ela teve um AVC, quando ela começou a recuperar a memória, sentava na cama do hospital e ficava costurando. Ela fazia assim, como se fosse um pano, dobrava e estava aqui. Aí abria outro pano...
R/2 - Já velha?
R/1 - Já! Já velha. Veio tudo na memória dela. Quando ela começou, o AVC apagou a memória recente dela, que era a morte de um filho mais velho, que ela não conseguiu viver. Ela teve um AVC e comprometeu, mas a memória antiga veio toda. Então, quando ela começou a dar os sinais de lucidez, ela começou pela memória de infância costurada no saco. Estava lá. Eu nunca deixei de acompanhar meu pai e minha mãe estando no Rio. Acompanhei tudo.
R/2 - Mas você estava no Rio?
R/1 - Já estava no Rio.
R/2 - Mas você ia?
R/1 - Ia demais. Ia muito. Tinha mês de gastar tudo aquilo que não era das obrigações diretas em passagem, porque eu não perdia. Às vezes, vinha de um projeto, descia na sexta-feira, ficava com eles e voltava no domingo para na segunda-feira trabalhar, mas passava com eles. E, se estivessem doentes, nunca. E tive o privilégio de minha mãe morrer nos meus braços e eu estar cantando com meus irmãos todos na hora que papai fazia também sua passagem. Com 99 anos, papai, e mamãe com 96. Eu sou muito privilegiada. Eu tive mãe e pai, portanto, acho que vou viver um pouquinho. Mas esses... Exatamente. 99, papai. E mamãe, 96. Mas duas pessoas inteligentíssimas, ligadas nas raízes culturais. Aprendi tudo que sei sobre a importância de reconhecer as identidades, de reconhecer as expressões artísticas, culturais com eles. Duas pessoas, os filhos homens do Marista, do Colégio do Marista, era o melhor do Recife, e as filhas das damas cristãs, que é o Sacré-Coeur do Rio. Então imagina, Colégio de Freira e Colégio de Padre, mas era a melhor escola. Mas o papai de sapateiro virou dono de uma indústria de sapatos em que ele coordenava 700 operários. E, naquela época, só tinha o guarda livro, que era o tal contador. Todo sábado, ele ia buscar a gente na escola às 12h30. Ele dava duas viagens, porque o carro era pequeno, não cabia todos os filhos. Então, ele ia, carregava a gente, as mulheres, e depois ia, trazia os homens. No sábado, a gente tinha que ficar na fábrica, esperando que ele atendesse o guarda livro, que era o contador, para ver todas as coisas. E a gente ficava na fábrica, fuçando, vendo as coisas, já fazendo tarefa. Eu ficava logo fazendo as tarefas todas que tinha para ficar livre quando chegasse em casa, porque, naquela época, a gente tinha aula no sábado até meio-dia. Era de segunda a sábado. E papai lá. E, quando saía de lá, feira. Aí, olha, alimentação, a melhor que tivesse. Cultura, o melhor que tivesse. Apareceu, vai ter um circo ou vai ter uma apresentação de arte, não sei o que, vai, ele levava a gente, não perdia. Carnaval organizava tudo. A gente tinha a fantasia de todos os dias, e ele contratava músicos para tocar, para fazer... Em Pernambuco, tem uma placa que é Grito de Carnaval, que é antes do Carnaval, tem o Grito de Carnaval. Então, são sempre nos sábados, e um mês, dois meses antes. Ele contratava seis músicos... “Grito de Carnaval lá em casa”. São João, ele contratava Zabumba completa e tinha quadrilha, tinha festa de São João com Zabumba.
R/2 - Na praça?
R/1 - Não na rua, fechava a rua. Ele conseguia charrete para trazer o noivo, a noiva das outras ruas, tudo. Ele ia atrás.
R/2 - Ele fazia por quê?
00:39:46
R/1 - Ele fazia porque ele gostava e achava que a gente tinha que aprender tudo isso. E a gente não tinha muito direito de não gostar. Mas só que a gente gostava. Não tem um que não gostasse. Porque era tudo feito com muito amor, e com muito reconhecimento. Então, lá em casa era uma casa de festas. Por isso que eu sou tão festeira. Por isso que eu gosto tanto de fazer festa, entendeu? Porque eu aprendi com eles. Muito. E mamãe se transformou numa grande boleira. Numa grande mulher que produzia para banquetes, 6 mil salgados, 7 mil salgados, bolo, ela confeitava, ela fazia tudo. O papai era muito ciumento, ela só podia fazer os cursos para se atualizar, eu indo. Então, para mim, foi um benefício, porque eu aprendi a fazer tudo, eu ia com ela, assistia às aulas. E, muito, ela dizia assim: “mas, viu, mas ela não botou isso primeiro, não”. Eu dizia: “não, não botou não, botou primeiro isso”. Então, eu também ficava muito próxima. Adorei fazer esses cursos, mas essas são as pessoas que imprimiram...
R/2 - Agora, eu quero saber onde é que eu descobri esse reconhecimento de identidade? Porque na minha casa não foi, no meu colégio não foi.
00:41:02
R/1 - Nem na minha escola. Na minha escola era tradicional.
R/2 - Mas na minha escola era melhor do que na minha casa.
R/1 - Melhor do que na sua casa, não é?
R/2 - Onde foi?
R/1 - Lá, a gente tinha uma convivência muito boa.
R/2 - Foi lá, porque estou com a história da Vilma, estou pensando comparativo. Eu não tive nada desse pé.
R/1 - Ele levava a gente para todos os lugares.
R/2 - O meu não levava a lugar nenhum.
00:41:26
R/1 - E, quando chegava na época do Carnaval, alugava, sabe o que ele fazia? Ele alugava um jipe para a gente ir para o Corso, no Carnaval do Pernambuco, tinha uma tradição, que era Corso.
R/2 - Ah, eu ia do Carnaval para a Bahia.
R/1 - Um carro atrás do outro. Ele alugava um jipe para a gente ir, porque o jipe é que deixa a gente por lá e ir para o outro carro. Mas lá as pessoas, dar banho e o carro fechado não dá, porque ela alugava o jipe. Todo mundo dizia assim: “mas esse dinheiro podia comprar a casa”. Ele dizia assim: “não quero comprar a casa, vou pagando aluguel, quero que meus filhos aprendam tudo”. Escola boa, comprava as melhores coleções. Quando fui fazer História, tinha uma biblioteca lá em casa de História espetacular. Os professores: “quem comprou?”, eu dizia: “o meu pai”, “como?”. Os vendedores de livros iam lá no comércio dele e ofereciam. “Mas isso presta?” “Isso é bom?”. Ele comprava. Lá em casa, a sala era cheia daquelas coleções, todas, todas. Tesouro da juventude, Barsa.
R/2 - Claro, tesouro da juventude. Eu queria tanto ter.
00:42:34
R/1 - Sabe o que lá de casa tem? Lá tem muitos livros que as minhas irmãs ficaram. O Tesouro da juventude, a Barsa, minha irmã tem, ela ficou. Aquelas coleções, todos os filósofos, todos não sei o quê, todas as coisas, ele comprava tudo completo. Tudo que tinha. Olha, meus irmãos dividiram. Eles têm tudo isso. Eu não fiz confusão, porque eu já gostava, eu já tinha… Eles precisavam de ter mais esses símbolos. Mas ele mudou. Todo mundo que quis estudar e até o final estudou, fez universidade, trabalhou. Quem quis, fez. Muitos dos homens não acabaram, mas tinha um que era o campeão de ter curso. Ele faz milhares de cursos superiores, mestrado, doutorado, escambau. Era professor da Federal. Uma irmã fez Medicina, outra irmã fez Sociologia, outro irmão fez Economia. Os outros ficaram com cursos técnicos de computação, um até hoje trabalha no Cerco, o outro trabalhou no Banco do Brasil, cada um foi fazendo o seu caminho como quis, mas ele deu as oportunidades iguais e lutou até o fim. E nós continuamos com eles, vivos numa casa, fazendo todas as festas. Todas as festas que eles faziam para a gente, a gente repetiu. Tem papai até 98 anos todo fantasiado do Carnaval, e mamãe também. Mamãe, nesse momento do AVC, recuperou as cantigas de Roda, que ela nunca tinha cantado para a gente de quando era menina.
P/1 - Depois do AVC?
R/1 - No AVC. Ela recuperou, trouxe a memória de infância. E aí a gente foi atrás de todo mundo, inclusive lá na cidade onde ela morava, de recuperar essas músicas com as pessoas mais velhas, porque ela nunca tinha cantado para a gente aquelas músicas. E as irmãs dela: “Não, mas isso é o que a gente cantava quando era criança. Eu esqueci como é que Bina tá…” Ela é Maria Benedita e era chamada de Bina. Aí: “como é que Bina se lembra disso?”. Aí, tinha uma “melão, melão". Aí, a gente cantou essas músicas, a gente gravou e ficou tudo com essas músicas para os filhos nossos todos. E essas histórias aí para os filhos. Mas ela recuperou a infância dela também. Ela perdeu e recuperou. Então, é uma família bem...
R/2 - Menina, a minha não tinha nada disso.
P/1 - Mas você falou de carnaval na Bahia.
00:44:58
R/2 - Não, carnaval na Bahia. Eu ia pra cá... Era bailinho, nada demais.
P/1 - Fantasia, você punha?
R/2 - Punha.
P/1 - Qual? Do que?
R/2 - Cigana. Que mais? Havaiana.
R/1 - Cigana, havaiana, holandesa.
R/2 - Tirolesa, tirolesa.
R/1 - Palhaço, bailarina, holandesa. Então, e o tamanco? Eu me fantasiei com aqueles vestidos.
R/2 - E o chapéuzinho assim, gomado?
R/1 - Então, e os bordados na barra de organdi? Eu tinha muito vestido bordado. Porque a mamãe bordava, a mamãe lia bordado.
R/2 - Todo mundo usava fantasia.
R/1 - Vestidos lindos. Eu me lembro dos meus vestidos, todos.
R/2 - Não, eu não tinha vestido bordado nenhum. Tudo ao contrário.
00:45:40
R/1 - Tudo bordado lindo. Mamãe varava a noite e fazia os três, só mudava a cor: um era rosa, outro era azul, outro era verde. Do mesmo organdi, mas bordava diferente. Organdi linda, ou então organdi de bolinha.
R/2 - Aquele era o máximo.
R/1 - O máximo. Azul marinho lindo.
R/2 - Azul claro que eu tinha.
R/1 - E aí, os babados de matame, com debrum da cor da bolinha. Debruado. Coisa mais linda.
00:46:07
R/2 - Sabe o que eu fazia? Eu copiava os vestidos da Elizabeth Taylor. Todos! Todos! Bastava ela botar um vestido que eu...
R/1 - “Quero esse”.
R/2 - Mandava fazer. Esse de organdia de bolinha pro cara da Elizabeth Taylor.
R/1 - Organdi de bolinha. Lindo. Eu me lembro todos. E sapatos? E papai fazia uns sapatos especiais pra mim.
R/2 - Não tem mais, não?
R/1 - Tenho. Tenho organdi. Mas é que as meninas não gostam. As crianças não gostam. Faz isso aqui. É só malha, né?
R/2 - Só shorts.
R/1 - Só Hering e daí pra frente. Ninguém quer. Ninguém gosta disso.
R/2 - A minha neta é short para dois anos, que fica com a bunda de fora.
R/1 - O Debru é outro.
00:46:51
R/2 - Agora, eu estou querendo saber de onde é que eu apareci.
R/1 - Onde você aprendeu? Na sua busca pessoal, você foi e encontrou tudo.
R/2 - Que busca pessoal?
R/1 - Na sua trajetória, você não ficou parada dentro de casa.
00:47:04
R/2 - Fui fazer latim. Na faculdade, entrei para fazer latim.
R/1 - Mas rapidamente abandonou, né? E chegou nas quebradas.
R/2 - Você sabe o quê? Eu estava pensando…
R/1 - Você vai contar essas revoluções que fez na faculdade como estudante, depois como professora, não é?
R/2 - Foi, mas onde é que eu tive esse apoio? Porque eu não estou descobrindo. Tem um livro que saiu agora sobre mim. É o André Botelho, que fez um estudo sociológico sobre mim. Se eu tivesse ele aqui, é porque eu não tenho.
P/1 - Eu acho que eu tenho.
R/2 - Tem?
P/1 - Está aqui.
R/2 - Se eu tivesse aqui, eu… Mas aí eu li, e é incrível, porque eu sei muito bem, se fosse do ponto de vista literário, se fosse do ponto de vista cultural, eu estava entendendo, mas ele faz do ponto de vista sociológico. A minha carreira, de outro ponto de vista comparativo. E ele acha, e tem uma hora que eu fiquei... É esse mesmo. Tem uma hora que... Olha aí! Talvez você se lembre. Tem uma hora que ele diz assim... Como é que ele diz? Ele me compara a duas pessoas, fiquei numa honra. O Euclides da Cunha e o Mário de Andrade. Ele chama o seguinte, é a genealogia do susto que ele bota aí. Porque o Euclides da Cunha foi para Canudos, era jornalista, para cobrir uma guerra, uma rebelião. E ele levou todas as informações do governo que ele estava indo, que eram fanáticos, que tinham que ser destruídos. Vai lá, o homem, Euclides da Cunha, chega lá e diz “ô” “Não entendi. Não é bem assim”. E escreveu um livro que não tem nada a ver com a expectativa dele indo para lá, que é o contrário. Que é a favor das rebeliões. Então, ele compara isso. Ele diz que o Euclides vai fazer uma coisa e se depara com um objeto que surpreende ele e ele não dá conta dele. Faz ao contrário. E o Mário de Andrade, que era uma pessoa que estudava tudo que era manifestação musical e verbal do Brasil inteiro, de repente, ele chegou num lugar e encontrou o Chico Bento. É Chico Bento? É Chico Bento. Encontrou o Chico Bento, que era um cantador. E ele espancou. Parou ali? Parou ali, disse: “Não estou entendendo. Isso aqui eu não entendo". E começou a trabalhar em função disso completamente diferente. Aí o André bota eu com as quebradas, como se eu venho fazendo uma carreira a vida inteira e, de repente, eu me reparo com uma coisa que eu sei que eu não sei o que é aquilo. E eu paro e muda a rota. Eu acho engraçado, não sei se confere, mas eu fiquei muito honrada demais do André, o Euclides da Cunha, a puta que pariu!
P/1 - Você tinha aquela coisa assim quando cresce…
00:50:39
R/2 - Uma coisa da periferia, eu sempre repito isso e tenho certeza, e eu não entendo, eu não tenho capacidade de entender o que é aquela vida. Eu vejo, eu posso descrever, mas eu não tenho essa experiência, uma experiência de não ter esgoto, uma experiência de ter que descer milhares de escadas doente, de uma experiência de passar cinco horas para chegar no trabalho. Essa experiência, acho que não é traduzível, não passa para mim, não posso fazer mais uma coisa sem ter vivido isso. Me dá essa sensação, eu fico precária, não tenho instrumento para dar conta disso. E aí fico trabalhando troca, fico trabalhando, de um ponto de vista meu, meio retirado, porque acho que não posso. Inclusive, tem um livro que me devo, que agora ia fazer, mas tenho a impressão de que estou sem... Sem vida eu tenho. Ou eu melhoro...
R/1 - Que conversa!
R/2 - Não, é verdade. Eu estou sem... Tem dois meses já que eu não...
R/1 - Mas vai passar. Está saindo.
00:51:52
R/2 - Eu estou aqui porque estou conversando, senão estaria de oxigênio na cama. Para mim está uma delícia, está me fazendo muito bem. Mas eu estou num momento que, para mim, entrar numa grande empreitada eu não aguento, que seria essa, que seria o livro “Nas Quebradas”. Eu nunca escrevi, eu trabalho com periferia há 40 anos, comecei em 1993. Fiz um grande seminário chamado “Sinais de Turbulência”, que era um seminário internacional, trazendo o hip-hop dos Estados Unidos, trazendo todas as lideranças, todos os movimentos e os brasileiros, o afroreggae, que naquela época era o único que tinha, assim, mais estruturado. Então, foi um seminário assim de peso, e daí eu não parei nunca mais a trabalhar a periferia. Já tenho milhares de papers, milhares de coisas, mas não consigo fazer o livro por causa deste sentimento. Eu não dou conta disso. Não sou eu que tenho que falar, são eles. Eu vou falar errado, eu vou tomar um lugar. Sabe aquela coisa bem chata do lugar de fala? Aquele lugar de fala, ele vem meio artificial, não é? Mas, nesse caso das quebradas, ele está dentro do meu funk. Não sou esse lugar de fala, porque eu não dou conta do fenômeno. Eu tenho certeza que não dou conta do fenômeno. Tanto que é tão intensa a minha relação com a periferia, muito intensa, que eu parto do não saber. Então, a coisa fica foda. Fica foda, porque, se eu não sei… Porque, geralmente, vem a pessoa que agrega. Como eu não sei, a coisa fica intensa, o diálogo, a coisa… Então, daí, eu acho que é o sucesso da… E o que o André atribui é o sucesso das quebradas. Essa posição de não saber. Aí, eu estou para fazer um livro com essa experiência, que eu já fiz livro sobre tudo, eu escrevo qualquer coisa, eu tenho muita coisa, muito livro, mas esse eu não faço.
P/1 - Pode comentar numa entrevista, daí você vai gravando pra esquematizar.
00:54:06
R/2 - Não, eu sei, mas esse aí eu não faço. Eu faço um monte de subs, mas esse eu não faço. Eu tenho medo, eu tenho insegurança. Aí, eu resolvi com a minha editora, a gente conversou, que ela quer, porque quer fazer esse. Aí, eu falei, “então, vamos fazer o seguinte, eu vou escrever a minha posição nas quebradas e não sobre as quebradas. Porque sobre as quebradas, eu não… Eu estou errada, não sei, para mim está errado. Então, eu vou fazer, eu cheguei lá, eu fiz isso, eu vou fazer da minha posição”. Então, seria esse livro, mas eu não estou com fôlego para ele agora.
R/1 - Daqui a pouco vai chegar. Espera só um pouquinho mais, só um pouquinho.
R/2 - Não estou tão otimista. Poxa, eu estou muito ruim.
R/1 - Mas nós estamos.
00:54:54
R/2 - Então, esse livro aí está me alijando.
P/1 - Quando vocês eram pequenas ou já na adolescência, tinha aquela coisa “quando eu crescer, que era tal coisa”, e isso foi mudando?
00:55:09
R/2 - Sabe o que eu não me lembro? Devia ter, mas não me lembro o que eu queria ser.
R/1 - Eu não disse, mas eu fiz isso, porque, com 12 anos, eu comecei as freiras lá do colégio e eu, de tarde, ensinar catecismo nos morros lá de Casa Amarela. Eu já era do JEC, da Juventude Estudantil Católica. Meus irmãos, sobretudo o mais velho, que era universitário, era da JUC, que era da Juventude Universitária Católica. Todos ligados às pastorais da criança e ao chamado AP, a Ação Popular. Todos. E todos os amigos, éramos todos do mesmo grupo. E aí comecei a ir com as freiras ensinar catecismo de terças e quintas de tarde. Então, a gente ia, tinha o catecismo que elas levavam, ensinava Ave Maria, Pai Nosso, Creio em Deus Pai, Salve Rainha, Santo Anjo, tudo isso. Só que as pessoas não sabiam ler. Aí elas tinham que decorar. Repetiam, repetiam. Se eu podia ensinar a ler, eu disse: “Eu podia ensinar elas a lerem”. Eu já vivia de olho com 12 para fazer 13. Com 13 anos, comecei a ensinar, comecei a alfabetizar, mas eu tinha que ficar lá. A Kombi da escola, com as freiras, saía às 14 horas, mas, para fazer isso às 16 horas, eu tinha que ficar. As freiras recomendaram para o papai que não era bom, porque era um ambiente pesado, pobre. Pobre é sempre pesado, não é? Então, não era recomendável que uma menina das damas cristãs ficasse naquele meio, daquele povo. Papai disse: “Pode deixar que eu venho buscar. Está autorizado”. Aí, ele saía do trabalho e ia me buscar. Chegava às 6h30, eu já tinha tomado sopa com a família, já tinha tudo. E comecei a alfabetizar essas mulheres. Eram todas mulheres. Não parei nunca mais. Aí, quem era o meu orientador do JEC? Dom Helder. Dom Helder funda o Banco da Providência. A gente, em 1966, tem aquela enchente em Recife. Enorme, enorme. Fui-me embora para dentro dos Coelhos, o bairro com o Dom Helder. Passei quatro semanas sem sair de lá, cuidando das pessoas, sem ir em casa. Mamãe, papai, meu irmão mais velho levava uma roupa, uma coisa, e fiquei lá. Nessa, não saí mais da educação. Não saí mais. Então, eu acho que um pouco esse meu sonho, essa busca, ela foi criada dentro de uma prática que foi acontecendo. Porque eu tive o padre Henrique, aquele que foi esquartejado pela ditadura no campus da Universidade Federal do Pernambuco, era o meu orientador de JEC. Nós saímos de noite procurando os pedaços do padre Henrique no campus da universidade para poder enterrar o que a gente achasse do padre Henrique. Esse era o meu orientador de JEC.
R/2 - Acharam?
R/1 - Achamos algumas coisas.
R/2 - Que coisa horrível!
R/1 - E Dom Helder era bem pequenininho, foi a ser bispo aqui do Rio, nós saímos de uma igreja que era no Espinheiro, um bairro, vamos dizer daqui, saímos daqui do Leblon para o cemitério que era na Várzea, bem distante, como se a gente fosse quase no Leme, quase andasse tudo isso e chegasse no Leme, e a polícia em cima, e a gente andando. A gente poderia ter feito esse percurso em duas horas, duas horas e meia. Ele foi feito em quase seis horas. Fiquei queimada, todo mundo, tudo vermelho, porque era um sol quente, e o D. Helder na frente do caixão, e a polícia vinha com os cavalos, e aí o D. Helder mandava todo mundo sentar, a gente sentava, e depois [intervenção] a gente levantava e seguia. [intervenção] Eu tive excelentes professores nessa formação dos movimentos sociais, do posicionamento político, da militância. Então, eles eram os universitários. Comecei a namorar com quem me casei, que é pai dos meus filhos. Ele terminando o diária, eu terminando ginásio, igualzinho. E eu terminando ginásio.
P/1 - Como é que vocês se conheceram?
01:00:41
R/1 - No movimento político, também era da AP, também era da JUC. Todo mundo era do mesmo movimento. Era amigo do meu irmão mais velho. Só que ele fazia engenharia e Nenê fazia economia. “Espera acabar o magistério que eu caso”. Terminei o magistério, fiquei de férias no dia 14 de novembro, casei no dia 16 de novembro.
R/2 - Você fez o quê?
01:01:06
R/1 - Fiz História, na Federal do Pernambuco.
R/2 - Não foi Educação?
R/1 - Não, fui fazer depois, porque fiz o concurso para entrar para ser professora de História, quando eu entrei, a escola era uma extensão de outra, aí eu só dei aula, como eu não tinha ninguém para me indicar, o QI famoso, eles me deram dez aulas de História, dez aulas de OSPB, Organização Social e Política Brasileira, disciplina da ditadura, Moral e Cívica, disciplina da ditadura, currículo militar.
R/2 - Dei também.
R/1 - Dez de história e dez de religião. Eu só tive dez de história. Mas, quando cheguei na escola, era aquela coisa, comecei a organizar. Comecei a organizar a escola, eu dava minhas aulas, virei minha coordenadora pedagógica. No segundo semestre, a secretaria pediu para eu assumir a coordenação pedagógica. Eu assumi, não tinha que ganhar nada, era só eu ter o posto. Era um grupo escolar que, de tarde, entre 4h e 7h, era uma extensão das séries finais de outra escola, que ficava a quase uma hora daquela. No ano seguinte, em janeiro, o MEC fez aquela grande reforma do ensino. Todo grupo escolar virou escola do primeiro grau. Quem tivesse curso superior viraria diretora. Só eu tinha, na escola, curso superior concluído. Virei a diretora por dez dias.
R/2 - Por quê?
01:02:37
R/1 - Porque, com dez dias depois, um delegado veio transferido de Petrolina e foi para o secretário, que era um coronel, Costa Cavalcanti, e disse a ele assim: “quero aquela escola para a minha mulher ser diretora, porque vou morar ali perto”. Aí, um dia, um carro preto, com dez dias, um carro preto do secretário, chega lá para mim buscar.
R/2 - Que ano é esse?
R/1 - 73. Isso, em pleno (regime militar)! O governador era biônico. O secretário era coronel.
R/2 - O presidente era o Médici.
R/1 - Eu tive medo de entrar num carro preto. Eu tinha um fuscão branco. Eu disse: “não, eu vou no meu carro”. Aí, a pessoa que foi, disse: “não, mas o secretário disse que para a senhora ir nesse carro”. Eu disse: “mas o senhor explica que eu vou no meu carro”. Aí, eu fui no meu fuscão branco, o cara foi embora. Fui lá. Quando cheguei lá, o secretário me mostra o cartão do governador. Eram tão tranquilas as coisas que ele me mostrou: “Prezado, nomei fulana de tal, mulher do delegado tal, para dirigir a escola José Mariano, carará, pererei”. Bendito. Aí ele: “Tenho que cumprir, ordem do governador”. “Tudo bem, secretário, fique tranquilo, eu volto para as minhas aulas”. “Ah, não, já tem aqui uma escola, está precisando de diretora, eu vou nomear a senhora... Aliás, já foi para o Diário Oficial o ato”. O ato já estava no Dário Oficial, eu que não sabia. Aí eu disse: “não quero, não quero ser diretora, não quero ser diretora, eu quero continuar com as minhas aulas”. “As suas aulas a gente já deu, inclusive, para outra pessoa”. Não existia mais. Bem, fui nomeada. Eu já tinha feito, era muito amiga das professoras todas antigas do grupo escolar, a antiga dirigente, professora Isabel. Elas choravam tanto e diziam: “a gente já conhece você, você trata bem a gente”. Olha, foi um chororô. Foi uma coisa dentro da escola, mas não teve jeito. Eu saí da escola no outro dia. O Diário Oficial publicou ela e me publicou (como) diretora de Camaragibe, que era um distrito de São Lourenço da Mata. Hoje, Camaragibe é um senhor município da área metropolitana de Recife. Nessa época, era um distrito de São Lourenço da Mata. Eu nunca tinha ido em Camaragibe assim. Virei diretora dessa escola Frei Caneca. Não tinha como. Fiquei lá sete anos. Aí, outro carro preto me apareceu pra eu ir dirigir outra escola, que era a maior escola do Estado. Tinha 4.600 estudantes em Olinda, dentro de uma vila, aquelas vilas populares, que em um ano já tinha tido quatro diretores. E eu era considerada pela Secretaria uma diretora boa, porque eu trabalhava que nem o cão. Eu entrava às sete horas e saía de noite, depois estava tudo resolvido, era impecável. E levava o coral da escola, um grupo de... Ainda tinha grupo de teatro, tinha tudo, banda, tinha tudo na escola. Tudo, tudo, tudo. Aí, os meus amigos de esquerda, todos de AP, ficavam bravos comigo, porque festa de Marco Maciel, leva o coral, pediu o coral, vai. “Mas ele é um cara biônico”. É isso que a gente estava vivendo. A minha militância política e a minha esquerda estavam em outro lugar. Nesse lugar de diretora, os estudantes vão aprender, vão cantar lá na frente do governador e vão aprender. Tudo direitinho. Era uma confusão a minha vida. Você ser gestora pública e ser militante, quando eu chego em casa, eu fico de 10 horas da noite até 6 horas da manhã, rodando, no meio de uma cachacinha, os panfletos, as coisas da greve, tudo. Então, nunca parei de fazer o que eu devo fazer. Mas eu tinha que me comportar como gestora da escola pública, como gestora. Meu papel de educadora nunca… Aí fui para essa escola, essa outra escola grande, e foi ótimo, porque eu tinha como botar minhas filhas, que já tinham crescido, para serem alunas da escola. Então, eu ia com elas, elas eram alunas da escola, até que eu saí tirada, também por um ato político, porque, quando teve a primeira eleição democrática, foi para tirar para a rua, porque era Marcos Freire, nosso candidato, na época, MDB, contra a Arena, e era Roberto Magalhães e Gustavo Krause, o candidato da direita, organizadíssima, de Pernambuco, organizadíssima até hoje. Então, a doutora Jane, que era a esposa deles, me chamou para ser chefe do Duplo Feminino. E eu não fui, tinha que trabalhar. “Não é para você trabalhar, não, está liberado”. Eu disse: “não, tenho um contrato”. “Então, se meu marido for eleito, sai no outro dia”. “Tudo bem, cada governador faz o que acha que pode fazer”. E aí saí, mas passaram um ano para me tirar, porque toda vez era aquela confusão, era aquela confusão, era uma confusão. Aí eles davam para trás. Em janeiro do ano em que ele estava eleito, eu tirei 15 dias de férias. As primeiras férias em que eu só tirei licença de gestante na minha vida. Nunca tirei férias. Só a licença de gestante, porque eu trabalhava em escola e em escola não dá. Como? Quando acabou o ano letivo, você não tem nem um mês para preparar o próximo ano letivo. Aí eu queria pintar a escola, botar o jardim, fazer as coisas, pintar tudo. “Vou tirar a licença de gestante”, eu tirei. As três. Mas aí, pronto, saí dessa escola desse jeito, fui convidada a milhares de convites. Era tanto convite do próprio secretário novo. Aí de novo eu vi um bilhete.
R/2 - Mas não tinha nada polícia?
01:08:24
R/1 - Tinha, porque eu me neguei a ser o núcleo da campanha das mulheres para o Roberto _______.
R/2 - Sim, mas e o Paulo Freire, cadê?
R/1 - O Paulo Freire já estava na minha vida, na minha prática, o tempo todo, porque eu acompanhei os círculos de cultura com meus irmãos que eram universitários. Então, eu acompanhava, eu ia para o círculo de cultura. Aí foi que me ajudou a ser alfabetizadora lá. Me ajudou muito a ser alfabetizadora. Eu ia para os círculos de cultura. Todos. Acompanhava tudo. Eles eram da universidade, já eram monitores do círculo e eu não. Eu observava, mas aprendia. E isso me ajudou muito a alfabetizar as mulheres, em Casa Amarela. Paulo Freire já estava... E nós éramos do mesmo bairro, morávamos no mesmo bairro e veraneávamos na mesma praia. Então, eu era amiga dos filhos: Magalena, Fátima, todos eles, Cristina... Porque eram amigos do meu irmão, que era universitário, já que éramos do círculo de cultura. Eu estava atrasada, eu era três anos para trás do meu irmão. Quatro anos. Ele já estava na universidade, eu estava entrando para fazer o magistério, mas eu ia atrás. Ele era um irmão muito bom, muito bom, mas ficou muito marcado pela prisão, pela tortura, morreu muito jovem, com 48 anos.
R/2 - O seu irmão?
01:09:48
R/1 - Meu irmão. Ele sofreu muita tortura.
R/2 - Você teve com ele direto?
R/1 - O meu irmão foi preso, torturado. Ficou preso quase um ano. Eu ia todo dia na prisão. Todo dia levava comida.
R/2 - Podia?
R/1 - Eu armei muitas. Eu armei muitas nessas. Não podia, mas podia. Fazendo amizade, levava comida. Fez até um ponto que eu consegui levar ele para fazer prova na faculdade. Porque levava que ia ter prova, não sei o quê, conseguia até sair para fazer prova. Depois, eles saíram todos. Meu marido foi preso também, mas não sofreu tortura. O meu cunhado, dois cunhados foram presos e muitos amigos. Por exemplo, Fernando Santa Cruz, que foi o nosso presidente diário da Associação Recifense dos Estudantes Secundaristas (ARES), que é desaparecida até hoje.
R/2 - É da OAB?
R/1 - O filho é da OAB. Então, é isso. [intervenção]
P/1 - Como que é?
01:11:02
R/1 - A tapioca ensopada que ela gosta, que eu amo também, de leite de coco, pessoalmente, não engarrafado, é ele pessoalmente, você faz ela ensopa no leite de coco. É uma delícia. Ela adora. Quando eu vejo, eu trago a tapioca. [intervenção]
P/1 - Helô, como é que foi você? A Vilma trouxe essa vivência. Como é que foi a sua vivência no período da ditadura?
01:11:51
R/2 - Olha, foi interessante, porque eu estava nos Estados Unidos. Estava em Harvard desde o final de 1962. Então, aquele tumulto de 1964, eu não assisti. Fiquei lá, mas trabalhava num centro de estudos latino-americanos. Lá isso servia muito, soube de lá. Foi um período muito incrível. Fui com o marido, o marido ia estudar economia, mas aproveitei para estudar grego, que era a minha graduação, grego e latim. Cheguei lá, quando comecei a trabalhar nesse instituto, larguei o grego e o latim, porque fiquei lá num momento incrível. Era a Guerra do Vietnã, parecia um campo de batalha. Que mais? A Janis Joplin morava lá. Teve o Che Guevara, eu estava lá. Teve a morte do Kennedy. Eu dava sequência, era incrível. O centro latino-americano parecia que fazia “pum, pum”, que nem desenho animado. Gente, você vê aquela eletricidade, aquela coisa. Então, aquilo entrou muito na minha veia, eu fiquei ligadérrima. Larguei o grego e fiquei assistindo as coisas de lá, trabalhando. Era muita notícia que a gente mandava para todo lado. Então, ali eu fui inoculada pelo vírus. E, quando eu cheguei aqui, já tinha passado 64. Quer dizer, já tinha passado abril de 64. Eu cheguei em junho de 64, depois de três meses. Mas não vi aquele momento. Mas esse período, até 1968, para a área de cultura, foi um privilégio. Ninguém foi atacado, ninguém foi preso. O que era preso eram as bases sindicais, ligas camponesas. As ligações com as bases é que foram reprimidas. Os intelectuais continuam fazendo barbaridades. Você vê, a civilização brasileira lançava coisa comunista, óbvias. O teatro era uma loucura. O teatro de Arena era só peça de esquerda, pesada, de oposição. A MPB também era um negócio o tempo todo, o tempo todo. O Cinema Novo, que era o que eu mais me aproximei, era muito vivo disso, era só caso... O Cinema Novo nasceu como oposição e como uma coisa mais radical de esquerda dos anos 60. E o que mais? Tinha Cinema Novo, fazia teatro. Fiz muito teatro naquela época.
P/1 - Você fez?
R/2 - Fiz. E o que que é? Música, teatro, cinema, o que mais que tinha? Literatura foi meio...
R/1 - É literatura, porque a censura nessas outras linguagens... Para peça de teatro, para música, eles tinham, mas não impediu a produção. Mas, no livro, foi mais.
01:15:09
R/2 - Eu acho que não. Como estava todo mundo tão pilhado...
R/1 - De pegar aquelas lideranças todas.
R/2 - Pública, botar a coisa... Podia no palco, podia no cinema, podia no show de música. Você vai ficar fazendo coisa por literatura que ninguém lê.
R/1 - Ninguém quis se ocupar.
R/2 - Então, a montagem, na verdade... Teve um recesso. Tinha o Antônio Calado, mas não era... Não foi o mais forte.
P/2 - A poesia vem depois?
R/2 - A poesia vem depois do AI-5. Até o AI-5, a música bombou, o teatro bombou, tudo bombou. Livre, leve e solto.
P/1 - O que você fazia de teatro?
01:15:45
R/2 - Fazia teatro na PUC, de atriz. Fiz umas peças lá.
P/1 - Que peças você fez?
R/2 - Fiz o Tennessee Williams, aquele dos bichinhos de cristal. Fiz um do Vianinha, da época também, e outros assim pequenos, mas foi legal. Quer dizer, era mais uma coisa...
P/1 - A sua graduação foi na PUC?
R/2 - A minha graduação foi na PUC do Rio de Janeiro. E lá era um centro muito intenso. Estava todo mundo que você possa imaginar, de teatro, de cinema e coisa, estava fazendo curso lá.
P/1 - Quem que era?
R/2 - Cacá Diegues, Arnaldo Jabor... O povo de teatro todo, sem exceção. O João das Neves, o Carlinhos Lyra estava lá. Não sei por quê, mas a cultura foi toda para PUC. Enquanto que o FICS, por exemplo, que é a Filosofia e Ciências Sociais, encaminhou mais os militantes de base. Mas o povo de cultura foi muito para PUC. E o Fidel ficou na PUC uma semana. Foi uma loucura!
R/1 - Porque, nas públicas, a coisa estava muito cheia dos militares e dos órgãos, todos. Então, as pessoas não puderam ficar nas federais. Nas federais. Foi horrível fazer meu curso de 71 a 74. Todos os professores bons foram exilados.
01:17:17
R/2 - É isso que estou dizendo, até 61. Tudo isso que estou contando é até 68. Em 68 tinha um jornal também, em que participei bastante, chamado Metropolitano, que era um jornal da PUC. Nesse momento, a PUC bombava a cultura. E a gente e eu participávamos... A CPC (Centro Popular de Cultura) era lá. A CPC saía de lá, muito. Saía da UNE e saía de lá, muito. Então, nas atividades de CPC, eu participava muito, ia às favelas.
P/1 - Você participava como?
01:17:55
R/2 - Eu participava organizando os eventos nas favelas. Por exemplo, tem uma coisa que eu lembro que é inesquecível. O Arnaldo Jabor, você lembra da cara dele?
R/1 - Lembro bastante.
01:18:09
R/2 - Ele com 18 anos era um deus, com aqueles olhos azuis enormes. Então, a gente mexia ele de “Tio Sam”, levava para as favelas e apedrejava ele com batata. Começavam a falar: “Olha, o Tio Sam”, e o Jabor: “Ah!”. Era uma coisa sensacional para explicar o imperialismo. Era uma coisa bem rude, sabe, bem bobona, mas pegava, pegava bem. Sempre precisa ter um lado bobão. Agora, essa do Jabor é que eu não consigo me esquecer. Ele todo vestido com a cartola, com aquela bandeira. Aquele listrado todo. E ele levando batatada porque era o Tio Sam. Aquela figuraça. E aí, o que mais? Teve muito cordel político no CPC da UNE. Uma das coisas mais lindas!
R/1 - O CPC foi campeão de cordel.
01:19:13
R/2 - É porque era mais de educação. No Rio, era cultura, só cultura.
R/1 - Em Pernambuco, era muita educação.
R/2 - Por causa do Paulo Freire. Era MPC, né?
R/1 - Era MPC.
R/2 - Isso era Pernambuco. E aqui não, aqui era mais cultura. Então, era filme. Tinha um filme do CPC, que é o “Cinco Vezes Favela”, produção é CPC.
R/1 - E tinha muita coisa de cultura, por conta de Hermilo Borba Filho, de Leda Alves. Então, você tinha um grupo bom.
R/2 - E deixavam, né?
R/1 - É, que deixavam fazer.
R/2 - Em 1968 micou.
01:19:53
R/1 - Foi nesse período que meu irmão, começo de 1968, que ele foi preso, porque ele era do grupo de teatro, era do TPN (Teatro Popular do Nordeste).
R/2 - Aí foi todo mundo preso ou se autoexilou. A maior parte se autoexilou. Aí, no finalzinho da década, começou um outro tipo de oposição contra a racionalidade. Até então, era contra a ditadura. Era um embate formal. Embate formal, não é um embate direto. Contra a ditadura, contra os militares, contra a direita, contra o conservadorismo, contra o imperialismo. Imperialismo, fascismo, contra tudo. Mas, no finalzinho da década 66, 67, começou a mudar. Começou a aparecer uma influência da contracultura norte-americana, que chega na esquerda e começa a bagunçar, fica contra o sistema, e não mais diretamente contra a ditadura. Aí você bota o Caetano, o Gil e o tropicalismo inteiro, Rita Lee, que falam sobre... Você lembra que a ditadura, como o Bolsonaro, é: “Deus, Pátria e Família”. Era uma coisa bem forte dos costumes. “Deus, Família e Propriedade”. É bem uma coisa de costumes. Não pode mexer com a família. Então, qualquer comportamento adverso agredia a família. E Caetano, Gil, Rita Lee, todo mundo que começa a aparecer naquele momento começa a fazer costumes. Parece o Caetano de batom.
P/1 - Você estava onde nesse momento?
01:21:47
R/2 - Estava aqui.
P/1 - Mas na faculdade ou já tinha se formado?
R/2 - Na faculdade.
P/1 - De grego?
R/2 - Não, dando aula. Eu comecei a dar aula no dia que cheguei aos Estados Unidos. Fui lá e comecei na nacional, Letras Nacional. Meu percurso é todo o UFRJ até hoje. Foi de lá até cá. Comecei trabalhando de graça, depois comecei a ser remunerada, entrei para a carreira e estou até hoje no mesmo lugar, que é a UFRJ. Então, esse momento anterior da PUC, eu ainda não estava formada. Eu era aluna da PUC, quando eu participava.
P/1 - Mas você foi estudar grego?
01:22:29
R/2 - Fui estudar grego e larguei lá.
P/1 - Mas foi por conta de uma ligação já que você tinha com a literatura?
R/2 - Eu fui estudar grego porque o meu pai era avassalador. Meu pai era um sedutor, era fofo, era meu rei, mas ele era de um autoritarismo absurdo. Então, obviamente, ele, na sedução, eu fiz o que ele queria que eu fizesse. Entrar para a UFRJ, onde ele trabalhava, e dar aula. O diabo, só deu conta anos depois que eu fiz o que ele quis e não o que eu quis. Mas aí eu fiz isso e acho que tinha uma indefinição qualquer. No clássico, eu tinha paixão por latim e grego, paixão pela coisa... Esse livro lida muito com isso, com o começo, que foi para o resto da vida. Segundo o André, eu pulei o modernismo. Eu fui direto para o pós, porque a coisa da falta de autoria, a coisa de não gostar de romance. Eu não consegui trabalhar romance nunca, estando na faculdade de Letras. Nunca trabalhei um autor de ficção. Minha coisa é poeta, poeta, poeta, poeta a vida toda, que é uma coisa grega. O romance é caracterizado o começo da burguesia. O romance foi inventado na Revolução Francesa, para frente. Então, é um período que eu pulo, que eu não entrei nunca. Essa é da coisa burguesa. Eu fui direto por fora, pelo grego até o pós-moderno, que aí eu peguei os poetas marginais, as coisas todas, já fora do eixo. Mas o que eu estava falando para dar uma sequência? Eu estava falando...
P/2 - Você estava falando que, no final da guerra de 1970, a luta vira contra o sistema.
P/1 - Você estava contextualizando.
R/2 - O Tropicalismo, essas coisas, muda um pouco a estratégia. A estratégia do confronto, a estratégia da luta vira campanha de gancho, vira outra coisa, vira comportamental. Então, todo o tropicalismo agride muito do ponto de vista comportamental, é tudo meio gay. Todos eles são andrógenos. Não, eles se comportavam, se mostravam como andrógenos. Todos eles. As moças, Bethânia, tinha uma coisa masculina e os meninos uma coisa feminina. O Caetano era uma moça com aquelas roupas, saia e batom. E eles foram presos por isso. Isso é que é sensacional. Eles foram os primeiros a serem presos por comportamento e não por posição política.
R/1 - E era uma posição política, só que não era percebida como tal. Porque não era partidária e não era contra o militar, o discurso era outro.
R/2 - Exatamente.
R/1 - Só por isso.
01:25:24
R/2 - Aí eles foram presos, se “pirulitaram” para a Inglaterra, o Zé Celso foi para a Argélia, aí cada um foi para o canto. Chico foi para a Itália. É, você ficou sem nada aqui. 71…
R/1 - A turma do Pasquim fez outro caminho…
R/2 - Já tinha um zerado total aqui. Então, na universidade onde eu estava, era terrível, porque você recebia, antes de entrar na sala de aula, umas listas dos autores que não podiam ser mencionados. Era arrumadinho. Tinha o secretário da faculdade que passava lá. Era escancaradinho.
P/1 - Que livros que não podiam?
R/2 - Não podia nada marxista.
R/1 - Não podia nada que eles achavam que era. Porque tinha maluquice também no meio. E os clássicos, tinha umas maluquices que eles proibiam. Não tinha nada a ver, eles não sabiam o que era, mas, ao menos, tira esse. Tira. Uma maluquice!
01:26:27
R/2 - Mas, olha, essa geração minha só estudou marxismo. Era a glória da civilização brasileira que lançava um livro marxista atrás do outro. A coisa da análise literária, você sabia só fazer aquilo, você tinha aprendido aquilo. Sabe, a coisa do... No Cátia, a coisa do...
R/1 - Impactou muito o currículo, não é? Pela ausência ou pela presença.
R/2 - Então, ficava desesperada quando recebia a listinha. A listinha era toda a sua formação. Aí, você tinha que inventar. Foi uma época que tiraram do bolso o estruturalismo. Porque estruturalismo era uma coisa quase que matemática. As estruturas, as palavras, não tinha cheiro político. E aí se estabeleceu na universidade uma briga do estruturalismo contra as outras correntes de interpretação. E os professores que davam isso eram Luiz Costa Lima. Estruturalismo era xingado. Teve uma polêmica legal sobre os métodos, porque você não podia dar o outro, puseram esse, não era todo mundo que aceitava. Então, teve esse momento e aí foi a época que eu não viajei, não fui para fora, mas eu comecei a estudar o que havia fora do sistema, porque a proposta era o segundo sistema. Então, fui estudar, e aí foi o resto da minha vida, nunca mais mudei, o que estava fora do sistema, a cultura fora do sistema. Tinha cinema independente, cinema marginal, o Júlio (do Rogério) Bressane, tinha os Novos Baianos, era tudo meio tribal, interessante que era uma outra lógica política, mas tinha movimentos muito fortes, que a política não, que a professora não se metia, porque era aparentemente...
R/1 - Nem entendia aquela linguagem.
01:28:27
R/2 - Não, aparentemente inocente. Não era, mas era.
P/2 - Você não acha que é isso que te levava a esse interesse periférico?
R/2 - Acho que sim, não é o caminho normal. Mas eu parei ali e fiquei enganchada, apaixonada.
P/1 - Começou no Tio Sam já.
R/1 - Virou o tema.
R/2 - Não, a politização, sim. Mas o tema periferia é que me embargou e eu não saí mais. É diferente. Eu fiquei “tranquilete” andando por ali. Então, teve esses marginais, os poetas marginais, que eram de fora, mas ninguém falava politicamente, nem na periferia. Não falavam politicamente, diretamente contra ninguém, e iam passando. Mas tinha censura gráfica até, porque os poetas, às vezes, os livros, as gráficas tinham medo de rodar. Elas não rodavam. Chegava o poeta, levava lá numa gráfica, que era uma gráfica artesanal, bobona.
R/1 - Eles chegavam lá para fechar, eles fechavam e levavam tudo. As pessoas ficavam sem nada.
01:29:30
R/2 - Mas eles não davam muita atenção a essas poetinhas.
R/1 - Não dava, não. Essas coisas marginais mesmo, faz barulho nenhum, porque eles tinham uma gramática própria da perseguição. Tinha uma gramática própria.
P/1 - Vocês tiveram um fato específico, o que aconteceu com vocês sobre isso, da censura, de viver uma história pessoal?
01:29:50
R/2 - Eu tive um processo no CEDIMAR (Centro de Estudos do Mar da PUC-Rio), que não sei bem por quê, mas provavelmente era por causa das aulas. Eu dava aulas na Letras e, nesse período em que fui para a Faculdade de Letras, ela habitou um galpão na Avenida Chile, que tinha sido a exposição de Portugal. Hoje é a Petrobras, aquele edifício da Petrobras. Mas, por muito tempo, ficou aquele galpão lá bem precário, onde a Faculdade de Letras funcionava. E eram tabiques. Tabiques não, eram divisórias baixas. Então, dividia as salas com divisórias. Então, você ouvia o que estava na outra. Era um lugar meio bacana, assim, do ponto de vista de não isolar, sabe? Você sabia um pouco o que estava acontecendo. E a faculdade bombava, escondidinha, mas bombava. Então, tinha muita militância ali. E eu dava umas aulas meio picantes. E você tinha a tal da denúncia. Tem um poema do Chacal maravilhoso, que não sabia se olhava para o livro, não, pior, se não sabia se olhava para o rabo da professora ou para quem é que ia denunciar ele. Mas todo mundo olhava. Eu olhava, aquela sala... E tinham denúncias vazias, horríveis. Por exemplo, eu não gostava da Vilma, queria que ela saísse do meu emprego, denuncia a Vilma que vou te prender. É muito comum. Coisa pessoal, você denuncia. Porque aceitavam qualquer denúncia. Então, foi uma época de perigo dentro da sala de aula. Você se sentia em perigo. Aí, de repente, as pessoas chamavam, diziam: “Olha aqui, anotaram que você deu isso, não dê mais. Cuidado, você está avisada, você está marcada”. Era bem infernal.
P/1 - Quem chamava?
01:31:52
R/2 - Quem chamava era o diretor, que era o Afrânio Coutinho, que era um cara de super direita, mas que protegia o direito, a liberdade das Letras sobre qualquer instância. Foi bonito isso. Teve um dia que a polícia tentou invadir, ele abriu os dois braços e não deixou. Falou: “Vai passar por cima de mim”. Não deixou entrar. Então, ele tinha essas atitudes, apesar de ser de extrema-direita. Mas a liberdade do que passa aqui dentro, é intocável. Então, eles já avisavam, chamavam a gente e diziam: “Cuidado, comentaram isso, comentaram aquilo”. Então, tinha isso das coisinhas e eu dava muito evento fora, que é o mais perigoso, que eles não deixavam. Por exemplo, eu dava aula de fotografia. Eu era casada com fotógrafo e tinha um puta laboratório em casa, porque ele trabalhava. Você era um galinheiro
P/2 - Helô, aproveitando. Você sempre deu aula na UFRJ? Você nunca deu aula na PUC?
01:33:00
R/2 - Dei no primeiro ano. Eu sou uma pessoa escrava da UFRJ, foi muito pouco.
P/1 - Mas você quis ir para a Universidade Pública?
R/2 - Ah, sim. Quando fui para os Estados Unidos e voltei, só procurei a pública. Não, porque não. Porque foi mais legal o momento cultural mínimo. Não, não, não. A UFRJ. Quantos anos, hein? Eu cheguei em 64 na UFRJ. Estamos em 24.
P/2 - Então, 40 anos, 50, 60, né?
R/2 - 60 anos de UFRJ, totalmente monogâmica. Impressionante! O que eu fiz foi sempre a favor. As quebradas, foi para a UFRJ abrir o olho. Eu digo aqui, já disse, que a minha militância era acadêmica, não era social.
P/1 - Vamos seguir aí. É um direcionamento que eu quero colocar essa provocação.
P/2 - As duas trabalham juntas.
R/1 - É, totalmente por dentro. Totalmente por dentro nós trabalhando, das instituições.
R/2 - Não tem dúvida, é paixão institucional. Eu tenho paixão. [intervenção]
01:35:24
R/1 -Tem um fato lá em Pernambuco, para mim, pessoalmente. Eles escolheram alguns cursos de humanas em Pernambuco para os militares entrarem sem vestibular. Sem vestibular, escolhiam. Então, é claro que história, foi um curso escolhido e não vale nada, não vale nada. Então, na minha turma, que éramos 23, 14 eram milícos. Então, eu tinha na minha... E eu. Era...
R/2 - Delatores, 14 delatores.
R/1 - E assim, total. E assim, sem nada, diálogo zero. E eu tinha 18 anos, dirigia, casada, dos movimentos, estava nas confusões todas. E aqueles homens, nossa, era uma coisa, porque eram todos homens. Aí você tinha soldado, sargento, tenente...
P/2 - Você tinha medo Vilma, que nem a Helô conta?
R/2 - Eu tinha medo... Por exemplo, eu nunca saía, nem chegava só e nem saía só. Meu fuscão saía cheio e eu chegava cheio. Entendeu? Chegava cheio. Não chegava... Às vezes, eu marcava com o colega para pegar no caminho e já chegava cheio. E, sair de noite, mesmo com o carro cheio, eu me assustava. A gente combinava de não sair dali do campus, da universidade, porque tinham ruas muito escuras, e eu tinha medo. Ao mesmo tempo, eles, esses bobões todos, eles ficaram tão encantados com a determinação, tudo, e eu era estudiosa, e a gente tinha poucos professores bons, todo mundo foi embora. Então, eu tive boa Ariane Suassuna, duas disciplinas, dois anos. Jarbas Maciel, que dava História da Música, que era um músico, tocava muito no espetáculo e era professor. Então, esse cara era ótimo. E o resto você engolia para acabar o curso, porque só ficou aquela turminha. E o diretor do nosso Instituto de Filosofia era um direitão, frouxo, não era que nem você passa aqui em cima, não. Ele abria: “entra”. Eu ia na sala dele direto. “A senhora quer me explicar por que a senhora está vermelha? Eu recebia a informação que a senhora estava…”. “Sim, estava”. Mas a senhora sabe que isso e isso” e foi contando. “Sim, pode ir contando”. Ele queria que eu mentisse o tempo inteiro, porque algum dia vinha dizer que ela estava lá no DCE não sei de onde… “A senhora tava” “Estava, sim”. Então, foi um momento difícil por conta desses coleguinhas. E outro momento difícil foi quando a gente recebeu o aviso de que a polícia tinha prendido o meu cunhado e saiu de lá para prender o meu marido, o irmão. A gente sumiu de casa e o único lugar que a gente teve para ir era um sítio, uma coisa que um primo dele tinha comprado em Recife, Paraíba, que não tinha energia ainda e tinha feito um lugar para botar a caixa d'água. E eu fiquei nesse lugar, eu e ele, sem energia. Pegamos uma sacola assim, uns lençóis, uma sacola voando, porque saíam de um bairro, com 15 minutos, chegariam lá em casa. Então, a gente saiu no meio do caminho, não tinha celular, né? Paramos no supermercado para ligar em um telefone convencional pra falar. Bem, mas chegamos, ficamos nesse lugar, dez dias. A gente, quando dava cinco horas da tarde, já fechava todo mundo, porque era muito bicho, muita coisa. E, de manhã, quando o sol começava, era uma coisa boa, porque você podia sair daquele lugar fechado, entendeu? E, depois, ele foi preso tranquilamente, no trabalho. A polícia chegou e levou. Mas não foi torturado, nada. Ficou só três semanas. Foi super leve para o que eu vivi com meu irmão e com meus amigos. Foi duas coisinhas assim. Agora, o que me chocou mesmo foi ver Julião, o nosso líder camponês, ser arrastado por um jipe do exército nas avenidas de Recife.
P/1 - Você viu?
01:40:01
R/1 - Vi. Horrível! E via correndo, vinha correndo, porque a polícia vinha para cima, mas arrastando, sabe? Uma coisa assim que jamais...
R/2 - Já estava morto?
R/1 - Completamente, sabe? Uma coisa horrível. Quando entrou na Avenida Guararapes, nossa, é uma coisa tão triste, tão triste que aperta o coração até hoje. Aperta muito. Porque foi muito perverso, muito desumano. Quando eu pensava no Pau de Arara, era uma coisa, mas quando você viu aquele time do exército... Ah, gente, aquilo muito ruim! Nossa! Foi muito cruel o que eles fizeram. E hoje, quando eu vejo o povo assim, alisar a ditadura, nossa! Porra! Eu só fico com vontade de pular em cima, entendeu? Pular em cima. Gente, vocês sabem o que essas pessoas fizeram e querem fazer de novo? Porque querem fazer de novo. São os mesmos. Eles estão todos aí. São os mesmos. E eles estão aí. São os mesmos, entendeu? E eles estão aí. Eles estão aí do mesmo jeito. Eles vão fazer as mesmas coisas se a gente não tomar cuidado com a nossa democracia. Vão fazer a mesma coisa porque agora eles estão mais profissionalizados, porque é no mundo, o movimento é do mundo. As tecnologias estão muito favoráveis aos processos, entendeu? De velocidade da dominação, de velocidade da mentira. Então, é muito fácil hoje você fazer isso, entendeu? É muito fácil. Eu tenho muito medo hoje de ver a volta de uma ditadura. Eu tenho. Trabalho muito pra que isso não aconteça.
R/2 - Não vai ter uma ditadura igual.
R/1 - Não, igual nunca.
R/2 - Vai ter uma mais pesada.
01:42:17
R/1 - É, vai ter mais pesada e é um retrocesso...
P/1 - Porque é mais identificada, né? Você sabia quem era, agora é dissimulada.
R/1 - Porque hoje tem muita gente que defende. Milhões de brasileiros que defendem.
P/1 - Você não sabe exatamente onde está o inimigo. Deixe-me voltar, dentro dessa conversa, a falar dos pensadores teóricos e práticos que influenciaram cada uma de vocês no percurso de trabalho, na universidade, e que vocês foram levando como uma maneira de ver, de trabalhar.
01:43:00
R/2 - A minha primeira paixão foi o Mário de Andrade. Mário de Andrade realmente fez eu ter um compromisso com o Brasil tão forte, que é o que ele tem.
P/1 - Como foi a primeira vez que você entrou em contato?
R/2 - A minha tese é sobre ele. Não me lembro da primeira vez, me lembro que estava nas Letras, estudava, e você vê que não gosto de romance nem de ficção. Fui trabalhar, mas ele era poeta também. Mas é o pensador, o Mário Andrade Pensador. Ele fazia uma coisa que acho que continuo fazendo, o trabalho dele, sem parar. Um é institucional. O sonho dele era mexer com as instituições, o que ele fez com o IPHAN, ele fez com o patrimônio. O patrimônio era só português. Ele tirou, botou e descobriu o Aleijadinho. Estourou o IPHAN com o Aleijadinho, que era popular. Estourou, quer dizer, ele foi mudando, trouxe a cantiga popular para dentro da instituição. O negócio dele era igualzinho a mim, monogâmico. Só que, com ele, era o governo. Ele influiu muito no governo. Como é o nome daquele bacana do Getúlio? O ministro do Getúlio, aquele que botou o Drummond, ele, todo mundo. Depois vem. O grande ministro da cultura.
O tempo dele e o Mário de Andrade, ele influenciou. A paixão dele era a instituição. Ele não queria só ser contra, ele queria se infiltrar e mexer. Isso aí foi a primeira paixão. Mas foi uma paixão mesmo. Eu li o Mário de Andrade todo várias vezes. E ele escreve gostoso, né? Ele escreve pra você, ele é totalmente informal. Parece que ele tá numa rede conversando com você. Uma coisa que você percebe no meu texto, mesmo teórico, é uma certa influência dessa coisa relaxada, escrevendo. Muito pessoal, eu não sei o que lá, não sei o que lá, eu vou assim, tipo molenga, não faço aquele discurso teórico bacana, argumentativo. Estou sempre na rede balançando. E isso aí é típico do Mário de Andrade. Então, o Mário de Andrade foi o primeiro carimbão, pelo interesse, pelo fascínio na instituição. Eu quero mudar essa porra! E pelo próprio jeito, meio off. Repara que, no modernismo, o Oswald brilhava com seus causos e seus poemas. Ele estava sempre meio por fora, assim. Eu estou sempre em uma posição meio secundária nas coisas que faço. Nunca protagonizo. Faço antologias, muitas. Estou sempre trazendo voz, não sou uma protagonista. Não me coloco como protagonista em nenhum dos meus projetos. As quebradas, nada a ver. Estou ali para ouvir. Então, tem uma coisa minha meio assim, fora, de deixar o outro falar, o outro se expressar. Primeiro foi Mário de Andrade, depois tive a fase marxista, que todo intelectual da minha geração teve. Então, eu tinha que ler Marx inteiro, decorar Marx inteiro. Depois, como o meu foco era a literatura, tinha Ducati, tinha quem mais? Eu vou esquecer os nomes todos agora. Esqueci, mas era tudo teórico da literatura. Marxista, marxista, marxista, marxista. E depois caí nas graças dos Estudos Culturais. Os Estudos Culturais é uma disciplina tão fascinante. Os Estudos Culturais são o seguinte: a gente teve nos anos 60, uma geração muito empenhada nas leituras. Você lia com o olho revolucionário. Você lia o que aquele cara estava fazendo, estava dizendo, do ponto de vista político. Era uma leitura muito empenhada, muito queria transformação social, muito comprometida com a revolução. E, depois, essa geração, como a gente já viu aqui, ela foi abortada, ela viajou, foi para o exílio, foi para cá, se dispersou. E a que ficou, como é o meu caso, ficou estudando margem, ficou fazendo outra coisa. Por exemplo, toda a minha militância nesse período foi pesquisa do que estava por fora e ressoava a ditadura. Porque o poema Marginal, por exemplo, ele não é contra a ditadura, você não encontra essa frase. Vai ser encontrada uma do Chacal dizendo aquilo que eu falei. Então, você percebe como era o cotidiano dessas pessoas. Estavam “ligadaços” em quem ia denunciar. Tem um poema do Charles, por exemplo, que é assim... “São três da tarde e eu acho que uma pêra vai cair na minha cabeça”. É uma geração de sufoco. Vai cair uma pêra na cabeça dele e ele não sabe por quê. Então, se você analisar aqueles poemas, eles todos traduzem muito o sentimento dessa geração. Não é contada, mas é dita. E você percebe. Então, eu fiquei pesquisando isso, fazendo antologia, fazendo mostra, fazendo o diabo para guardar essa memória, produzir essa memória durante muitos anos da ditadura, enquanto a ditadura estava presente. E a outra coisa que eu fazia era o que restava para o engajamento da gente numa cidade como Rio de Janeiro, que era receber os guerrilheiros em casa. A minha casa era um hostel. Porque entrava um e saía outro. Entrou até o Zé Dirceu, ficou um mês na minha casa.
P/1 - Como é que foi? Você lembra?
01:48:53
R/2 - Eu lembro do Zé Dirceu, porque eu fui saber anos depois, porque eles entravam com outro nome. Não, você não sabia quem era.
P/1 - No caso dele até o rosto, né?
R/2 - É, mas depois eu descobri que era o Zé Dirceu. Mas eu tinha na casa do Jardim Botânico, que era uma casa que tinha uma parte atrás, assim, que era um galinheiro e era a fotografia do João.
R/1 - O esconderijo.
R/2 - Eles ficavam lá quietos, não saíam, não sei nem o que faziam para comer, porque não vinham na minha cozinha, não sei como era, mas ficavam lá e começavam a mudar e vinha outro. Então, a minha função, um pouco, era de abrigar guerrilheiro e mandar notícias, porque a gente tinha um esquema de embaixadas. Quando você podia, alguém ia viajar, você mandava a notícia para publicar na imprensa, através das embaixadas. Então, eu fazia muito isso, quer dizer, eu só fiz isso, eu não fiz nada de mais. Era guardar o guerrilheiro e mandar a notícia. Esse era o meu ativismo durante a ditadura. Mas, eu tive esse processo no CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), que eu só soube, eu não sabia, ninguém me prendeu. Eu não sabia, eu só soube quando eu fui me divorciar, porque o meu divórcio foi terrível. Eu me apaixonei loucamente por uma pessoa e deixei o marido a ver navios e disse tchau. E me mandei.
P/1 - Que é o seu primeiro marido?
01:50:13
R/2 - Que é o meu primeiro marido. Eu deixei ele a ver navios.
P/1 - Nesse período todo, como você conheceu ele pra casar?
R/2 - Na PUC, como era de se esperar. Lá que você arranjava o marido. Eu arranjava o meu.
P/1 - Nessa sua trajetória, ele acompanhava?
R/2 - Não, não, não. Ele era um amor de pessoa, mas ele era secretário do Carlos Lacerda, por exemplo, de Cultura. E tinha vezes que eu ficava rindo em casa, de: “amanhã vai ser dia de eu jogar pedra na janela do escritório”, porque pô, secretário de Cultura do Carlos Lacerda. Então, não, mas ele não era de uma direita, era uma pessoa liberal, aristocrata, muito diferente de tudo, eu larguei ele logo. Fiquei com ele uns cinco anos, no máximo. E aí apareceu um doido. Eu me apaixonei pelo doido e me piquei. Larguei tudo para trás, sem olhar para trás, deixei faqueiro, copo, me evaporei com os três meninos. E aí teve um divórcio muito litigioso.
P/1 - É mesmo?
01:51:20
R/2 - Muito. Claro, né? Eu provoquei. Aí, o negócio era assim, perde a guarda das crianças, por quê? Tem processo no CENIMAR, ele apresentou. Era um processo que eu tinha a minha vida inteira, todas as aulas que eu andava, eu fiquei...
R/1 - Eles guardavam tudo.
R/2 - Tem processo no CENIMAR.
P/1 - Ele apresentou tudo isso?
R/2 - Apresentou. É adúltera, já fui embora por causa disso, e é drogada, isso é mentira. O “adúltera” é verdade, mas a drogada é mentira, mas como eu andava com todo mundo que se drogava, e aí pegava umas e outras, mas drogada é outra coisa, não vai pegar o aço de repente. Drogada é dependente, né? E isso pra me ameaçar, entendeu? Porque aí eu perdi os filhos, com esse tríplice argumento, não podia ser mãe pior. Mas aí, não sei o que foi, o filho ficava comigo, acabaram ficando comigo e tudo certo. Mas eu só soube desse CENIMAR nesse momento, que ele foi ver a advogada. Ele descobriu e era impressionante. Eu estava totalmente controlada.
R/1 - Eles controlavam tudo.
R/2 - Você perguntou o quê?
P/1 - Os pensadores.
01:52:49
R/2 - Ah, os pensadores. Então, teve essa leva dos marxistas todos. Brasileiro era o Antônio Cândido, que era a minha paixão. Então, a gente passou a ditadura. Eu fui estudar nos Estados Unidos e voltei com tais Estudos Culturais. Estudos culturais abrigou a indignação, a paixão, e o vácuo em que ficaram esses intelectuais dos anos 60. É bem interessante. Eles não tinham nada a fazer mais com aquela formação e com aquele impulso revolucionário que subiu. Então, Estudos Culturais foram inventados na Inglaterra, era uma universidade de operários, tinha a ver com as quebradas, era uma universidade de cultura para estudar a classe operária. Eles começaram a perceber que a classe operária influenciava muito na elite. Apesar de não parecer, a cultura aí vinha. Então, começaram a estudar a classe operária. E esse estudo começou a pegar objetos que não tinham disciplina: mulher, feminismo... Você tinha a sociologia do trabalho, mas o objeto inteiro você não tinha, era psiquiatra, as histéricas. Cada disciplina tem um pedacinho, mas a questão do feminismo você não tinha estudado. O machismo, desculpe, o racismo também você não tinha, você tinha estudar África, mas não tinha coisas, são objetos que apareceram naquele momento, que não existiam assim formulados antes. Feminismo, racismo, meio ambiente, não tinha essa área de estudos. Apareceu nessa época e ficou tudo pendurado nos Estudos Culturais, que era malandro e pegava um pedacinho de cada disciplina. O que precisava pilha. Pilhavam. Sabe que nem pirata? Ia lá, pegava e usava um pouquinho de sociologia, um pouquinho daquilo. É uma coisa muito interessante que, nos anos 80, proliferou muito na Europa e nos Estados Unidos e veio para cá, também funcionou, para mim era o meu coração teórico. E aí eu passei a estudar os mestres do Estruturalismo, que é Stuart Hall, era Francis Jameson, era a minha orientadora lá, que era foda, era a… Me esqueci o nome do orientador, já volto.
P/1 - Está aqui no começo.
R/2 - Ah, tá? Então, tem ela. Aí, sabe, o (Chris A.) Voss, que era um negócio de pragmatismo.
P/1 - O Benjamin entra aí.
R/2 - O Benjamin é antes. Benjamin é na época dos comunistas. É, (György) Lukács comunista. Lukács e Benjamin, era a grande polêmica lá atrás. Então, eu comecei a ler logo os pós-modernos e pela vista dos estudos culturais. E nessa eu estou até hoje. Quer dizer, todo o meu apoio teórico é dos Estudos Culturais, que é um mix, na realidade, mas um mix que preserva uma coisa interessante, que você só deve trabalhar para intervir. Isso é bem bacana, só tem isso. É uma coisa que pega nos anos 60, que abrigou, por isso que abrigou, por isso que atraiu os intelectuais que estavam órfãos lá atrás, que foram cortados os seus trabalhos. É assim, você, por exemplo, estuda para intervir no museu, porque o museu não está mostrando certo, o museu está violando alguns direitos, o museu está violando alguns... Então, Estudos Culturais entra. Para políticas culturais, tem sempre uma aplicação. Você sempre faz um trabalho, para. Que é uma coisa que não existe nas outras disciplinas ou áreas de conhecimento. Esse compromisso com o fora. Faz sim, pensa e age. Isso é uma novidade bacana e estou nessa até hoje. Quer dizer, todo quadro teórico depois virou esse. Pronto?
P/1 - Você Vilma.
01:57:10
R/1 - Minhas lembranças e minha base teórica são muito construídas na prática e em cima do meu trabalho. A prática é que foi buscando quem fui estudar, quem fui ler. Eu sou impactada no início da minha profissão por aquelas pessoas que lideravam aquele movimento educacional em Pernambuco ou que eram influenciadores das lideranças pernambucanas. Então, se pegar Paulo Freire... E aí todo mundo que vinha na carta de Paulo Freire. Então, se pegar Josué de Castro, todo mundo que vem junto com Josué de Castro. Se pegar Celso Furtado, todo mundo que vinha junto com Celso Furtado. Então, é fundamental. Então, assim, entender desenvolvimento, pensar o que é desenvolvimento, eu não esqueço dos primeiros livros dele, porque era uma revolução entender que desenvolvimento era nada daquilo que um dia disseram a gente na Educação Básica ou na faculdade, que não tive ninguém, tive poucos professores, tive aqueles que já falei, o resto eram ou milicos ou defensores deles que lá estavam. Mas, por exemplo, a História foi uma limpeza. Todo mundo ou foi preso ou se autoexilou, era esperar a prisão. Então, eu tinha esse conjunto e, dentro desse conjunto, eles foram se desdobrando a partir da prática. Por exemplo, Vygotsky foi... Chegou inevitavelmente na educação pelo movimento da esquerda, vamos dizer, do movimento da própria AP, que você tinha um conjunto de referências que eram ali você tinha que ler, era quase... “Você não leu?”, “não leu?”, “tem que ler”, entendeu? Você tinha uma pressão enorme sobre isso. Então, fui fazendo essa estrada a partir do meu interesse. Na hora que não gostei, não pude ficar na pedagogia, porque tudo que fazia na escola já era o oposto, fui começar a pesquisar e a estudar quem estava fora do Brasil. Mas, por exemplo, Anísio Teixeira, quando constrói e lidera aquele documento importante, ele era bom, e ele liderou, eu estou me lembrando dele por conta do documento dos pioneiros, que ali iniciou o que seria a reforma da educação pública brasileira, foi quando ele deu os primeiros passos e a minha história fica muito nesse movimento do direito à educação pública e da própria história da educação pública, da escola pública básica. Nunca tive interesse pela universidade. Sempre tive interesse pela educação básica, da alfabetização a concluir, desse direito. Sempre me dediquei. Fiquei muito relacionada. Aí vem o Freinet, vem o ____ vem um conjunto daqueles que começaram a trazer a nossa prática para cá. Estou esquecendo o nome da argentina que a gente trouxe muito ela. Nossa! Nome da argentina, nossa! Todo mundo sabe da argentina maravilhosa de alfabetização.
P/1 - Eu tenho vergonha de falar e errar, então... Não, não.
R/2 - O ministro da cultura é Capanema.
P/1 - É melhor nunca ir para o Google, é ficar…
R/1 - Ficar pensando que vai chegar. A argentina trouxe um bocado de gente desse movimento da alfabetização, daquele momento do saber... Mas tudo muito portado em cima da prática freiriana mesmo. Muito daquilo que Paulo Freire, numa prática, evidenciou e as teorias estavam aí. Milhares foram fazendo as relações, as relações do que é trabalhar com o que tem sentido, com o que tem significado, as identidades. Então, tudo isso veio e eu fiquei muito acompanhando essa história da evolução da educação pública, que é o meu interesse até hoje. Ficar de olho nisso. Aliás, ontem, Flávia perguntou... Você explica por que não faz concurso? Não faz concurso, sobretudo nesses municípios pequenos, porque você tem base eleitoral contratando os professores que você quer a cada gestão política. Então, você não vai fazer concurso para você perder. Entendeu? Você contratar o opositor que vai ser... Não! Você permanece tendo que contratar a cada gestão, a cada ano, porque assim você escolhe os cabos eleitorais. Então, é uma decisão política não fazer concurso, não ter professores efetivados em todos os municípios brasileiros, porque você mantém. E por isso que muda. A cada gestão muda todo mundo. E é um prejuízo para a qualidade da educação, porque você não dá continuidade. Então, toda aquela experiência que a pessoa teve quatro anos, vai embora, vai pro lixo. Pode ser que ela volte daqui a quatro anos. Pode ser que não volte, se o outro for reeleito. Entendeu? Então, assim... E tirando que você também tem outras fantasias, que fazer concurso é caro, que fazer concurso é... Mas você tem milhares de municípios que se juntam a fazer concurso juntos. Você tem todos os arranjos. Na verdade, você não faz ainda, porque a educação é uma pasta, mesmo em pequeno município, que tem dinheiro e que você pode empregar os seus.
P/1 - Mas aí como é que você foi... Aí você prestou... Troca. [intervenção]
02:03:25
R/1 - Uma massa de Manobra, boa. Então, você fez concurso já, mas eu acho que aqui não tem nenhum estado no Brasil que não tenha quadro efetivo. Tem quadro efetivo.
P/2 - A lei permite? Tem um mínimo concursado?
R/1 - A lei permite que você... A lei obriga. A coisa do concurso público, você vai de número de docentes, população, tudo. Então, você tem hoje quase que a obrigatoriedade, independente do tamanho, você tem que ter um quadro efetivo. Então, normalmente, eles fazem quadro técnico.
P/2 - E o professor não é então específico?
R/1 - Não. Aí tem o movimento da reforma em Haddad, ministro, para resolver isso. Aí tem vários, e tem limites. [intervenção]
02:04:41
R/1 - Então, assim, eu estava falando das influências em cima de uma prática. Então, essa prática me levou para dentro de um sistema estadual de educação, em Pernambuco, público. E, de lá, fiz a transição ao contratar a Fundação Roberto Marinho para produzir vídeos para uma metodologia que a gente criou lá com essa preocupação sempre com a qualidade da educação, com a permanência das crianças. Os turnos eram muito curtos. Nessa época, tinha um turno na escola chamado turno da fome. Ele era de onze às duas da tarde, era horrível para as crianças. A escola pública tinha cinco turnos. Ela começava a funcionar às sete, acabava às dez e tinha cinco turnos. Então, o tempo era insuficiente. E Pernambuco tinha uma TV da Universidade Federal e tinha uma TV do Estado.
R/2 - Isso lá atrás?
R/1 - Lá atrás. E aí, eu, dentro da Secretaria, dirigindo o Departamento de Tecnologia Educacional, disse que estava na hora de usar esses canais para ampliar o tempo escolar. Assista à televisão em casa e discute na escola independente de disciplina, independente do seu ano. Você tem que escolher um professor para discutir. Então, pegamos temáticas relevantes da atualidade, começando pela educação ambiental, que foi o primeiro, depois sexualidade, educação tributária, que a gente estava passando por um processo em Pernambuco de mudança, ninguém entendia, todo mundo queria saber das coisas. Bati um pouco na educação financeira na época, que hoje virou modelo aí, uma estrutura de disciplina, mas não era para ser disciplina, era para a gente ampliar o tempo escolar e o currículo ganhar mais força com as temáticas relevantes da atualidade. Nesse momento, quis contratar a Fundação Roberto Marinho para produzir os vídeos das temáticas, porque eu já era usuária bastante sistemática do Telecurso Velho, do Globo Ecologia e do Globo Ciência, que já estavam acontecendo, já existiam, porque o Globo Econômico e o Globo Ciência são os programas mais antigos dessas temáticas no Brasil. São os primeiros. Um acabou. Aliás, acabaram todos os dois. Todos os dois. Foi uma pena. Eles podiam ter transformado ele em outro modelo, em outras plataformas, em outras coisas. Não, acabou. Mas foi uma pena, porque fez escola, inclusive. Gerou em muitas universidades, nos canais universitários, nos canais educativos, uma história e formou muita gente, mas acabou. E aí eu contratei a Fundação para produzir os vídeos. Nessa, a Fundação veio ver a implementação em Pernambuco, a gente tinha feito os impressos, jogos…
P/1 - Mas aí você já tinha trabalhado com o Paulo Freire?
02:07:42
R/1 - Já estava com o Paulo Freire o tempo inteiro. O Paulo Freire, quando voltou do exílio, ele passou a ser o nosso... Que luxo! Consultor de educação de jovens e adultos. Ele voltou em 80, no começo.
R/2 - Mas você estava com ele muito antes.
R/1 - Muito antes, quando jovem, da juventude. Desde os 14 anos, acompanhando os círculos de cultura. Porque eu ia acompanhando meu irmão, que era universitário. Porque os círculos de cultura, todo o pessoal que ia atuar na alfabetização ou nos círculos de cultura específicos, nas expressões artísticas, nos grupos culturais, eram universitários. Eu ia acompanhando o meu irmão, que já estava lá naquela experiência alfabetizando aquelas mulheres. Então, eu aprendia, olhava a coisa do coletivo, do círculo, das temáticas significativas, do universo vocabular, fui aprendendo ali, para trabalhar com as mulheres lá, que o papai deixou, que só sabiam, iam aprender só a rezar Ave Maria, Pai Nosso, tudo, mas não ia aprender a ler. E aí comecei a ouvir, nos círculos de cultura, leitura de mundo, o que é o universo vocabular significativo, fui aprendendo, fui aplicando, já muito jovem, sem saber muito os sentidos teóricos daquele conjunto. Fui na prática e, dali, embarquei para a minha carreira de professora, gestora de escola, diretora do Departamento de Tecnologia Educacional e trabalhava para um milhão de alunos na parte de formação, na parte de produção de material para a formação, foi quando eu contratei a Fundação e, de lá, vim para passar dois anos no Rio de Janeiro. Eu só queria passar dois anos, não voltei mais. E assim, preocupada, porque o meu ponto com a fundação foi que eu vou produzir se eu implementar. Porque o que eu queria era, sabendo da força do que a gente ia fazer com a teleducação, era ampliar a política pública, ampliar, de fato, garantir equidade, qualidade para a escola pública, que, quando virou para os pobres, perdeu a qualidade. A classe média foi embora para a rede privada, muito dinheiro público financiou a rede privada e a rede pública perdeu a qualidade.
R/2 - E aí? Você acha que recuperou?
02:10:20
R/1 - A gente vem recuperando, recuperou e muito. A gente tem muito o que fazer, mas a gente é muito melhor do que quando eu estava lá na década de 70, de 80, porque foi assim. Você chegou na década de 80 e eu diria que, depois de Fernando Henrique para cá, há todo um movimento em todos os níveis de ensino de melhoria da educação pública. Então, acho que é uma construção, porque isso avança com a sociedade. A escola pública não vai mudar enquanto a gente não tiver toda uma sociedade comprometida, entendendo que é direito a educação básica de todas as pessoas, independente de onde nascem, como nascem, da cor, de tudo. Então, é uma melhoria que vai se dar também numa melhoria de toda a sociedade. É uma questão cultural também, né? A gente tem que mudar essa cultura. Do que é público... Pro pobre, deixa lá. Não tem a visão de entender a educação como direito de todos e que tem que ser. A gente tem que ter uma escola pública que a gente bote os nossos filhos, os nossos netos, tudo. Não tem porquê a gente correr para um direito, porque é um direito. É um direito. Então, se é direito, é para todos igualmente. A gente vai continuar construindo a desigualdade até o dia que a gente não tiver escola pública de qualidade para todos. A desigualdade é mantida por uma educação de baixa qualidade. Ela tem um papel na desigualdade, porque todo o processo de alienação, todo o processo de submissão está associado a uma ausência da capacidade crítica, da capacidade de se reconhecer com esse direito. Então, fiquei muito servidora pública, continuo até hoje. Vim para a fundação com aquele espírito de servidora pública, que ia trabalhar para o meu país em uma instituição que era uma fundação, portanto, de interesse público. Continuei servidora pública até hoje. Vou terminar servidora pública.
R/2 - Você é o quê? É do Estado? É do Federal?
02:12:23
R/1 - Eu só fui do estado em Pernambuco, pedi a rescisão de contrato para ser contratada pela fundação. Depois, estando numa fundação, fazendo educação, que é direito, sou uma funcionária pública, porque mesmo a educação privada é pública. Por isso que o MEC é responsável por todo o sistema, seja ele privado ou público, do país, mas a gente viveu um momento na história da educação pública brasileira que a gente perdeu o rumo e ficou, abandonou. O povão foi para lá e o povão pode ter qualquer escola. A classe média se retirou porque foi a escola pública que formou a nossa elite intelectual, os nossos artistas. E a gente começou todo errado com a escola pública, porque a nossa escola pública, a primeira, foi uma universidade, uma faculdade de Direito. Não foi uma educação, não foi alfabetização, não foi educação infantil. E ela nasce para atender os filhos da nossa elite colonizadora, de quem estava aqui como colonizador. Eu que não queria mais ir para o frio da Europa estudar. E não dava mais para mandar professor particular para quem nasce na faculdade de Direito. Então, a gente foi descendo o ensino médio, o ensino técnico para chegar no direito para todos. É muito nova a nossa educação básica pública. Ela é nova. Para um país desse tamanho, com essa diversidade, com essa desigualdade, a gente avançou muito, porque a gente tem tido em algumas gestões e tivemos a oportunidade de ter de Fernando Henrique um bom tempo, continuando a educação pública em todos os níveis como prioridade do governo. Aí você tem um aumento agora de retrocesso, que aí de novo, das universidades até a educação infantil, a gente andou para trás e estamos de novo recuperando. Mas nós somos muito diferentes de quando eu entrei na educação pública. Em relação ao direito, em relação à qualidade.
R/2 - Por que?
R/1 - Porque a gente melhorou muito. A gente melhorou muito enquanto sociedade, enquanto liderança política e enquanto a experiência, as conquistas da população. O povo sabe chegar lá e dizer: “não quero essa professora não, que ela falta todo dia, quero essa aqui, que ela vem”. “Aquela ali, o marido dela é médico, dá licença toda semana, ela não vem”. Então, há uma conquista da população, porque há uma exigência, há uma clareza de que o que mais escutei como diretora de escola de pai e mãe foi dizer assim: “não faço nada, não cumpro nada, só quero que meu filho tenha escola, tenha educação, porque isso vai mudar a vida dele. Eu vivo essa vida porque não tive escola”. Então, há uma clareza na sociedade muito grande do papel da educação e da escola. O nosso povo pobre deixa de comer, mas leva o filho para a escola. Eu já atendi muita mãe andando com a sandália havaiana no meio, sem ter, porque não dá para comprar para ela, mas o material escolar está ali, tem que ter. Hoje, você tem material escolar, você tem fardamento, a merenda, tudo que você não tinha. É claro que faltam em muitos lugares tudo isso, mas não é nacional. Há uma melhoria...
R/2 - A escola dá?
02:15:49
R/1 - Dá. A merenda, o transporte, o material escolar, o fardamento, isso é… Em alguns lugares, vira marketing, mas não importa, a criança recebe. Então, você foi melhorando, mas a melhoria para mim é, sobretudo, pedagógica. Há uma melhoria das licenciaturas nas universidades, do curso de pedagogia nas universidades, que já foram as piores. Você chegava em qualquer… Agora, o governo federal lançou essa semana um programa interessantíssimo, porque a profissão, quem quer ser professor é baixa, ninguém quer. Ninguém quer ir para as licenciaturas para ser professor, porque começa a ganhar pouco, tem que ter três empregos, aí começa tudo. Então, você vem fazendo políticas de incentivo. Essa semana, o MEC lançou um programa de, se você for fazer licenciatura para ser professora, você começa a receber uma bolsa, essa parte dessa bolsa você gasta para os seus estudos e parte, você fica numa poupança que você saca na hora que você for exercer a sua função de professor. Não, o pé de meia é para o aluno do ensino médio não largar. Esse é um programa que foi lançado agora de incentivo à prática docente, para ser professor, para estimular os estudantes que vão fazer o Enem a irem para as áreas de licenciatura, entendeu? E chegam na fundação para produzir o Telecurso, que foi chamado na época de Telecurso 2000, e virou política pública.
P/1 - Mas aí que você liderou e criou a metodologia telessala?
02:17:40
R/1 - Quando eu vim, eu já trouxe essa metodologia telessala porque eu usava o Telecurso, que era veiculado, aberto, para melhorar o ensino noturno, para melhorar a qualidade, que era muito precária. Então, eu já meio que iniciei. Mas, na fundação, eu aprofundei, fundamentei totalmente, e aí nós implementamos no Brasil todo, que é uma metodologia baseada na produção coletiva do conhecimento. Você trabalha em grupo o tempo inteiro, são quatro grupos, você parte do conhecimento e reconhece o conhecimento das crianças, dos jovens e dos adultos, independente de não ser aquilo que está no currículo. Ele sabe muito e ele é inteligente. Então, a gente implementou como política pública, como telecurso, com a metodologia telessala, como política pública de Estado, de município e empresa que fez, implementou. Quando você estava falando do gari, eu me lembrei do nosso telecurso aqui no Rio de Janeiro com os garis, com a prefeitura do Rio de Janeiro. Nossa, a coisa mais linda! Eles terminaram o ensino médio e, hoje, tem gari, que é professor da rede. O que eu mais encontro é aluno da gente que virou professor, Helô, professor da Universidade, Física, Federal de Pernambuco. Tem três físicos lá que foram alunos do telecurso da gente. Desses garis que a gente tem nome, endereço e escola. Estudou com a gente. É físico, é professor, é doutor. Concursado na rede, todos esses estados a gente encontra. Encontra depois como secretário, encontra na universidade. Teve um momento na Bahia, que a gente estava com um projeto lá implementando, e a secretária teve uma seleção de mestrado. A secretária me ligou e disse assim: “Vilma deixa eu lhe dar uma notícia: todas as vagas do mestrado foram preenchidas pelos professores do Telecurso, porque todo mundo quer fazer mestrado, todo mundo começa de novo a querer estudar. Volta!”. A coordenadora do projeto no Acre, fez mestrado, fez doutorado, hoje ela é professora, coordenadora na pedagogia, na Universidade Federal do Acre. Então, tem muita trajetória que você pode observar diretamente. A educação é, sim, o meio mais importante de libertação, de autonomia, de construção de autonomia, de libertar, de sonhar.
R/2 - Os governos reconhecem isso?
02:20:30
R/1 - Acho que hoje a gente tem um grupo de governantes que reconhece.
R/2 - O Lula reconhece?
R/1 - Reconhece, sim, porque Lula...
R/2 - Reconhece?
R/1 - Reconhece. Tanto que esses programas todinhos... Quem inventou? Olimpíadas da Matemática, Olimpíadas... Tudo foi Lula. Eu estava presente numa reunião. Quero fazer. Vinha quem fosse contra.
R/2 - E o Carlos Santana, é bom?
R/1 - Carlos Santana?
R/2 - Não é o nome do ministro?
R/1 - Não!
P/2 - Camilo.
R/1 - Camilo Santana. É um cara sério, que no Ceará... Deu certo. Apoiou a educação. Ele nunca foi contra a educação. Então, é um cara sério, entendeu? Está se esforçando, botando equipe, porque não é fácil ser ministro. Ser ministro de qualquer coisa é difícil. Ser ministro da educação é muito mais difícil, porque o MEC fomenta, formula, mas não implementa. Quem executa é o estado e o município. Então, você tem que ter o poder de mobilização política e você tem que ter uma base política, coisa que nós perdemos recentemente, com uma representação no Congresso e uma representação no Senado que atrapalha bastante, que a gente anda bem para trás, porque, para provar uma coisa ali, você sofre. Mas, eu diria de novo, estando na educação pública do meu país, acompanhando que hoje a gente tem mais governantes que entendem a importância da educação e valorizam e investem do que menos. Agora, temos ainda muita gente que reconhece, mas não sabe fazer. Reconhece, mas não sabe escolher a equipe. Aí erra, dá errado, mas reconhece que é importante. Eu não escuto, nesse projeto nosso dos trilhos de alfabetização, eu não tenho um secretário, um prefeito que não reconheça a importância da educação. Agora, nem todos conseguem fazer uma equipe técnica mais qualificada, conseguem entender o papel do concurso público. Consegue entender que a secretária... Mas a gente tem um município, a Assarana, que a secretária é da rede concursada. Ela foi tecnicamente escolhida. Aliás, agora aconteceu outro sinal de que a gente estava mudando. Quem ganhou a eleição foi um candidato, outro não foi o dela, e ela foi convidada para permanecer. E ela permaneceu, muito assustada, porque é outro grupo político, ela não sabe, mas ela permaneceu, porque ela é também uma pessoa comprometida. Então, a gente tem muitos sinais de melhoria, mas muitos, muitos. De quando eu comecei para hoje, então, é muito grande a mudança. Mas a gente tem muito o que fazer. O país é grande, é diverso, é desigual. A fome atrapalha. A merenda, às vezes, é a única alimentação da criança. E ela espera o outro turno para comer de novo. Isso daí na minha época.
R/2 - E fica no outro turno?
02:23:34
R/1 - E fica. E a maioria do... O nosso povo é solidário, sobretudo o povo pobre. Ele é muito solidário. Então, fica, dá o prato de novo, come de novo. Você não tem a mesquinhez como característica nossa. Não é nossa. Isso é uma minoria muito pequena que tem essa atitude mesquinha. A maioria não, quer que as crianças comam, quer que as crianças fiquem, quer que as crianças brinquem, quer que as crianças aprendam. Agora, entre querer e conseguir fazer, tem a necessidade de estar preparado para fazer, ter as condições de fazer com qualidade. E a gente está reunindo, porque cada vez mais você tem tantos recursos que aumentam para a educação quanto às estratégias, as metodologias, tudo que vai se difundindo no Brasil inteiro. Então, as próprias instituições, os conselhos, o Conselho de Secretários de Estado, o Conselho, a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) . Então, tudo isso vai ajudando, que o secretário mais preparado ajuda com a experiência dele, o outro, os arranjos.
R/2 - Mas na Associação não zera, não?
02:24:44
R/1 - Olha, zerar não zera, porque atrapalha muito, mas não zera, porque aquela mudança que você fez no professor, na prática dele, ele não volta atrás. Por isso investir no professor é fundamental, porque quem está na sala de aula, quem comanda, é ele. E ele, sabendo fazer, faz certo. Não podem mandar ele fazer errado, porque ele não vai fazer. Ele está ali, tem toda a autonomia, o planejamento é dele, é toda a autoridade, ele faz. Por isso que investir na formação continuada de professor, lá na inicial, tem que começar na universidade boa, para chegar na escola facilitando, tem que começar lá, que ainda não é, porque tem muitas falhas. O currículo da formação inicial na universidade é muito descasado da realidade. Os professores chegam e, em si, tomam susto “não professora, porque é o primeiro ano”, mas o primeiro ano fez estágio, foi aprovado, teve prática, só que o currículo não contempla a realidade, a diversidade, os conteúdos. Quantas vezes a gente trabalhando a questão por uma educação antirracista, os professores dizem para a gente, em qualquer lugar do Brasil, aqui no Rio, em São Paulo: “É a primeira vez que escuto falar sobre isso”. “Mas isso é isso mesmo?” “Tem isso mesmo?” “E começou aí?” “A história é essa?”. Nem a história, como essa história mal contada...
R/2 - Espera aí, como é que você faz?
02:26:13
R/1 - A gente tem um material específico para o professor, tem a formação, tem os melhores especialistas, tem Renato Alguerra, têm Mônica Lima, tem tudo mais para trabalhar diretamente com esse professor. Isso, de fato, é você levar o melhor para todos. E o Telecurso fez isso porque quem produziu o Telecurso foram os melhores. Então, quem estudou Matemática com o Telecurso, estudou com o Pitombeira. Melhor matemático, que a gente tinha, por favor. Então, quem estudou História? Então, assim, você levou a qualidade para todos. Então, você tem muitas formas de socializar a qualidade. Precisa ter vontade política de fazer. Precisa ter compromisso ético. E fazer com respeito, fazer com afeto, porque não é chegar arrogante. “Agora, isso aqui é o melhor”. O melhor é se a gente conseguir fazer juntos, juntar o que você sabe, o que esses aqui sabem, para a gente garantir os direitos. É isso, entendeu? Então, o meu encanto a vida toda foi ver, ao encerrar a minha carreira, olhar para trás e dizer: “deixamos a maioria da população brasileira com a educação”. É uma vergonha que o Brasil tenha analfabeto, que o Rio de Janeiro tenha analfabeto. É uma vergonha. Século XXI, você vê jovens e adultos que não sabem ler. O Código até hoje é leito para a comunicação na humanidade. Em um país que tem Paulo Freire, que mostrou sua teoria, como você faz isso eficientemente, rapidamente, com pouco dinheiro, só com vontade política. Então, com o Telecurso, a gente levou essa qualidade de um currículo contextualizado, problematizado, pensado por área de conhecimento e não pelo fragmento disciplinar, com temáticas relevantes, com os melhores historiadores para contar nossa história direito, como de fato ela aconteceu. E, dentro desses projetos do Telecurso, (02:28:33 - 02:28:59 - Intervenção) E quando veio o fracasso da escola básica brasileira, as teorias foram criadas: “É porque a família é desestruturada”. Nós somos assim. [intervenção]
Projeto Conte Sua História - PARTE 2
Entrevistadas Vilma Guimarães (R/1) e Heloísa Teixeira (R/2)
Entrevistas por Rosana Miziara (P/1) e Flávia Constant (P/2)
Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 2025.
Código: PCSH_HV1438
Revisão: Nataniel Torres
P/1 - Meninas, a gente parou na... Eu tava revisando a entrevista, relendo. Ficou lindíssima. Aí a gente ficou de trazer as fotos, mas a gente vai trazer em um outro momento. Eu acho que a gente tá aqui. No movimento também, o que não se encerrar hoje, até onde for oportuno, e se aguentar falar, pra não ficar uma coisa estressante, achar que tem que acabar o assunto. [intervenção] Bom, queridas, nós paramos exatamente no ponto que a gente ia começar sobre falar do feminismo. Como começou essa questão para vocês, pensando? Como são duas educadoras experientes? Como é que hoje vocês veem a questão do feminismo e do identitarismo? Quando isso começou na vida de vocês, essa percepção? [intervenção]
P/2 - Eu acho que aquilo que a gente tava querendo ouvir de vocês é o que eu já ouço de vocês há muitos anos, como os assuntos são muito relevantes quando tratados como exclusões. Então, falar da questão das mulheres, falar da questão do racismo, são todos temas importantes. Talvez agora o que esteja acontecendo é tornar tudo identitário demais e não uma pauta de diversidade. Claro, não tem nada a ver com diversidade. É isso, acho que é mais por aí que a gente queria ouvir como educadoras.
00:03:44
R/2 - Eu estou lançando esse livro: “Políticas da identidade”. Exatamente. Mas pulei a fogueira do identitarismo. Passei a “en passant”. Porque não merece um nível. Eu acho que o identitarismo é uma questão de mídias sociais. Sem mídias sociais era outra coisa. Mas essa coisa de linchamento...Virou isso. Mas você perguntou quando é que chegou nas nossas vidas.
P/1 - Quando começou a ser uma reflexão? O que aconteceu?
00:04:51
R/2 - Chegou nos anos 60, como para todo mundo. Mas é engraçado que eu não me liguei muito de cara. Eu olhava mais para a mão esquerda, porque eu estava amigo contra a ditadura e anti-racista, a coisa racial, que tinha o MNU se formando, Movimento Negro Unificado, e eu cai de cabeça na coisa racial. E as mulheres ficaram em segundo plano. Porque era muito forte a questão racial dos anos 60. Estava desmontando-se. Era incrível. Então, eu me aderi mais à coisa da raça, dos negros. Mas também tem outra coisa. Você ser feminista nos anos 60 era muito ruim. Eu tenho um livro chamado “Feminista Eu?”, que é todo mostrando, até os anos 80, que as mulheres não se identificavam como feministas. Mas as mulheres eram, Rita Lee: “Não. Feminista, não”. Quer dizer, não bate bá com bé. Então, por quê? Tinha vários motivos, eu acho. Um deles é porque começou esse negócio de mulher muito forte. Porque vem junto, os anos 1960, é o pacotão. Aquele pacotão, ele vê que tudo fica importante. E o feminismo vem no pacotão, junto com raça, com ditadura, com as instituições que tinham que acabar, enfim, com imaginação no poder, com barricada. Aquilo era um pacote. A esquerda, no caso do Brasil, era muito difícil do feminismo se situar, porque a esquerda era contra, totalmente contra, porque ia atrasar a luta da esquerda. A Revolução era um assunto que podia ser resolvido logo depois. Então, estava com o timing errado e ruim, atrapalhando uma luta que estavam todos engajados, inclusive as mulheres. Então era desconfortável. Era a turma da gente, eram os amigos da gente, eram as outras mulheres desse núcleo de esquerda, e era a conta. A segunda coisa é que a igreja era cúmplice, não, abrigava muito nos anos 60. A esquerda, os movimentos sociais, JUC e JEC, quer dizer, a esquerda era progressista. A esquerda, no tempo da ditadura, era um paraíso. Um deserto, uma coisinha lá. Importante, politicamente. E você ia se meter a brigar com a ditadura aqui. A igreja soube que sou companheira nessa luta. Te oferecendo muito. E você vai comprar uma briga por causa de aborto. O problema era aborto. O anos 60 é corpo. Liberdade sexual, aborto, homossexualidade. Vai comprar essa briga? Com o seu único aliado. Então, o feminismo ficou assim, numa saia justa. A igreja não podia, que era nosso aliado, e a esquerda não podia, que era nosso aliado. Então, dois aliados te impedindo e, obviamente, a ditadura totalmente contra. “Deus, Pátria e Família”, onde o feminismo não tinha pouso. Então era muito difícil você se mexer. Eu acho muito engraçado, a Heleieth Saffioti fez uma tese, e ela falou assim: “eu vou fazer uma tese sobre mulheres, ninguém vai perceber”. Ela então fez uma coisa super marxista. Todas elas ficaram marxistas. Então, o nosso feminismo daquele tempo é toda uma cartilha marxista. Mas era um pretexto, elas dizem. Era um jeito de você enfiar o assunto via Marx. É muito dissonante. Você pega os Estados Unidos, a Betty Friedan, ela está rasgando sutiã, ela está performando, e aqui está tudo rezando na cartilha do Marx. Então, é muito diferente cair lá. É bem interessante. E... Com essa mexida, teve uma reação, eles chamam de backlash, muito grande. Então, por exemplo, uma feminista era igual a uma mãe que abandona os filhos, uma lésbica, sapatão, uma mulher feia, uma mulher mal amada, uma mulher que abandona o lar, uma mulher que não vai arranjar homem porque nenhum homem vai querer, e por aí vai. Então era uma mulher muito desqualificada. A brincadeira era desqualificar. Veio aqui a Betty Friedan, que era top, top no momento. Veio no Brasil e o Pasquim deu-lhe uma surra. Falando do nariz horrendo dela, feminista, agora eu vou rir. Era uma falta de respeito. Absurda. Tem essa... Todo o Pasquim em cima. O Pasquim só queria Leila Diniz. Mas Leila Diniz era feminista. A gente pode dar uma leitura feminista. Mas ela ficou famosa por falar palavrão. Ela foi dar aquela entrevista e falou um palavrão atrás do outro. Os homens adoraram aquela mulher que falava palavrão. Não era bem uma feminista. Então, a única que se salvava era a Leila Diniz, o resto era malhação mesmo. “Não presta, não presta, não presta, não presta”. E muito culpando as mulheres, por causa da questão da família, dos filhos, que iam ficar delinquentes. A mulher saía, enfim. Então, esse momento é bem complicadinho no Brasil, esses anos 60. E eu me lembro que eu achava bacana a coisa, mas não me dedicava a. Eu ia direto para a coisa racial. Então, passei muito tempo, aí eu fui para os Estados Unidos. Aí, nos Estados Unidos, fazia um pós-doutorado em Sociologia da Cultura. Quando eu cheguei lá, estava começando um feminismo teórico. Mas começando pontualmente. Cheguei em 82, a primeira publicação veio em 82. Então eu vi aquela coisa aparecendo, que era uma onda gigante. As mulheres iam para as universidades, quebravam o pau porque a bibliografia não tinha mulher, quebravam o pau porque não tinha um lugar específico para se estudar, não tinha departamento feminista. Mudava a universidade inteira, era um inferno. Então era uma guerra ali, linda e muito grande. E começando uma promessa que me fascinou, que é a promessa de mexer no pensamento. A brincadeira naquela hora era você ter o direito, antes era o direito ao corpo, agora seria o direito de interpretar. Então é muito lindo, porque você pegava o Freud, tem muita coisa sobre o Freud feminista. Algumas ingênuas, mas tentando acabar com o Freud. Ou reler o Freud, ou mexer com aquele cara. Tinha que mexer com Deus. Com Deus é a minha paixão. Que as teólogas começaram a proliferar para procurar, sabe, mulher na Bíblia. O que mulher dizia? É porque teologia sempre é o mais legal de tudo. É uma viagem. Então, as teólogas davam show. As advogadas. O direito mudou todo de cabeça para baixo. E era sempre interpelando uma epistemologia que estava lá. Que era o quê? Era marxismo, Freud, a antropologia começando, essas disciplinas todas, a mulher colocou a mão na cintura e disse: “vem cá, meu bem, vamos conversar a Freud, vamos conversar Marx”. Então, era uma viagem lisérgica. Se você chegava lá, era um livro atrás do outro, uma palestra atrás da outra. E você via que você tinha poder, de repente, de mudar o pensamento geral. Aí é que fica onipotente e enlouquece. Foi como me aconteceu. Fiquei fissurada, larguei o curso que fui fazer. Só fazia isso.
P/1 - Lá no…
00:13:43
R/2 - Larguei. Larguei e arranjei uma orientadora, que foi a Jean Franco, que era uma super feminista famosa de lá. Comecei a trabalhar com ela. Fiquei dois anos trabalhando e... Fiquei dois anos trabalhando com a Jean e voltei para o Rio. E aí comecei a criar núcleo na universidade, etc. Aí minha vida foi uma militância mesmo. Mas era uma militância acadêmica. Meu negócio não era que tinha muito assim... Porque esse feminismo que eu disse que não deu certo, dos anos 60, é mentira minha. Porque as mulheres não foram para a rua, mas elas foram para as instituições, o que é maravilhoso. Elas resolveram se meter no governo. E então você tem, por exemplo, delegacia da mulher, uma coisa que não existia em país nenhum, só no Brasil. Foi uma invençãozinha nossa, que não podia fazer as coisas, inventou essa. Então, você tem, Delegacia de Mulher, Secretaria de Mulher, em todos os estados dos anos 70, já tinha. Era uma coisa de andar dentro do sistema. Vem de ser aquela coisa “fora-americana e europeia”, e “vai lá fora do sistema". Não é dentro, certinho. Dentro do Congresso, dentro da Universidade, dentro da... Mas sempre dentro e inventando muito, porque as instituições começaram a aparecer milhares. Até que, quando o Tancredo ia tomar posse, ele já tinha combinado o Ministério de Mulheres, e ele morreu. O Sarney honrou e fez uma Secretaria de Mulheres com o poder de Ministério, com o status de Ministério. E foi uma gestão linda que houve onde se fez a Constituinte. As mulheres fizeram o “Lobby do Batom” inacreditável, em 24 horas. Tudo de batom para fazer a diferença. 24 horas, de noite e de dia, não saia a mulher de lá. A gente tem a Constituição mais moderna que existe. A gente não tem ela em prática. Pode ter em prática, mas está lá. É de uma modernidade, de um avanço. É maravilhosa a nossa Constituição em relação à mulher. Mas não era por aí que eu ia, não. Eu fiquei doida em mudar a cabeça. Fiquei doida em mudar a cabeça de uma pessoa. Dá um final em Freud, um final no Marx, um final em Deus. É maravilhoso! Aí eu fiquei, estudava feito uma enlouquecida, dava a aula, fazia livro, enfim. Aí eu entrei nessa trip e não saí mais. Nunca mais, até hoje. Que é essa trip epistemológica. O que você faz para pensar diferente? E fazer pensarem diferente? Vou dar um exemplinho mínimo, só para ver como é eficaz. Tem uma mulher chamada Donna Haraway, que é bióloga. E ela fazia pesquisa de chimpanzé. Então ela foi ao campo ver chimpanzé. O chimpanzé estava todo formatado. O chimpanzé corre na floresta, pega não sei o quê, é isso, é aquilo. Estava tudo codificado, tudo classificado. Aí chega a Donna na criação do chimpanzé, e vê que tinha uma chimpanzezinha, que o homem nunca viu. E que tinha uma “chimpanzoa”, que o homem também nunca tinha prestado atenção. Aí ela faz a relação dos três e muda o conceito de chimpanzé para longe. É muito lindo esse trabalho. Eles tiveram que reclassificar tudo, porque o chimpanzé estava errado. O que eles diziam que o Chimpanzé era? Era a você levar em consideração, o papel de provedor dele, o papel da mãe com a criança, da mãe com o Chimpanzé e da criança com a mãe com o Chimpanzé. Enfim, só que essa conta não era feita. E mudou radicalmente a própria classificação do Chimpanzé. Então, é uma coisa forte. Aí é por aí que eu andei. Mordi essa isca e estou até hoje, correndo atrás.
P/1 - Vilma, e você, como é que nasce essa questão? E se ela tem a ver também com essa história familiar do papel da mãe, do papel do pai? Se ela traz uma reflexão sobre isso para você?
00:18:56
R/1 - Isso como feminismo estruturado só veio aparecer na minha vida muito tarde. Agora, a minha vida foi, até hoje, acho que isso me mobiliza o tempo inteiro, é trabalhar que são iguais nos direitos. Desde cedo, quando ela falou de 60, eu disse assim: “Puxa, eu estava com 12 anos”.
R/2 - Eu já estava com 80. Eu estava com 50.
R/1 - Nada disso, a conta está errada. Vai fazer um telecurso de matemática. Então, assim, onde é que eu estava? Eu estava já começando a ensinar catecismo lá em Casa Amarela, numa periferia de Recife, numa comunidade bem pobre. E eram mulheres que queriam ser catequistas naquela comunidade. Com 15 anos, todos os sábados, eu ensinava...
R2 - Era o que, primeira comunhão?
00:20:01
R/1 - Não, era para ensinar Ave Maria, Pai Nosso, Creio em Deus Pai, Salve Rainha, as orações básicas. Só que eu fui ensinar isso e elas não sabiam ler. Aí começou. Eu quis alfabetizar as freiras, em nome de Deus, com todos os preconceitos, quiseram convencer meu pai, que era perigoso eu ficar naquele lugar, que elas voltavam às quatro horas, que eu tinha que voltar às quatro. Ele disse: “Não. Pode deixar que quando eu sair do trabalho eu vou buscar”. Então eu fiquei ensinando elas a aprenderem a ler, sem nunca ter ensinado ninguém a ler, como eu aprendi. Eu aprendi, então levava e recolhia. Meu irmão mais velho era do Círculo de Cultura de Paulo Freire, da JUC, e eu era de JEC, da Juventude. E aí eu comecei a ir e observar, e ali não parei. Eram só mulheres. Depois, a partir de 14 anos, eu comecei a ensinar arte culinária às mulheres todos os sábados de tarde. Mamãe cozinhava muito bem, era uma exímia cozinheira. Toda formada e eu aprendia. E as mulheres queriam ter alguma renda. E eu ensinava o catecismo, mas o catecismo ia levar ela para a igreja, mas ela não ganhava nada. Do ponto de vista material, eu dizia: “Eu sei fazer empada” “Eu sei fazer coxinha” “Sei fazer torta de limão, não sei o quê”. “Ah, então, ensina para nós”, “Agorinha”. Então, todo sábado de tarde, eu dava aula na casa delas, levava as coisas lá de casa, tudinho. Todas as coisas lá de casa. E passei uns dois, Dom Helder adorava ver. E aí, eu comecei a organizar minhas primeiras formaturas. Só mulheres, eram só as mulheres. Faziam tudo dentro de casa e queriam ganhar alguma coisa. E eu adorava, motivadíssima, porque mamãe trabalhava que nem um cão. Eu tinha sete tias, mulheres todas daquelas de, sabe, construir, consertava. Quando teve uma novela que tinha uma Maria que fazia tudo... “Marido de Aluguel”, sei lá, que era Lília Cabral. Eu só me lembrava das minhas tias. Aquelas subiam na escada. “Que esperar que ele chegue nada. Quem troca essa lâmpada sou eu”.
R/2 - Você sabe que os seminários feministas hoje, das novinhas, dessas bacaninhas que estão aí, das meninas, sempre a aula de eletricidade?
00:22:41
R/1 - Pois é, porque era um domínio. A força, né? Consertar a torneira, só homem, entendeu? Então, elas faziam. E eu queria muito aprender, porque o papai ensinou tudo isso aos homens. Mas mamãe ensinou os homens todos lá de casa a cozinhar. Eles cozinham muito bem. Todos os meus irmãos.
00:23:05
R/1 - Mas ele te ensinou a torneira ou não? Não, não era pra menina. Não era pra menina. Eu fui aprender na marra, né? A gente aprende na marra, né? Eu não sei nada. Aí eu faço umas coisinhas. Gostaria de fazer mais. Mas muita coisa eu faço. Eu comecei botando aquela borrachinha, que era um segredo, chamava um cara pra botar a borrachinha, porque... Peraí, só é de botar, puxa aqui, puxa aqui, passa pra frente, só eu que faço. Então, mudar resistência de ferro, resistência de chuveiro elétrico, é uma bobagem. Aí você, só porque não observou. Aí eu não observava, aprendi. Olha, resistência de ferro, resistência de chuveiro elétrico, eu aprendi. Porque era um pouco ter autonomia. Depender? Uma bobagem. Depois chegava na minha casa gente assim que não teve essa oportunidade que eu tive de escolaridade, nem de acesso aos bens culturais. Sabia fazer tudo. Sabia por quê? Porque a exclusão, a pobreza, a miséria botou as mulheres pra fazer tudo que os homens fazem, porque hoje as pessoas dizem assim: “Quem sustenta a casa são as mulheres”. Há muito tempo as mulheres sustentam as casas, e cuidam dos filhos. Essa coisa, mãe solo, mãe solo é muito velha. Ninguém falava de solo. Tinha ela lá morrendo, segurando os filhos. E naquela época tinha dez filhos, onze filhos, nove filhos. Não era um, dois. Era muito. Hoje, quem tem menos nessa faixa tem seis, da pobreza. Tem seis filhos, tem cinco. Não é que meia classe média. Ele vai subindo, só tem um. Começa com dois, tem três e vai em um. E acabou, né? Para em um. A gente já teve um pouco mais, né? Mais. Eu queria ter sete.
R/2 - Queria ter seis.
P/1 - Você teve quantos?
00:25:00
R/1 - Três. Mas eu engravidei sete vezes. Eu podia ter tido mesmo sete, se não fosse ainda... A ciência atrasada, mas eu só posso ter a ciência do meu tempo, não é? Posso querer ter a ciência de hoje. Então, era a ciência da minha época. Eu tive vários abortos. Abortei muitas vezes. Tem três, não é? Eu também, três. Mas o terceiro foi na teimosinha, porque na terceira cesárea, perdendo o que seria o último, o médico disse na sala: “Vilma, a chance de sobrevivência é mínima”. Ia fazer seis meses do bebê, eu disse: “Então não liga as trompas”, porque eram três cesáreas. Eu disse: “Eu quero ter a quarta”. Ele disse: “mas a quarta?”. Eu disse: “Posso?” “Podemos tentar”. Um ano depois eu engravidei, nasceu Francisco. Se não, só teria duas meninas. Mas eu insisti. Eu, naquela época, não tinha maturidade pulmonar, antes de seis meses, e não tinha os medicamentos que tem hoje. E ele nasceu muito bem, ele chorou, ele tinha quase dois quilos, estava ótimo para ser um bebê. Mas, em menos de 24 horas, o pulmão começou e não tinha os medicamentos, não tinha a incubadora que você tem hoje toda preparada. Você salva o bebê de quatro meses. Fica três meses, quatro meses na maternidade e sai potente. Naquela época não tinha. Era a ciência que você tinha. Então... Mas eu insisti na sala de parto. Então, deixassem eu ter a quarta cesárea e eu tive. Então, nasceu Francisco. Um ano depois. Eu queria ter muitos filhos. Então, eu acho que essa coisa de ter uma mãe, mulher forte, de ter sete tias, por parte de papai da parte de mamãe. Sendo que as de mamãe, eram muitos presentes. Porque tinha uma tia, ela chegava, assim, sábado de manhã, bem cedo, ela chegava com três sacolas, assim. Até hoje, meus irmãos me chamam de tia Dorinha, porque diz que eu chego dos cantos do mesmo jeito de tia Dorinha. Ela chegava com tudo para fazer o bolo de macaxeira, que a gente adorava. Mas ela lavava a macaxeira, o coco, o rapa coco dela, porque só o dela era bom. Daquilo que você botava aqui no meio das pernas. Creco, creco, creco. Ia raspando o coco. Ela chegava com tudo para fazer aquele bolo. E só saía quando a gente já estava provando o bolo, todo mundo adorando o bolo que ela fez. Então, eu acho que fui muito impactada com isso por um pai que não me ensinou a consertar a torneira, mas ele era muito rígido com o direito do menino e da menina lá em casa. Então, tinha essa história, eram seis homens e três mulheres. Então, era uma vantagem para os homens, somando com eles, sete homens, e três mulheres. Mas ele era muito digno: “O que é isso? Olha o respeito à sua irmã”. “Por quê?”. Cresceram uns machoezinhos, que diziam assim: “peraí, vai dizer isso aí pra menina, não”. “Vilma vai sair agora? Sabe quem é esse homem aí, papai?” “Não é com você, é com ela, quem vai responder é ela”. Então eu tive muita atitude correta, coerente, exemplo. E eu fui aprender depois que a educação passa pela capacidade de oportunidades que você tem de observar bons exemplos, boas atitudes. Aí consiste o poder de aprendizagem inigualável. É o poder, você observa o porquê é assim. O exemplo é muito importante, porque ele traz a coerência, traz a verdade, ensina muito. E hoje a gente perde muito na educação, porque não temos exemplos. Nem dentro de casa e nem na escola. Nem de casa, a criança com quatro anos atende o telefone: “Mamãe, é pra você”, “Diga que eu não estou” “Mas você está, não está?” “Diga que eu não estou”. Eu estou ensinando a mentir para a maior autoridade da criança que é a mãe. Aprendeu a mentir naquela hora. E vai mentir para a mãe e vai mentir para o mundo. Porque a vida não dá tempo para você refazer as trajetórias todas que você deseja. Por isso que tem tanta gente que fica na psicanálise 20 anos, 30 anos, a vida toda. Como vai refazer? Quando tem coisas que eu acho que pega na pele, pega lá dentro, fica impregnado. Como é que você tira? Entra pra descascar? Não descasca. Fica. É difícil. Então eu acho assim que o exemplo das mulheres que estavam na minha vida e dos homens, porque D. Hélder foi uma grande referência na minha vida. Mas D. Hélder segurava na mão das mulheres assim, desse tamanho, as mulheres mais altas do que ele: “Venha bater”. A polícia querendo pegar as prostitutas. Um exemplo! Ele não precisava estar fazendo discurso para a gente. Não precisava. Ele tem uma marchinha de carnaval, que ele sai no carnaval, a igreja católica meteu no pau no carnaval, porque carnaval é tudo que não presta. E ele saía no bloco, no meio, cantando. Tem uma crônica dele linda, um texto lindíssimo sobre a beleza do carnaval e ele mandando o povo brincar o carnaval. Então, assim, são atitudes coerentes de igualdade. Então, eu acho que eu impregnei muito isso, nessa igualdade, e levei para a minha prática como educadora, como mãe e como educadora e como cidadã, do meu tempo e até hoje. Então, assim, na escola, o tempo inteiro, quando eu vejo, depois de muito tempo, a questão do racismo, a questão do próprio feminismo que se estrutura e aí traz algumas regras, mas assim, eu sempre torci pela regra dos iguais. Somos diferentes, mas, gente, temos os mesmos direitos. Não é porque é mulher que pode pisar, não é porque é homem que pode pisar. Então, sempre foi uma prática, essa busca de igualdade. Está desigual, as mulheres vão. Está desigual, então, vamos trabalhar pela desigualdade. Está desigual, vamos trabalhar. Mas eu não tive assim... E terminei de todas as lutas, o feminismo arrebentava, porque era pelos direitos iguais. Então, eu estava lá. Vamos dizer assim, eu fui muito... A patrulha de hoje que você trouxe logo. A patrulha para quem era jovem e já era funcionária pública e de esquerda, então, se você trabalhava numa escola, dirigiu uma escola, que era do governo biônico, você tinha que ser uma diretora ruim, porque o governo era biônico. Então, eu era patrulhada pelos meus colegas e amigos de esquerda, porque era como se eu estivesse servindo a um governador biônico e não sendo servidora pública da minha população, das crianças, dos jovens que estavam naquela escola e que tinham direito. Então, eu tinha que fazer uma educação de qualidade, capaz de colocá-los no seu tempo de forma crítica e de entender, e eu garanti para ele que ele tinha o direito com o máximo de qualidade. Tanto que minhas filhas estudavam nessa escola. Então, assim, você não pode confundir. E eu acho que, muitas vezes, algumas lutas, elas perdem tempo na história com esses deslizes de você perder o equilíbrio, sabe? E aí eu acho que é prejuízo para todo lado. E aí era assim, nessa época tinha a MDB. Aí se o cara vinha eu conversando com o Roberto Freire, que estava fundando o PCB, era um dos primeiros comunistas lá do Brasil, que botou a cara de fora: “Vilma uma saída do MDB, está no PCB”. Aí tudo que aparecesse. E eu nunca me filiei ao partido, porque eu nunca achei que eu desse conta de ser uma partidária. Nunca. E eu convivia. Eu não fui de nenhum partido. Eu não fui de nenhum partido, nunca consegui me filiar, mas vivia com marido de partido, amigo de partido, irmãos de partido. Eu não tenho perfil para aquela regrinha de partido. Vai dar errado. Não vou entrar naquilo. Nunca entrei. Mas fui associada a todos eles que estavam nas lutas. E até hoje, né? Ainda bem. Mas mais da liberdade, mais do direito de todos do que ser daquela categoria, daquele clube, daquela associação. Eu acho que não tenho perfil para isso.
P/1 - Pegando esse gancho do feminismo e trazendo pros grandes amores ou grande amor, não sei se são um, dois, se tem na vida, como que era e se colocava essa questão da mulher no casamento. Ou com o amor, um namorado?
00:35:00
R/2 - O meu era espeto de pau. Como é?
R/1 - Em casa de ferreiro o espeto é de pau.
00:35:16
R/2 - Uma fantasia de casa enlouquecida. Então, desde o primeiro casamento, a coisa é casa, casa, casa. E até hoje. A coisa é a casa, passa o dia pensando na casa. Essa daqui ainda. E eram vários cenários para várias situações diferentes. Mas fora a casa, esse primeiro casamento era bastante tradicional. E eu saí dele para o casamento não enlouquecer. Sabe o que o João fazia naquela época? Vendia droga. Fazia com traficantes.
P/1 - Peraí, o João ou o segundo?
00:35:53
R/2 - Foi o segundo. E esse é o Cinema Novo inteiro. Ele saía com aquelas latas de filme cheio de cocaína. Mas era uma coisa barra pesada e fiquei fascinada.
P/1 - Mas você se separou para ficar com ele?
R/1 - Ela falou da outra vez.
R/2 - Não só, não só. Separei. Saí e fui embora. Não teve separação, me mandei com três crianças e nenhum talher. Sozinha. Com um e com outro. Com o João, que eu fiquei 50 anos. Então, foi um casamento assim, de jogar no mundo, de repente. E ele tinha muito... Ele era uma pessoa muito fora do quadrado. Ele era muito inteligente, muito artista, muito tudo, mas completamente maluco. Maluco mesmo, sem ter nada. Então, eu tive uma vida complicadíssima.
P/2 - Ele tinha filho, Helô?
00:37:05
R/2 - Não. Eu fiquei... Eu passei sempre uma vida muito agoniada, era um tango, era uma paixão. Mas era um tango, a Vilma me salvou várias vezes, me levou para tomar uma tapioca, juro. Para ver se eu respirava de tal opressão. Sabe que ele enlouquecia. Ele era bipolar grave e bebia muito. Então, você pode imaginar o maridinho que eu escolhi. Mas sempre essa coisa assim fora. Eu acho engraçado que quando eu... Por exemplo, a gente se separou mais de mil vezes. Então, quando eu separava, sabe o que eu pensava? Meu Deus, eu nunca mais vou ver a chuva. Eu queria roubar o olho dele. Era uma coisa de uma fascinação minha, pela relação dele com o mundo, que era completamente estapafúrdia. Ele fazia literalmente o que ele queria. Eu nunca tinha visto ninguém assim. Mas isso me adiantou muito, porque isso me jogou. Porque o meu ex-marido era muito formatado. E o João, eu fui atrás e me joguei no mundo. Mudei tudo. Me ensinavam o que não era para ensinar. Quer dizer, essa liberdade que a minha profissão tem, se deve ao João, nada vai perder nada. Já foi. Já está na merda, vamos embora. Nada a perder. Eu vejo o formato do que eu faço muito em cima dessa fascinação que eu tive com o João. E então foi isso, muito atribulada, muito desesperada. E ele era machista, loucura, aquele ciúme doentio, assédio psicológico, assédio moral, assédio a todo lado, um inferno e eu me escondia no quarto para não morrer. Devia ter ido pra Delegacia das Mulheres, mas ao invés disso ia pro colo da Vilma. Mas foi uma coisa assim. Por isso que eu não tive seis filhos. No terceiro ele apareceu e eu não ia ter filhos com ele, porque eu também não sou boba.
R/1 - Estava apaixonada, mas não maluca.
R/2 - Filho não cabia naquele casamento.
R/1 - Mas ele foi um super avô, com os meninos, não foi? Os meninos adoravam, adoravam. Todos os três.
R/2 - Mas ele podia ser muito violento. E essa coisa dentro de casa existia. Hoje eu diria que isso é assédio psicológico.
00:40:16
R/1 - Ela estava falando, eu me lembrei da minha primeira questão com o casamento. Eu comecei a namorar com o Ronaldo, que é o pai dos meus filhos, com 15 anos. Eu estava terminando o ginásio e ele tinha terminado a engenharia. Doido para casar. Eu digo “não dá”. Ele terminou a engenharia de idade de 5, quase 6 anos. Era pouco, é que ele terminou a engenharia e ia fazer 22. Eles eram muito estudiosos, 5 filhos, 5 homens. Então, entrei numa casa que a minha sogra não teve filha, eu virei uma filha, até quando morreu com 114 anos e ninguém tomou o meu lugar. Continuei a nora do coração, mas esse momento do casamento teve um primeiro estresse antes da separação. A família dele era uma família super tradicional, o pai era desembargador, branco, um cão. Todo mundo “Doutor” Dantas. Meu pai era um preto de três anos de escolaridade e do comum. Uma pessoa da pobreza e não da elite. Chegou “vamos casar”, mas a família estava amiga, tudo ok. Chegou a hora do casamento de papel mesmo, aí o nome. Aí eu disse: “Eu não boto. Não tiro o meu nome de meu pai, de minha mãe pra botar no nome de ninguém. Não boto”. Aí tive que me submeter a duas audiências com juiz antes do casamento pra ser autorizada que o casamento civil dissesse que a nubente continuará com o seu nome de solteira. Gente, atrasou o casamento, inclusive, um período, porque eles não tinham boa vontade. Tudo machão, os juízes todos. “A senhora tem certeza?” “Acha que eu estaria aqui, se eu não tivesse certeza”. Bem, então continuei com o meu nome. Agora os filhos têm o meu nome e o nome dele. Óbvio, claro. Então essa foi a primeira crise. Por que não botar o nome do marido? Aí eu expliquei, eu disse: “Eu não vejo nenhum sentido”, para a minha sogra e pro meu sogro, “eu tirar o nome do meu pai ou da minha mãe pra botar o nome de vocês. Eu não tenho vontade nenhuma. Agora, meus filhos terão o meu nome e o nome de vocês”. Mas foi uma tristeza. Rolou aquela coisa: “Acho que eles não vão para o casamento”. “Problema deles. Vão perder um bolo gostoso. Mamãe vai fazer umas coisas maravilhosas”. Mas claro que todo mundo foi. Mas, assim, foi um casamento muito divertido, porque eu fiz o gosto de papai e mamãe, de casada, vestidinho branco, mas curto, sapatinho baixo, azul marinho, e entrei com o padre, que era nosso amigo. Eu fui buscar o padre em Olinda, entramos com ele, ele no meio da gente, e eram todos os amigos, os amigos de todas, todo mundo, e os padrinhos de casamento, todo mundo da esquerda, da pedra e tudo. Se a polícia chegasse ali, prendia tudo. Ali, 80% estava procurado. Mas não deu problema. E organizamos a festa, aí partiu o bolo na igreja. É uma igreja que eu vou muito ainda hoje. Num bairro que moram vários amigos e irmãos, dois irmãos, Espinheiro. E aí eu disse, agora terminou a festa ali. Mas a mamãe fez um almoço em casa enorme pra família. Mas eu, de manhã, 10 horas, porque eu queria depois ir comer guaiamum em Goiânia. Uma hora. Adoro guaiamum e caranguejo. Então, enquanto eles estiverem com o almoço lá na casa da mamãe, aquela conversa, noivo, noivo, pegamos um cunhado com a esposa, que já tinham casado seis meses antes. Muito amigo até hoje. Amigos. Ele partiu precocemente o ano passado. Éramos muito amigos. E saímos de carro. Troquei de roupa já no meu apartamento. Eu ia morar, tinha arrumado tudo. A gente já levava uma vida que hoje o povo diz fica. Naquela época não podia dizer que era ficante. Era ficante falso. Ninguém podia saber. Era aquela coisa horrível. Hoje é um avanço. É muito bom a gente poder estar vivo e ver como caminhou, como nós somos, como caminhamos. Tem muito o que fazer? Tem, gente, mas muito mudou. Muito mudou. Nossos filhos foram altamente beneficiados, os netos, nem falar, esses... Nossa, que maravilha, né? Eem tão pouco tempo, não é muito tempo. Nós somos um país jovem, uma educação pública jovem, quando ela abriu para ser direito de todos, nós somos uma educação muito jovem. Nós não temos séculos de educação para todos. Não. Nós somos muito jovens de educação. A educação era, para alguns, a educação pública aberta, de Getúlio para cá, mas ela só foi se concretizar, eu diria claramente, do ponto de vista de chegar na gestão do Fernando Henrique. Quando ele diz assim: “Faz uma chamada à população para você trazer o máximo das pessoas que não têm acesso a uma educação privada”, foi quando a gente teve o primeiro grande movimento nacional de chamada da população e a acompanhada de: “De 7 a 14 anos tinha que estar na escola matriculada”. Foi ontem. Mas antes de você entrar em um auditório... Foi Getúlio, do ponto de vista legal, do ponto de vista da abertura. Mas você imagina hoje, se a gente imaginar da década de 1970 para 1980, você tem uma diferença pequena na construção da Escola Pública Brasileira. De 1980 para 1990, você melhora sensivelmente a construção de escolas. Você não tinha sequer prédios, mas você tem uma população enorme. Ora, é muito comum ainda hoje, se você estiver em determinadas plateias, se você estiver com muita gente de mais de 60 anos ou até 60, você perguntar assim, quem o pai fez Ensino Médio e a mãe? Pouquíssima. Eu me lembro que no primeiro governo Lula, Cristóvão organizou os fóruns nos estados de escuta. A gente sempre fazia pergunta para os professores: Quem dos professores da escola pública, os pais tinham Ensino Médio? Era um gatinho pingado. Porque ela não foi aberta. Hoje, o Ensino Médio ainda é para poucos, não é para todos. De dez que acabam o Ensino Fundamental, só três vão para o Médio. E dos que acabam as séries iniciais do fundamental, no sexto ano fica, não segue as séries finais. Porque a desigualdade não permite que você continue. Você vai começar a trabalhar. Aí trabalha de manhã e de tarde. Vai de noite para uma escola porque quer aprender, chega lá, a escola é péssima, você não aguenta. Você volta para casa. Porque quatro horas da manhã você tem que estar na rua com a marmita. A gente ainda é muito novo. Eu acho que eu me perdi no que eu ia falar.
P/1 - Vamos voltar para os maridos. Você se separou?
00:48:39
R/1 - Aí eu me separei depois. A separação foi um trauma com a família, porque todo mundo achava que a gente era um casal exemplar, que jamais ia se separar. Jamais! Até porque a gente era muito amigo até hoje. Até hoje, muito civilizado, nunca teve briga, nunca nada. Virou meu irmão. No dia que eu descobri que virou meu irmão, tava na hora de se separar. A iniciativa foi minha, de querer. A gente voltou uma vez. E depois nos separamos. O Francisco nasceu da volta. E pronto, o Francisco com cinco anos já tinha certeza absoluta que era irmão mesmo. Era irmão de querer bem, de muito respeito, muita amizade, até hoje. Mas foi duro, a família, a minha sogra sofreu muito porque eu era “a filha”. Olha, doutor Dantas, aí tem uma coisa boa. Eu introduzi na família, ele era chamado doutor Dantas por todo mundo. Pelos sobrinhos, pelos primos, por todo mundo. Aí eu comecei a chamar de “Dantinha”, eu nunca chamei ninguém de doutor. Eu comecei a chamar ele: “Dantinha tá aí?”. “Quem é Dantinha? Doutor Dantas?”, as secretárias. “Sim, Dantinha”. Dona Amália: “Ele tá gostando disso, ninguém nunca deu tanto carinho a ele”. Bem, terminei que a família inteira. Tudo Dantinha. A família toda.
P/2 - Quem é o Dantinha?
00:50:16
R/1 - O meu sogro, o Doutor Dantas, o desembargador, virou Dantinhas. Porque eu disse: “Eu não vou chamar ele doutor Dantas, porque eu não chamo ninguém de doutor. E um cara que eu vou conviver e vai ser avô dos meus filhos”. Aí comecei a chamar desde o namorado de Dantinho. Pegou. Virou Dantinha, todo mundo chama Dantinha, até hoje, quando a gente conta as histórias dele, Dantinha. “Dantinha foi, foi, Dantinha tava lá”. Dantinha adorou, adorou esse apelido, a vida toda. E Dona Amália me disse uma vez: “Ele tá gostando, porque ninguém nunca tratou ele com esse carinho”.
P/2 - Vilma, seu segundo casamento, você casou?
00:50:55
R/1 - Não. Já tava bom.
R/2 - Teve um segundo.
R/1 - Teve. Grande casamento. Porque é o amor da maturidade, uma escolha, uma maturidade. Imagina, você começar a namorar, ia fazer 15 anos e casar, antes de fazer 18. Com o primeiro namorado. Nunca nem namorei. E era tudo junto, era movimento, era a briga por derrubar a ditadura, era de correr para não ser preso, de se esconder, de ir atrás dos presos. Então, assim, existia algo que colava, que ligava, que não precisava se sustentar no amor. Tinha o amor, óbvio, também loucamente, mas não resistiu ao tempo, virou amizade mesmo. O segundo foi Inaldo. Um era Ronaldo e o outro Inaldo. Esse mais novo do que eu...
R/2 - De onde apareceu o Inaldo?
00:51:54
R/1 - Lá em Recife. Eu ainda estava em Recife. Apareceu dos movimentos políticos, porque era o mesmo movimento de todo mundo, da cultura, da política. Então, encontrei. Ele era mais novo do que eu, nove anos. E começamos a namorar. Ele tinha duas menininhas pequenininhas que viraram minhas filhas. Até hoje, se perguntar a Francisco quantos irmãos, ele diz cinco. Porque incorporou, pegou ele menor, tudo. E as duas meninas viraram minhas filhas, Naíra e Luana. E já partiu, jovem, em plena Covid. Foi super... A gente já tinha se separado.
R/2 - Foi de covid?
R/1 - Não, a Covid teve no processo, mas depois descobriu até da morte que o teste do Covid dele deu negativo. Na verdade, se descobriu um tumor, milhares de coisas que só descobriu depois da morte. Quando os exames chegaram, ele já tinha morrido. Mas álcool, fumo, ele fumava cinco carteiras por dia. A vida toda desde adolescente. E não tinha jeito. E olha que eu botei todas as regras lá de casa. Não fumava dentro de casa. Tinha que descer pra fumar. Não fumava dentro de casa. Para vir falar comigo, já ia direto para o banheiro, escovava os dentes, lavava o rosto, lavava a barba, para chegar junto de mim. Isso tudo foi feito, mas não deixou de fumar nunca. Nunca. Mas foi... Nossa, foi lindo. Tenho muita saudade.
R/2 - Quando ele morreu, estava com você?
00:53:33
R/1 - Não, a gente estava separado, mas muito próximo. Chegou um momento aqui que ficou muito difícil no Rio. Eu só consegui ficar no Rio porque ele veio. Ele pediu demissão. Ele era coordenador de uma ONG internacional do Nordeste, a Oxford. Ganhava quatro, cinco vezes mais do que eu. Ele pediu demissão para me acompanhar, porque eu não podia vir para o Rio se ele não passasse um ano. Ia ter que ser um acordo familiar, porque Francisco ia fazer 12 anos. As meninas já estavam na universidade e iam frequentar o UFRJ em três lugares. Então eu não podia. E eu já sabia que eu ia trabalhar muito, que era o meu jeito, e que ia viajar. E aí ele topou passar um ano sem trabalhar. Usava brinco, usava rabo de cavalo. Um dia, Paulo Freire chegou para jantar lá em casa e chegou antes de mim. Eu cheguei depois. Quando eu cheguei, Paulo Freire disse assim: “Tinha que ser pernambucano, não é? De brinco, de rabo de cavalo, fez o nosso jantar, esperando você chegar”, porque ele tinha feito jantar. Ele cozinhava muito bem, adorava. Ele tinha feito jantar, já estava na janela tomando um caldinho que ele tinha preparado, e uma caninha, entendeu? E ele brincava muito: “Tinha que ser brinco, tinha que ser pernambucano, de brinco, de rabo de cavalo”. E aí foi um grande amor. Eu acho que me preencheu, do ponto de vista do amor, totalmente. Eu não tenho nada na minha cabeça, no meu coração, assim, de nada em relação mais a amar um homem. Eu fiquei plenamente, para mim está ótimo. E para mim a memória espetacular, porque tudo que eu vivi de amor e de um homem absolutamente feminista. Nossa! Quanta lição! O homem mais feminista que eu convivi. Escrevia poemas lindíssimos, tenho pacotes de poemas porque ele escrevia muito bem, muito bem, escrevia todo dia, estava sempre muito... E morreu me amando loucamente. Totalmente. Tenho certeza. Não preciso ser convencida, totalmente convencida. Só foi ruim porque eu não pude ir lá. Foi em plena Covid, morreu lá. Eu fiquei acompanhando com as meninas, tudo, tudo, até convencê-lo, sair de casa, pra ir pro hospital, eu que convenci. Daqui, pelo telefone, e convenci os médicos, amigos, e lá, e ele foi. “Só vou porque ela tá pedindo”.
R/2 - Foi agora?
R/1 - Foi na Covid. Na Covid, logo no primeiro ano. Não. Ela perguntou se o João morreu também no período da Covid. Não, foi não.
P/2 - Foi na pandemia ou foi antes?
R/2 - Foi na pandemia do coração.
P/2 - Foi próximo vocês duas?
R/1 - Foi bem próxima a gente. Foi muito próximo. E ele lá. Aí foi ruim isso, sabe? Mas as meninas guardaram a cinzinha e a gente foi juntas, cuidando dessa cinzinha, nos lugares, e ainda tem um pouquinho de cinza para a gente botar num lugar aqui do Rio, porque uma filha mais nova, Luana, estava em Portugal fazendo mestrado. Aí a gente guardou, esperando juntar todo mundo. Mas fomos nos vários lugares de Recife, que tinha a ver com a nossa história, com a história dele. Cantando e seguindo a canção.
P/1 - Então, agora a gente ia conversar, você estava fechando a sua mudança de nome. Mas você também tenta abordar, quer dizer, dessa experiência da troca. Essa troca de nome. Quando você falou, você localizou, você disse assim que já te incomodava. E por que você permanecia mesmo te incomodando e quando que foi o turning point?
00:58:03
R/2 - Isso já me incomodava há muito tempo. Principalmente porque esse nome é um nome muito pesado. Não é qualquer nome “Buarque de Holanda”. Tem Chico Buarque. Tem Sérgio Buarque. Então tem toda uma dinastia. Chico, só o Chico já resolve. Então... Eu me senti, inclusive, muito desconfortável. Eu senti me dando o golpe do nome. Sabe como é? Eu sentia isso. Deu o golpe do nome. Aí, é engraçado, eu estava almoçando na fazenda, que era do Luis, meu primeiro marido. Os meus filhos ficaram com a fazenda. Estava lá com os meus filhos e a Nora, que é a Adriana Varejão. Aí, na sala de jantar, tem um brasão da família. Aí nós dois começamos a sacanear o brasão às gargalhadas: “Que palhaçada, é meu nome, não sei o quê.” Aí a Adriana falou: “Por que não tira?”. Falei: “O quê?”. Eu já estava com aquilo, tinha o negócio das mulheres, da ancestralidade, no sentido de uma coisa ancestralidade matrilinear, a descendência pelas mulheres. Já estava com a cabeça feitinha. Aí ela disse: “vamos mudar”. Aí a gente escolheu o nome da minha mãe, não do meu pai. E eu fiquei tentando mudar, falava aqui, falava ali, botava até aqueles crachás, mas ele não funcionava. Aí foi muito engraçado, que na véspera de eu entrar para a academia, ou uma semana antes, a Maria Fortuna fez uma matéria comigo, que era sobre a entrada da academia. E, quando eu disse que eu tinha mudado o nome, ela fez a matéria sobre a mudança do nome. Era uma folha inteira do O Globo. E pegou na hora. Falei: “Maria, eu estou tentando. Tinha ao menos dois anos nessa conversa, que eu tentava virar e não sabia como que eu fazia chegar no Amazonas nessa notícia”. Depois chegou. Hoje não existe mais a outra. É impressionante. Aí, no dia seguinte, logo na semana seguinte, eu tomei posse e a posse foi a primeira vez que apareceu publicamente a Heloísa Teixeira. E ele falou até o Merval: “Concorreu a Heloísa Buarque e tomou posse Heloísa Teixeira”. Foi tomar posse outra pessoa. Então, ficou. Magicamente. Ele, de repente, esfregou e colou. Eu acho que já tinha antes, não sei se tinha um terreno preparado, não sei bem o que foi, mas uma matéria daí é estranho. Mas talvez também a conjuntura de ter sido junto com a posse.
R/1 - Pois é, foi o contexto onde estava a informação.
R/2 - Exatamente, aí todo mundo perguntava, jornalista.
R/1 - Chamou muita atenção, jornal nacional.
R/2 - Exatamente.
P/2 - Ai teve filmes.
R/2 - Teve dois filmes. Um já tinha, que era “Nasce Helô Teixeira”. Já tinha sido filmado.
P/2 - Mas não foi lançado.
R/2 - Daí que não foi lançado. Vai ser lançado agora.
P/2 - Eu vi vocês falarem do Rio.
01:02:06
R/2 - Vai ser lançado essa semana. Eu acho. No curta. Ou esse mês pelo menos. Então foi isso. A experiência que você perguntou, é muito engraçada. Eu estou num conforto tão absoluto. Ser a Heloísa Teixeira é um descarrego. Sabe o que é descarrego? É um descarrego. Eu nunca imaginei que aquele nome me pesava tanto. Nunca, nunca. Eu não sei se é porque é um nome especial. Eu não sei se é que não era meu. Eu não sei exatamente porquê. Mas parece que de repente eu tirei um casaco pesado, sabe? Estava um calor igual ao de hoje. E eu com um casaco de pele. Eu me senti bem. Eu me sinto muito melhor. É estranho como um nome muda a sensação física da pessoa. Eu me sinto leve, eu me sinto contente. É uma experiência interessantérrima de descarrego. Aquilo não estava à mão.
P/2 - E ficou bonito nos livros.
P/1 - Heloísa e daí a tatuagem?
01:03:26
R/2 - A tatuagem foi por causa da filmagem. Quem fez foi a filmagem. Que tatuou para filmar, para abrir o filme. É um ato de filmagem.
R/1 - É uma exigência do cineasta.
R/2 - Mas eu tenho milhões de tatuagens.
P/1 - Você falou em uma entrevista que tinha a ver também essa escolha, seu pai já tinha sido muito tagarela.
R/2 - Ah sim, a minha mãe, era o que eu ia falar naquela hora da Vilma, que acabou que eu não falei. Ela disse que a mãe dela era uma mulher forte. A minha mãe não, a minha mãe era uma mulher muda. Era uma dona de casa que não tinha essa minha paixão por casa. Porque o meu negócio é cozinhar, é arrumar casa. Eu amo, amo, amo. Me solta, eu começo a arrumar tudo e começo a cozinhar também, compulsivamente. Eu tenho paixão. Minha mãe não cozinhava, não arrumava, mas era dona de casa, péssima. Mas era dona de casa e não falava. Eu sei que ela era uma potencial cantora lírica, tinha uma voz grave e bonita. Meu pai, eu sei fora inteiras. Eu me lembro da minha mãe, já com idade, meio desesperada em casa, eu arranjei, por exemplo, um trabalhinho para ela. Eu tinha um amigo que fazia bijuteria, e ele precisava de pessoas para ficar fazendo no ateliê dele. Aí eu mandei minha mãe. Minha mãe passou um dia lá. Mas ela voltou numa alegria. E meu pai... Ela foi a segunda vez? Foi não. Foi não que meu pai disse que se ele passasse mal, ela tinha que estar em casa. Entendeu? Então, ela era uma mulher totalmente emudecida. Ela não era muda, era emudecida. E me dá uma alegria.
R/1 - Uma geração calada. Uma geração do silêncio.
R/2 - Tem esse especial.
01:05:33
R/1 - O meu filho fez uma coisa agora, quando o filho dele nasceu, que era uma coisa que sempre estava no nosso papo, que era assim, o nome do homem tem que vir no final. E o nome da mulher vem antes. Ele registrou, o filho dele ao contrário. O nome dele vem e depois acaba com o nome da mãe. É Guilherme Guimarães Bucar.
R/2 - Quem? O seu filho?
R/1 - Meu filho. Mas por que não bota o nome da mãe por último? Só bota o do pai? Ele registrou o filho com o nome da mãe. E sobra o último, como você fica. Eu fico Vilma Guimarães, é o nome do papai. Pereira era o de mamãe. Agora, uma sobrinha... Como é que a gente chama? Sobrinha, prima, filha de uma prima. Organizou, agora, no dia 23 de março, vai ter um encontro dos Pereiras. Toda a geração Pereira. Eu já disse que eu vou, não perco de jeito nenhum. É um bando de mulher, muita mulher. Os Pereira é muita mulher. E os homens tem que ficar caladinho, porque não aguentam aquelas mulheres todas. Vai ser encontro dos Pereira. E ele botou o nome de Guilherme, botando o nome da mãe por último. Eu adorei. E aí eu fico contando pra todo mundo, aí se pega. Aí se pega todo mundo botar o nome da mulher por último. A vida da gente é fazer campanha, né? A vida toda fazendo campanha.
R/2 - Eu acho que essas mudancinhas, elas vão longe.
R/1 - Essas mudancinhas desestruturam, elas mudam séculos. Parece uma bobagem, né? Não é. Vamos continuar nas nossas campanhas. Sempre.
P/1 - Eu ia falar do encontro de vocês, mas não sei se você quer falar antes da oralidade.
P/2 - Não, fala onde você quiser.
P/1 - Eu queria falar do encontro de vocês na Universidade das Quebradas, vocês duas. Falar um pouco da universidade. Vocês tiveram experiências juntas.
R/2 - Eu já falei muito?
R/1 - Falou da outra vez. Ela contou essa história.
P/1 - Falou, mas não contamos da sua participação.
01:08:00
R/2 - A participação da Vilma foi incrível.
P/1 - A gente falou da universidade, mas você na história…
R/2 - Porque a Vilma fez uma coisa brilhante. Ela customizou o Telecurso para a favela, que não é para a favela. Ela customizou, ela pegou aqueles meninos e estava trabalhando junto com a Sandra, que tem um primo rapper, que ajudou muito a fazer a cabeça da coisa. Então, foi muito incrível, porque era um pouco a metodologia do curso que ela deu, que era português. Português e redação.
R/1 - Português com tudo dentro da língua: redação, leitura, escrita.
R/2 - Então ela pegou aquela metodologia e pegou os elementos outros de cultura hip-hop, cultura favela, e ficou inacreditável. Realmente foi um casamento lindo. Foi muito bonito.
R/1 - O Telecurso é realmente...
R/2 - E ele é flexível, né? Ele cabe.
R/1 - Ele foi feito pra isso. Essa semana eu tive um encontro muito bacana com Pitombeira, que é um matemático, autor, e Izabel _____. E eles falando do Telecurso assim... Gente, a gente vai vivendo uma história que nós podemos fazer, né? E eu acho que essa é uma coisa que talvez a educação, quando perdeu a qualidade, não só a educação escolar, a educação que está em qualquer lugar, na família, no museu, os teatros, em qualquer espaço onde se aprende, está lá a educação. Perdeu um pouco a coisa do sentido em si, do significado. Ela foi cumprir uma norma, virou grade, como grade tinha que dar conta de determinados conteúdos, e acabou ali, ela morre ali. Pode não ter sentido nenhum e passar um século fazendo aquela mesma coisa, naquele mesmo lugar, naquele mesmo jeito. Tem aquelas histórias todas, têm aquelas piadas todas... Um professor morreu, voltou um século depois, encontrou a sala de aula perfeita, do mesmo jeito. O médico entrou na sala de cirurgia, não entendeu nada. O que se tratava ali era radicalmente oposto. Mas a escola você chegou com o quadro, as carteirinhas um atrás do outro, os menininhos sentados um atrás do outro, quanto mais silêncio, melhor. Quer dizer, como a educação mantém o pensamento, mantém a submissão, por isso que não se tem pressa em mudar a educação que liberta. Porque a que liberta dá trabalho. Quer democracia, quer direito para todos, né? Tem luta, tem conflito. Então você fica afastando, bota pra debaixo do tapete e faz uma educação tecnicista, mecanicista, e com isso você não liberta. Tem uma sociedade bem… Mas o nosso encontro foi muito lindo, e o Telecurso tem essa magia, que ele foi feito para isso, de trazer coisas de acordo com o contexto, com as demandas reais. É Paulo Freire na veia, e todos os teóricos que ele bebeu para fazer tudo o que ele fez. Porque ele não é ele sozinho, ele bebeu em muitas fontes. Alguns eram do século passado, não era nem do século dele, e até hoje está vivo aí na sua teoria. Porque o ser humano não mudou, o ser humano não virou outro, ele é o mesmo. Ele gosta de se sentir feliz, ele gosta de ser respeitado, ele gosta de ser reconhecido, ele gosta de ser recebido com afeto. Então, assim, não mudou o ser humano. Então, muitas das teorias da educação de qualidade continuam aí fora do século passado e do século XIX. Freinet está aí, ó, de ponta. Vygotsky está aí, de ponta. E como é que a gente pode dizer? Não. O novo é fazer o que deve com respeito. E acho que o Telecurso tem essa diretriz ética, que é indispensável à qualidade da educação, que é ter respeito ao outro. E aí eu vou me lembrar de uma história, respeito porque você constrói cumplicidade, vou lembrar de uma história do nosso amigo Cacá Diegues. Cacá foi numa parceria com a gente documentar no Acre o trabalho do Telecurso, no Acre. Não só em Rio Branco, mas em outras cidades. Documentar para a gente ter uma memória, um documento, com o privilégio do olhar e da cabeça pensante, comprometida que era com o Brasil, que é. Quando ele voltou, aí ele começou editando vídeo, tararã, aí eu falou: “Por que os professores choram quando vão falar da experiência? Por que eles choram quando começam a falar? Por que no telecurso? O estudante também. Por que eles choram?” “Você vai entender. Você vai para Pernambuco agora”. Ele foi fazer o mesmo trabalho em Pernambuco, no Travessia, que era o nome do projeto lá, na Poronga. E ele, que é aquela lunetazinha assim, que os seringueiros iluminavam os ramais da floresta quando iam fazer seringa. E aí é o nome do projeto. Era o nome do projeto de lá. Aí ele foi. Foi até o Sertão, gravou. Quando voltou, disse: “Choram igualzinho, choram, que nem os acrianos. Choram os professores, choram os estudantes”. Ele disse: “Me explica por quê?”. Aí eu comecei a falar, contar, contar. E lá para as tantas, no final, disse assim: “Cacá, e você? Indo fazer essas coisas, ouvindo? Essas coisas. Como você... O que você acha? O que foi pra você?” Uma pergunta. Ele começou a contar. Quando ele começou a contar, ele chorou. Ah, viu? Ele começou a entender. Ele disse: “Eu entendi”. Quando ele começou a contar, ele chorou. Eu disse: “Que pena que eu não tô com a câmera como você estava pra gravar o seu choro”. Tava eu e ele na sala, ele contando emocionado, lá na casa dele, na Gávea, onde ele fazia os trabalhos, a gente vendo as adições, vendo as adições. Aí ele entendeu porque o respeito e o afeto geram na relação humana uma cumplicidade. Uma cumplicidade, que quando você diz “foi por aí que me pegou”.
R/2 - Eu perguntei, Vilma o que acontece comigo, porque eu saio abraçando e beijando pessoas que eu não conheço.
01:15:16
R/1 - Aí eu disse pra ela: “É só isso, é só a construção da cumplicidade”. Isso se dá na amizade, se dá na aprendizagem, se dá nas relações humanas, entre os humanos. E os seres vivos todos, a gente tem tanto apego a uma planta da gente, fica tão preocupado, ou um bichinho. As relações éticas e afetuosas, elas não acabam, elas permanecem. E por isso que história e memória são questões tão estruturantes da sobrevivência humana, de tudo. Fundamental. É por aí. Aí a gente se juntou, veio a cumplicidade de causa, total, e de direito, porque a causa é o direito. A causa é o direito, sempre, nas nossas vidas. Sempre é o direito. Então, se constrói, é para sempre. É para sempre.
P/2 - Eu quero aproveitar, então, esse gancho pra gente falar da questão que eu queria muito ouvir vocês duas sobre oralidade. Eu conheci a Vilma antes de conhecer você, Helô, e o Telecurso, essa questão do respeito que a Vilma fala e a maneira que as aulas se davam, eu levei anos pra entender. E tem uma valorização enorme, né, Vilma, do oral, do conhecimento que existe independente da linguagem formal, ela é exclusiva, e o telecurso partia da oralidade e alavancava aquele saber que depois ia se formatando e ia se transformando em escolaridade, mas partia disso, e eu acho que isso Porque envolvia jovens e adultos, né?
R/1 - Jovens e adultos o tempo todo.
P/2 - Então eu queria muito que você falasse sobre isso. E agora o mais interessante é que Vilma, no meio da pandemia, começa a fazer alfabetização de criança em idade certa, né? Ela sai dos jovens e adultos e vai para essa formação da linguagem escrita e lida, sem perder a valorização da oralidade. Eu tive o privilégio de assistir isso. E você, Helô, eu tive o privilégio também de ver você entrando na ABL de uma forma revolucionária, pela porta dos fundos, escancarando as portas para todo mundo entrar e depois recebendo Krenak e perturbando a instituição ali para a valorização da cultura oral. Isso tem tudo a ver com o que a gente vai fazer com os indígenas daqui para frente. E eu não vejo vocês elaborando tanto isso no discurso de vocês, sabe? Mas as duas trazem isso de uma maneira tão forte. E eu acho que agora, nessa retomada da valorização dos povos originários, dos povos indígenas, e não só dos indígenas, mas dos quilombolas, de pessoas que foram muito excluídas dos seus direitos formais, mas trazem um saber que a gente agora está dependente para tentar adiar o fim do mundo, como o Krenak fala. Eu acho que esse tema é importante a gente falar sobre ele, não só praticar como vocês vêm praticando desde sempre. Eu queria que vocês falassem sobre isso.
01:18:38
R/1 - Vou pegar pelo Telecurso, pela metodologia ou pela educação mesmo. Como a gente aprende desde pequenininho? Não sabe escrever. A gente sabe falar. A gente pensa, a gente faz birra, a gente diz que não quer, a gente diz o que quer. De repente, tem um corte que tem que escrever. Ou escreve, ou não pensa. Quem não escreve na escola, quem não escreve corretinho, conforme manda, uma regra construída por uma elite que não quis ouvir a maioria da população, que matou mais de 200 línguas indígenas nesse país. Matou! Hoje a gente tem 274. Mas eles mataram muitas. Então a gente deixou de ouvir muito. Mas mataram com a regra. Mataram com a norma. Com a chamada língua culta. E com ela eu mato. Porque eu mato muitas vidas com a norma culta. Mas são muitas mortes. De vivos que nada fazem,ou que fazem coisas contra a sua própria vida. Então assim, eu acho que ouvir, escutar... É a primeira etapa de qualquer nível de escolaridade. Agora, se eu estou falando ou do jovem ou do adulto ou da criança, como eu posso receber uma criança na alfabetização sem escutá-la? O conhecimento dela e a expressão dela, o que ela pensa do mundo naqueles quatro anos, cinco anos, seis anos, ela pensa. Ela tem afirmações fantásticas. Ela é inteligentíssima. A escola vai reprimindo, vai cortando, cortando, cortando. Quanto mais silêncio, melhor. Corta, corta, corta. Quanto menos falar na escola, essa turma é um espetáculo. Então, assim, você não ouve. Você já começa totalmente errado. Compromete a escrita. Compromete a escrita. É muito comum você encontrar quem mal fala e pessimamente escreve. Porque o falar tem a ver com escrever depois, tem o tempo da escrita e tem as habilidades específicas da escrita. Mas você não pode começar um processo de avançar em escolaridade sem a oralidade. E mais, a oralidade, para mim, na minha prática até hoje, na minha vida, ela é a principal sustentação do processo de aprender a vida toda. Porque ela não tem amarras, não vem com código pra cima de você, ela é um mar. E ela tem avançado muito. Ela é imensa. Ela é diversa. E a escrita não. E a escrita não. A escrita, quanto mais fechada, ao ponto de tentar ensinar a gente língua estrangeira, se você falar mil palavras, qualquer língua estrangeira, você já domina muito bem, pode ir pra qualquer lugar. Porque acha que a escrita é mil palavras. Aí quebra a cara se você sair daqui pra Baixada. Já não fala, é outra língua. Quebrou a cara. É outra língua.
R/2 - E você perde a possibilidade de expressão.
01:22:20
R/1 - E como se a língua exatamente fosse um código só de letras. Ou de algoritmo. Agora tá bom, né? Então, agora tá bom que tá danado. Você vai lá e pensa por você, né? Vem tudo pronto com o seu pensamento. Agora que o negócio tá perigoso. A oralidade...
R/2 - Com inteligência artificial.
R/1 - Exato. Ela vai de oral por pressão da humanidade que nossa. Vai de oral. Porque não tem outra alternativa. O que ela pintar, ela vai quebrar. Então, assim… Não dá pra abrir mão da oralidade. Não dá. É uma necessidade humana pra mim.
R/2 - E é um recurso, a mais
R/1 - E é um direito. Então, da criança, do jovem até o adulto. Do jovem até o adulto ainda é mais grave, porque ele sabe tudo e ele sabe dizer, falando. Talvez ele não consiga escrever um texto sobre todos os saberes que ele tem e ele tenha uma dificuldade, porque isso é negado e é corrigido. Ele não pode dizer: “nós vai”. Ele deixa de falar. Ele não fala. Não pode dizer, “nós vai”, “nós fomo". Não pode! Aí a primeira coisa que ele ouve: “Fica calado é melhor. Você fala muito errado”. Não vai falar.
01:26:45
R/2 - Tem um poeta paulista que deu um exemplo maravilhoso. Ele disse assim, foi falar na USP, e a USP falou do erro. Ele era rapper, falou do erro e disse assim: “A diferença professor, é que quando vocês dizem nós vai, tá errado, mas nós quando diz nós vai, nós vai mesmo!”
R/1 - Nós vai mesmo! Me lembrei de uma história de Ariando Suassuna, que ele gostava de contar, que era você chegar e visitar, com essa arrogância da elite, chegar num lugar, numa plantação, com agricultores, e perguntava: “E aí, tá tudo bem? Melhorou muito com o prefeito novo?” “Prefeito novo? Tem prefeito novo? Tem?” “Tem. Você não sabe? Você não sabe o nome do prefeito?” “Não sei não, doutor. Aqui é outra coisa. Não vou para a cidade”. Aí o assessor disse assim: “Mas o nome do governador e do presidente você sabe?” “Sei não, doutor. Sei não”. Eu estou encurtando porque Ariano conta. Aí, lá pras tantas, o cara disse assim: “Ô doutor, conhece aqui essa raiz, doutor?”. Aí o doutor disse: “Não conheço, não”. “E essa folha aqui, sabe de qual é?” “Sei não, doutor”. Perguntou mais outra coisa. “Pois é, doutor, cada qual para sua ignorância”. Pronto. Chegamos. Então, o que está em jogo muito com o poder da escrita e da norma culta é a manutenção da desigualdade. Os que precisam ser submetidos escravos na escravidão ou excluídos como hoje. Não dá para ter escravo como antigamente, tem escravo de outra forma. Vai pela nova culta. É um espetáculo pra ter escravo. Norma culta. É um espetáculo, entendeu? E quem cultua essa norma culta...
R/2 - É a Academia Brasileira de Letras. Ela é responsável.
R/1 - Ela é responsável e por isso que eu não aguento. Eu não aguentei voltar pra universidade. Eu terminei o meu curso de História. Eu voltei pra fazer pedagogia, que eles, em três meses, tudo o que eles falavam, eu fazia o contrário na escola. O que é que eu tenho que fazer aqui? Nada! Nada! E não tive mais coragem de fazer nada. Porque eu só vou perder o meu tempo. E tem um professor, dois que pensam, e o resto... Pensa o contrário dos valores, do mundo, dos direitos. O que é que eu vou fazer lá? Eu não preciso de fazer currículo. Não nasci pra fazer. É mestre? É mestre. É doutora? É pós-doutora? Não, gente, não sou, não. Eu fiz meu curso de história, minha licenciatura, meu bacharelado e o tempo inteiro eu fui estudando. Eu sou bem estudiosa, mas em cima do meu trabalho, daquela prática, do que precisa. Eu até fiz uma especialização maravilhosa pra nossa equipe. Sentei com o Júlio Tavares, com o... Esqueci o nome dela agora, subiu da PUC, na minha treta, para fazer um currículo. Passamos nove meses fazendo o currículo do que precisava mesmo para fazer uma especialização para a equipe. Que tinha que estudar injustiça cognitiva, racismo, exclusão, desigualdade, tudo quem tinha que estudar, linguagens. Texto, como você faz um texto, uma narrativa que você impregna o sentimento das pessoas de inferioridade. Como você constrói? É muito bem feito. Todo mundo tem norma culta. Norma culta para narrativas excludentes. Excludentes. Isso eu queria que meu povo aprendesse. Eles aprenderam. Quais são os truques, como se constrói. Porque isso tem inteligência. E é pra poucos, não é pra muitos. Ficou restrito, tá lá na academia. Tá lá. Então, assim, encontrar a Heloísa foi me trazer uma memória de um professor e de um papel que a universidade tem e que deu as costas. Ela não forma o professor e ela deforma. E eles chegam todos formados e a gente tem que formar. Não sabem nada do Brasil, não sabem nada daquelas crianças, não sabem nada daqueles contextos. Eu estou vivendo isso agora e estou gravando. A turma maravilhosa nossa da UERJ, espetacular, alfabetizadora. Daqui, da UERJ, maravilhosas alfabetizadoras e do Pedro II. E elas estão trabalhando com a gente no projeto das crianças, do Pará e do Maranhão. Gente, mas só conhece o Rio. A gente vai para o Maranhão, vai para o Pará, vai conhecer o Brasil e vai se formar para isso. Gente, elas estão, nesses três anos, tudo doutora, não tem uma que não seja mestre e doutora, o máximo tem duas terminando aí o doutorado para defender tese agora e mudaram as teses todinha. Mudaram tudinho, que é uma coisa que acontece muito, que a gente teve muito no Telecurso, muitas teses dos nossos professores de mestrado e doutorado em cima do que eles viveram numa relação escolar de respeito, que não é nada mais do que o respeito. Respeitar. É a palavra: Respeite, respeite, respeite. E como se não bastasse não respeitar, você tem um decréscimo do desejo de ser professor, enorme. Você tem que fazer muitos incentivos. Agora mesmo o MEC lançou, o governo lançou um projeto muito interessante para você favorecer o desejo de ter licenciatura, de querer ser professor da educação básica. Então você vai, você quer fazer, você vai ter uma bolsa mensal que você recebe e uma parte você não usa, fica guardando. Quando você conclui, você foi pra sala de aula, você recebe o que tava e você recebe outra bolsa pra continuar seu mestrado ou seu doutorado. Foi lançado agora, faz poucos meses. Porque ninguém quer ser. Ganha pouco, não é valorizado pela sociedade. A pandemia trouxe uma reflexão para a classe média e média alta, que foi descobrir que o trabalho do professor é pesado, é difícil, porque como eles terceirizam tudo, motorista, é tudo, faz tudo. Nessa hora que a Covid deixou ele com os filhos, eles tinham que fazer alguma tarefa. E aí? É complexo alfabetizar, é complexo ensinar matemática. Ficaram tudo dizendo, coitado do professor, coitado aguentar esse menino que não quer ficar parado um minuto para aprender, não quer ler esse livro. Eles fizeram muitas reflexões, na volta à escola, de aplaudir os professores pela paciência e pela competência. Muitos, porque viram que é, com dois anos de filho em casa, na pandemia. Mas é desvalorizado, porque quando a sociedade não valoriza a educação, por que a escola, que é um pedaço dessa sociedade, vai valorizar? Ela é um pedaço. Está lá dentro tudo que tem aqui fora. Então a gente precisa muito da oralidade para resgatar os direitos, para garantir os direitos e para combater a desigualdade e fazer o que está avançando na linguística, essa diversidade.
R/2 - Uma coisa que não tem nada a ver com o dia-a-dia é para inventar. A imensidão que a ______ tem e que a escrita não tem é gigantesca.
01:31:59
R/1 - Eles não entenderam aquela música linda de Caetano, “Língua”. Acham que a língua é apenas um código de comunicação universal. Acabou, destruiu. A língua não é isso. A língua não é isso. Então está na hora de... Hoje tem muito mais abertura para você incluir as palavras regionais no vocabulário. A gente tá começando esse ano a última responsabilidade que faltava fazer no projeto dos trilhos no Maranhão, que é Falares, que é o nome que eu dei, que é pra gente registrar a prática vocabular, o universo vocabular, diria Paulo Freire, falaria do universo das crianças desses municípios onde nós estamos e da prática linguística, social desses professores para a gente fazer circular, porque é diferente. Nesses municípios do Maranhão, a gente tem um conjunto de municípios que se chama Açaí, tem outro conjunto que se chama Jussara. A mesma frutinha. Estou dando um exemplo clássico, que todo mundo sabe o que é açaí. Mas é açaí aqui e logo ali, duas horas depois, é Juçara. Não é a festa do açaí, é a festa da Juçara. É uma festa do Maracanã, que é uma área metropolitana de São Luís. Espetacular. E a Juçara, não sei quantas expressões culturais: tem dança, tem poema, tem culinária. Então, gente, é cultura. A língua é muito maior do que engessá-la, trancar, botar um cadeado, é uma prática social. E precisa ser reconhecida como tal na escola. Do pequenininho ao pós-doc direto. E a universidade tem que quebrar isso aí, essas paredes. As quebradas, tá quebrando. É lento, porque são poucos derrubando os muros. Mas olha, melhor, porque eu já ouvi gente que passou pelas quebradas, modificar sua prática. Ser obrigada pelo menos no discurso ser diferente.
Recolher