Projeto Memória Oral Museu da Pessoa
Entrevista de Marc-André Delorme
Entrevistado por: Renata Pante (P/1) e Sofia Tapajós (P/2)
São Paulo, 27 de julho de 2023
Código da entrevista: MUPE_HV003
Revisado por: Nataniel Torres
P/1 - Muito obrigada por estar aqui. Eu queria que você começasse falando seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Meu nome é Marc-André Delorme. Nasci em Saint-Hyacinthe, província de Quebec no Canadá.
P/1 - Você lembra de te contarem como é que foi o de seu nascimento? O que aconteceu?
R - Ah, lembro a minha mãe falando assim que foi um trabalho demorado, demorou bastante, várias horas, mas fora isso, não sei se o meu pai assistiu, não lembro. A lembrança é que foi trabalhoso.
P/1 - E foi num hospital?
R - Foi no hospital, foi um hospital de uma cidade média, que chama Saint-Hyacinthe, a gente morava no interior, mais subúrbio da prefeitura de Montreal. E é um hospital bastante grande.
P/1 - E você sabe como eles escolheram o seu nome?
R - Eu tinha um primo que chamava Marc, e eles escolheram dar o nome do meu pai que é André também. Acho que era um nome relativamente na moda na época. É uma lembrança do meu primo e do meu pai.
P/1 - Esse primo era de parte de pai ou de parte de mãe?
R - Era o filho do irmão do meu pai, meu pai tem uma família grande.
P/1 - E você tinha bastante contato com essa família paterna?
R - Tinha, bastante, muito contato, jovem assim. Meu pai tem 11 irmãos e irmãs, e sempre tinha festa anual da família inteira em volta do meu avô e a minha avó tinha falecido nos anos 70, e era assim, 70, 80 pessoas porque os meus tios, tias tinham vários filhos, então grande família, enorme.
P/1 - E vocês se reuniam numa casa?
R - Não, era num salão de festa anualmente, depois era separado assim, visitando as famílias, mas esse encontro anual era em volta do aniversário do meu avô paterno e aí era festa pra ele, mais pra reunir toda a família.
P/1 - E como é que era essa festa? O que acontecia?
R - Lembrança minha era muita excitação de encontrar os meus primos, principalmente um primo que era o Bernard Júnior, o meu primo favorito, maior que eu, e a gente brincava bastante. Então era lembrança assim “ah, vou brincar o dia inteiro, a noite inteira”. E era isso, lembrança de excitação de um pequeno moleque de primeiras lembranças uns 4, 5 anos.
P/1 - E do que você brincava com o seu primo?
R - Ah, cowboy e índios. É um clássico policial, fuga, briga. Não tinha telefone celular, não tinha nada, então era maravilhoso porque era a imaginação o tempo inteiro e inventar jogos.
P/1 - E da parte da sua mãe você tinha contato com a família?
R - Tinha bastante contato também, menos primos, a minha mãe tem um irmão mais jovem que ela, que tinha duas filhas, eram as minhas primas… a gente tinha mais contato emocional, era mais um carinho de família da mãe e tal, ou era brincar com a minha prima, viver natal juntos, e a gente se reunia todo domingo. Eu ia visitar os meus avós na casa da minha vó, mais no hospital, meu avô sofreu um acidente de carro e durante 8 anos ficou hospitalizado antes de falecer. Então, domingo era isso. Não era comum pra uma criança ir visitar o avô no hospital e, na verdade, foi uma coisa importante na minha vida. De ver outras pessoas doentes, incapacitadas, jovens e velhos, porque não era só casa de velhos. Isso aí foi um evento importante.
P/1 - E a sua família está no Canadá há muitos anos, teve algum processo de migração que você sabe?
R - Misturada, na verdade. Principalmente da origem da França, da época da França, mas também teve migração e volta, né? Então houve, no final do século 19, grande imigração dos canadenses pros Estados Unidos, tinham problemas econômicos e tal, então metade da população foi pros Estados Unidos, do Quebec, da minha província. Um milhão de dois milhões na época. E a família do meu bisavô foi pra morar nos Estados Unidos, e ele nasceu nos Estados Unidos e depois decidiu voltar pro Canadá, conheceu a minha bisavó, que era metade canadense, metade irlandesa, tinha bastante irlandesa também, então essa família é mais anglófona, né? Então fala inglês, do lado da minha mãe, mas do lado do meu pai não teve mistura, é francês mesmo.
P/1 - E o que seus pais faziam, eles trabalhavam?
R - Trabalhavam, com certeza. A profissão do meu pai, ele era caminhoneiro. Ele é aposentado hoje em dia. E a minha mãe era professor de arte, então uma boa combinação aí, bem diferente. Duas pessoas bem diferentes, mas que eram uma família legal. Então minha mãe teve a escola de arte dela, ensinava a pintar. Ela tinha serviço durante vinte e cinco anos. Meu pai trabalhou como funcionário numa… em duas, três empresas de transporte.
P/1 - Mas eram aquelas viagens de caminhão longas ou eram mais curtas?
R - Não, era mais curta, porque ele tinha a família, então era mais interurbano, não era tipo “vai pros Estados Unidos, fica lá uma semana”. Então ele era relativamente presente, apesar de ter que viajar bastante.
P/1 - E você é filho único ou tem os teus irmãos?
R- Tenho uma irmã, mais velha de três anos. Dominique.
P/1 - E o que você lembra assim? Os seus pais são vivos?
R - Os dois são vivos, sim.
P/1 - Dessa fase mais da infância, você lembra como deles? Tem alguma história que você lembre que é bem característica deles?
R - Ah, de modo geral, eu tive uma infância maravilhosa cheio de amor, carinho, eu não falei de nada, a gente morava numa casa, eu nunca vi os meus pais brigarem, era um ambiente muito confortável e bem seguro pra uma criança, pra se desenvolver perfeito. Característico deles é pelos estudos e a profissão deles, o que que eles conseguiram fazer, comprar casa, comprar chácara, mandar a gente pra faculdade, viajar, eles se dedicaram bastante. Então muita generosidade também.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - São amigos que apresentaram um pro outro, eles esquiavam bastante na época. Então, eu acho que foi um intermediário por amigos e é isso. Na época eles eram bastante “festejeiros”. Era época boa. Eles se casaram nos anos… em 1970, 19 de setembro, e nossa, eles esquiavam bastante…chamava patrulhador, né? Que é a pessoa que vigia as pistas se acontecer acidente, vai lá, presta assistência pras pessoas assim, então é um tipo de uma ambulância nas pistas, “ambulante”. Então, eles faziam bastante festa. Nas lembranças, de memórias, de finais de semanas fazendo isso durante o dia, festejando à noite, gostavam bastante de aproveitar a vida, eu acho.
P/1 - E seus pais contavam histórias pra você, da sua família?
R - Contavam, claro que eles contavam, mais o meu pai, meu pai era mais “quietão”, ele é ainda mas melhorou bastante, mas toda noite eu ia dormir lá, começar a dormir com ele, eu pedia uma história do interior, porque ele morava no interior - depois eu posso contar também esse trechinho da vida dele - então ele contava de quando era pequeno na fazenda. Na verdade, os meus dois pais são de Montreal, nasceram os dois em bairros operários de Montreal, centrais, mas meu avô em 38, 39, quando começou a Segunda Guerra Mundial, ele comprou uma fazenda pra… quando você tinha uma fazenda e tinha filhos maiores, eles não precisavam ir pra guerra. Então era uma maneira de proteger os meus tios pra não ter que ir pra Europa pra guerra. Então ele compra essa fazenda e eles passaram lá uns 6, 7 anos até o final da guerra e depois voltaram pra cidade. Então essas histórias aí da época que ele morava na fazenda, pra mim era “uau”. Eu gostava todo dia. “Pai, conta uma história da campanha”, que é a história de quando ele era pequeno, os cachorros, os animais, os irmãos dele, porque uma família enorme, doze crianças. Então isso aí são momentos bons também de reconforto parental, de pai, que dá tempo pro filho. Isso é fantástico.
P/2 - E você lembra de alguma dessa história?
R - Eu lembro de uma história até hoje, que era a história do cachorro dele. Era uma cachorra, na verdade, que chamava Preta e ela tinha sido atropelada pela máquina que recolhe o trigo e cortou uma pata. Ela sumiu depois do acidente e eles acharam ela debaixo de uma ponte limpando a fratura, a pata que tinha sido cortada. Ficava assim depois “conta de novo, pai. Conta de novo”. Então era uma história interessante. E também as brincadeiras entre irmãos, né? Eu não tinha irmão, então pra mim era “oh, você tem irmão!”. Não um, não dois, ele teve três irmãs, uma faleceu jovem e as duas sobreviveram, e teve 8 irmãos. E tem uma grande diferença também de idade. Essas histórias eram pra mim, primeiro é um outro mundo, eu morava na cidade, um jovem com toda a tecnologia, televisão, tecnologia não tanto, mas televisão, videogames, essas coisas, e não acreditava que ele no começo não tinha energia, não tinha eletricidade, tomava banho em um tanque de água uma vez por semana. Era uma coisa de “pra mim é camping isso, não é vida cotidiana”. Então era fantástico.
P/1 - E a sua mãe não contava muitas histórias?
R - Contava um pouquinho das reuniões que eles tinham na família, mas pouco. Ela não tinha essa, não sei, eu acho que uma situação não resolvida com a família dela de repente. A relação era mais complicada, na minha opinião.
P/1 - Na sua infância você falou que seus pais compraram uma casa, como era essa casa?
R - Esse tipo de casa não existe muito aqui no Brasil, é chamado duplex, na verdade. O proprietário mora embaixo e você tem o inquilino em cima, mas aí é um bloco de dois apartamentos. Essa casa tem um subsolo que era o meu lugar de brincar no inverno, ao rés do chão é sub elevado um pouquinho, você tem um lugar pra sala, sala de jantar, cozinha, os quartos, e você tem um inquilino que mora em cima, e um quintal grande, uma rua tranquila, cheio de amigos. Então eu vivi lá dos 3 anos até eu sair de casa, uns 18 anos.
P/2 - Esses amigos que você falou, quem eram?
R - Nossa. Bom, primeiro amigo meu que eu lembro de ter feito, fora os meus primos que eram os meus amigos também, mas o Guillaume, que é meu amigo até hoje, irmão assim na verdade, o irmão que nunca tive. Eu lembro dele passar na minha rua, tinha 3, 4 anos, aí simplesmente pergunto pra ele “você quer vir brincar comigo lá atrás no quintal?”, a gente está falando de 1980, então faz 45 anos. 44 anos que a gente está 23, né? O Matemático está aqui… Esse é o primeiro amigo. Tinha também uma menina que chamava Julie, que morava em cima, era filha do inquilino em cima. Ela ficou a minha primeira menina que gostei. Era amiga, mas poderia ter sido mais se a gente estivesse mais velho. Gostava bastante dela, mas era mais a minha irmãzinha e ela ficava bastante com a gente porque os pais dela trabalhavam bastante. Então, ficava na casa da minha mãe, dos meus pais. Tinha a família de um amigo que chama Assad, de origem síria, ele tinha montes de primos e irmãos, eles eram 3 meninos, então brincava bastante com eles. Lembrança que a mãe dele fazia comida árabe e levava pra rua, a gente comia esses sanduichinhos meio diferentes, com gosto diferente, e começou a me abrir pra outros países, outros gostos, abrir a cabeça. E eu lembro que ele não falava francês. A gente falava com gestos, fazendo barulho, começou assim, a amizade com ele. E foi amigo também até hoje. Então, esses amigos da_____, é esse aí. Depois foi mudando com os anos e tinha camadas de amigos, porque um saía, chegava outro. Aí, primeira namoradinha… E sempre tinha criança até digamos, a gente brincou na rua até uns 12, 13 anos, fácil. Depois vai pra pro High School. Aí muda de ritmo, de pouquinho em pouquinho, mudam as amizades também. Mas foi assim de bicicleta, a rua era nossa, que nem aqui no Brasil esses anos, né? Hoje em dia é mais complicado, até no Canadá mesmo criança não brinca muito mais na rua, mas era assim. Nossa, o verão inteiro brincando na rua, até a gente comprar chácara e depois mudou. Meus pais não cuidavam, não que não cuidavam da gente, mas não tinha essa preocupação que a gente tem hoje. Eu chamo de neurose, porque na época o nosso quintal devia ter uns 3 quilômetros, área de jogo era bom, “não vai atravessar aquela rua ali”, que era avenida grande, “essa aí também não”. Hoje a gente tem uns 3x3. Nisso aí, os meus pais “bom, volta meio dia pra almoçar, dar notícia, volta a brincar”, mas o jogo preferido era o hockey. O hockey é o jogo nacional lá no Canadá, é dia e noite. Então tinha hockey, na verdade a gente jogava dentro de casa com hockeyzinho aí no chão, jogava fora, jogava na pista de gelo, tinha uma mesinha de hockey que a gente brincava, tinha videogame de hockey, era hockey o tempo inteiro, que nem futebol aqui, mas era assim, todas as formas. Chovendo fora, joga dentro, na garagem. A gente chama garagem enorme, três vezes esse tamanho aqui, interna, então tirava tudo e jogava hockey na garagem quando estava chovendo, nevando bastante, muito frio. Então o Guillaume, que era o meu parceiro de hockey, era hockey o tempo inteiro. Essas amizades me moldaram bastante porque até hoje conservei várias delas. E foi assim um lugar seguro também, apesar de ficar na rua e tal, era muito seguro. Tinha Tommy também, que era um amigo meu, de origem grega. Eu ia na casa dele também comer comida grega, sabe? Nossa, era muito bom. Ele morava atrás da minha casa. Ele já era, tinha um perfil um pouquinho mais esperto, um pouquinho mais avançado, não pensava muito em brincar, só ficar com as meninas, com Dayse, 8, 10 anos, não fiquei muito com ele, só um pouquinho depois, 12, 13 anos, também acordei um pouquinho, que a gente fica um pouquinho mais junto,mas ele não tinha uma influência muito boa.
P/1 - E você estava falando das comidas que você comia nos vizinhos, que vinham de outras culturas. Qual era a comida da sua casa, como era uma comida típica canadense?
R - Bom, a minha mãe cozinhava bastante, ela era housewife, mulher dona de casa, apesar de ter a escola dela e tal, era a época, né? Nossa, eu comia de tudo. Minha mãe gostava bastante de fazer…Bom, as comidas clássicas no Canadá tem o Corn pie, que é uma torta assim de carne, milho, batata, faz isso. Ela fazia também frutos do mar, peixe, ela cozinhava bastante, que você compara com a média canadense, a gastronomia da minha mãe era mais avançada, e também ela se influenciava com os vizinhos que vinham de outras culturas: libanês, sírios, ela pedia as receitas, tinha essa curiosidade, e ela passou pra mim também, cozinhar assim vem bastante da minha mãe. Então ela fazia várias coisas, a gente comia coisas que ninguém comia. Cérebro de, como chama o filho do boi lá? Bezerro.Você já comeu isso? Difícil, né? Então minha mãe fazia, mas é uma receita complicada. Então, essas receitas, eu falei frutos do mar, a gente comia bastante coisas diferentes, não era clássico assim, massa, bastante também, gostava de massa. Muitos sabores na verdade, eu posso resumir, são vários sabores.
P/1 - E você ia pra escola?
R - Eu ia pra escola primária que ficava cinco minutos a pé da minha casa. E esse caminho era uma história cada vez. Então juntando a galera, e a gente tinha que passar através de, era um parquinho, na verdade não era um parque, uma praça pública, mas essa praça pública juntava três ruas do bairro. Eram tipo de uma união, né? Feito em Y, e esse lugar, a gente parava pra brincar, subir nas árvores. A gente até chegou a fazer guerra de, como se chama “marrom”? É uma castanha assim, que você come com o vinho quente no inverno.
P/1 - Pinhão.
R - Pinhão. Bom, essa árvore produzia, a gente juntava os pinhão fazia assim lançava, né? E era assim um lugar pra perder tempo assim, sabe? E ficar atrasado na escola ou em casa pra almoçar e era bom. Era super rápido. Eu comecei a ir sozinho no maternal pra escola. Andando sozinho. A minha irmã não queria saber de me acompanhar, me abandonou ali depois de uma semana. Minha mãe “tem que ir com o teu irmão”. Não, ela não queria. Então, juntava outros amigos e essa escola era primária, que era interessante porque era feita em L e uma parte do L era em francês, a outra parte em inglês. E sempre tinha briga entre as duas. Bom, a situação também política do Quebec era bem tensa em termos linguísticos e isso tinha efeito até na escola primária. E bom, a escola, lugar muito seguro, todas as minhas professoras eram as minhas tias, que nem aqui no Brasil, um pouquinho. Nossa, eu lembro de cada uma delas. E a minha mãe também se implicava bastante na escola porque o governo queria fechar a escola. Não lembro as razões, não sei se porque que não reuniu, e os meus pais entraram num comitê pra proteger a escola, então educação era importante, era um lugar de vivência, a escola era importante porque a gente passava o dia inteiro, meio período, tempo integral. Então entrava às 8:30 da manhã, saía às 03:30. Vinhas pra almoçar em casa, mas passava o dia inteiro. Na verdade, a tua vida era na escola, Então é importante de ter uma escola boa, era uma escola num bairro de classe média, mas tinha de tudo, tinha criança vindo do mundo inteiro e de todas as classes. Então é uma escola pública e só lembranças boas. Fora algumas brigas aí, de pátio da escola. Eu lembro que era um pátio enorme de asfalto, não tinha árvore nenhuma, isso era uma tristeza. Hoje em dia mudou, eu moro perto de lá ainda, mas na época no verão era quente pra caramba. Mas brincar nesse pátio aí, muito bom
P/1 - Você falou de uma questão política complicada ali em Quebec. O que era?
R - Ah, é que na verdade o Quebec é a parte francófona do país, e a partir dos anos 60 começou a ter uma uma espécie de conscientização dessa situação de inferioridade québécois no país inteiro, menos educado, menos rico. Isso começa antes, nos anos 40,50, já tinha conscientização, mas a politização dessa situação começou nos anos 50 e 60, com que se chama de Revolução Tranquila. Quebec tentou se separar no passado, no século 19, teve tentativa de revolução pra sair do império britânico. Não funcionou. Então tinham frustrações até o nascimento do país, eu estou fazendo bem rápido, nos anos 1867 foi uma forma de… porque foi conquistado o Quebec, na verdade a Nova França, foi conquistada pela Inglaterra e gerou 200 anos de submissão. A parte britânica, isso aí nos anos 60, começou realmente a borbulhar como assim no mundo inteiro, né? Tinha vários movimentos de independência através do mundo, na África principalmente, e o Quebec começou a tomar atitude política, de fazer as coisas pra se desenvolver, sair dessa miséria, sair dessa sub educação, pobreza. O governo ficou um pouquinho dando mais serviço pra população, criando um estado de providência, mudando bastante a situação pra melhorar as coisas, a educação, saúde virou assim um exemplo. Em pouco tempo realmente ficou assim de piores, pior estatísticas do ocidente pro país, uma província desenvolvida. Então essa situação era baseada bastante na cultura, na língua, né? Quem tinha o poder financeiro eram os ingleses, os québécois, os francófonos eram os operários. Então isso virou nos anos 60 bastantes coisas feitas pelo governo, pelos empresários, pra tomar o poder, possessão das riquezas. E a questão da língua é central da cultura porque cada vez mais o país cresce, o Canadá, cresce o Quebec, e fica diminuindo a posição dele no país. Assim, em termos de peso, de população e decisional. E essa questão da língua no Quebec, nos anos 70, teve uma lei que chama Lei 101 que protege a língua. Porque na verdade antes dos anos 70, em Montreal, era tudo inglês. Serviço, comércio, 90% da população era francófona, mas tudo se passava em inglês. Porque quem tinha o poder eram os anglófonos. E quem chegava, falava “bom, vou usar o inglês porque pra trabalhar usa o inglês”. Então o imigrante falava inglês. O aumento da população fez que encheu. Chegou uma hora governo falou “bah”, na verdade, o movimento nacionalista falou “bah, tem que virar a situação”. Essa lei sobre a língua foi importantíssima pra obrigar quem chegava a ir pra escola francesa pra poder aumentar na verdade e viver em francês. Mas sempre tinha essas tensões entre as comunidades, justamente porque não era totalmente resolvido e até hoje é assim. Então essa questão aí do pátio da escola entre francês e inglês era uma repercussão do que acontecia na sociedade. Era um microcosmo do que que era ensinado, né? Um pouquinho de ódio, um pouquinho de menosprezar o outro. Era essa briga. Hoje em dia se acalmou bastante.
P/1 - E a sua família falava francês, né?
R - A minha família falava francês, mas a minha mãe era metade-metade, é o caso de muitos québécois ou pessoas de Montreal, que são bilíngue e bicultural, tem bastante pessoas. Então é uma questão complicada. Mas central na minha educação, na minha visão política, eu era também, eu sou independentista até hoje. Eu não, nunca poderia falar não, há um plebiscito do Quebec, que gostaria de separar, eu votei “sim” em 95, teve um plebiscito, em 95 e em 82, foram perdidos, parecido com a situação da Espanha pouquinho no Quebec. Então a Catalunha e os países Bascos.
P/1 - Voltando pra escola, essas professoras que você teve que você lembra até hoje, tem alguma que foi mais marcante?
R - Tem uma que era a minha professora de 4ª série e 5ª série. Quando ela estava na 4ª série, ela mudou depois pra 5ª série no ano depois, ela fez de tudo pra que eu passasse pra 5ª, eu e o ______, meu amigo. Então ela gostava da gente pra caramba. Ela era uma tia assim solteira, professora, os alunos eram os filhos dela, aquele carinho. Era Solange, Solange _______, ela gostava bastante de mim, eu sempre era brincalhão na sala de aula, fazia brincadeiras o tempo inteiro. Estudioso, mas eu era muito brincalhão. E ela me mandou fazer um ensaio pra filmes. Ela tinha contato na área de cinema, dar um ensaio, né? É um…como é? Um teste pra selecionar os atores e tal. Então aí, foi uma experiência super legal. Lembro até hoje eu não fui selecionado obviamente, mas foi super interessante, porque era primeira vez que eu tinha contato com essa área. Eu disse, eu gostei bastante. É um sentimento de bem-estar na sala de aula, de proteção, de carinho, não era cada coisa como hoje em dia “você entra na sala de aula e tem que aprender e maximizar o tempo”, não era bem assim um sentimento. A gente aprendia bastante coisas, mas quando vejo as minhas tias hoje em dia, lições de casa, é outro mundo. Mas é um sentimento de que o dia passava rápido pra caramba porque era muito legal. Era muito legal. Então essa professora principalmente foi marcante.
P/1 - Me conta um pouco desse dia que você foi fazer o teste.
R - Nossa! Lembro muito bem porque eu fui com a minha mãe. A minha mãe achava que eu ia ser selecionado. Mas eu não não tinha expectativa nenhuma, nem sabia o que era, na verdade. E eu lembro que a gente foi lá, era uma sala, tinha várias pessoas e me pediram de fazer uma cena, de um menino, eu não lembro exatamente, mas que estava meio triste, depois muda pra ver a atuação, que eu não tinha nenhuma, eu sou brincalhão, era só isso. Eu vi que eu era humano, uma coisa importante, mas eu não prestei muita atenção. O sentimento que é bom, a gente vai lá, sobe, era na… chamava Tele Quebec na época, primeira vez que eu entro numa televisão que é interessante, mas fora isso sem muitas lembranças.
P/2 - E voltando pra escola, tem alguma matéria, alguma disciplina que você se interessava mais, que você gostava mais?
R - Na época já tinha… eu gostava… não era tão claro disciplina na época porque era tudo misturado, você aprendia com 50 minutos de matemática, de francês, inglês. Na época, eu acho que era mais suave, se passava de uma pra outra, então lembrança que eu gostava do período de matemática, não lembro. Mas eu lembro muito bem que eu descobri jornalismo naquela época porque eu gostava muito de ler jornal, meu pai tinha jornais em casa. Eu lia jornal de manhã, aí eu comecei a ser o repórter da sala na sexta série, é o ano final do primário lá no Canadá, 6ª série de primário. E aí eu gostava porque cada sexta-feira tinha que fazer um resumo da atualidade da semana. Aí eu gostei bastante desse sentimento de ensinar pros meus colegas camaradas coisas novas, esse sentimento era muito bom. Gostava bastante. Educação física gostava também de brincar, chama, não sei se em português existe, o balão caçador, é um jogo de bola. São dois times, tem metade da sala de cada lado, tem uma vaca de cada lado, assim nos extremos, então você tem que matar o outro aluno, se ele não se ele escapa, a bola cai no chão, morreu, vai pra vaca, e as vacas vão aumentando, e tem esse vai e volta das bolas, chama dodge ball, e eu gostava disso muito.
P/1 - Aqui no Brasil é queimada.
R - Queimada.
P/1 - E aí você nessa experiência do Jornal da Escola você já pensava em profissão?
R- No primário, não, e nem se falava. Hoje em dia eles começam a refletir as possibilidades. Não era assunto, não tinha nada ligado à profissão. Pensei em fazer jornalismo ou política, ciência política, por causa justamente do meu grande interesse em atualidade, política, geopolítica, desde pequeno, desde aquela época. Eu acho que influenciou provavelmente a minha escola de história. Mas na época, não pensava em profissão. Pensava em brincar o tempo inteiro.
P/2 - E depois dessa escola de primário, você foi pra?
R - Chama secundário. High school. E são 5 anos a mais. Então, a partir dos 12,13 anos, em 87, 88, você muda de escola e parece uma fábrica, era pública também. Eu lembrei do meu pai, a gente visitou várias escolas. Os meus pais não tinham muito dinheiro pra me mandar pro privado, também na cultura, a educação pública era bem vista, hoje mudou, pro secundário primário não tem problema não, mas você mudar é mais complicado as escolas públicas secundárias são menos frequentadas. A gente deu volta de várias escolas, eu lembro muito bem, eu tinha 12 anos e eu não sabia na verdade o que eu queria pro futuro e o que a escola trazia também, porque cada escola tem mais ou menos um perfil, e eu lembro do meu pai querendo, tinha um colégio que ele tinha conhecido na época dele, que era um pouquinho mais longe da casa, ele falou “ah, vamos lá”, então a gente vai visitar também, tinha fechado colégio, não existia mais fazia vários anos. Não é como hoje, os meus pais eram meio desconectados com essa área. Primeiro eles não tinham feito faculdade, então o sistema escolar pra eles era muito diferente da época deles, pra eles uma outra não era tão importante. E, perto de casa, escola pública, tudo bem, pode ir. E eu acabei indo pra, chama Polyvalent, é uma grande escola, tem 2000 alunos, aqueles high school americanos que vocês veem na televisão, é exatamente isso. Mas é completamente diferente do que eu tinha vivido no primário. É impessoal, você é um de 2000. Então a mudança é grande, era um bairro também que, essa escola juntava um bairro muito maior do que a escola primária, era bem mais radical assim em termos de frequentação, tinha tido homicídio há uns dois, três anos na escola entre gangues de rua, naquela época eram os latinos e os haitianos, era briga entre esses dois aí. Era ligado ao crime organizado. Foi uma aprendizagem muito boa porque eu saí daquela infância dourada, aonde tudo era aqueles, como que se chamam os teddy bears rosa? E não tinha mais isso aí, você tinha que tomar cuidado porque na fila pra lanchonete cara atrás de você “meu, me dá o teu dinheiro”. Então você tinha que ficar esperto, mudou de uma hora pra outra. Tinha aquela antecipação também de ir pra essa escola grande porque eu sabia que isso existia, os amigos falavam “não é fácil. Os pais não sabiam nada disso, mas os jovens sim. Então era diferente, o dia também é muito diferente, as matérias são separadas, você tem 3 de manhã de 1 hora, 3 de tarde de 1 hora, dia inteiro também. E eu me desenvolvi, eu aprendi outras coisas, ficar mais esperto, navegar em confiar em mim, né? Na verdade, não confiar nos outros, fazer amizades boas, separar o bem do mal. Tinha toda a influência, droga, eu tinha amigos que tomavam droga, tudo isso aí, aprender a fazer as escolhas boas, frequentar as boas pessoas. Em termos de matérias de aprendizagem era muito fraco pra mim porque eu tinha muita curiosidade, então você fica um pouquinho, eu fazia trabalho pros amigos que não faziam, ajudava assim. Eu me impliquei também na rádio da escola. Fazia um um programa especial que chamava “Arte e Comunicação”, que eu gostava bastante. Aí eu aprendi, na verdade, é um programa de rádio, um programa de televisão, fazia técnica, filmar. A gente também tinha aulas de fotografia. Abria muitas… tinha muitas oportunidades. Você tinha que simplesmente pegar elas. Mas aprendi a revelar foto também. Isso eram coisas super legais. Mas orientação em termos de matérias e tal, isso aí é um uma coisa que hoje em dia eu acompanho bastante as minhas filhas porque justamente na época é uma coisa que eu falo pros meus pais. “Meu, vocês estavam aonde?”. Eu precisava de ajuda, eu precisava de orientação. Era a época, na verdade. Apesar de tudo, eu terminei o High School. São 5 anos, de 87 a 93. E terminou muito bem. No último ano eu tinha um professor de educação física, porque eu fazia educação física ampliada, tinha o dobro de aulas, gostava bastante de mexer e fazia parte do clube de esqui, o professor de educação física _______ lançou a ideia de a gente, ele ia pra Europa bastante pra fazer trilha, então ele falou “ah, já montei grupo”, “Será que a gente monta um grupo aqui?”. Aí a gente juntou uns 7, 8 alunos e a gente arrecadou fundos, né? A gente vendeu camiseta, fez um “skioton” lá um pra juntar dinheiro, a gente dormiu na escola de madrugada, a gente já fez uns Skioton de 24 horas sem parar, fazendo o esqui lá pra arrecadar dinheiro. E a gente foi pra Europa, um mês. Essa viagem na Europa foi transformadora pra mim. Em 93, a gente saiu pra França. A primeira vez que eu viajava, eu tinha 16 anos. A gente foi com esse grupo, né? A gente fez a trilha, a volta inteira do Mont Blanc. Na França, Suíça e Itália. São 14 dias de andar, com um dos meus amigos, que ficou amigo comigo depois, que era Assad, e meu professor tinha medo que o menino assim fosse desmaiar na montagem, mas era assim 10, 12 horas de andada todo dia. Maravilhosa, me mudou pro resto da minha vida em termos de sair da casa, sair do conforto da família, eu acho que me me abriu também, me deu a ideia depois de sair de casa totalmente, porque eu vi que eu estava muito confortável, esse conforto às vezes as pessoas gostam, eu não, eu não gostava muito, queria desafio, queria ir pra frente, queria fazer coisas diferentes. Então a gente ficou duas semanas com o grupo inteiro e era muito legal, a gente tomava banho com água de glaciar, frio que é, zero grau, quase gelo, acampava nas montanhas, nas pousadinhas, bem simples, mas era assim. Quero fazer com as minhas filhas. Aliás, essa viagem descobri o mundo, quero descobrir a França, descobri países, foi muito bom. E a gente ficou duas semanas também, só três pessoas. Eu e mais dois amigos, uma menina, um menino e foi realmente uma prova de fogo pra mim, de sair do meu conforto, ser um pouquinho mais audacioso nas viagens. Eu queria ficar na trilha do treino muito longe pra não, sabe? Tem sempre ter… era a minha personalidade, um pouquinho mais não medroso, porque não era medroso, estava sozinho na Europa, mas empurrando os limites. Então foi muito legal, a gente foi pro sul da França, a gente viajou, ficou em Paris, e foi assim. Não tinha internet. Hoje em dia “mamãe, estou com saudades”, “ó, papai” você escreve, vídeo tal. Lá não, tinha que fazer ligação a cobrar pros meus pais, pra minha vó. Minha vó falava, “nossa, tem que me dar notícias, cada cinco dias, uma semana. Cê me liga a cobrar e tal”, gostava de receber, aí eu chorava. No começo era difícil, mas depois, nossa, mudou totalmente, e me mudou completamente. Então isso aí foi, eu fechei o secundário com esse evento que foi transformador pra mim, importantíssimo. Depois eu fui pro que se chama de colegial. São 2 a 3 anos. Entre o secundário e a faculdade. Não sabia muito bem o que eu ia fazer na vida. Então fui lá em Ciências Sociais, perfil mundo. Então isso aí você aprende de tudo e nada, na verdade. Mas foi bom, porque eu não era de exatas, não ia fazer biologia, nem matemática, nem médico, não era pra mim. Então foi, me inscrevi em comunicação, abandonei. Aí depois fui pra Ciências Humanas. Aí terminei o CEGEP, que chama CEGEP, e aí eu fiquei um ano entre a faculdade e o colegial a trabalhar. O colegial foi o meu melhor momento em termos de estudos acadêmicos da minha vida. Era um momento que você passa do secundário, aonde você aprende as matérias. Ah, esse CEGEP aí é onde você começa a criar trabalhos, escrever, fazer pesquisa. Era muito legal e era nascimento da internet também, 94, 95, 96. Então tinha um borbulhamento em volta de o que que é isso, e eu me interessava bastante, fiz apresentações, seminários, pra justamente relatar a história da internet como que nasceu nos anos 40, 50 e como que foi parar nos anos 90. Vai ser uma coisa usada. Começar a usar pra população inteira. Foi muito legal assim e tinha professores também muito implicados, era uma escola muito boa. Então eu saía de uma escola, digamos média a ruim, pra realmente um colégio muito bom que eu adorei. Um estímulo, me levou pra frente bastante.
P/1 - Você falou do surgimento da internet. O que você lembra dessas transformações que aconteceram na sua vida, na da tua família?
R - Bom, primeira coisa é que realmente meus pais sempre, eu tinha curiosidade, eles incentivavam, né? A viagem, por exemplo, pra Europa, foram eles, que eu não queria mais, eu falei “ah, eu não. Quero comprar um carro, usar esse dinheiro, eu vou comprar um carro”. A minha mãe “você não vai, você vai pra Europa. Depois você compra o carro”. A internet, meu pai viu que eu tinha interesse, comprou um computador, mas na época era 2000 dólares. Era bastante. Já foi lá, comprou o computador, aí eu comecei a usar, o que mudou é que fica mais no quarto. Nessa época eu lembro que eu tinha tanta pouca coisa, era internet com o chat room… por exemplo, eu tinha um rádio, gostava de um rádio, por exemplo, Jovem Pan daqui, aí você tinha o chat room, conversava com as pessoas, era ridículo, tinha isso, cê podia assistir rádio e começou a ter site que você podia comunicar ao vivo, mas muito ruim. Mas essa vontade de sempre descobrir novas coisas, tinha computador, mas não tinha internet. Sempre fiquei interessado em computador, eu tinha também recebido vários computadores, videogames jovens e tal. Isso fez que eu me inscrevi na faculdade em computação e gostava bastante. O que mudou? Não mudou muita coisa porque era tão banal assim o que você achava na internet. Era demorada. Você tinha que entrar no modem, a esperar, você tinha que pegar linha, você tinha poucos minutos, era muito ruim, mas era um mundo, descobriu o mundo, na verdade pra mim o que mudou, eu posso descobrir mais coisas que possam entrar em contato, tentar entrar em contato. O meu objetivo era entrar em contato, me comunicar. Mas tinha poucas oportunidades quando você pensa. Não mudou muita coisa nessa época ainda, não tinha aplicativo, o celular não funcionava com internet, então você tinha que ficar ali dedicado a fazer isso. Depois de uma hora, duas horas, “eu prefiro fazer outra coisa” porque realmente é mais… depois se desenvolveu mais.
P/1 - E os romances da adolescência? Você falou daquela vizinha que não foi sua namorada.
R - Verdade. Eu tinha algumas namoradas. Não era muito, eu não queria ficar assim namorando uma menina o tempo inteiro. Eu tinha vários amigos, queria conquistar e depois conquista: “você quer sair comigo?” Aí, “ah saiu? Está bom”. Eu era meio medroso, não queria muito ir mais longe, isso é até uns 14, 15 anos, aonde eu encontrei uma espanhola linda, ela se chamava Helena, e ela que me deu o meu primeiro beijo. Eu lembro, eu estava com meu amigo Neo, a gente voltava os três da biblioteca andando, porque a biblioteca era nosso lugar também pra ler, mas pra brincar bastante também. E ela ficava perto de casa - nem falei do meu amigo Neo porque não era no secundário que ele entrou na minha vida, mas eu vou falar dele porque ele é fundamental também - e essa Helena me arrancou um beijo, mas não foi mais longe. Depois sumiu ela. Eu tinha interesse mais em meninas não canadense de fora, né? Italianas, espanholas, latinas e me dava melhor, em termos de valores. Mas eu tive algumas. A minha primeira namorada foi em 96, eu tinha 20 anos, fiquei dois anos e meio, três anos com ela, mas antes disso era namoradinhos, não tinha essa vontade de namorar fixo. Eu preciso voltar pra trás um pouquinho, na época do secundário, porque no começo do segundo secundário, eu conheci o meu amigo Neo. A família imigrou no Canadá como refugiado, na época da invasão americana no Panamá. A mãe dele tinha implicação política e eles tiveram que sair. E eu conheci ele na primeira série, segunda série, ele estava na primeira série, a gente jogava pingue-pongue lá, tinha uma sala cheia de mesa de pingue-pongue na escola secundária, a gente jogava pingue-pongue e se deu bem, e ele mudou de escola, e a gente continuou ficando amigos. E ele vinha pra casa porque não tinha mudado, morava pertinho, e me dava muito bem com a família dele, eu ia na casa dele comer comida panamenha e tal, adorava comer a comida da mãe dele. E essa família ficou na minha vida até hoje, porque eles têm uma influência muito grande, tem três filhos: Neo, a Mara, que são gêmeos, tem o André, que é o mais novo, e os pais ,o José e a Nixia. E essa família me acolheu como um filho na casa deles, eles moravam perto de casa e de 91, 90, digamos, até 94, a gente ficou quase o tempo inteiro juntos, são 4 anos que a gente jogava Badminton. A primeira cervejinha que a gente tomou, as ressacas junto, ele vinha pra chácara, a gente tinha a chácara, era um lugar maravilhoso, muito legal, na beira do lago, e a gente fazia esqui junto, também esquiava juntos, era também um irmão. E os pais dele tinham estudado aqui no Brasil, meu irmão tinha nascido aqui no Brasil, esse amigo na verdade. Então a família dele tinha raiz aqui com o Brasil, ainda eles tinham amigos, e nos anos 90 era recessão no Canadá inteiro, difícil pra ter um emprego, ainda mais difícil pra imigrante, refugiado, os pais deles tinham faculdade mas lá pra ser reconhecido como engenheiro, como administrador, eles trabalhavam em empregos muito ruins. Então decidiram voltar pra cá, os amigos dele que são os proprietários de uma empresa que chama Cerveira, que são alpargatas acolheram eles aqui, deram um emprego pro pai, mas os filhos vieram também, né? Então imagina a separação de dois adolescentes amigos, foi muito difícil pra mim, foi um evento assim muito complicado pra eles também, né? Eles vieram pra cá, saíram completamente da rotina, eles eram completamente integrados como filhos, como jovens nessa cidade canadense, e foi difícil. Mas eu falei “ah, vamos visitar eles no Brasil”. Em 94, seis meses depois da saída deles, eu vim pra cá sozinho, foi a minha segunda viagem, eu tinha o que? 94? 18 anos. Aí o Brasil pra mim falava espanhol, não sabia muito bem o que era em termos de cultura. Eu não conhecia nada. E eu vim pra cá, a gente ficou, eu fiquei um mês no final do ano, eu gostei, foi super legal porque eu revi os meus amigos, eu vi a situação deles aqui, a gente tinha muito apego, né? A gente se comunicava com cartas, não tinha internet, 94 não tinha e-mail ainda e tal, então, era carta. Mas foi legal. Carta e telefone. Custava caro pra caramba. Custava uns dois dólares cada minuto, então a gente conversava rápido. E aqui não me lembro muito bem. Na época, no Brasil, seria comprar linha telefônica, custava tipo dez mil reais, não sei, cruzeiros, era um absurdo, então não tinha telefone em casa. Eu acho que ele ligava pro orelhão uma coisa dessa aí. Dava um telefone ou ligava na casa da tia dele. Mas pra mim isso já era diferente. Eu tinha curiosidade. Eu falei “ah, tem que ver o que que tem aí. O que é o Brasil”. A primeira vez que eu vim aqui eu gostei, mas eu não me interessei pela língua, era mais uma coisa, uma bolha, né? A gente foi pra Juqueí, ficou no mar, ficou na praia, eu vi a casa dos primos, brincava na rua, era ainda, 18 anos, mas era moleque. Então eu lembro muito bem que os amigos da rua, eu gostava das placas de carro daqui, e os amigos roubaram uma placa de carro pra mim. Era muito legal porque era BOS 5323. E essa placa ficou lá no meu quarto um tempão assim “São Paulo” e tal. Até eu comprar uma Kombi lá no Canadá e eu coloquei essa placa na Kombi, e roubaram a placa dois dias depois. O retorno da história. Mas era muito legal essa placa. E saí do Brasil, aí eu falei “a gente continua se comunicar”. Ele fazia faculdade aqui, fazia colegial, faculdade lá, e ele pensando em voltar pro Canadá, mas era complicado os pais deles separaram, foi assim realmente uma situação muito difícil pra eles, mudou a vida completamente, não era aquele sonho desejado. E 99 eu estava namorando de 96 a 98, não 97, 98, 99 eu falei pra minha namorada “eu vou visitar o meu amigo, eu preciso pensar na minha vida, refletir porque eu não estou muito feliz aqui” e eu vim pro Brasil. Aí eu tinha feito aulas na faculdade, de português do Brasil, com uma mineira, Aparecida de Almeida, que foi uma pessoa também importante na minha vida. Ela realmente me deu muita vontade de conhecer a cultura brasileira e tal. Ela foi até Aparecida, que deve ter falecido hoje, se não me engano, ela estava doente, mas ela recebeu a ordem como que chama, do Rio Branco do Brasil, que é uma medalha pra promoção da cultura do Brasil fora do país, uma pessoa que faz que a cultura reflete, seja mais divulgada. Então a pessoa era a professora de faculdade, essas aulas eu lembro muito bem, um monte de canadense super interessado na história de vir pro Brasil estudar cultura e tal. Fiz essas aulas e eu vim pro Brasil. Aí, começando a conversar um pouquinho, eu revisitando os meus amigos, aí me apaixonando pelo país, pela cultura, poder ler também as coisas, e conversar com as pessoas ajuda bastante a sair a se apaixonar e a gente ficava na casa da namorada do meu amigo Neo aqui em São Paulo, e uma noite a gente saiu “ah, eu vou convidar a minha amiga”, e ela convidou a amiga dela que veio. A gente saiu juntos e a gente se apaixonou. Na verdade, a gente tá junto até hoje. Então isso foi uma história, o Neo é importante por causa disso também, tinha que fazer uma ligação porque a partir desse momento a gente ficou juntos. Voltei pra Montreal, eu saí da minha relação, até foi meio assim, ela não entendia, mas ela entendeu depois que acabou essa história e a Gabriela foi pro Canadá no final do ano de 99 pra 2000. Também me dei super bem com a família e me acolheram e tal. E aí, em 2000 ela foi pro Canadá pra ver o que que é e tal. Um mês viajamos pra Nova York, a gente deu a volta na cidade inteira mostrando o que é e tal. Mas era inverno, -30. Sofreu pra caramba, a coitada da Gabi, e aí eu morava com a minha irmã e minha prima do lado da minha mãe, né? A prima que eu falei. E a Gabi ficou com nós lá um mês, três semanas, e ela voltou pra São Paulo. Bom, aí a relação à distância, a gente falou “o que a gente faz?”. Eu estava acabando a minha faculdade. Eu falei “ah, posso fazer um ano aqui no Brasil”, e aí eu entrei na USP, fiz o último ano da minha faculdade aqui na USP, e fiquei aqui vendo se as coisas podiam se desenvolver e a gente decidiu continuar junto, se casar pra facilitar todo os tramites administrativos. Isso é 200, então fiquei aqui até metade de… não até o final do ano 2000 voltei pro Canadá. E conversando lá com os meus pais e da possibilidade de se casar, os meus pais me incentivaram também bastante. 2001 eu voltei pro Brasil em agosto, imagina, janeiro até agosto, sem a gente se ver, se você quiser escrevendo tinha internet, mas era e-mail, não tinha comunicação direta, era cartão que você comprava no Canadá, que comprava pra cinco dólares, dava uma hora de ligação. Então a gente conversava assim e os pais dos dois lados também apoiando a situação “não vai ser fácil”, mas os pais da Gabi tinham viajado bastante, tinham morado fora, Chile, México, então pra eles não era uma coisa assim estranha. E a gente fala “está bom”. Vamos começar nossa vida no Canadá, é mais fácil pra começar. Você vê também o Canadá. E depois a gente vê se volta pro Brasil ou fica lá. Então a gente se casou no civil, 25 de agosto de 2000. Aí foi um casamento com os amigos aqui, os meus pais não estavam aqui. E a gente falou “a gente vai se casar no religioso em março, abril do ano que vem”. Eu chego no Canadá dia 7 de setembro de 2001, eu falei “8 eu vou fazer os papéis lá da imigração já pra pedir a cidadania da residência dela”. Aí depositei todos os documentos e tal, estava completo o dossiê dela estava limpinho, prontinho. Fiz as minhas coisas direitinho. Aí chega dia 11 de setembro de 2001. Não sei quantos anos vocês tinham nessa época, mas era a terceira guerra mundial, aí tudo sabe “quando que a gente vai se ver?”, “Será que a gente vai se rever?” Ou seja, será que vai ter assim o que que vai acontecer durante vários meses? Foi complicado. A gente é implicado, somos vizinhos dos americanos, o que que vai acontecer? outro ataque e tal. Eu vivi por dentro esse momento porque eu trabalhava no governo federal na época, então todo mundo saiu dos escritório, foi assim um pânico grande. Aí eu falei “nossa, acabou. Não vai sair a residência em pouco tempo eles vão botar um pára em tudo, vai acabar sim e a imigração vai acabar tudo”, e na verdade não foi tão assim, a gente continuou com os planos, eu vim pra cá no final do ano, consegui viajar em dezembro, janeiro, depois do Natal. Continuando planejando, as coisas foram andando, a gente planejou o casamento pra dia 19 de março de 2002, e os meus pais vinham. Foi uma festa e tal e não tinha os papéis ainda pronto. Então enquanto os papéis dela não estavam prontos pra saída, a gente não podia sair. Mas no Natal, dia 23 de dezembro de 2001, o consulado canadense liga pra gente, eu estava aqui em São Paulo, a gente tava preparando no Natal, falando “vem logo antes das férias, de fechar os consulados. A gente vai transmitir os documentos oficiais da residência dela”. Então ela conseguiu em três meses. Apesar de todos os eventos, ter a residência. Hoje é impossível fazer isso. Mas como a gente era casado no civil, na carta dos direitos e liberdades no Canadá tem obrigação a dar prioridade a um casal que é separado assim à distância pra essas questões de imigração. Então foi uma coisa boa ter ficado assim à distância. Então os meus pais vieram, fizemos o casamento, a minha irmã também, a gente, os meus pais aproveitaram pra viajar aqui no Brasil, conhecer o Brasil pela primeira vez. Os pais da Gabi já tinham ido no Canadá, então foi assim, tudo direitinho. E a gente se amava muito, não tinha como não ficar juntos. A Gabi mudou pro Canadá. Em março, casamento foi dia 19 de janeiro e a ida da Gabi foi 20 e pouco de março de 2002 pro Canadá.
P/1 - Deixa eu voltar um pouquinho, queria que você me contasse um pouco da faculdade.
R - É verdade, eu fiz faculdade, estudei numa faculdade de esquerda em história que eu percebi depois vindo pra USP que realmente o sistema de ensino é completamente diferente. Lá a gente foi pra faculdade de história muito teórica, leitura e análise de texto o tempo inteiro, sem conversas e tal, daí três anos quando eu vim pra cá, no último ano na faculdade, pra fazer as últimas matérias, era matérias de primeiro ano de faculdade aqui, pessoal já ia pra pra arquivos, mexia, como trabalho de área de historiador, nunca tinha feito isso no Canadá. Não tinha essa parte prática da profissão de historiador. Eu fiquei impressionado. A gente foi pro DOPS, que é o departamento lá de polícia, eu tinha um arquivo de uma pessoa da época da ditadura militar. A gente foi lá mexendo, fazendo, muito legal. Então em termos de faculdade, eu não tenho lembrança, eu lia pra faculdade pra fazer as minhas aulas e não me implicava na vida estudantil. Era uma época também muito interessante em termos de lutas sociais, estava meio parado. Final dos anos 90, não tinha começado ainda essa questão da mundialização que veio um pouquinho depois. As lutas contra a área de livre mercado das Américas e essa vontade de mundializar que veio mais na metade dos anos 2000 mais ou menos. Então era meio robótico, vai pra faculdade, volta pra casa, trabalhava. Mas lembrança, fui, fiz. Não foi grande tipo, não foi assim que nem o colegial aonde eu descobri um monte de coisas, eu gostava, mas eu acho que a pedagogia era inadequada, era muito ultrapassada em termos de… hoje em dia deve ser bem diferente, em termos de trabalho, de raciocínio das coisas. Não tinha laboratório, não tinha arquivo, visitar arquivo, descobrir os arquivos. Era um trabalho de análise.
P/1 - E você falou que você trabalhava, com o que que você trabalhava?
R - Eu trabalhava com pequenos, lá no Canadá você trabalha no café, trabalha com animação, fazendo trabalhinhos pra ganhar um dinheirinho. Os meus pais pagavam a faculdade na época que eles falaram, não é o preço daqui, faculdade é pública também não tem privada, então custava por semestre não sei 1000 dólares, nem isso, 200 dólares por curso, mais ou menos. “A gente vai oferecer isso assim, faz parte da herança de vocês”. Na época falava meio ridículo uns duzentos pau ali duzentos aqui mil é eu somando aí o degustar uns cinco, seis mil, mas meus pais compraram na verdade o que que eles fizeram? Compraram um prédio pra gente morar, minha irmã e eu pra pagar um aluguel assim simbólico, compraram um triplex. A gente morava embaixo, tinha cinco quartos. Virou uma República, um pouquinho. Foi muito legal. Minha prima,a amiga dela, a minha ex-namorada ficou um tempinho, a minha irmã. Nossa, foi época muito boa isso da faculdade, era o melhor. Sempre com a família, mas então foi super legal. Aí uns amigos visitavam a gente, fazia festa, era muito bacana. Ninguém tinha esse apartamentão, a gente teve muita sorte. Então, não tinha que trabalhar muito, pagavamos aluguel simbólico pro meu pai e estudava na faculdade, era a minha vida assim. Não era muito complicado, quando você pensa nisso. Os aluguéis, custo de vida na época eram muito baixo. Principalmente em Montreal. No resto do país é diferente, mas em Montreal sempre foi assim um custo de vida muito baixo, então pra estudante, era muito legal.
P/1 - E tem alguma história de alguma festa desse apartamento que vale a pena?
R - Ah, tem várias. A gente ficava, justamente eu voltava do Brasil, e a gente ia com a cachaça e a música brasileira, fez festa na casa inteira, o tema era o Brasil com o samba e essa foi muito legal. O pessoal descobrindo comigo o Brasil porque eu só falava disso, eu tinha trazido uma churrasqueira assim, sabe? Eu fazia churrasco no quintal. Era só o Brasil. Aí escutava música, todo dia lia, tinha trazido livros de volta, então o pessoal encheu o saco um pouquinho do Brasil lá em volta, principalmente a minha irmã e a minha prima. Mas depois ficou uma parte de mim, adotei a cultura, nunca saiu. Hoje em dia faz parte, mas essas festas, sempre eles juntava a galera, juntava aquele que morava do lado, ele vinha com o Zuzu que era um Josef, também um libanês, que era amigo do secundário, juntava minha prima, os amigos dela. A minha irmã não trazia, era a mais velha, então ela era encarregada de que a gente não quebrasse a casa dos meus pais, né? Mas ficava até horas e horas, nem lembro de ter tomado cuidado assim com os vizinhos ou com a música alta, era super legal porque a gente tinha um terraço, a gente tinha uma garagem atrás, e em cima tinha um terraço, a gente fazia noites aí, cantava, tocava violão, era muito legal. Isso durou uns quatro anos.
P/2 - E esses trabalhos pequenos que você fazia nesse período teve algum que te marcou mais?
R - É, tem várias, mas tem um que eu fazia ali embaixo de mascote. Não sei se vocês sabem o que é mascote. Sabe aqueles pelúcias? Nossa, mas isso aí pagava tão bem. Eu trabalhava poucas horas na semana, ganhava na época 25 dólares a hora. Então trabalhava um dia, dois dias, e o resto podia estudar, fazer as minhas coisas. Era um saco, você imagina, era interessante porque eu tinha muito tempo livre, mas em termos de trabalhos, foi muito engraçado porque teve um monte de histórias, quase morri na roupa porque era muito quente, abafado por dentro. Imagina você estar dentro, tem um capacete, você está tudo fechado, tem uma coisinha grande assim e aí você corre, cria, né? Você tem muito calor, sai muito gás carbônico, você fica meio doidinho na coisa aí. E uma vez a gente estava no festival, uma história assim rapidinho, tinha um desfile de mascote, mascote junto, as crianças, tal, aí eu perdi o meu caminho na cidadezinha, eu me perdi, mas uma das regras desse desse trabalho é que você não nunca pode tirar ninguém, eu ficava “não pode falar”. Então procurava o caminho, não achava. Acho que eu fiquei umas duas horas e meia, três horas na roupa assim, eu perdi quilos de água cada vez que eu fazia isso. Isso foi um trabalho interessante, mas hoje em dia eu não faria mais. Senão, trabalhar em café, trabalhei em restaurante rápido, tipo Mc, McDonald 's, mas era alimentar, né? Hoje em dia que a gente fala, “nossa, eu devia ter feito coisas ligadas ao que queria fazer, né? De profissão e tal, mas é muito comum jovens, eles trabalham pra ganhar um dinheirinho, pagar as coisinhas. Então fazia o que os outros faziam.
P/1 - E depois da faculdade, aí você teve um trabalho mais na sua área?
R - Depois da faculdade eu comecei a trabalhar no Governo Federal, mas tinha pouco emprego pra historiador, não vou mentir. Você tinha que fazer o mestrado para poder pensar de repente ser professor, uma coisa dessa trabalhar em museu era uma possibilidade também. Na verdade, eu comecei a faculdade em 98 e eu recebi o diploma em 2004, terminei em 2003 porque fiz um, no final de 2002, quando eu estava aqui, demorou um pouquinho mais o meu bacharelado pra terminar. Então, oficialmente eu podia fazer trabalho na área de história a partir de 2004, 2005. Mas enquanto isso eu trabalhei no governo federal lá no Canadá, era um trabalho mais administrativo. Porque morava com a Gabriela, tinha que sobreviver e fazer a nossa vida. A gente tinha comprado um apartamento, então eu falei, “vou devagarinho procurar um trabalho”, eu não sabia se eu ia fazer mestrado em história ou em museologia. Eu fui e aceito em museologia, mas eu decidi não ir. Então eu comecei a trabalhar a partir de 2006, 2007 em história.
P/1 - E o que você fazia?
R - Eu acho que foi a partir de 2006 que eu estava procurando… na verdade, de 2000, vou voltar um pouquinho pra trás. 2000 a 2002 trabalhei no governo federal, 2003 a 2005 trabalhei no YMCA. Não sei se vocês conhecem, tipo de uma ONG bem bom, famosa pela música assim, mas são programas comunitários, aí conheci também a área comunitária, que eu não conhecia muito bem o trabalho de ONGs, e ainda menos na área de trabalhos comunitários, eu fiquei e gostei bastante. Na verdade, como não tinha emprego em história, falei “eu vou abrir uma coisa, mas não tão longe assim”. Sempre tinha uma vontade de associar o meu trabalho a uma causa justa, avançar a sociedade, eu não queria trabalhar, eu tinha trabalhado no governo federal, não tinha sentido nenhum. Então, pra levantar de manhã, tem que ter uma causa justa. Eu tenho que ter um objetivo de melhorar a sociedade ou fazer uma coisa melhor. Então o YMCA era uma oportunidade boa. Eu trabalhei lá durante uns dois, três anos. E aí, começando a ter contato com o museu municipal lá em Montreal em 2005, no final aí do YMCA, eu entrei em contato com o Jean François La______, era o diretor do ___________, que era um museu municipal, faz parte das secretaria da cultura da prefeitura de Montreal, tem poucos museus municipais, mas esse aí eu falei “um dia eu vou trabalhar aqui”. Eu passei lá com os amigos do Brasil visitando o Velho Montreal e falei “aqui eu vou trabalhar um dia”. Aí em 2005, eu fui lá, deixei o meu currículo na entrada com a secretária e eu falei “gostaria de oferecer os meus serviços aí pra trabalhar como guia aqui no museu. Gosto da exposição, gosto do eixo da apresentação, da visão do museu”. É um museu municipal, mas não é baseado em artefatos, é mais realmente história da cidade. Ele é do lado de um museu Centre des mémoire, que ele é mais clássico, mais um pouquinho mais conservador, mas que sempre fez uma sombra no centro de história, e sempre tinha uma briguinha entre os dois diretores. Aí ela falou “tudo bem. Espera aqui”. Ela foi procurar o diretor, que era o Jean François, foi olhando no meu currículo “você fala português né? Interessante” e tal e ele falou “eu ouvi falar de um museu no Brasil que se chama Museu da Pessoa”, porque ele também tinha contato com o Brasil através de amigos, e eu acho que ele tinha vindo aqui ou ele tinha encontrado alguém numa conferência lá no Canadá que falou do Museu da Pessoa daqui. Daí eu falei “a gente pode entrar em contato, então”. Aí comecei na verdade a atuar como guia lá no Centre D’Histoire durante alguns anos, como temporário. E depois eu consegui, tem um cara, é prefeitura, então são cargos ou concursados ou complicados obter. Então eu consegui depois de um ano, dois anos, até um cargo em tempo integral, e a gente entrou em contato com a Karen e o José em 2007, quer dizer eu acho que em 2007, e a gente assim escreveu uma… espera aí. Estou só fazendo o rewind aí, a sequência aí. 2007, será que a gente escreveu uma carta pra eles querendo ou não? A gente entrou em contato eles convidaram a gente prum evento aqui que era Brasil fórum, fórum não, Brasil Memória em Rede, 2008 eu acho, que foi o terceiro evento aí da série de eventos. A gente veio aqui, descobriu o Museu da Pessoa e a gente está querendo abrir uma filial do Museu da Pessoa no Canadá. Então a gente escreveu uma quarta carta oficial pra eles, e autorizaram a começar a trocar ideias e tecnologia social e recursos. Foi uma generosidade muito grande, é um capítulo assim importante, então não sei se você quer tratar agora ou depois, mas lá no Canadá a gente começou muito simplesmente, tinha um diretor, tinha já uma visão bastante social, avançada e contemporânea da museologia, que queria sair um pouquinho do clássico, que ele tinha na exposição pra experimentar coisas, experimentava várias coisas, mas a equipe dele era um pouquinho mais fechada às aventuras dele. Então quando a gente chegou lá pra começar experimentar coisa, antes de 2008, 2007, não foi super bem recebido, foi assim “mais uma história do Jean François, mais uma aventura do Jean François, mais uma coisa que ele vai trazer que vai complicar nossa vida, a gente quer fazer exposiçãozinha, visitinha, vida boa, simples”, e nós, recém-chegados e recém-formados queria experimentar várias coisas e esse eixo das histórias de vida, principalmente como a estagiária que estava lá, também francesa, a ________ a gente falou “a gente quer experimentar coisa, vamos lá”. E ele deu pouco a pouco espaço, tempo, recursos, pra gente começar a prototipar os projetos, mas foi complicado porque a gente lutava internamente, tinha um clima muito ruim. Mas a gente fazia coisas excepcionais, que eram super bem vistas na área museológica lá em Montreal, no Quebec, como inovador e diferente do que se fazia. Então 2008, em agosto, oficialmente a gente criou a ONG do lado, porque na verdade o Centre D’Histoire era prefeitura, criou uma ONG, oficialmente registro lá no governo do Quebec, Conselho Administrativo, a gente forma um conselho, tinha toda a estrutura financeira dele, não tinha verba, mas a gente fazia, a gente tinha sub menção aqui um contrato ali, era muito simples, tinha possibilidade de sair daquela estrutura bem rígida da prefeitura que não permitia muita coisa. Foi essencial, na minha opinião, essa estrutura meio que paralela pra experimentação, a audácia de fazer as coisas fora da… quer dizer, eu diria, fora da regra, fora das convenções. E a gente, era no modo de inovação constante. A gente pegou do Museu da Pessoa daqui, o essencial, digamos da ideia, da visão. A gente adorava tudo que se fazia aqui, mas a picar lá no Canadá era mais complicado. Então a gente tinha que desenvolver os nossos conceitos, as nossas ideias de aproximação com as comunidades era diferente também. O vivido era diferente, e tinha uma grande necessidade também, a gente pegou esse eixo, eu acho que tem que fazer isso também, de reintegrar a história das comunidades culturais na grande história, da cidade, da prefeitura, a contribuição deles, a vida deles, e a gente trabalhou bastante com as comunidades culturais, principalmente os portugueses de Montreal, haitianos, libanês, que foram exposições e projetos desenvolvidos pelo Centre D’Histoire, mas apoiado pela metodologia do Museu da Pessoa de Montreal. Então todas as entrevistas, a gente contribuía a uma exposição mais formal através de testemunhos, mas o mais importante era todo o trabalho que a gente fazia junto com a comunidade, a gente implicava, formava jovens da comunidade a fazer entrevistas. Fazia, chamava de “clínica de memória”. Então, chegava na comunidade, era um evento. Isso foi assim, fez um sucesso muito grande em termos de processo pra comunidade, o jovem se recuperar e conhecer a história da comunidade, e também documentar a história da comunidade. Então foram vários projetos entre 2008 e 2012 que iam contribuir a mudar completamente a orientação do Centre D’Histoire de Montreal. Quando a gente saiu do Centre D’Histoire, eu, a _______ ao mesmo tempo, a gente saiu porque realmente queria proteger o Museu da Pessoa, e tinha uma diferenciação de visão entre o que deveria ser o Museu da Pessoa, dentro do Centre D’Histoire do nosso lado e do lado do Jean François. Hoje com os anos, eu vejo que realmente a gente era intraempreendedor, entendeu? A gente fez um trabalho de inovação, de projeto piloto, a gente ajudou a mudar a visão e as orientações do museu, mas que promete que o Museu da Pessoa como o Museu da Pessoa teria dificuldade para viver. Então ele influenciou o futuro do museu da prefeitura, pra se transformar, e foi, eu acho que é uma das maneiras de fazer inovação. Eu tenho essa palavra em inglês, mas entrar num organismo, numa empresa e por dentro mudar as coisas. Eu acho que o papel nosso foi esse aí, e eu acho que é uma maneira de contribuir a fazer que as coisas mudem. Provavelmente, se não tivesse acontecido assim, teria morrido a ONG, se a gente tivesse feito isso aí, é hipotético, mas sozinho do nosso lado ia ser muito mais complicado. Então de ter a estrutura da prefeitura, de ter na atitude da direção aí, pra fazer as coisas, tem um pouquinho de dificuldade também, porque a gente teve dificuldade, criou pra nós como jovens profissionais uma experiência fantástica. Cada um saiu, os principais atores, tem eu, a _____ e a Evelyne ______, as duas tinham estudado em museologia, continuaram na área e estão super profissional até hoje em dia, uma na prefeitura e a outra está… as duas na verdade, outra está no museu científico da prefeitura, mas ela viajou pelo mundo inteiro fazendo exposição, até na Arábia Saudita, com tecnologia de histórias de vida. Então foi uma escola muito boa pra gente. Muito bom.
P/1 - Eu vou destrinchar um pouco o que você falou com algumas perguntas. Quando você conheceu o Museu da Pessoa do Brasil, o que você lembra dele? Como ele era, onde ele era?
R - Bom, a minha visão é que era uma era um organismo em ebulição, estava fervendo, estava borbulhando, tinha essa vontade de expansão no Brasil inteiro, mas também fora. A vontade de criar essa rede internacional. Tudo pra mim era inovador. Tinha muita tentativa de muita coisa, tudo não era assim pra dar certo, mas tem várias experimentações. A maneira que o museu também se organizava em termos administrativos pra mim era como que ele faz pra sobreviver sem ter verbas em termos de business aí era assim pra mim, era um OVNI. Como pode fazer isso aí no Canadá e pensar? Não dá pra fazer isso, a gente tinha muita admiração pelo modelo. Ao mesmo tempo que ele era muito sério nesse aspecto metodológico, tinha uma coisa de que é difícil pras pessoas entender no Canadá, tinha também essa essa vontade de transformação social e mudanças. Então tinha dois aspectos aí que a gente teve dificuldade a reunir um pouquinho no Canadá, que é difícil isso, se faz ao longo dos anos, mas qual o efeito das histórias de vida, sobre as comunidades e tal? As pessoas tavam começando a perceber através dos projetos que a gente fez. Demora pra fazer isso, mas aqui estava acontecendo. Eu tinha responsabilidade de meio que trazer de volta essa energia, esses resultados possíveis, de efeitos positivos. Eu já faço também, fez bastante, ele fez bastante nas autoridades lá da prefeitura, o governo do Quebec também, pra lançar o projeto do Museu da Pessoa, mas a próxima etapa já eu não vou falar disso agora. É mais ou menos isso aí.
P/1 - Esse surgimento do Museu da Pessoa no Canadá, você consegue mais ou menos dizer por que ele surge, qual era a intenção nesse momento?
R - Tem duas coisas aí, tem uma coisa que é bem interna, a instituição, o Centre D’Histoire, o diretor que tinha uma grande vontade de transformar o museu dele através de uma museologia mais social, tem um pouco de receio. Teve uma época no Quebec, eu acho que nos anos 70, que a história oral foi desenvolvida, mas não pegou muito, e ficou assim uma coisa um pouquinho não mal vista, mas não tão profissional, não tão bem feita e tal, coisa meio amadora, um pouquinho. E tinha que lutar um pouquinho contra isso. Justamente a metodologia, o ______ do Museu da Pessoa trouxe isso, né? E a rede internacional também. Mas tinha essa vontade do Jean François aí de realmente querer mudar o museu dele, que ele sabia que ele não podia ficar assim, tinha que ter uma orientação bem diferente daquele museu mais clássico que estava a cem metros dele. Então, pra se transformar ele tinha que realmente pegar um outro rumo, e nós, como jovens, acreditando que através do nosso trabalho a gente pode ter um efeito, que eu não falei que eu pra mim, eu vou trabalhar de manhã precisa ter uma causa? Então eu via as possibilidades positivas de transformação social através da memória e das histórias de vida. Então é isso aí combinado tinha uma energia muito legal no museu. Mas ao mesmo tempo, se tinha a equipe dele que era o desaquecedor do núcleo, nuclear, aí do museu, que botava trava, então ele tinha sempre essa tensão que a gente tinha que tomar cuidado porque eu soube depois que a prefeitura nem sabia que a gente tinha criado a ONG, eles foram saber isso só quando a gente saiu. Eu não tinha contado. Então na inovação eu acho que precisa um pouquinho de loucura, precisa não sempre respeitar todas as regras. A gente vê a inovação disruptiva na moda com o Uber, com a essas empresas que não respeitam as leis, eu não sou de acordo com isso necessariamente porque isso aí estabiliza a sociedade, mas no caso nosso não era muito, né? Pelo contrário, era pro bem, não era pra desmontar uma indústria, era realmente pro bem. Então esses contextos acontecem, difícil de criar isso de uma maneira planejada. São astros e estrelas que vão se juntando, o momento certo, hora é certa. Pessoal dedicado, também momento na sociedade, você estava falando o que criou isso? Eu acho que na paisagem museológica do Quebec não tinha coisas assim, há muito tempo inovadora, diferente. E tinha essa vontade justamente também de valorizar as histórias das comunidades. Então a gente pegou esse eixo, esse rumo. Foi aproveitador? Não, porque precisava. Mas eu acho que é que nem em questões de negócios, você vai prum nicho, vai pruma coisa que você sabe que cê vai poder desenvolver uma coisa, um produto, que vai atender o mercado. Então a gente vive nesse universo comercial. É um pouco a mesma coisa, eu acho, em cultura, infelizmente não deveria, mas depois abriu pra várias outras coisas, outros assuntos, mas eu acho que no começo tinha que ter um o rumo, um eixo que precisava ser tratado e respondido. E isso foi o das comunidades. Isso há 15 anos atrás. Hoje em dia, no Canadá a gente vê a inclusão, aí na diversidade, imagina 15 anos atrás, não se falava muito isso nas instituições, de ter um um diretor de uma outra nacionalidade, o decoro, não sei o que, isso aí não se falavam. Então era inovador também de botar as comunidades pra frente, devolver a história das comunidades pras comunidades, e também de juntar à grande história. Então são elementos e contextos que é difícil de reproduzir. Eu acho que pra um museu, pra um futuro museu que gostaria de nascer em algum lugar, tem que ver esses elementos.
P/1 - E qual era a sua função dentro do museu? Tinham funções divididas?
R - Era diretor, zelador, técnico. Na verdade, fazia tudo, a gente fazia tudo, tinha essa grande, eu acho, felicidade de poder tocar em tudo, desenvolver tudo, a gente não era bom em tudo, mas a gente se inspirava bastante daqui, justamente, era realmente uma referência. E a generosidade da equipe aqui, sempre eu vinha, a gente ligava, fazia, mandava e-mail, eles mandavam recursos, dicas. Era assim. Sem esse apoio, a gente teria demorado muito mais. Acelerou bastante. Então a minha a minha função de diretor, toda a parte administrativa, né? Reunir o conselho, administração, também vendemos projetos junto com o Jean François, encontrar com as comunidades, planejar, reunir a equipe, ir atrás de subvenção de vez em quando, quando precisava, e entregar o material. Eu não fazia muito parte das exposições. Não que eu não gostava, mas eu me impliquei. Então era mais a ______, que era minha colega que tinha estudado em Museologia, ela que fazia ponte. Ela que trazia o material e conversava mais com o Jean François _______ sobre o conceito das exposições, o conteúdo e tal. Então, é isso aí.
P/1 - Você falou que o Museu da Pessoa era uma ONG que vocês criaram, que ficava meio atrelada a esse centro. A coleta de histórias, esse acervo que era coletado, era transferido pro acervo do centro ou não? Ficava separado?
R - A gente criou um site internet, onde tinha o acervo disponível, mas era tanto trabalho, vocês sabem o que é. No começo a gente fazia a transcrição, aí depois foi usado de uma maneira diferente, a gente até recebeu uma verba pra os portugueses, pra poder fazer a transcrição e botar todas as entrevistas na internet. Mas isso é, a gente recebeu um dinheiro pra fazer um site internet. Então a gente tinha uma vitrine, tinha uma exposição virtual dos depoimentos.
P/1 - E teve alguma ação do museu que você achou mais marcante, que você lembra, você falou de algumas agora?
R - Tem duas, na verdade. Tem as “clínicas de memória” que a gente fez com as comunidades, eu acho que o conceito era muito legal porque realmente formar os jovens das comunidades, e eram jovens normalmente que tinham estudado Ciências Sociais, então tinham faculdade, tinham capacidade e facilidade a lidar com o material. Criava núcleo de trabalho e a gente criou as amizades com eles, até hoje eu tenho amigos que participaram e eu conheci no projeto, que eu vejo até agora, até hoje em dia. Então, criava projetos, equipes pontuais, que entre eles, também jovem da comunidade portuguesa, haitianos, ou outras comunidades que a gente fez, criava já isso pra mim, era um efeito muito benéfico da nossa ação que não era muito documentada. Hoje em dia faria, realmente faria um projeto de avaliação muito mais sério sobre justamente o processo de coleta de histórias. A gente usou e abusou dessa fórmula aí, porque ela era muito legal pra criar uma comunidade em volta do projeto, e eles participavam até quando a gente fazia exposição. Por exemplo, ou no Museu ou nas comunidades eles eram os guias, faziam as visitas, animavam, então era assim uma apropriação muito legal da história, não é uma coisa estática. Então é isso aí, eu acho que foi o eu lembro do José falando, nossa Clínica de Memória, é interessante isso, ele é empolgado assim com a ideia, então eu acho que esse aí foi uma coisa super legal e a gente transferiu também, fez um projeto chamava… que era o título, daqui “Você faz parte da história”, que a gente fez um projeto que chamava “você faz parte da história nas escolas”, com os jovens das classes, que chama classe de acolhimento. Então o jovem chega no Canadá, não fala a língua, não fala francês, e ele no primeiro ano, segundo ano, começa a aprender a língua. Muitos são refugiados, muitos são jovens refugiados que vêm do mundo inteiro, de situação complicada, e a gente criou um projeto, a _______ que criou o projeto através dos objetos da família que trouxeram pro país, contar a história da família. Então era filmado e era um projeto durante o ano inteiro que existe até hoje, 15 anos depois o governo ficou financiando esse projeto ano em ano. Então foi também um projeto legal.
P/2 - Você pode falar um pouco mais desse trabalho técnico que você fazia?
R - Na verdade, desde o site internet que a gente criou, a gente tinha que planejar toda a parte de entrevista. No final a gente tinha um tinha um técnico, mas no começo eu fazia filmagem, montagem, depois também quando tinha que fazer montagem, botar as entrevistas na internet, criar o acervo, documentar, a gente fazia tudo, planejamento, a gente alugava van, a gente saia, fazia os projetos nas comunidades, formava também o treinamento de treinador pras entrevistas, porque às vezes eram várias entre 50,60,70 entrevistas num projeto, então era muita coisa, mas foi uma escola muito legal pra gente.
P/1 - E agora voltando pra rede internacional, o que era essa rede? Como ela funcionava?
R - Eu acho que o que oficializou a rede, convidamos a equipe do Museu da Pessoa e outros núcleos interessados em Montreal, acho que foi 2009, prum evento coloque né? A gente fala coloquial, sobre memória, histórias de vida em Montreal, foi o convite feito pelo Museu da Pessoa de Montreal, e lá a gente desenvolveu o que chama Carta de Montreal, que é uma referência, que era a base de funcionamento da rede, que não é uma coisa orgânica na verdade. A contribuição de cada um não era assim super estabelecida, mas quem queria fazer parte tinha que ter uma base mínima de valores e de funcionamento. O que você faz? Faz histórias de vida, você faz trabalho social, memória social, mas foi a partir daí que já tinha vários acontecimentos feitos ou tinha várias coisas em comum antes de chegar a Carta de Montreal. Pra Montreal foi um uma oficialização do que acontecia de uma maneira orgânica entre o Museu da Pessoa de São Paulo e de Montreal. A partir daí a gente teve, digamos, a impressão que os outros núcleos também iam contribuir, tinham a mesma energia que a gente. Porque é isso que era o discurso naquela época, naquela sala, que a gente criou lá essa carta. Eu lembro que a gente trabalhou uns dois dias pra formar e estabelecer esses princípios de base, mas como era desigual em termos de implicação e também de maturidade de núcleos, eu acho que foi simplesmente, não se desfazendo, mas não interessa, eu acho que foi diminuindo também o Museu da Pessoa, que deve ter tido outras preocupações, mas eu acho que pra manter uma rede assim, a energia tem que ser muito focada na logística e nas relações. Não pode ser simplesmente orgânico assim, “traz o que você puder”. Não, tem que ser organizado, tem que ter uma verba de cada museu pra uma responsabilidade, um responsável de cada museu pra fazer, para manter essa rede em vida. A gente tinha essa capacidade lá em Montreal até 2012. Depois mudou, né? Depois da minha saída, da saída da minha colega _______, e não tinha mais essa vontade de manter o vínculo. Então foi mais complicado, lá nos outros núcleos também não sei se eles tinham a estrutura que a gente tinha, eu acho que não, mas a questão, a pergunta na verdade é se você pode voltar pra clarificar o se eu estou bem da boa trilha estou tranquilo, mas mais uma vez uma conjuntura de vários elementos, todos os núcleos não eram no mesmo lugar, ao mesmo tempo, com as mesmas capacidades, energia, tempo pra fazer acontecer. Eu acho que ainda tem lugar pra fazer isso, tem estrada pela frente pra voltar a ter uma espécie de movimento, mas ainda você tem que… é tempo, sinceramente é tempo e investimento em termos de logística. Os grupos vão entrar e o que eu posso receber na verdade? É isso, né? A rede vai ser isso. Lá no Canadá, a gente não tinha dúvida que a gente tinha vergonha de vez em quando de fazer o que a gente vai oferecer pra ir de volta pro Museu da Pessoa de São Paulo, que era o fluxo de informação e de doação que você fala "pra retribuir isso ser difícil", mas na verdade com o tempo, pensando, a gente foi quem foi mais longe nos núcleos. Tem ainda uns que existem hoje, mas era diferente realmente as pessoas no lugar são importantes ou o contexto do organismo, não tem segredo eu acho que difícil de falar a receita boa é essa, eu acho que o contexto é tudo e, às vezes, você fala “a ideia é interessante mas o contexto não está aparecendo, vamos esperar um pouquinho”. Naquela época, se vocês se lembram 2008, era o segundo mandato aqui do PT, tinha muito dinheiro investido na cultura, cultura ela é super valorizada, não tinha a situação, o contexto que você tem atualmente, eu acho que de repente essa questão das histórias pode ser também um veículo, histórias de vida pra reconstruir essa ligação social que precisa que seja aqui no Brasil, que seja nos Estados Unidos ou no Canadá, que foi feita através dos eventos políticos que a gente viveu no passado, das oposições que a extrema-direita e a extrema-esquerda, por exemplo, tentaram deixar a gente privado? Não. Palavra nova. Eu tenho uma separação, né? Uma divisão da população que é a polarização, é exatamente nos grupos que eu acho que as histórias de vida podem ter um papel pra reaproximação da sociedade. Então, não é só aqui no Brasil. Eu acho que pegar a rede internacional como uma ferramenta pra reaproximação da sociedade, das pessoas, porque foram as pessoas, não são movimentos políticos, as pessoas nos bairros se tratando mal, se desrespeitando, vizinhos, amigos, família, eu acho que realmente é uma tristeza grande, mas eu acho que as histórias de vida podem ser uma arma contra isso, um remédio contra isso, na verdade.
P/1 - Como e por que terminou o Museu de Montreal, o Museu da Pessoa do Canadá?
R - Bom, eu falei que a prefeitura não sabia que era uma ONG. Então quando eles souberam disso, pediram gentilmente pro Jean François fechar a ONG, mas isso não acabou com o Museu da Pessoa. Na verdade, a história com a equipe do Museu da Pessoa, que tinha criado a ONG, terminou no outono de 2012, porque foi feito a partir desse momento um planejamento estratégico do museu do Centre D'Histoire, pelo Jean François, no qual participamos, a equipe do Museu da Pessoa pedindo pra participar. Não foi tão oferecido assim, a gente pediu pra participar porque a gente achava que a gente fazia parte também do centro, a gente jogou o jogo de fazer essa nova estratégia. Foi chamado um consultor externo, pegou todas as ideias e tal "vou criar a nova visão no centro de história pros 5 anos que vem" e quando a gente leu o report lá, a conclusão, o documento dele sobre a visão do Centre D'Histoire de Montréal, a gente via o Museu da Pessoa mas sem o Museu da Pessoa. Então não existia mais o nome Museu da Pessoa. Aí a gente começou a falar "não pode ser, todas as ações de memória, de história de vida estão embutidas no Centre D'Histoire, mas não vou falar mais, então morreu". E a gente tinha muita muita ligação, eu principalmente, como eu tinha sido contato entre o Museu da Pessoa e o Centre D'Histoire eu falei, "não pode fazer isso aí pro Museu da Pessoa de São Paulo. Foi doado tudo isso e a gente joga no lixo, some, não tem referência nenhuma, não pode ser isso". Então a gente começou a ter conversas afiadas aí com eu com o diretor, e criou uma tensão, que eu vi que não ia mudar. Isso que foi apresentado pras autoridades da prefeitura "ah, aqui as novas linhas de orientações", que foram aceitas, mas aí eu falei "a partir daí eu não posso continuar". Na verdade, um pouquinho, é claro que é ligado à minha lealdade aí com o Museu da Pessoa daqui, que pra mim, vai achar uma maneira de continuar a ter esse contato, mas eu tinha também muito mais apego, afeição pelo Museu da Pessoa do que eu tinha pelo Centro de História. Então eu defendia o Museu da Pessoa dentro, e como identidade, pra mim, tinha que sobreviver o nome Musée de la Personne, que foi se desenvolvendo, que vem daqui. Não era bem a visão assim do Jean François "bom, vamos fazer um mix aí de tudo e reabrir o novo nome e vai pra frente, vai continuar Centre D'Histoire, mas a gente vai integrar tudo que foi feito, o protótipo, as ideias, a visão, os valores, vai fazer um novo Centre D'Histoire". Aí eu, na verdade, a gente chegou a brigar mesmo. Chegou a ter uma cisão, uma ruptura de confiança porque falava uma coisa, não acontecia. E muito depois que eu entendi que eu acho que não era planejado, mas que em momentos de inovação tem várias formas de transformar as coisas e a gente serviu um pouquinho de elementos transformador dentro de uma… acontece isso, você não é obrigado a ter uma nova, criar um novo projeto, você pode vir fazer uma inovação, você ter uma presença temporária pra influenciar sobre os acontecimentos no organismo e vai embora depois. Ele mudou pra sempre o centro de história, na verdade, a gente mudou, transformou ele. Quando eu falei que a gente era empreendedor interno, intra empreendedor, é isso, a gente veio por dentro, mudou a coisa, saiu e ele nunca mais voltou pra trás. A partir do momento que a gente saiu, são vários anos, que eu já faço a tentar convencer as autoridades de rever a missão a partir desses elementos, transformar, ter uma verba, mudar de lugar, sair do velho Montreal, ir pro centro da cidade, no lugar mais agitado, mais moderno, menos turístico, mais ligado a vida comum do dia a dia, um museu pras pessoas de Montreal. E ele conseguiu convencer as autoridades. O museu hoje chama MEM "M,E,M" Centre des Mémoire Montréalaises, baseado sobre a Tecnologia Social do Museu da Pessoa, entrevistas, histórias de vida. Ele vai abrir as portas agora em setembro, outubro de 2023, dessa transformação que a gente fez, morreu o antigo museu, e vai nascer um museu completamente transformado e baseado em histórias de vida das pessoas de Montreal. Então a gente conseguiu na verdade a mudança, mas foi sofrimento. Eu passei através de uma depressão depois, porque eu perdi o meu bebê. Eu perdi uma coisa que eu tinha, a gente deu luz pra essa coisa e foi meio que arrancado um pouquinho. Então foi complicado, 2012 eu entrei num outro emprego, sai da área de história, fui pra cultura também, mas é outra área completamente, mas eu vivi meses de sentimento de ter sido roubado. Então isso foi complicado, foi difícil. Eu tinha muito rancor. Quando trabalhei com inovação eu vi que na verdade meu trabalho tinha sido benéfico, e na verdade tem várias maneiras de inovar, que a gente realmente fez uma diferença na história do museu da cidade, e isso eu fiquei contente. A única coisa que eu estava conversando com a Karen, "tem que ter referência, naquele histórico desse museu que vai nascer, ao Museu da Pessoa daqui e a influência que ele teve". Então um dos meus papéis nos próximos meses, é relembrar a história. Vou fazer uma campanha política aí de não vai ser com as pessoas do museu, provavelmente, mas vai ser um pouquinho mais político pra convencer assim certas pessoas de relembrar da onde que vem. A gente não vê no histórico do museu uma coisa que seja satisfatória em termos de perfil, de histórico, eu estou pronto a brigar.
P/1 - Agora passando um pouco pra uma avaliação mesmo, que você já foi fazendo um pouco na sua fala, mas de todo esse processo do Museu da Pessoa da rede internacional, os projetos eram recebidos pela comunidade bem ou tinha uma dificuldade, que vocês atuavam com grupos culturais bastante diversos, então a comunidade, logo de cara já recebia bem o projeto?
R - Isso dependia de como vai interpretar, não a interpretação, mas na verdade o cenário e o fio condutor da exposição era transmitido. Porque você tem o material bom de histórias de vida, mas se ele não é bem transmitido, então isso às vezes é umas exposições aí que não conseguiam transmitir bem a história da comunidade ou de uma maneira que todo mundo se reconhece nesse fio condutor, aí se tinha críticas, mas mais críticas eu acho da parte museológica do que as próprias histórias. A dificuldade às vezes de entender o processo como todo, né? Nessa parte de inovação, no começo, como a gente não tinha experiência, a gente era teórico um pouquinho, até diria um pouquinho acadêmico, então a gente tinha o material daqui, mas também a animação dessas clínicas e desses eventos, a gente tinha que inventar. Então como que a gente chega, explica as coisas, ensina, não ensina, mas demonstra que o processo integral vai ser benéfico pra eles, que é a minha história de vida e tal? A gente tinha vinte e poucos anos e tinha que realmente vender o projeto pra comunidade, os decididores aí, quem vai decidir se vai inovar e depois pras pessoas que vão e dá história de vida e trabalham. Isso era complicado no começo, então a gente ajustou e soube criar ligações com as comunidades não chegando logo de cara com "vamos fazer entrevista da tua vida agora hoje. A gente não se conhece", então eu tinha uma preparação, às vezes a gente mudava, tinha o formal assim mas meu é isso era muito formal, então podia nas próprias comunidades, não no museu, e a gente fazia as entrevistas até em casa. Então, mudava essas coisas assim, aprendia, trocava, é isso. A pergunta é se eu posso de repente botar outra, você tem você pode fazer a pergunta de novo perguntar.
P/1 - Como é que era recebido esses projetos que vocês faziam?
R - Bom, a gente fez projeto, eu falei, dos portugueses, os haitianos. A gente fez com a comunidade chinesa também de Montreal. Aí o suspeito que a gente foi meio que olhado pelas autoridades locais chinesas em Montreal. Porque o nome do projeto é "Enquête d'histoire", em francês é "À procura de histórias", é um jogo de palavras. E "enquête" em português é pesquisa, mais inquérito?
P/1 - Enquete, talvez.
R - O que que ia sair daí? Porque podia ter assim política no meio das histórias de vida e tal. Então a gente foi, mas não aconteceu nada disso e a comunidade gostou bastante, foi bem recebido em geral. É muita implicação, você não pode fazer isso de uma maneira maquinal, como uma uma máquina, você não é uma coisa assim um máquina de uma indústria. Você não pode fazer isso aí. Sempre tem que ter aquele propósito assim atrás do projeto. Isso aí a gente já tentou fazer algumas coisas meio mais corporativas, foi muito ruim. No hospital, né? Então não tinha aplicação da comunidade, era uma coisa assim pra relembrar a história do hospital, que tinha cem anos, hospital de criança, mas foi frio, não assim o objetivo do Museu da Pessoa através do projeto de ter um efeito através do propósito das histórias de vida, foi através da exposição só, não foi através do processo. Isso pra mim, faltava uma coisa, faltava o grande benefício pra comunidade.
P/1 - E pensando nesse período, o que você diria que foi algum erro ou equívoco que vocês cometeram, alguma história que você se lembre disso?
R - Não sei se é um erro aquilo. Muitas vezes quando você cria um projeto, você define uma forma social, uma forma pessoa jurídica, por exemplo. Foi uma das primeiras coisas que a gente fez pra juntar dinheiro, fazia pessoa jurídica, muitas pessoas em inovação fazem isso. Eu acho que é um erro, cria o teu projeto a teoria de mudança o que você quer fazer ou sabe as parcerias e tal, mas pessoa jurídica espera, porque traz problemas administrativos, se não for precisar, prototipa antes, entra como a gente fez, eu acho que foi bom, mas não precisava criar ONG, só criou no começo, as coisas tem que ser livres e soltas. Tenham um ambiente aonde permite inovação sem as travas, sem as coisas que podem atrapalhar, como é as coisas administrativas, porque eu passava tempo fazendo administração, conselho Administrativo, não precisava disso pra fazer o que a gente fez.
P/1 - E agora o oposto, o que você acha que foi um grande acerto, alguma história que você lembra que deu muito certo?
R - Antes de passar no certo, o erro também: como a gente foi introduzido na estrutura, eu acho que as coisas tem que ser claras com a equipe que você impõe o novo projeto, tem que ser claro sobre os limites e as possibilidades, recursos que esse novo projeto vai ter, aonde você vai, você tem que realmente declarar a tua visão desde o começo, mesmo se ela não é clara, não é visão, mas a proposta, a visão vai vir depois, mas a proposta inicial é "a gente quer experimentar, todo mundo tá aberto?", porque as travas nessas horas impediram, por exemplo, certas pessoas impediram que a gente fizesse coisas em dois dias, invés de dois meses, porque tinha que passar pelo corredor ali pra vir e voltar e fazer a coisa. Então, realmente instalar um ambiente de confiança através de uma proposta clara, de "vamos inovar todo mundo. Vamos ter que testar". Uma coisa eu acho que é bom que a gente fez é fazer isso de dentro de uma instituição que já existia, que tinha recursos, que tinha uma reputação boa, que tinha, apesar de tudo, espaço pra inovar um pouquinho porque a forma que o museu nasceu era inovadora já ou centro de história, então esses elementos e recursos, a gente era um pouco como segundo segundo nível, em termos de funcionário, a gente não tinha a mesma categoria de emprego, por exemplo, era sub funcionário, umas condições ruins e isso não pode ser também. Então isso é um erro. O bom que a gente fez justamente é realmente tem que ter as condições, não estou falando de recursos milionários, mas as condições muitas vezes são as que vão permitir o nascimento de uma ideia como essa aí, capacidade de prospecção da equipe, crítica, capacidade a fazer erro, é importantíssimo porque a gente tinha uns colegas meio perfeitinhos, sabe? Não quer. "Ah, não, pode fazer isso porque não é assim". Então, você como responsável tem que realmente definir as fronteiras ou abrir as fronteiras. Isso é até uma preparação e é fundamental pro, eu acho, que pra Rede é a mesma coisa, claridade nos objetivos, claridade também no que cada um traz, cada um recebe e eu acho que é importantíssimo.
P/1 - Como você pensa uma futura nova rede internacional de Museus da Pessoa?
R - Eu acho que tem que construir nas chamas, nas brasas, do que existia já. Se puder. Tem alguns lá que eu sei que ainda funcionam. Eu acho que Montreal pode ser também um aliado se a gente pegar as boas pessoas. Se a gente conseguir escolher as boas pessoas. Mas eu acho que o propósito tem que ser claro. E essa questão que eu sugeri aí, de reaproximamento, tem um complexo espacial que, eu acho, permite, na época era efervescência, tinha uma coisa, não era um gadget, mas era uma coisa luxuosa na época, hoje em dia eu acho que ele virou uma necessidade. Essa rede virou uma necessidade. O propósito do Museu da Pessoa pode ser via o tempo, pode ser uma causa social que é necessária hoje. Bom, os projetos vão nascer, as ideias vão chegar, mas o propósito tem que ser diferente da época da rede. Hoje em dia também a tecnologia é muito diferente. Permite muito mais coisas. Tradução é ao vivo. Você tem a capacidade de fazer essas coisas internacionais, mas o que eu lembro da época? Eu acho que, aprendendo do meu trabalho mais recente é que você tem que comer um elefante uma bocada de cada vez, bocada por bocada, começa pequeno com os bons elementos. Se você vê que tem um elemento não fraco, mas que você tem dúvida, não pega, faz dois, três núcleos, vão juntando. Se a gente tivesse pego assim, por exemplo, Estados Unidos, Canadá, Brasil e fortalecesse esse núcleo, mas teve uns elementos aí que mexeram na história que fez que a gente se perdeu um pouquinho e também o Brasil não podia levar isso pra frente sozinho. Eu acho que esse é um elemento importantíssimo, democracia dessa rede era ter que ser repensada, o funcionamento, o modo democrático, né? Não que não era democrático, mas eu acho que tem que ir pra pra ser incomum, tem que ser diferente. Então é porque se não o Brasil não vai ter os recursos daqui, o Museu da Pessoa não vai ter os recursos, vai ser mais complicado até. Eu acho que realmente tem que repensar o modo de funcionamento, da responsabilidade de cada um dos núcleos. Mas que tem espaço, eu acho que tem espaço.
P/1 - E depois que você saiu do Museu da Pessoa, você falou que foi trabalhar com cultura, que foi esse trabalho?
R - Bom, foi super interessante porque eu trabalhei numa ONG do Cirque du Soleil que chama _____, é um centro de arte circense, que fica no terreno do Cirque du Soleil lá em Montreal. Ele é uma ONG que tem 3 eixos de desenvolvimento: circo, meio ambiente social. Ele fica do lado de um antigo lixão, enorme, que está sendo transformado em parque. Então toda a conscientização no meio ambiente através da animação desse parque; social aqui é integração social dos jovens do bairro onde ele fica, que é um bairro bastante pobre e todo o desenvolvimento do artista circense no Quebec através de uma programação cultural de circo de alto padrão e apoiar também o desenvolvimento do circo através da educação, tem uma escola de circo no terreno e também produção de show, produção de ajudar a indústria circense a se desenvolver. E tem uma sala de circo, né? Sala de apresentação lá, que é grande, então tem apresentações e eu era responsável de toda a parte de parcerias e financiamento. Fiquei lá 6 anos, bastante. Não tem nada a ver com história, mas tinha realmente uma parte de… o propósito dela também era super legal porque era um propósito tripla proposição: cultural, ambiental e social. O meu papel também como responsável das parcerias era ter certeza que essa tripla articulação de social, cultural e ambiental esteja autêntica. Foi muito falado como exemplo único de desenvolvimento sustentável da cultura, da área da cultura, essa instituição. Então eu fiquei lá 6 anos. Adorei a minha participação nessa aventura. A gente criou um festival de circo também, então foi um grande evento profissionalmente, foi também muito importante.
P/1 - E hoje com quem você trabalha?
R - Hoje eu estou na ONG também, né? Na verdade, depois disso, eu passei mais 6 anos numa fundação filantrópica, como responsável de projetos de inovação e também na área filantrópica hoje em dia no United Way lá em Montreal, que é uma fundação internacional, mas localmente a gente trabalha pra ajudar os organismos, apoiar os organismos que ajudam as pessoas marginalizadas e toda questão da exclusão econômica e social. Eu sou responsável pelo projeto de transformação digital, na verdade um dos meus primeiros amores ainda, tecnologia e tal da área do terceiro setor do Québec. Então a gente está com um projeto de sensibilização, formação e programa na área de leadership, transformação digital.
P/1 - E voltando um pouco pra sua família. Você casou com a Gabriela, né?
R - Sim.
P/1 - E vocês tiveram filhas, né?
R - Uhum.
P/1 - Quantas?
R - Dezessete. Não. A gente teve duas filhas maravilhosas, a Norris, que tem 14 anos hoje, nascida também no Canadá e a Rosalie, que tem 12 anos.
P - E como foi esse processo de paternidade?
R - Nossa, fantástico! Eu sou muito implicado. Na época que eu trabalhava na ONG em inovação, que financiava os projetos de inovação, a gente apoiava vários projetos de paternidade positiva, né? Era bom porque eu ouvia os estudos, os projetos, e eu tava super com meninas de três, quatro, cinco anos. Então eu tive muita influência positiva desse lado e eu também pessoalmente adoro, é o primeiro papel na vida, é isso antes de ser um profissional, marido e pai, obviamente. Então elas são fantásticas, duas meninas sensíveis, inteligentes, tô satisfeito como pai. É um trabalho digamos importante e delicado. Ainda mais hoje em dia, duas meninas nesse mundo, duas crianças nesse mundo. Eu acho que eu consegui, com o meu perfil, se eu faço a conexão de todos os meus empregos e projetos, porque não é emprego, na verdade pra mim, realmente eu entro num projeto, é super eclético, de história até transformação digital, mas sempre tem essa questão da justiça social que é importante em todos os projetos, tudo que eu faço na minha vida, eu tento também transferir pras minhas filhas. Eu vejo que hoje em dia é realmente um desafio grande sensibilizar os jovens essa questão, eles são cada vez parece mais desconectados, mas não é tanto. Então tem uma que quer ser ministra do meio ambiente, nada menos, e a outra professora. Então vamos ver, tem que continuar guiando elas no bom sentido
P/2 - E hoje, como é seu cotidiano?
R - O meu cotidiano é bastante ocupado. No Canadá a gente tem uma vida bem diferente do Brasil. A gente tem pouca ajuda, né? A minha família tá lá ajudando um pouquinho, mas tem um pouquinho mais individualista digamos. Então o cotidiano, as tarefas, a vida cotidiana, ela pode ser pesada na América do Norte, é mais complicado. Agora a gente está saindo assim da pequena infância, elas são adolescentes, os desafios são diferentes, os medos de pai e as alegrias são diferentes, mas sempre uma benção de ver crianças crescerem, a gente se realizar profissionalmente. Eu vejo que o meu cotidiano, eu tô vendo quando começou o Museu da Pessoa e hoje, 2008 eu vinha pro Brasil e tinha o Fórum Social Mundial, tinha terceira via, outro mundo é possível, tinha uma expectativa, eu vinha pra cá vendo essa energia que tinha no Brasil, que tinha também um pouquinho na América do Norte, mas não tão assim. Eu vejo aqui o meu cotidiano hoje um pouquinho mais fechado, honestamente, as possibilidades são muito menos agradáveis que na época. Eu acho que isso aí é um sentimento bem diferente, sem ser pessimista, mas tem que ser realista, e quando você é realista, qual é a minha opção agora? Eu olho em volta e falo "qual é a opção das minhas filhas?". Como pai, a preocupação é essa, como uma pessoa que também se preocupa pra meio ambiente, as mudanças climáticas. Vai ter que pegar de um outro jeito pra virar isso positivo para os jovens porque o desafio é grande. O estrago que a gente fez está complicado.
P/1 - Agora começando as perguntas de encerramento, como foi contar sua história?
R - Eu nem tinha feito ideia na minha cabeça antes de ser vítima hoje, "como que eu vou organizar as minhas ideias?". Você fica pensando porque eu fiz tantas vezes, eu lembro o tempo tinha pessoas que tinham roteiro, vinham tentando contar o roteiro de história de vida delas. É bom porque na verdade dá um geral sobre os acontecimentos da minha vida, reposicionando algumas coisas, dando mais importância pra outra. Mas como eu sou uma pessoa que sempre faz essas reflexões, não foi tão difícil, mas pra ser um bom contador... Porque tem pessoas que vem na frente e falam "nossa", você fala "gente, isso aí é" ou chora ou dá risada, ou cê fala, "nossa, não é um talento", mas tem pessoas que é mais agradável. Eu imagino que vai ser mais uma coisa estática. Mas como que foi? Eu acho que é uma passagem obrigatória e não deveria ser uma vez na vida, na verdade. Devia fazer isso a cada década, pra ter uma visão, o que aconteça ou não aconteceu? Pra dar realmente um esclarecer de alguns pontos. Contar na frente das pessoas isso aí. Eu tinha imaginado muitas vezes dele ser constrangedor, escolhi algumas coisas, não outras, eu não fui em todos os detalhes, não é uma terapia Então, esse equilíbrio.
P/1 - E quais são os seus sonhos pro futuro?
R - Meus sonhos, sinceramente, eu espero realmente que a gente vai conseguir poder dar perspectivas e futuro pros nossos filhos, pra próxima geração, pra geração atual, pra terminar nossa vida também assim uns 30, 40, 50 próximos anos de uma maneira legal. Não pode ser assim, é impossível que as coisas… os status atual não dá pra continuar. Entre sentado ou entre duas cadeiras que a gente fala. Ou a gente pega firme o nosso futuro, que eu acho que o ser humano está meio mais ou menos, tem que dar um pé na bunda pra ir pra frente. E por isso aí eu acho que movimentos como uma rede internacional de histórias de vida é uma coisa só positiva, tem que voltar a contaminar, tem que voltar a ter essa energia, a contribuir prum mundo melhor era uma frase assim: "outro mundo é possível". É uma frase assim quando eu repenso na época, o mundo já não era tão ruim como até hoje em dia. Hoje em dia essa frase tem ainda mais sentido. E eu acho que o contexto da época mudou, mas a proposta do Museu da Pessoa é ainda mais importante. A minha perspectiva pro futuro é que ele tomasse uma posição ainda mais, pode ser mais radical, mais intensa, mas ele tem uma contribuição muito grande e eu espero poder fazer a minha parte pra voltar lá a Montreal e ter uma ligação se eu posso fazer isso. E eu, pra mim, poder continuar a ter projetos assim que mudam um pouquinho o mundo cada dia e faz que o mundo seja um pouquinho melhor. Eu acho que é assim que a gente vai pra frente.
P/1 - Tem alguma história que você não contou que você queria contar agora no final?
R - Eu não contei muito da história da integração da Gabriela no Canadá. É importante porque eu acho que faz parte da minha vida. Não foi fácil, imigração não é fácil. Eu não tive tempo porque você abre esse parênteses e você abre um mundo, mas eu queria só sublinhar que é um caminho. Eu não tive a coragem de fazer o contrário, isso quer dizer muita coisa, que ela foi muito corajosa, é isto.
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