Projeto Vida, Morte e Fé - Programa Conte Sua História
Entrevistado: Eduardo Gomes Marinho
Entrevistado por: Bruna Oliveira
São Paulo, 28 de novembro de 2024.
Entrevista número: PCSH_HV1415
Revisado por: Nataniel Torres
P - Eduardo, pra começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
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R - Boa tarde, meu nome é Eduardo Gomes Marinho. Eu nasci em Jaboatão dos Guararapes, no estado de Pernambuco, no dia 23 de novembro de 1980.
P - E qual é o nome dos seus pais?
R - É bem complicado, mas depois eu comento sobre isso. O nome da minha mãe é Miriam Maria da Silva e meu pai é Severino Gomes Marinho Filho.
P - Você quer contar?
R - Minha infância foi bem assim: Eu tive um pai biológico e uma mãe biológica. Minha mãe era muito nova, ela tinha 14 anos quando ela me teve. E naquela época tinha aquela história de casamento, tinha que casar. Meu pai não casou com a minha mãe, não sei direito o motivo hoje. Cada pessoa fala uma história. Aí eu sei que meu pai um dia… Minha mãe já tinha me registrado quando eu nasci, sozinha. Aí meu pai foi me buscar lá e me levou pra casa da irmã mais velha dele, que era recém-casada e não tinha filhos. E eu fiquei lá. Aí eu fui registrado novamente, com outro nome. Com o meu primeiro registro, eu fui registrado como Carlos Eduardo Marinho de Brito. E com meus pais que me criaram, eu me tornei Eduardo Gomes de Marinho, que aí foi a minha identidade. E também isso eu só vim descobrir já com 13 anos de idade.
P - E me conta, como é que você descreveria os seus pais de criação?
R - Foram bons. Eu acho que foi uma escolha muito bem acertada que meu pai, que no caso é irmão biológico da minha tia, que no caso foi a minha mãe que me criou, acredito que minha mãe era muito nova para ter um filho e tomar conta. Eu acredito que foi uma decisão acertada dele, porque até então eu acreditava que ele era meu tio. Eu só vim descobrir que ele era meu pai e ele já tinha falecido.
P - E você sabe como eles se conheceram. Seu tio e sua tia?
R - Eu acho que minha mãe biológica estava para casar com uma pessoa e conheceu o marido dela no ônibus. Ele era motorista de ônibus. E aí aconteceu, ali se casaram. É o que eu sei mais ou menos da história.
P - E você teve irmãos?
R - Biológico eu tive cinco irmãs e, irmão de criação, só um.
P - E como é que era a relação quando vocês eram pequenos?
R - Foi uma relação sempre tranquila. Meu irmão sempre foi muito tranquilo. Eu era uma pessoa totalmente diferente. Eu acho que era genética diferente. Não tinha nada a ver com aquilo ali. Mas ele sempre foi muito tranquilo, a gente se deu muito bem.
P - E você chegou a conhecer os seus avós?
R - Eu conheci só a minha avó biológica, materna. Poucas vezes eu a vi, conheci.
P - E você sabe de onde ela veio, de onde veio a sua família?
R - O pouco que eu sei dessa parte biológica, sim, é muito mais história, na verdade. É onde entra a história do culto de Jurema Sagrada da minha vida, foi nessa parte ancestral, biológica, porque eu fui criado numa família totalmente católica. Então eu conheci a minha infância, era missas, fui em igrejas evangélicas e tudo. Aí quando chegou um período da minha vida, eu sentia alguma coisa diferente, um chamado, alguma coisa que eu não sabia o que explicar, o que era. E tinha amigos na escola, nessa época eu acredito que eu fazia sexta série, e eu fui levado do nada a uma sessão de Jurema, e lá mesmo eu passei mal e fiquei. Aí começou toda a minha história espiritual. E foi muito difícil para a minha família biológica aceitar ou entender isso, porque eles não fazem parte do culto, de nenhuma forma. Foi daí que eu descobri toda a história, que eu tinha outra família, de onde vinha a ancestralidade, a que a minha avó já era Ialorixá. Então já tinha aquilo na minha vida espiritual e eu não sabia, não tinha conhecimento nenhum. Eu entrei assim, era forçado, né? Cai de gaiato na história. Foi bem por aí.
P - E como é que foi esse momento?
R - Foi estranho para mim porque era diferente de tudo aquilo que eu conhecia ou acreditava. Mas fui aceitando, fui indo. Com o tempo eu quis lutar, não era aquilo que eu achava que eu queria para a minha vida. Aí ali eu comecei a fazer rituais, obrigações, coisas que tem dentro do culto, e fui me desenvolvendo, mas eu achava que eu ia ser uma pessoa médium, normal, que ia frequentar aquilo ali e pronto. Meus projetos, na verdade, eram outros. Meu projeto era se formar em história e toda uma coisa diferente. Foi quando eu decidi, em 2003, vir para São Paulo, porque meus planos eram estudar e fazer história. No fim das contas, eu não fui fazer história, eu fui fazer pedagogia e desisti. Logo que eu cheguei em São Paulo, no primeiro ano, já começou gente de lá, ligava pessoas aqui, aí me procurava, começou a fazer consulta, não sei o quê. Aí o caminho espiritual me perseguindo novamente. Aí aqui eu construí uma história de Jurema dentro do culto. Numa época, quando eu cheguei, que esse culto de Jurema não era falado, não era comentado, as pessoas não entendiam bem. Era uma resistência a mais que tinha que ultrapassar, aceitando aquilo. Quando eu fui ver, já estava envolvido com um monte de gente dentro de casa. E dali construí o templo e foi indo. Hoje tem uma família de Jurema em São Paulo e em vários lugares que a gente deve ter mais de mil pessoas já, entre netos, bisnetos, afilhados, filhos.
P - E nessa época, ainda criança, antes da gente ir para a sua atuação aqui em São Paulo, eu queria saber como você se sentia nas outras religiões. Como é que era? Na missa?
R - Eu me sentia neutro. Eu achava que aquilo era uma obrigação que eu ia com meus pais. Recife, em si, é uma cidade muito religiosa. Então tem muita igreja, muito patrimônio histórico. Mas eu achava que aquilo era um compromisso que tinha que ir normal nos domingos. Não tinha nenhuma afeição àquilo. Também fui em cultos evangélicos. Eu, na verdade, acho que nunca me encontrava em canto nenhum. Mas eu ia por mais pela família mesmo.
P - E se você quiser contar mais detalhes de como foi esse dia que você foi a primeira vez na Jurema?
R - Eu lembro que eu estava, acho que, na sexta série, e eu tenho uma amiga que ela teve um problema com um relacionamento, alguma coisa desse tipo. E, na época, eu falava, “vamos procurar um lugar, procurar uma casa, uma casa que faz magia, que não sei o quê, não sei o quê”. E aquilo interessa, a pessoa, quando é muito jovem, escuta tudo. “Aí, mas eu não vou sozinha”, aí outro amigo, aí “vamos, não sei o quê”. E se juntou a gente e foi para, na verdade, fazer uma consulta com essa amiga, né? Aí, quando cheguei lá, eu passei mal, fiquei passando mal, fiquei num estado meio estranho. Entendeu? Eu não sabia explicar se aquilo era medo, porque eu vi muito copo, muita imagem, muita coisa. Entendeu? Eu sei que tava um calor, acho que uns 35 graus, e eu tava numa temperatura de 10, tão nervoso que eu tava. Sentia frio mesmo, soa frio. E comecei a passar mal. Aí… Mas aí a pessoa da época, que era a Ialorixá Laodicéia, era uma senhora que era muito… E ela “não fique nervoso, você tem mediunidade”. Ela começou a falar aquilo ali e aquilo na minha cabeça ficou complicado, confuso. Mas eu saí dali com curiosidade, mas ainda depois, mesmo com medo. Aí, eu sei que a menina tinha que voltar, que era essa minha amiga da escola. Aí voltamos na semana seguinte, que ela tinha alguma coisa para fazer lá, e ali tinha reuniões de 15 em 15 dias. Como eu era criança, não podia participar da reunião na época, até muito tarde. As reuniões começavam geralmente às sete e terminavam às dez, mas oito e meio eu tinha que sair, porque tinha problema de polícia na época, ainda com criança em lugar de culto, essas coisas assim. E por causa dos meus pais também, porque queriam saber onde eu estava, porque eu era muito novo, aquela confusão toda. Ali eu fui ficando, aí fui desenvolvendo entidades, aquilo foi se aproximando. Uma, porque eu já escutava, desde criança, escutava as coisas estranhas, eu sentia, tinha pressentimento, eu tinha visão, eu via uma criança com um uniforme escolar, sempre eu via. Eu não sabia o que era aquilo, até hoje eu não entendo direito o que era aquilo ali. E foi assim que eu comecei a entrar no mundo espiritual, eu fui aceitando aquilo ali. E depois que eu aceitei, ainda fui relutando. Por muitos anos eu fui relutando até chegar ao consenso de eu aceitar. E por isso que eu não vivo da religião como muita gente faz. Porque eu sempre relutei nisso aí. Mas eu acredito hoje que é muito o destino porque eu consegui formar uma família de culto de Jurema muito grande e sem pretensão disso. Como hoje em dia a gente vê muita coisa na internet, muita exposição, muita coisa. E eu sou de um tempo que o culto do Jurema não era exposto assim. A gente não podia nem bater foto em sessões. Era uma coisa totalmente restrita. Mas aí com o chegar da internet, a exposição, vai colocando, vai colocando, aí foi tomando uma proporção, uma dimensão. Mas eu já tinha essa dimensão dentro da minha casa, só que não tinha essa visão que estava tão grande o que estava acontecendo, só depois do decorrer dos anos mesmo que eu fui aceitando. E quando eu estava aqui em São Paulo, eu dizia, São Paulo é uma cidade tão grande, com tantas pessoas do Nordeste, por que eu não vejo falar em Jurema? Mas na época tinha poucas pessoas que seguiam o mesmo ritmo que o meu, a gente se restringia, então a gente não se conhecia. Em 2004, com a chegada do Facebook ali, a gente viu alguma pontinha de alguma coisa, começava a conversar com alguém, aí foi se conhecendo, formando aquela rede de pessoas que faziam parte do culto e fomos tendo amizade e aí foi indo. Aí foi fluindo a coisa de Jurema em São Paulo, que hoje é muito forte. Hoje o culto de Jurema em São Paulo, aqui a gente chama que é a meca dos juremeiros. Uma coisa que é tão forte como não é mais no Nordeste, como em Recife que era um foco. Hoje, em São Paulo, está muito expandido esse culto.
P - E lá em Recife, na época que você era pequeno, era comum as pessoas serem juremeiras?
R - Sim, porque o culto de Jurema lá é tradicional, tanto em Recife, Paraíba, Maceió, Rio Grande do Norte, com algumas vertentes ali diferentes, mas ele é um culto totalmente, realmente nordestino. Que se chamava de Catimbó, se chamava de Jurema. E Catimbó era bem pejorativo na época quando utilizava essa palavra. Vem aquela junção do indígena. Porque, segundo as histórias, veio da aldeia de Aracati, que hoje é em Alhandra, na Paraíba, em que Maria Gonçalves da Silva, que era uma benzedeira muito conhecida na época, conseguiu se juntar com os índios, que já tinham culto de invocação aos seres encantados, essas coisas. Ela trouxe a parte branca, juntou com a indígena e fez ali, segundo as pessoas, as historiadores falam, que fez a primeira sessão de mesa de invocação, quase o mesmo tipo, uma coisa bem Allan Kardec ali, de mesa branca e ali começou as invocações e o culto foi se desenvolvendo. Com a perseguição de 1930 da polícia, que foi fechado muitos terreiros no Brasil todo, Pernambuco, no Rio de Janeiro também, que tinha muita cabula na época no Rio de Janeiro, que hoje já é extinto, dizem que três guardiães foram guardar o segredo em Tambaba para que ele não morresse por causa da perseguição. Aí ali o culto continuou sendo restrito mais ainda por causa da perseguição policial, aí começou o culto de Jurema de chão, que era feito nas matas, longe dos holofotes, pra ninguém chamar a polícia, essa coisa toda, e o culto foi tomando Outras proporções devido a essa perseguição, porque até então ele era só aquela reunião de mesa branca, tal da história da mesa branca com o copo de água ali. Mas com a perseguição fez com que eles saíssem da mesa, fossem para a mata e fizessem o culto de Jurema de chão, no meio da mata, aí depois, com aquilo evoluindo, a perseguição parando, aí o culto tomou a proporção de sala, de salão, de fazer giras, entendeu? E é um culto muito antigo e muito forte dentro do Nordeste, na cultura das pessoas. Geralmente quem era benzedor e benzedeira fazia parte do culto de Jurema.
P - Eduardo, nessa época, quando você começou, que foi a primeira vez na Jurema, quem que te ajudou a ir desenvolvendo? Tinha uma figura importante?
R - Tinha. Nesse local que a gente foi, que a juremeira era a Laodicéia, já era uma senhora, e ela… Gostava tanto de ir para lá que eu ia depois da escola, ficava lá com ela à tarde. Aí, ali, eu auxiliava ela com as pessoas que iam na casa dela fazer algum trabalho, alguma coisa. E, ali, ela foi todo o meu apoio de desenvolvimento, de tudo. Até quando eu cheguei ao Candomblé, que ela não era de Candomblé, ela era de outra vertente, que era Nagô e Jurema. E chegou quando ela falou assim, “você tem uma necessidade de cuidar de Orixá, mas no Candomblé”. Porque as pessoas agiam com muita sinceridade naquela época. Quando elas não podiam fazer uma coisa, elas sempre indicavam. Então, acho que ela foi um espelho para mim, na minha infância, de desenvolvimento, de aprendizado, até de caráter também, porque eu convivia muito com ela. Ela era uma pessoa muito certa, muito cuidadora. O desenvolvimento foi ali, tomando banhos de ervas, participando de reuniões e tudo aconteceu assim.
P - E nesse momento você também se desenvolve no Candomblé ou foi depois?
R - Foi depois. O Candomblé é diferente. O Candomblé é um culto que não parte dessa premissa de desenvolvimento, ele parte da premissa já da iniciação. Aí quando ela falou isso, que eu tinha que fazer alguma coisa num Candomblé, eu não conhecia o Candomblé até então, só conhecia aquele ritual que era o Nagô, que era um culto ao Orixá, mas um pouco diferente. E a Jurema, até então. Aí eu fui andar, fui conhecer Candomblé. Aí eu conheci algumas vertentes de Candomblé, primeiro conheci Angola, aí eu não me adaptei, não gostei, achei aquilo estranho. Aí conheci outra vertente, que era Jeje, na época que era muito forte em Recife. Era Jeje, Jeje Mahi, Jeje Nagô, existiam todas essas vertentes e eu não me adaptava, eu achava muito estranho aquilo ali. Aí foi o que aconteceu, eu fui para uma seção de Jurema, em um bairro chamado Dos Carneiros, na época, e conheci um Babalorixá de Ketu. Aí foi quando eu fui conhecer Ketu. Aí eu fui. Ali eu fui a primeira vez jogar búzios, fui fazer limpezas, fui fazer as coisas. Aí foi quando eu conheci o Ketu e me adaptei ao Ketu ali. E fui seguir o Candomblé de Ketu a partir dali.
P - E você sabe dizer qual era a diferença do Ketu para as outras?
R - Tem algumas diferenças. O Ketu, o Nagô, o Efon são nações que cultuam orixás. Dentro de Angola se cultua Inquice, que são divindades diferentes. E dentro de Jeje se cultua Voduns. Então são parecidos em algum momento aquelas energias, mas hoje eu sei que não são. São divindades totalmente diferentes e a forma de dançar, a forma de linguagem também é diferente e puxa outras partes da África. E o Ketu eu me adaptei pelo toque do Atabaque sem vareta, coisa que não acontece em Angola, entendeu? Em Jeje tem os içás, que são relacionados às árvores. Então são coisas diferentes. É parecido, mas é diferente.
P - E eu queria saber, o dia que você foi a primeira vez, ainda nisso porque tenho bastante interesse também, quando você foi a primeira vez, o que você sentiu? Você contou um pouco que passou mal…
R - Eu acho que eu senti muito medo, na verdade, porque era muito estranho aquilo para mim, porque eu nunca tinha visto. Aí eu vi um monte de imagens de coisas diferentes. Tinha algumas imagens católicas, que se usa muito no culto de Jurema, mas tinha outras imagens diferentes. Tinha muitas taças, muitos copos de água, muita vela acesa, e eu não era acostumado com aquilo. Um cheiro estranho, uma defumação, alguma coisa assim. E eu fiquei realmente com medo. Mas hoje eu entendo que não era só medo, eu já senti alguma coisa ali que era além do medo. Era como se sentisse que alguma coisa não estava bem comigo. Porque o medo, a gente quando sente medo, a gente não sente frio. E ali eu senti frio no calor muito grande que estava na época. E Recife é uma região que faz calor o dia todo, todos os dias do ano. E eu senti realmente um frio de uma forma que eu só senti frio quando eu cheguei em São Paulo. Aquele frio que eu senti eu só senti aqui, depois que eu cheguei. Porque até então eu nunca sabia o que era frio na minha vida, porque eu não fui criado no frio. Então foi uma coisa assim que hoje eu entendo que era o chamado espiritual ali. Foi aquela mistura, aquele misto de medo com alguma coisa estranha que estava acontecendo. E eu só vim a aceitar depois, entender, porque eu vinha de uma família biológica que já vinha de uma descendência daquilo ali. Não foi nada por acaso, eu acho que já foi tudo espiritualmente traçado para acontecer. Porque eu tinha tudo para não ser disso, tudo. Uma criação totalmente diferente, não conhecia, não tinha curiosidade, tinha medo. Então foi uma coisa que aconteceu, porque tinha que acontecer mesmo. Aí foi ali, foi desenvolvendo. Aí senti a incorporação a primeira vez. Eu sentia que era um desmaio, não entendia bem o que era aquilo ali. E ia levando. As entidades vinham, trabalhavam, falavam, davam consulta. Só não bebia até então porque era de menor não podia. Tinha uma restrição de bebida. E também não ficava muito tempo por ser criança. Tinha todo esse trabalho. Graças a Deus que eu fui para um lugar que era bem certo, que tinha a doutrina certa, tinha algumas coisas a acontecer. Foi interessante. Tentei correr várias vezes no decorrer da vida, mas não adiantou não.
P - E quando você fala que você foi descobrindo ali uma mediunidade, você já tinha tido contato aos 13 anos, até aos 13 anos, com a morte, de alguma forma?
R - Não. Com a morte, não. Até aos 13, não. Eu tinha uma infância normal. Eu estudava, saía da escola, meus pais eram muito rígidos, assim, já tinham que buscar na porta da escola pra levar. Eu tive uma infância que eu não tinha muito… O brincar era no terreno de casa mesmo. Não era muito de sair, não. Meus pais controlavam muito a gente, assim, na verdade. Eu acho que devido a esse controle todo, o mundo espiritual foi bom para mim, porque eu fui conhecendo outras pessoas, porque até então eu só conhecia o mundo da escola e acabou. E um vizinho da frente, mal que tinha. Assim que meus pais permitiam. Aí… E eu fugia para a sessão espiritual. Aí eu comecei a conhecer outras pessoas, outros vínculos de coisa. E escondia dos meus pais com medo. Porque até meus pais descobriram e aceitaram depois tudo que… Porque aí até então eu tive que fazer obrigações de coisa, passar dias lá. Foi bem difícil.
P - E nessa época você morava ainda em Jaboatão?
R - Sim, eu morava em Jaboatão.
P - E como era a casa que você morava quando você era pequeno?
R - É a mesma casa ainda hoje dos meus pais. Uma casa grande, como as casas de lá, elas são grandes. Elas têm geralmente dois quartos, duas salas, cozinha, tem terreno na frente, no corredor, terreno no fundo, tem a lavanderia também atrás. É a mesma casa que meus pais moram até hoje ainda.
P - E você gostava de brincar do que quando você era pequeno?
R - Eu brincava normal, como criança, brincava de carrinho, brincava de bola, tinha aqueles bonecos de He-Man na época, essas coisas assim. Mas eu sempre fui muito de ler, eu gostava muito de ler. Eu acho que meu hobby de infância era ler gibi, lia muito gibi, muito Maurício de Souza eu lia. Não podia lançar uma banca que eu queria ler gibi. Aí eu fui tomando interesse pela leitura por causa disso. Eu era uma criança que gostava de ler, ler dicionário, ler tudo.
P - E você estava contando que você foi com uma amiga, né, a primeira vez. E ela seguiu? Como é que foi?
R - Não, ela não seguiu, não. Ela teve um problema com… era uma coisa de relacionamento. E ela é casada com essa pessoa até hoje, pelo que eu sei. Porque eu também não tenho mais contato. Faz muitos anos que eu tive contato. Mas até a última vez que eu tive contato, ela é casada com essa pessoa, tudo. Mas ela não é da religião. Ela foi como consulente mesmo. E foi eu, ela e um amigo, que é o Wilson, que hoje é falecido, que o Wilson deu prosseguimento também.
P - E vocês iam juntos ou foi em outra época?
R - Não, era a mesma época. Íamos juntos, sim.
P - É interessante isso. Eu queria saber também um pouco como foi depois dessa iniciação, desse desenvolvimento na Jurema. Como é que você deu a sua adolescência? Os seus pais sabendo disso? Como é que foi? O que você fazia para se divertir nos momentos de lazer? Como é que foi sua adolescência?
R - Foi bem complicada a minha adolescência, porque aí já veio a primeira bomba que eu era filho de outros pais, que meu tio era meu pai, na verdade, e que eu tinha uma mãe e não sabia. Aí eu tive aquela confusão da adolescência com tudo isso na minha cabeça. Aí eu fiz 14 anos. Aí minha mãe me colocou num projeto que tinha na época para ser menino da Caixa Econômica. E aí eu fui, fui para entrevista, fazer essa coisa. Passei, fui ser menino da Caixa Econômica Federal, com 14 anos, que podia ser registrado naquela época, hoje não pode mais. Aí fui ser menino da Caixa. Aí o que acontecia? Quando chegava, por eu ser menino menor, os pais eram muito controladores ali. Quando chegava o dia do pagamento, quem recebeu era a minha mãe. Eu não sabia, eu não via a cor do dinheiro. Eu sei que eu ia, eu trabalhava no banco, eu acredito que era de nove, antes do banco abrir. Ou o banco abria de nove na época e saía de uma da tarde. E estudava de três às sete. Então a minha vida era essa rotina. Quando eu queria sair para alguma coisa, eu tinha que fugir. Mas se eu fugisse, apanhava quando chegasse, porque era muito rígido assim a criação dos meus pais. Aí dali, com um pouco de dinheiro que eu pegava, com muita briga, com muita coisa ali, aí fui fazendo as coisas que tinha que fazer e, logo depois, já segui o rumo muito cedo para tomar meu destino. Fui viver só com 15 anos de idade, eu já estava no mundo, já estava vivendo só. Fui morar em pensão. Foi muitas coisas da minha vida. Aí já não trabalhava na Caixa. Na época, tinha um tipo de espaço de videogame. Aqueles videogames que jogavam antigamente, eu não lembro o nome. As máquinas que tinham lá. E eu fui tomar conta daquilo. E era um trabalho escravo também, porque eu era criança e não tinha folga. Aí o dono, ele também era dono de uma pousada na Praia de Boa Viagem. Aí ele fechou essa coisa e me abriu a vaga na pousada. Aí piorou a minha situação, porque eu ficava na pousada me matando e eu trabalhei acho que dez meses da minha vida sem folga ali. Eu trabalhava todo dia. Então, eu era jovem, ainda aguentava, mas sentia o cansaço. Você hoje não aguentava uma vida daquela, Deus me livre. Mas, assim, acho que a necessidade fez eu passar por aquilo ali. E aí fui vivendo a minha vida, fui me tornando um adulto muito cedo, porque eu fui para a rua muito cedo, fui aprender a me virar muito cedo. Depois que passei por esse trabalho, fui trabalhar em casa noturna. Depois viajei de Recife e fui morar na cidade de Barreiros, um interior que tem lá. Fiquei, acho que, dois, três anos em Barreiros, afastado de 110 quilômetros da capital. Aí foi uma vida mais interiorana, fui aprendendo outras coisas. Aí na vida fui fazendo tudo um pouco nessa fase de pré-adolescência, até fazer 18 anos, eu já estava em Barreiros. Aí tinha um amigo que, antigamente, para a vaga de emprego, anunciava na rádio. Aí apareceu uma vaga na praia de Tamandaré, que é uma cidade vizinha, para cozinheiro. Esse meu amigo era cozinheiro. Ele disse, “vamos lá comigo”. Eu não ia só ir doido para conhecer outras cidades. Falei, “vamos”. Aí fui com ele. No fim de contas, saí lá empregado junto com ele. Não sabia fazer nada. Era um restaurante muito bonito, que era o Flor de Lis. “O que eu posso arrumar para você é você trabalhar como garçom aqui três dias por semana, dias alternados, e você receber comissão”, que era assim que funcionava. E eu queria trabalhar, eu queria morar ali na cidade mesmo. Aí fui ali, trabalhando e vivendo a minha vida sozinho. Então, desde 15 anos, eu sou uma pessoa que fui autossuficiente na minha vida. Eu nunca fiquei esperando nada de pai, mãe. Eu aprendi na marra a viver. E eu falo muito isso para as pessoas. Hoje eu vejo uma geração de adolescentes perdidos, que se perdem em drogas, em tudo. Eu tive todas as dificuldades e nunca me envolvi com nada ilícito. Eu acho que eu tive uma criação, que hoje eu entendo que foi muito boa, porque eu sempre tive medo. Eu acho que era mais o medo. Meus pais falavam, “se você fizer alguma coisa de errada, você vai para a cadeia. Se você for para a cadeia, ninguém vai lhe ver. Lá não é bom”. Aquilo foi coisa da minha vida. E eu, com essa vida de adolescente na rua, conheci muita coisa. Dos anos 90 ali, 94 e em diante, tinha muita maconha, muita coisa. Ofereciam cada charuto enorme e eu nunca tive vontade de… Nunca, graças a Deus, que foi um livramento também que eu falo na minha vida, que em todas as dificuldades e problemas da minha vida eu nunca fui para esse lado, nem para o alcoolismo. Eu acho que eu fui sempre muito guiado, graças a Deus, nesse sentido de não ter se perdido, porque eu tenho uma história que eu teria tudo para me perder, tudo, num lugar com índice alto de homicídio, com dificuldades financeiras. O Nordeste é um estado que até hoje é bem difícil o viver, em relação à renda per capita, essas coisas. E o que eu me sinto melhor na minha vida é entender que eu fiz essa… Não ser uma estatística, na minha vida como ser humano, como pessoa. E sempre decidi tudo na minha vida, muito no automático. Quando eu decidi ir para São Paulo, eu vim com o propósito de estudar e, no fim das contas, quando eu vi, eu já estava enrolado já num culto sem querer de novo. Mas, pelo menos, terminei meus estudos, ainda fui fazer pedagogia e depois parei, depois de um ano no terceiro semestre. Eu parei porque não me adaptei, que eu fui fazer...Estágio. Eu fui fazer estágio com as crianças infernal, me jogaram numa periferia horrível, assim, que só tinha filho de presidiário. Então, foi uma experiência terrível para mim, aquele estágio. Eu desisti nos primeiros 15 dias. Eu não quero isso mais para a minha vida. Aí fui seguindo, fui fazendo outros caminhos, trilhando outras coisas na minha vida. Como eu sempre fui muito rápido na minha adolescência, saí de casa, já aprendi muita coisa na vida, já tive a faculdade da vida, tudo que foi de trabalho em São Paulo, eu fui me enfiando. Trabalhei em várias coisas já na minha vida e fui pegando experiência. Só esse ano que eu não estou trabalhando, porque o espiritual me tomou muito tempo esse ano. Aí eu dei uma parada para cuidar do espiritual, porque eu tinha que ir para o Rio de Janeiro, eu tinha que ir para os interiores de São Paulo. Esses lugares e assim vai indo.
P - E com quantos anos você decidiu vir para São Paulo?
R - 23.
P - E o que que motivou? Você falou que queria estudar.
R - Estudar era mais fácil. A visão que eu tinha, e que era certa, é que tinha mais oportunidade de me formar, porque lá em Recife a dificuldade qual era? Eram trabalhos sem horas, sem nada. Então, você não podia dizer, “vou trabalhar e vou estudar”, porque não tinha como, porque você era bem escravizado. Então, eu queria a libertação. Eu queria o quê? Estudar, porque eu sempre pensei que a educação sempre foi uma arma de mudança. Então, eu acreditei muito nisso na minha vida. E eu disse, “eu vou estudar”. Eu disse “São Paulo é uma capital grande, deve ter muita faculdade”. E ficava aquela coisa dos meus pais de me falar, meus amigos, “você é louco, um lugar enorme daquele, você vai ficar perdido, o povo se perde naquela cidade, e não sei o quê, a violência é muito grande”. Falava muito absurdo, mas eu sempre fui muito decidido. Para quem já tinha passado ali essa adolescência para a juventude ali. Tudo de ruim, nada seria pior pra mim. Então, eu vim mesmo na cara, na coragem, como eu tenho parentes aqui, tinha uma tia, tenho mais três tios, aí passei uns seis meses na casa da minha tia, quando eu cheguei. Aí depois fui seguindo minha vida, fui estudar, aí arrumei um emprego, trabalhava durante o dia, e já chegava do trabalho direto pra escola, só chegava em casa 11 horas da noite, até me formar. Porque eu não perdi o foco. Tem gente que perde, eu não perdi, “eu vou estudar”. [intervenção] Eu, até então, tinha feito até o primeiro grau, até oitava série, que era um fundamental completo. Então, eu queria estudar por causa disso. Eu sempre fui focado nisso, no tal do estudar, porque a minha mãe tinha muito preconceito com o gari, com essas coisas. Ela falava “se você não estudar você vai ser aquilo. Ou tu vai fazer aquilo, aquilo tu vai trabalhar de sol a sol. Tu vai cortar a cana”, esse tipo de coisa, e eu ficar dormindo livre, não sei o quê, como é que eu vou aguentar, né? Então, aí, mas aí eu fui decidindo, disse, “pelo menos um segundo grau eu vou ter que ter”. Aí, veio aquele sonho de fazer história, porque eu sempre gostei de história desde criança, aí, mas, aconteceu um ponto de entrada na minha vida, que eu já fui trabalhar na educação como auxiliar administrativo aqui em São Paulo, de conseguir uma bolsa, mas era pedagogia. Eu disse, ah, eu vou fazer, já estou no caminho da educação mesmo. Aí fui fazer, foi quando fui fazer a faculdade ali e depois do estado eu desisti, porque para mim, eu disse, não, isso aqui não… Mas ainda não desisti de fazer história.
P - E nessa época dos 15 anos que você saiu de casa, até você vir para São Paulo, de fato, como é que você… Eu queria que você lembrasse um pouco, você ainda estava ligado à Jurema. Como você enxergava a fé naquele momento? O que era a fé para você?
R - Eu aprendi a fé na dura pena mesmo, na verdade. Ali eu já estava na Jurema, época culta, em casa de outras pessoas, porque tinha muita festa, muito evento e sempre ia. Era uma coisa comum mesmo ali. Eu tive a vivência daquilo ali que tinha reuniões de segunda-feira, de quinta, de sábado e domingo. Então, quando não tinha o que fazer mesmo, já ia. Vamos na festa de fulano, etc. Então, tem uma vivência nesse período todinho ali dentro do culto. E foi ali que eu fui aprendendo, porque a gente é muito novo, a gente pega as coisas com mais facilidade. Aí não tem aquela cabeça cheia de problemas, não. Eu pegava tudo muito fácil. Então, foi muito fácil aprender trabalhos, foi muito fácil aprender cantigas, foi muito fácil para mim, porque era uma coisa natural, era uma vivência no meu dia a dia, aquilo ali.
P - E aí, quando você vem para São Paulo, para que lugar você veio?
R - Eu vim para São Paulo, para Cidade Tiradentes, onde minha tia reside. Aí passei seis meses com ela, aí eu tinha umas conhecidas minhas que eram de Barreiros, que moravam por alguma casa aqui em São Paulo, aí a gente se encontrou, aí eu fui para lá, aí passei um tempo lá, depois aluguei uma casa na Zona Leste. Passei um tempo na Zona Leste. Da Zona Leste fui para a Zona Norte. Passei um tempo na Zona Norte, perto de Cachoeirinha. Depois fui para Mauá. Isso em dois anos. Entre 2003 e 2005. Eu sei que, de Mauá, eu já tinha clientes de consulta na Jurema, de Candomblé, nessas coisas. Aí foi quando eu consegui a minha primeira casa própria, em 2006. Janeiro, fevereiro de 2006. Aí foi lá onde eu abri e inaugurei o templo, na época.
P - Vou voltar só um pouquinho, porque eu tenho algumas perguntas para te fazer. Qual foi a sua primeira impressão de São Paulo?
R - A minha primeira impressão foi bem estranha porque eu lembro que eu cheguei dia 5 de maio de 2003 e fazia frio em São Paulo. E quando eu desci na rodoviária do Tietê tinha um monte de grade. Eu disse, “meu Deus, eu acho que eu estou no presídio”. A primeira impressão que eu tive foi essa, porque eu só vi grade e um monte de gente e eu fiquei meio perdido. Um, porque a minha tia que morava aqui eu não conhecia pessoalmente. Não tinha celular ainda na época, em 2003. Eu disse, “só falta me perder aqui” Mas aí veio uma vizinha, uma amiga da minha tia, que era vizinha nossa lá de Recife, que me conhecia pequeno e que eu ia conhecer automaticamente. Aí eu fiquei meio perdido assim… Mas aí se encontramos e viemos embora. Aí a impressão foi essa, o medo das grades que eu rio, o frio, porque eu não sentia frio e estava frio nesse dia. Foi a primeira sensação que eu tive. Não tive aquele deslumbre, não. Eu já achei uma coisa muito estranha quando vi as grades, porque tem uma pessoa que fala que é uma cidade grande e tem aquele deslumbre de prédio. Eu não tive esse deslumbre, não, porque eu acho que meu pensamento não era esse. Meu pensamento mesmo era estudar e pensar em voltar. Meu negócio era voltar, se eu vou voltar, minha cidade, minha terra. E voltar que nada, hoje eu não tenho vontade nenhuma de voltar pra lá. Eu só vou em Recife, que quando eu vou pra Recife eu sempre vou pra Maceió também, eu vou mais pra passeio, mas eu passo dez dias no máximo e não aguento. Me acostumei mesmo com São Paulo.
P - E como é que foi encontrar a Jurema aqui em São Paulo?
R - Eu encontrei bem depois de pessoas que eu tive o contato. Porque ali, quando eu fundei o templo, eu já fundei de Jurema, o povo entendendo ou não, porque o povo não aceitava. Os candomblecistas, e umbandistas diziam “não, Jurema é caboclo. Isso não existe. Isso aconteceu na sua cabeça”. Eu escutava todo tipo de história, mas eu nem conhecia o culto. Eu tinha vivência desde criança ali dentro. Era impossível não existir. Eu era louco. E fui cultuando. E as pessoas foram se adaptando. Foi chegando gente. Foi aparecendo pessoas que, “ah, eu já tive esse culto no Nordeste”. E foi se ajuntando as pessoas ali. E os juremeiros que já existiam em São Paulo, antigos, que no caso era o Marcos Gomes, que era o Dorô Ixé, que já é falecido, o Pai Nagô de Limeira, que são nomes de pessoas antigas do Nordeste que já tinham culto aqui em São Paulo, fechado ali com as pessoas deles também. E aí depois eu conheci o Robson, a Débora, que também era de Recife, morava na Zona Leste de São Paulo. Aí fui conhecendo algumas pessoas do culto. Aí ia pra culto na casa deles, eles iam na minha e a gente foi pegando um ciclo de amizade ali e foi crescendo a coisa e foi se encontrando. Hoje tem muita gente que a internet tem um lado bom, que ela dá uma dimensão muito grande, porque hoje as pessoas procuram, entendeu? As pessoas não chegam aqui e ficam perdidas, como eu fiquei na época. Que eu queria levantar a bandeira de um culto ali, que eu conhecia, que eu já vivia, e não tinha pessoa, não tinha adeptos ali que entendesse aquilo ali. Foi bem complicado ali no começo, mas depois de dois, três anos, o povo já estava começando a se alinhar com aquilo ali, aí foi indo.
P - E como é que você fundou a sua casa? As pessoas já frequentam?
R - Eu tinha um consulente, na verdade. Tinha consulente, e de consulente pessoas que iam fazer consulta ali já começavam a chamar de padrinho, de pai, e foi ficando. O meu é engraçado, porque ali eu fui tendo mais filhos do que. Como São Paulo era uma coisa que o povo já entendia de Candomblé, eu fui tendo filhos de santo dentro do Candomblé primeiro. Então, aqueles de Candomblé já começou a conhecer a Jurema e já foi se envolvendo. Tinha cultos de Candomblé, tinha cultos de Jurema em casa, aí foi indo e foi acontecendo.
P - Eduardo, tem alguma formação específica pra abrir uma casa?
R - Precisa. Você precisa do… não é uma formação, você precisa do culto iniciático. Porque a Jurema também é um culto iniciático, então você passa por consagração, vai fazendo obrigações anuais, dali tem Tombo de Jurema, que é outro ritual que faz com que você tenha conhecimento daquele lado espiritual, para que você tenha base. Mas você só se torna juremeiro, na verdade, mesmo tendo essas iniciações, com o tempo, com a convivência. Eu já tinha vivência, mas eu achava que eu tinha vivência o suficiente. E no culto da Jurema fala que na Jurema eu nasci, nela eu me criei. E no passar da Jurema, juremeiro eu serei. Você se torna depois com as pessoas lhe procurando, com situações que vão chegando para você. Aí você vai, alto ali, dando uma forma de resolver aqueles pepinos. Aí você se torna a partir dali. E é o que eu falo muito aos meus filhos, aos meus afilhados hoje em dia. Eu digo “eu fiz Jurema muito cedo, em 94, mas eu vim me tornar juremeiro em 2006, 2007. Porque foi que eu fui tendo mais vivência, fui tendo mais conhecimento ali de entrega realmente para ser juremeiro”.
P - E como é que funciona? Você estava contando que você tem uma grande família juremeira. Como é que funciona esses apadrinhamentos? Como é que você me explica?
R - Assim, quando eu fundei a casa, é muito parecido com culto relacionado à Umbanda no sentido de que você tem um guia-chefe, vamos dizer assim, na casa. Tem caboclo, tem mestre, tem mestra, preto velho. E eu tinha uma mestra na minha vida que sempre foi apadrinhando algumas pessoas. Porque para o ritual de apadrinhamento existe um batismo. E na Jurema ela batiza com as ervas, com a bebida, que é a Jurema também, e o batismo de fogo, que é feito com cigarro, charutos, alguma coisa nesse sentido, assim também, cachimbo. Aí ali a pessoa, o que é batismo na verdade? Batismo é aceitação, quando você aceita o culto. E quando você aceita aquele culto, você começa a fazer parte daquilo ali. E às vezes a pessoa é batizada, depois, com o decorrer do tempo, a Jurema que vai escolher ela, na verdade ver se ela vai ser consagrada, se ela vai chegar a ser tombada, porque o consagrado e o tombado, eles têm quase as mesmas funções de um juremeiro. A diferença é mínima de um para o outro, mas para seguir um processo iniciático melhor, geralmente se faz a consagração para chegar ao tombo, mas também tem médiuns que não precisam ir para o tombo. Isso é muito escolhido no mundo espiritual.
R - E você pode contar um pouco, se puder, sobre o tombo?
R - O tombo é uma ritualística no qual a Liga, tanto o tombo quanto a consagração, uma coisa que eu explico muito às pessoas é assim. Se os africanos não tivessem vindo para o Brasil, as pessoas não seriam iniciadas de Orixá. Elas seriam iniciadas de caboclo, que é o nosso ancestral brasileiro. Então o culto de Jurema se baseia nisso. Você faz um culto de iniciação a seu caboclo, a sua cabocla, a sua índia, o que seja, a sua parte brasileira. Nesses rituais, a pessoa vai para a mata, faz oferendas aos caboclos, aos índios, aos encantados da mata, passa por limpezas de corpo, dali ela passa… Se ela não é batizada, ela vai ser batizada naquele momento, mas geralmente já é uma pessoa que já é batizada, que vai adentrar tanto a consagração quanto ao tombo. Ali ela assenta as energias dela, todo o clã espiritual que ela tem na corrente. O tombo de Jurema e a minha consagração em si, elas são relacionadas ao seu ancestral brasileiro, ao índio. E ali são feitos rituais, tem cultos de Jurema que são feitos sacrifícios, tem cultos que não, que é só utilizado frutas, flores, ervas. Em outras partes do culto existe sacrifício animal, nada a ver com magia. Geralmente é frango, cabrito, passarinho, esse tipo de animais para alimentar a comunidade também. E se baseia nisso. A gente não pode muito explicar o contexto que acontece, mas aquela ritualística ali acontece, como eu falei, tem a mata, tem as águas, tem a reunião de mesa para invocar entidades caboclos, entidades encantadas ali naquele decorrer. Tem as oferendas para os pretos velhos, que também é realizada de acordo com cada família de Jurema, também tem isso. Algumas famílias têm alguns rituais específicos diferentes. A pessoa vai para a esteira, para o recolhimento, ela fica recolhida, reclusa, geralmente, três dias para a consagração e sete para tombo. A diferença, em si, de um tombo é que o tombo a pessoa faz uma viagem ancestral. Chega um dia de um ritual, no qual, para entender melhor, o mestre daquele médium leva ele para uma cidade encantada, que a pessoa tem como se fosse um sonho, um déjà vu, alguma coisa assim, e ela tem um conhecimento de um lugar espiritual. Aí ela se torna tombada por causa disso.
P - Tem alguma história da sua casa que você guarde com carinho, que tem acontecido lá, um momento especial ou alguns momentos?
R - Ai, tem tantas coisas que aconteceram ali. Eu acho que a primeira coisa mais interessante, das primeiras coisas que aconteceram na minha casa, foi o ganhar a casa. A Jurema queria uma casa. E, na época, foram feitos uns trabalhos e a pessoa chegou do nada, depois de um tempo, e disse, “ah, eu não tenho nada para dar para a entidade, mas eu tenho uma casa, não sei o quê”. E foi o primeiro choque que eu tive na minha vida. Aí quando… Aí eu falei ainda assim: “a entidade não assina o documento, quem assina sou eu, né?”. Porque a gente não sabe o ser humano como é. Aí fui, peguei os documentos, assinei tudo. Era uma casa pequena e atrás tinha um terreno. Eu disse, “pelo menos tem um espaço para construir o templo”. Aí, como é que vai construir? Com que dinheiro? Não é tão simples levantar uma casa. Aí, aconteceu, na época, que foi outra coisa que marcou muito, isso, acredito que em janeiro de 2006, foi parar um carro lá na porta, uma pessoa “Eu vim aqui, que eu fui na casa não sei de quem”, não lembro a pessoa que falou, e a pessoa não podia atender esse homem. E precisava de uma consulta. A gente fica atendendo o homem dentro de casa, naquele dois cômodos que tinha ali. Aí, nisso que eu fui dar consulta para esse homem, aí esse homem fez um trabalho, uma coisa ali na época, e nessa época o homem deixou 800 reais, em 2003. E eu disse, “olha que legal, já dá pra comprar, dar entrada nos tijolos, alguma coisa” Aí eu chamei um rapaz pra fazer um orçamento pra mim. O que é que eu precisaria pra fazer, pra levantar. Aí ele passou, o pedreiro na época. Aí eu fui fazendo orçamento nos lugares. Aí quando eu cheguei no terceiro, foi quarto lugar que eu fui fazer orçamento. Aí a dona desse depósito lá falou assim pra mim “você vai fazer uma casa?” Eu disse “não, eu já tenho uma casa, mas é assim, assim, assim”. Aí ela passou o valor na época lá, que eu acho que dava quase cinco mil na época, material. Aí ela falou “você tem quanto?” Aí eu disse “oitocentos reais”. Ela disse “então você me dê os oitocentos, você leva todo o material, manda pra mim entregar tudo lá e você vai me pagando”. Eu não acreditei naquilo. Foi uma coisa muito muito espiritual mesmo. Aí, “tá bom”. Levou. Eu acredito que em dois meses eu já tinha terminado de pagar todo o material que foi. E o material deu certo. O rapaz fez a obra com outro, construiu. E foi uma coisa tão rápida que quando a inauguração foi dia 11 de março de 2006. Isso era em janeiro. Então, em dois meses, levantaram aquilo ali. Fez acontecer.
P - E como foi a inauguração?
R - Foi muita gente, para a minha surpresa, e o povo não entendia daquilo ali, mas foi. Eu batia palma, cantava, repetia. Os rapazes que já eram ogans de Candomblé tocavam. No Atabaque era o instrumento de Candomblé, porque na Jurema a gente tem um instrumento diferente, que é o ilu. Não tinha ilu em São Paulo ainda. Até exportar um ilu, importar dele lá de Recife para cá, era… exportar ele para cá era… Um absurdo. E foi indo, foi acontecer. Aí as pessoas que tinham curiosidade, já escutavam a festa, alguma coisa já começava a ir. Até pessoas da própria rua mesmo, e assim foi indo. Foi passando um para o outro, um para o outro. Um consulente foi passando para outro. Eu tenho consulente que são consulente meu desde que eu cheguei em São Paulo. Nós somos filhos de santo, consulente mesmo. E que levou a família, a mãe, o irmão, o tio, o papagaio, o periquito, e assim foi indo.
P - E você pode explicar como é que funciona a consulta?
R - A consulta no Jurema geralmente é feita de forma com entidade. Alguns juremeiros utilizam a clarividência no copo de água, alguns tem algum tipo de oráculo, porque a Jurema em si não tem oráculo, mas existem oráculos e outros cultos que podem auxiliar naquilo ali da Jurema. Mas, geralmente, a consulta é nessas duas vias, ou com a entidade, com a incorporação, ou no copo.
P - E a sua parte candomblecista, nesse momento, ela ficou junto com a Jurema ou você vai em outros lugares?
R - Não, ficou junto. São dois cultos diferentes, mas que a gente consegue agregar. A Jurema tem um quarto específico e o Candomblé tem outro. Então, assim, é separado essa parte por ser cultos totalmente diferentes, porque no Candomblé não entra bebida alcoólica, nada disso, já no Jurema sim, mas consegue alinhar. Eu tenho filhos que só são filhos de Candomblé. E eu tenho afilhados de Jurema que são filhos de Candomblé de outra casa. Então é uma coisa muito engraçada que acontece. Mas aí eu consigo fazer os dois cultos.
P - Você pode me contar um pouco quais são os elementos importantes para a Jurema?
R - Os elementos importantes da Jurema sempre são o copo com água, o cachimbo, a maraca indígena, que são as partes relacionadas à invocação. Mas ali também vem tronco, vem certas favas, ervas, a bebida litúrgica em si, que é preparada com vários tipos de ervas. Então, são os elementos principais. A flecha, que é chamada de preaca de caboclo. Mas eu acredito que o elemento mais forte mesmo na Jurema seja o cachimba, maraca e o copo com água.
P - Todos eles são elementos de invocação?
R - Sim. A maraca no sentido mais indígena, porque tinha um tal de balançar a maraca, assim o índio. E nisso ele falava, “pai, filho do Espírito Santo”, na forma deles, na linguagem deles. Então isso foi agregado também à Jurema. Não como só uma, não para invocação, mas como um instrumento, na verdade, litúrgico ali, de defesa, de limpeza, na verdade. Porque o índio, ele usa muito a maraca para limpar, tirar a energia ruim da pessoa. Então são os elementos fundamentais, geralmente é isso. E defumações, ervas, unguentos mesmo, rezas.
P - E você contou um pouco já sobre isso, mas a Jurema tem uma relação com outras religiões ou ela é uma comunidade?
R - Não, ela tem sim. A Jurema tem influência forte na Pajelança, já começa por aí. E sofreu algumas influências ciganas, europeias. Ela sofreu essas modificações também, porque, na época, no Nordeste, existia o porto. Acredito que no Nordeste existia o tal do ouro branco, que era a cana-de-açúcar, na época que era um bom como em São Paulo teve a política Minas Gerais-São Paulo-café e Minas-leite, e no Nordeste teve a cana-de-açúcar. Então vinha gente de vários lugares. E ali aquelas pessoas que chegaram ao Nordeste de Portugal, de outros países, de povo cigano, tudo, foi se misturando, foi conhecendo o culto, e ali ele teve uma variação, sofreu algumas variações culturais ali dentro. Ela não ficou, vamos dizer, totalmente pura. A Jurema saiu agregando. Ela se tornou o quê? Cidades espirituais, com coisas diferentes, porque no culto à Jurema, a Jurema prega que tem cidades espirituais, no qual existe povo cigano numa cidade, benzedor em outra, médicos em outras, astrólogos em outras. Então, ela tem toda uma influência. Ela não foi totalmente pura, não. Ela tem alterações no decorrer do culto.
P - Qual é essa ligação com a ancestralidade? Não só sua, dessa sua história pessoal de ancestralidade com a Jurema, mas essa ancestralidade um pouco espiritual também. Como é que funciona?
R - A ancestralidade, a gente vai entendendo, como no meu caso, da minha família, eu entendi que aquilo é uma coisa que vem sempre dos nossos antepassados, que vem passando de geração em geração e alguém vai cumprindo uma missão espiritual de alguma forma. E isso não só especificamente para mim dentro do Candomblé ou da Jurema, mas acredito que qualquer vertente religiosa. Nós temos que nos comunicar com os nossos ancestrais. Por isso que a igreja católica usa muito o dinamismo de missa aos mortos. Tem alguma passagem bíblica que eu não lembro qual no momento, mas que eu já estudei e já vi, que fala sobre a referência aos mortos, que a igreja não é o protestantismo, cristianismo, que é bater na tecla que aquilo não existe, mas tem texto bíblico que fala que sim. Então, tem passagem que fala dessa parte ancestral. Então, eu acredito muito em ancestralidade em todos os sentidos religiosos na vida. Porque vem a descendência de Jacob, de Abraão, de Isaac. Daí já começa tudo que é ancestralidade. Então nós vivemos numa vida, numa cultura ancestral. Infelizmente ou felizmente, nós somos reflexos de tudo aquilo que foi o nosso passado.
P - E assim, em relação ao culto, eu não sei se eu posso falar a palavra ancestrais nesse sentido, mas o culto dos caboclos, de oferecimento, de oferendas, enfim, como é que funciona isso dentro da Jurema?
R - Como funciona?
P - A Jurema é um culto às entidades?
R - Ancestral. Isso.
P - E daí eu queria saber mais como funciona essa parte que você estava contando um pouco sobre a parte do tombo, como é que, não sei se eu tô conseguindo explicar direito, mas como é que funciona essa parte de, por exemplo, você saber quais são os seus ancestrais dentro da Jurema?
R - Geralmente as pessoas sabem por alguma entidade, por intermédio de alguma entidade que fala, não fala todos, fala um, fala outro, que tem no decorrer da sua vida, ou como eu falei, na clarividência, mas geralmente são entidades que falam. A ligação que você tem, qual é o seu caboclo, qual é a sua cabocla. Aí você vai entender que cada caboclo, cada caboclo vem de uma aldeia. Aldeia Tapuia, Aldeia Canindé, Morubixabas e assim se vai. Então, você tem uma linhagem ancestral com aquilo ali. Porque como teve muita mistura de raça no nosso país, então essa busca da Jurema pelo seu caboclo ou que seja, ela vem relacionado a isso também. Alguma aldeia, em alguma parte da sua ancestralidade, veio descendo para você. Como tem pessoas descendentes de escravos, tem pessoas descendentes de índios e assim vai indo.
P - E você estava falando um pouco de como a igreja enxerga a morte. Eu fiquei curiosa para saber como é que a Jurema enxerga a morte?
R - Nós enxergamos a morte no sentido de que a gente não vai para canto nenhum, a gente não vai para o inferno ou vai para um céu, para um umbral, para essas coisas. Dentro do culto de Jurema, nós acreditamos que aquele que é juremeiro é vivo, ele se torna mestre vivo em um certo tempo e depois ele vai para o mundo espiritual, que seria a cidade da Jurema, em alguma parte da cidade. Tem a cidade toda, mas existem vários estados dentro dessa cidade. E cada pessoa, devido à sua função aqui terrena, vai para esse espaço, que é terreno também. Porque na Jurema nós acreditamos no espaço sagrado, material, como a gente acredita em cidades vivas, como Tambaba, Pedra Preta, no Rio Grande do Norte. Nós acreditamos que eles são portais espirituais presentes e tem partes espirituais que não é visível aos nossos olhos. Então, nós acreditamos que o juremeiro tem essa passagem para essa cidade. Mas tem uma diferença. Quando, no meu culto, eu sou de Candomblé também. Então, no Candomblé já tem uma visão diferente, que você é não vai para uma cidade, você vai para outro lar, para o céu, para algum lugar nesse sentido, e você pode ser chamado a voltar, como no culto a Egungun, que eles falam dentro do Candomblé, você voltar ali, debaixo de um pano. Isso aí é cultuado. Porque a gente só acredita no desencarne material, tanto no Candomblé quanto na Jurema. E se o juremeiro tem o desencarne, um dia ele volta com a missão para ele cumprir alguma coisa na terra e continuar. A gente não acredita que Deus faz espírito todo dia.
P - E como é que vocês enxergam a fé?
R - A fé, eu escutei uma palavra na minha vida, não lembro quem falou, mas é uma coisa interessante que 99% é dúvida e 1% só é fé. Então não lembro quem falou isso, mas não sei se foi Mahatma Gandhi, não lembro. A fé realmente é a certeza das coisas que não se vê. Não é palpável. Você sente, você acredita, você aceita aquilo ali. Você tem um momento na sua vida que você acredita ou não acredita em nada. Então, acredito que a fé é a manifestação do que você acredita, do que você crê. Se eu creio, aquilo vai se materializar, aquilo vai acontecer. Então, a gente no culto, a gente acredita nisso. E a gente utiliza elementos para que naquele tipo de trabalho ou coisa seja ativado mais uma ponte para a nossa fé, materializar. Às vezes o ser humano, principalmente na nossa cultura brasileira, a gente parece que nós precisamos de alguma coisa para materializar a fé. Isso em vários cultos. Você vai numa igreja evangélica, eles têm um pano sagrado ungido, não sei o quê. Tem um altar da nossa senhora de tal. Então, eu acredito que a fé também tem muita ligação com a cultura da população. Então, você pega um país como a Suécia, que é 90% ateu e é um país super desenvolvido. Eu acredito que a fé vai de cada lugar para cada lugar, que não tem nada a ver uma coisa com a outra. Eu acho que a fé está muito intrínseca dentro da gente mesmo, da gente acreditar, da gente aceitar alguma coisa. Eu acredito que a fé funciona em todas as religiões. Todas. Isso vai porque ela está dentro da gente, não é uma coisa externa. Eu acredito que a fé nasce em momentos muito duvidosos, difíceis na vida da gente, para a gente ter essa manifestação. Eu acho muito bonita a teoria, “eu tenho fé, eu tenho fé”. Não é ter fé. Fé é você ter certeza das coisas que não se vê. Acredito que seja por aí.
P - Uma dúvida que eu fiquei é que você estava contando que tem uma ancestralidade indígena na Jurema. Por esse motivo, eu queria saber se tem alguma relação com o meio ambiente, com a natureza, ou se isso foi se construindo depois, como você falou?
R - Sempre teve. A Jurema é um culto relacionado muito a essa parte da natureza pelo próprio indígena, de acreditar que não deve desmatar, de acreditar que a gente precisa daqueles elementos de sobrevivência, da água, por isso que é utilizado água dentro do culto, muita água, muitas ervas, muita coisa. A gente acredita muito naquela cura, naquela sociedade não destrutiva. A gente acredita muito nisso, na força da fumaça do cachimbo como cura, como meio de invocação aos espíritos da mata, ao sentido da proteção ambiental. O culto juremeiro é muito ligado a isso. Eu, como juremeiro, evito muito essa coisa do despacho de alguidar, essas coisas que agridam a natureza. A gente utiliza muito, geralmente, elementos que não tenham esse tipo de agressão. A natureza, até as oferendas, elas são entregues em folhas, geralmente, em folhas de mamona, de banana, de alguma coisa já pra evitar o desgaste mesmo no meio ambiente. E isso sempre foi uma consciência dentro do culto de Jurema devido ao indígena. Porque a cultura indígena, eles sempre foram muito relacionados a isso, a cuidado da mata, a cuidado do espaço. Então acredito que a Jurema tem muito a ver nesse sentido.
P - E onde que é a sua casa?
R - A minha casa fica lá na Cidade de Tiradentes, no bairro de Vila Iolanda II.
P - E como é que a sua casa se relaciona com o entorno?
R - Tranquilo. Eu sempre fui uma pessoa de fazer cultos em horários que não incomodam os vizinhos. Geralmente, fazer domingo à tarde, oito horas acabar. Então, nunca tive esses… No começo, algumas pessoas achavam meio… Mas foi tranquilo, graças a Deus. Tem pessoas que têm muito problema de intolerância religiosa, mas eu acredito também que existe muito isso, às vezes, vai muito também do dirigente espiritual, porque o que eu não quero para mim, eu não dou para os outros. A pessoa quer tocar em uma área urbana, 50 casas ao redor, fazer barulho a noite toda que Deus manda, de sexta-feira, de sábado, não tem hora, não tem… Não tem limite às leis, a essas coisas. E a gente tem que… A gente preza muito isso. Principalmente no Candomblé. Xangô é justiça. Então, para você ser relacionado ao Orixá da justiça, você tem que aceitar a justiça no seu estado, no seu país. As normas que são… Senão, sem lei não existe nada. Então assim, pra mim sempre foi tranquilo nesse sentido, porque eu sempre tentei respeitar isso, horário, pra que não tivesse problema nenhum com vizinhança. Então eu não tive, graças a Deus.
P - E de 2006 até hoje, quais os maiores aprendizados que você traz da Jurema e também da sua casa?
R - Ah, o maior aprendizado que eu tive, eu acho que até hoje, é que você tem que ser um sacerdote religioso e ligar mais para o espiritual, não para o ser humano. As pessoas são muito ingratas. Eu acredito que seja em todos os cultos no país. Então a maior lição para mim é focar no espiritual, na ancestralidade da pessoa e esquecer as pessoas como ser humano, ligar no espiritual dela, entender que a minha função ali é auxiliar o espiritual. Eu acredito muito naquela parte que Deus fala que liga no céu e eu te ligo na terra. Então minha função seria espiritualmente. Antigamente, não. Antigamente eu me envolvia demais com a vida da pessoa, com a história da pessoa. Eu já não dormia. Eu já tinha meus problemas, juntava com os problemas das pessoas. Eu não conseguia separar. E isso foi muito prejudicial para mim como pessoa. Depois que eu aprendi a lidar, separar as coisas, aí eu consegui viver mais tranquilamente nesse sentido. Acho que foi a maior experiência que eu tenho como sacerdote do tempo, dentro da Jurema, quanto nunca no Candomblé.
P - E esse momento de aceitação que você passou desde que você começou, até você fundar a casa, como é que você se sente hoje em relação a isso?
R - Eu me sinto a mesma pessoa. Eu não sinto realização, não sinto nada disso, como eu vejo as pessoas pregarem por aí. Eu vejo que é uma missão e que eu tenho que cumpri-la. E eu fui, vamos dizer assim, obrigado a aceitar. Eu aceitei e tento fazer de forma melhor possível aquilo que eu aprendi nessa caminhada da minha vida dentro do culto de Jurema e dentro do Candomblé. O melhor que eu pude aprender e passar para os meus, para a geração futura, é aquele aprendizado de não deixar morrer a parte ancestral que existe, das rezas, de coisas que são, vamos dizer, segredos e liturgias que existem dentro do culto. Porque se eu não passar, isso vai morrer, como eu e outros não passar. Então acredito que tem que ter esse passado de geração para a continuidade do culto.
P - Eduardo, tem alguma coisa que eu não perguntei sobre a Jurema que você queria contar?
R- Não, acredito que não. Agora, às vezes, para as pessoas que não entendem muito do culto de Jurema, o que eu sempre gosto de colocar é que a Jurema é uma religião, tem pessoas que acham que não, ela é uma religião, ela tem dogmas, ela tem doutrina. Hoje já tem estados que têm o Dia do Juremeiro, o primeiro estado a fazer isso foi o Rio Grande do Norte. Agora Pernambuco também, que foi esse ano. Então, é uma religião de culto ancestral brasileiro, mais antiga que a Umbanda, porque já vem da Pajelança bem antes da Umbanda, que é um culto que agrega várias situações espirituais, várias linhas espirituais, no caso que vem do caboclo, vem dos encantados, tem os mestres, as mestras. E algumas casas cultuam também as chuvas e pombas giras, que não são do culto de Jurema, mas fazem parte da cultura nacional, da Umbanda e da Quimbanda, que também agregam, vamos dizer, numa casa de Jurema. Também não faz parte do culto, mas como a Jurema em si agrega todo o clã espiritual, vamos dizer assim, também faz parte. E as pessoas tiraram um pouco da visão distorcida que tem no culto Catimbó Jurema. Como eu falei, o Catimbó, a palavra Catimbó era muito usada, mas num termo pejorativo antigamente. Hoje em dia não, o povo lá fala normal. Mas eu lembro como uma criança no Nordeste, o povo falava assim, “é Catimbó, é catimbozeiro, não sei o quê”. Fazia uma ligação muito ao mal também. E não era verdade, porque era muita benzedeira. O povo, para não ir com medo, alguma coisa, ah, vou no benzedor, vou no benzedor. Eram umas coisas meio escondidas. Porque tinha esse estigma do mal também. Então, quando veio formar o culto Jurema Sagrada, foi mais, eu acredito, para quebrar esse preconceito dessa palavra Catimbó, que era muito utilizada. Mas é Catimbó, Jurema, Jurema Sagrada, e o culto é isso aí.
P - Quando você era pequeno, antes de você entrar na Jurema de fato, você já tinha visto, tinha tido contato com alguma benzedeira?
R - Que eu lembre, não. Eu fui criado muito dentro daquele catolicismo. Eu ouvia falar alguma coisa, mas não sabia o que era não.
P - E nem era levado também?
R - Não, não. Meus pais nunca me levaram pra dizer, “ah, levou numa benzedeira”, não. Eu escutei uma vez que tinha uma mulher que era bebedeira, que rezava alguma coisa, mas também não sabia nem o que era.
P - E eu queria saber se você quer contar sobre a sua indumentária, sobre a sua guia...
R - É, aqui é um fio de… Que a gente… Que o juremeiro utiliza, né? Que é feito com Lágrimas Nossa Senhora, hoje usa também com açaí. Esse fio do juremeiro, com sete… Ele tem sete fios, porque ele representa as sete cidades da Jurema. Aí ela tem alguns apetrechos, como uma cruz, que significa no catolicismo. Ela pode vir um cachimbo, uma chave, que representa a abertura do mundo espiritual na Jurema. A cabaça, porque significa existência. O fio de Jurema, o que chamam de conta de Jurema, fio de Jurema, brajada de Jurema, inúmeros nomes. E todo aquele que é juremeiro tem o direito de usar que tem sete fios para representar as sete cidades. O que é iniciante ainda não, ele só usa com um fiozinho só para representar aquilo. Hoje utiliza a dinâmica daquele que é consagrado de usar três fios para significar que ele está no caminho andando. E a indumentária é mais isso mesmo. A gente não usa muito aqui na Jurema, a gente usa mais chapéu de palha, ou panamá, ou coisa nesse sentido. Eu uso kipá porque eu gosto, por causa do Candomblé, mas dentro do culto a gente utiliza mais chapéu mesmo.
P - E quais são as coisas mais importantes na sua vida hoje?
R - Ah, as coisas mais importantes na minha vida hoje? Eu acho que a minha casa, meus afilhados, meus filhos, a minha família mesmo estando longe, mas me deu um embasamento de caráter na minha vida que me marcou muito. Então o que eu acho que é mais importante na minha vida são isso: as pessoas que me cercam, os amigos que eu construí na minha vida. A minha família espiritual me trouxe muitas coisas boas nesse sentido. Eu conheci muitas pessoas ruins na vida, mas eu conheci pessoas maravilhosas que estão comigo até hoje e que são muito importantes para mim.
P - E você contou que esse ano foi um ano muito demandado espiritualmente na sua vida. Queria saber por que você fez essas viagens, se você quiser contar, o que elas significam para você?
R - O que aconteceu em 2024 foi assim, eu trabalhava ainda num lugar, aí quando foi em janeiro, meu filho de Candomblé, que mora na Espanha, veio fazer obrigação aos sete anos dele. E recolheu também uma pessoa que eu tinha um relacionamento na época, lá em casa, junto com o pai de santo dele, para fazer as obrigações. E eu trabalhando, e a obrigação para fazer aquela foi muita correria, aí eu pedi para que a empresa me mandasse embora que eu tinha muitas coisas para fazer e eu não podia ficar. Aí fui, fiz as obrigações do meu filho, pronto, aí fiquei ali. Aí foi aparecendo obrigações para fazer. Aí tinha que viajar para fazer a obrigação do Jurema em algum lugar. Aí fui, aí eu viajei. Fui para Piracicaba, Araras, Araçatuba, Rio de Janeiro, tive que ir duas vezes para o Rio. E teve um tempo assim que eu não parava em casa, porque eu estava viajando. Aí vim fazer a obrigação zona norte de São Paulo, zona sul, e assim vai indo. É uma coisa que a pessoa tem terreiro, ela precisa do juremeiro, ela precisa fazer as obrigações dela, ela já tem casa, tem que ir lá para casa dela. Aí eu pego três dias, uma semana ali naqueles rituais, para poder depois voltar para casa.
P - E é uma característica da Jurema fazer essas… Ir migrando para fazer essas obrigações?
R - Eu acredito que sim, como Candomblé. Como culto de Jurema, existem pessoas em estados que ainda tem a Jurema, já é batizado por alguma coisa que aconteceu na sua vida. Tinha a Jurema, mas a pessoa que estava já não vive mais, não deu continuidade, precisa da continuidade. Aí procura geralmente os juremeiros antigos para fazer essas obrigações que eles precisam. Aí acontece muito isso, de viagens, essas coisas.
P - E quais são os seus maiores sonhos hoje?
R - Ai, meu sonho, deixa eu ver, o que eu teria de sonho na minha vida? Ah, eu acho que sonho material mesmo, uma casa na praia pra descansar. Eu acho que é isso.
P - E fazer a Faculdade de História?
R - História. Eu penso em fazer. Não fiz porque eu tenho medo de parar. Eu quero fazer e não parar. Porque eu tenho esse problema comigo, eu sou muito determinado. Então, se eu começar, eu não posso parar. Então, assim… Como esse ano foi um ano muito corrido pra mim, eu não comecei porque eu sei que eu não ia dar conta. Não ia conseguir. Mas a gente fica sempre com o projeto do ano que vem, do outro, e assim vai.
P - Eduardo, o que a Jurema significa na sua vida?
R - Eu acho que a Jurema significa o meu caminhar, minha vida, minha fé. A Jurema me deu muita coisa boa: experiência, vivência, amigos bons. A Jurema, vamos dizer que ela é tudo, ela seria tudo hoje na minha vida.
P - E tem alguma coisa que eu deixei de perguntar que você queria contar ou deixar uma mensagem também?
R - Não, de pergunta não, acredito que seja isso mesmo. A mensagem que eu digo para as pessoas é as pessoas procurarem entender mais, conhecer o culto para que ele não tenha a discriminação, como existe em todo tipo de cultura que seja ligada à indígena ou à negra no Brasil, que as pessoas conheçam antes de ter o preconceito e entendam que aquilo é um culto ancestral no qual é louvado muito a Deus e não tem nada de coisa negativa dentro do culto. Negativo existe nas pessoas, no culto, não.
P - Como é que foi pra você hoje contar um pouco da sua história, da sua trajetória na Jurema Sagrada?
R - Eu acho que isso já era previsto na vida, eu acredito. Porque eu sempre tive a noção que alguém ia me chamar um dia pra alguma coisa relacionada a isso. Eu acredito que eu já era preparado, não sei como. Mas eu acredito que eu pensava em entrevista, um livro, alguma coisa nesse sentido. Eu já pensei na minha vida.
P - Eduardo, eu agradeço muito. Eu também acredito que esses encontros são programados na vida. Eu agradeço muito, em nome do Museu da Pessoa, em meu nome, em nome do Saulo e da Jéssica. Muito obrigada.
R - Eu agradeço também. E boa sorte. Vamos na fé.
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