Projeto: Incor 25 anos
Depoimento de Bellkiss Wilma Romano
Entrevistado por Rosana Miziara e José Carlos Vilardaga
São Paulo, 01/09/1999
Realização Museu da Pessoa
Código: ISP_HV006
Transcrito por Stella Maris Scatena Franco
Revisado por Ligia Furlan
P/2 - Projeto Serviço de Psicologia Incor 25 Anos, depoimento da doutora Bellkiss Wilma Romano, entrevistada por Rosana e José Carlos, Sandra, Fernanda e Cristiane.
R - Assistida por... (risos)
P/2 - Assistida por... (risos) São Paulo, 1º de Setembro de 1999, no anfiteatro do Incor, entrevista ISP 006.
P/1 - É do entrevistador. Elas trouxeram uma lista aí que eu levei. (risos)
R - Ah é?
P/1 - É. (risos)
R - Bom, eu me reservo o direito de não responder, certo? Perguntar pode sempre. (risos) Então pronto, eu estou calma.
P/1 - Bom, doutora Bellkiss, para começar eu vou pedir para a senhora se identificar, aquilo era só uma claquete. (risos)
R - Ah tá. Bom, eu costumo ser chamada de Bellkiss. Diretora do Serviço de Psicologia do Incor. É isso? O que mais você quer?
P/1 - O ano do seu nascimento, a cidade...
R - Meu Deus, que coisa horrorosa! (risos)
P/1 - Ah, Bellkiss!
R - Todo mundo fala, assim, fácil? A idade, tudo?
P/1 - Nossa! Adora! Quando começa essa parte é o que as pessoas mais gostam.
R - Isso é grave. (risos) Eu nasci em 1948, numa data super fácil de guardar: doze de dezembro de 1948, tudo é fácil de guardar. Em São Paulo... E se tudo correr bem, “morrida” também em São Paulo.
P/1 - Seus pais são de São Paulo?
R - São de São Paulo.
P/2 - Doutora Bellkiss, o que os pais da senhora faziam?
R – Faziam não, eles fazem ainda. Nossa, é uma turma atacadíssima aquela lá, uma dupla dinâmica. Nós somos descendentes de italianos por parte da minha mãe. A minha avó materna era italiana e meu avô materno também, os dois do sul da Itália, aqueles bem mafiosos mesmo, bem lá do sul da Itália. Minha avó veio para cá com dois anos de idade, meu avô...
Continuar leituraProjeto: Incor 25 anos
Depoimento de Bellkiss Wilma Romano
Entrevistado por Rosana Miziara e José Carlos Vilardaga
São Paulo, 01/09/1999
Realização Museu da Pessoa
Código: ISP_HV006
Transcrito por Stella Maris Scatena Franco
Revisado por Ligia Furlan
P/2 - Projeto Serviço de Psicologia Incor 25 Anos, depoimento da doutora Bellkiss Wilma Romano, entrevistada por Rosana e José Carlos, Sandra, Fernanda e Cristiane.
R - Assistida por... (risos)
P/2 - Assistida por... (risos) São Paulo, 1º de Setembro de 1999, no anfiteatro do Incor, entrevista ISP 006.
P/1 - É do entrevistador. Elas trouxeram uma lista aí que eu levei. (risos)
R - Ah é?
P/1 - É. (risos)
R - Bom, eu me reservo o direito de não responder, certo? Perguntar pode sempre. (risos) Então pronto, eu estou calma.
P/1 - Bom, doutora Bellkiss, para começar eu vou pedir para a senhora se identificar, aquilo era só uma claquete. (risos)
R - Ah tá. Bom, eu costumo ser chamada de Bellkiss. Diretora do Serviço de Psicologia do Incor. É isso? O que mais você quer?
P/1 - O ano do seu nascimento, a cidade...
R - Meu Deus, que coisa horrorosa! (risos)
P/1 - Ah, Bellkiss!
R - Todo mundo fala, assim, fácil? A idade, tudo?
P/1 - Nossa! Adora! Quando começa essa parte é o que as pessoas mais gostam.
R - Isso é grave. (risos) Eu nasci em 1948, numa data super fácil de guardar: doze de dezembro de 1948, tudo é fácil de guardar. Em São Paulo... E se tudo correr bem, “morrida” também em São Paulo.
P/1 - Seus pais são de São Paulo?
R - São de São Paulo.
P/2 - Doutora Bellkiss, o que os pais da senhora faziam?
R – Faziam não, eles fazem ainda. Nossa, é uma turma atacadíssima aquela lá, uma dupla dinâmica. Nós somos descendentes de italianos por parte da minha mãe. A minha avó materna era italiana e meu avô materno também, os dois do sul da Itália, aqueles bem mafiosos mesmo, bem lá do sul da Itália. Minha avó veio para cá com dois anos de idade, meu avô veio um pouquinho mais tarde. Como tinha aquela coisa dos italianos morarem todos juntos, enfim, a professora era italiana, o vinho que eles tomavam era da Itália e o presunto que vinha era também da Itália, enfim, tudo Itália... Ela morreu com quase 90 anos de idade sem ler e escrever português, ela só lia e escrevia italiano, então ela falava aquele português meio estranho, mais italiano do que não sei que, porque a professora falava italiano, o vizinho falava italiano, ela casou com italiano, enfim... Então ela cuidava da gente, dos netos. Ela teve 13 filhos, um monte morreu, ficaram oito vivos, então tinha um monte de neto, e com os netos ela só falava em italiano. Mas de vez em quando a gente apertava, porque não entendia, acabava falando português. No fim da vida, então, virou assim, só italiano de novo, aquele negócio. O meu avô materno eu não conheci, ele morreu curiosamente de penicilina, teve uma reação alérgica à penicilina e morreu de penicilina. Pode?!
P/1 - É, teve bastante caso.
P/2 - Era comum.
R - É, na época a penicilina era guardada em geladeira ainda, umas coisas bem... E os avós paternos... O meu avô paterno era filho de italiano, a mãe dele morava aqui, conviveu muito tempo com o meu pai, então também na casa dele se falava italiano. A minha avó paterna − aí era uma mistura − era filha de espanhol com francês, então era assim: esse meu avô paterno era mais do norte da Itália e essa minha avó era da Riviera, francês e espanhol. Era uma turma assim, mais de cima, uma mixórdia europeia, mas eles moravam aqui, trabalhavam aqui, todo mundo nasceu aqui.
P/1 - Em que bairro eles moravam?
R - Os pais do meu pai uma época moraram na Mooca e logo eles mudaram para o Morumbi, depois, quando o meu avô morreu, ela se mudou para o Pacaembu. Então é assim, um pouco de trajeto também pela cidade. Já os avós maternos não, eles moravam na Mooca e depois nós mudamos todos aqui para o Ibirapuera. Mas eu era bem pequena, algum tempo ainda convivi lá.
P/1 - Os seus pais se conheceram como?
R - Se eu te contar você não vai acreditar. O meu pai era amigo do irmão da minha mãe de longa data, ele não tinha conhecido, não conhecia a minha mãe, enfim... Um dia ele foi até a casa deles para acertar um piquenique e a minha mãe estava de bobe indo dormir... Bobe não, papelote, chamava papelote. (risos) Estava indo dormir e passou assim e disse: "Vou pegar um copo d'água”. Foi do lado de lá e qualquer coisa, enfim, meu pai ficou apaixonadíssimo. Acho que é o único caso que eu conheço assim, à primeiríssima vista. (risos) E única vista. E aí já a incluiu no piquenique: "Por que você não leva a sua irmã?" Enfim...
P/2 - Mas com papelote? (risos)
R - É. Não, depois, no dia seguinte, ela estava arrumadinha. (risos) Aí pronto, eles começaram a namorar, o meu pai tinha 18 anos, a minha mãe tinha também, e casaram. Em dois anos eu acho que eles se casaram. E está aí firme, faz 50 e tantos anos que estão juntos.
P/2 - Qual era a atividade dos seus avós? O que eles faziam? Tinham comércio...
R - Então, esse meu avô italiano trabalhava com esses produtos importados, ele fazia importação. Mas ele tinha um hobby muito legal, lá em casa a gente tem ainda o costume de trabalhar com madeira, e temos também um cálice que foi talhado por ele, tem um quadro que conta uma história de Cristo, entendeu? Esculpido, nós falávamos que era esculpido. Tem uma série de trabalhos dele de madeira que ele gostava muito de fazer. Já a minha avó era dona de casa, com aquele bando não tinha outro jeito. (risos) Depois que meu avô morreu ela ficou vivendo de aplicações financeiras. A velhinha que cuidava disso era um horror! Mas era muito legal, essa minha avó era muito jóia. O lado do meu pai não, o lado do meu pai sempre teve indústria. Tiveram metalúrgica, eles faziam talheres daquela liga... Sabe, como se usa no interior ainda? É uma liga de metal, não é aço inoxidável. Usa-se muito no interior, se usa muito em Minas Gerais ainda, são uns talheres diferentes... Na verdade esqueci o nome daquela liga... Então o meu avô tinha a metalúrgica e uma casa de calçados, que ele comprou muito depois. Depois ele comprou uma fazenda gigantesca...
P/1 - Mas ele veio com dinheiro da Itália ou ele conseguiu...
R - Não, ele que conseguiu. É. Porque a minha bisavó desse lado veio viúva para cá, não sei se ela trouxe algum dinheiro escondido aí, mas enfim, eu sei (que?) o meu avô é que foi fazendo. Essa minha avó trabalhava inclusive nos negócios da família, ela não era do lar, tinha a sogra que ficava com as crianças e ela também ia para a fábrica.
P/2 - Trabalhava tudo junto?
R – É, ela era mais moderninha. (risos)
P/1 - Super moderna.
R - Mas ela tinha uns negócios antigos. Eu vou contar uma coisa antiga dessa minha avó comigo e com o meu pai... Aliás, para dizer a verdade... Era assim: esse meu pai teve mais dois irmãos. Tem uma moça no meio e ele é o mais velho. Uma no meio e outro rapaz. E essa minha tia é concertista, ela toca piano, harmônica, o que você puder pensar a mulher toca. Eles tinham piano de cauda na casa, tinham uma casa imensa, inclusive uma a sala do piano. Esta minha tia concertista passava os dias dela tocando... Sabe aquelas teclinhas: “pim-pim, pim-pim, pim-pim...” (risos) E meu pai não aguentava mais. Então ele tem bem claro isso, que a mulher atormentava naquelas duas teclas. Não sei como é que chama aquilo, não é tecla. Como é que chama o negócio de piano? É tecla?
P/2 - Teclado?
R - É, sei lá. Bom, enfim, aquelas duas notas. Então o meu pai ficou com esse trauma. Depois, quando eu cresci, já estava na hora de ir para o piano, pois moça de família tocava piano. Eu acho que eu fui a duas aulas de piano. (risos) Quando eu cheguei em casa que eu precisava ficar no “tem-tem, tem-tem”, o meu pai disse: "Pode parar! Pode parar porque filha minha nem pensar que não vai tocar piano." (risos) É verdade. E ele me pôs em um curso de inglês. Então com nove anos de idade, ao invés de eu ir aprender piano, fui aprender inglês por causa do meu pai e por causa de uma visão... Ele é um cara assim, de muita visão. Sempre, sempre. Muito à frente do tempo dele. Então essa minha avó tinha esse trauma comigo. Toda a vez chegava aniversário e que a gente ia na casa: "Você não quer sentar no piano e tocar alguma coisa?" "Vó, eu não sei tocar piano." (risos) Olhava para o meu pai: "Coitada dessa menina, não sabe tocar nada!" (risos) Entendeu? Mas eu falava inglês, o que para ela era absolutamente inútil, porque uma moça de família tinha que tocar piano. E eu até hoje não toco nada, nem campainha. Mas falo inglês. (risos) Então tem essa história dessa minha avó aí, o trauma dela é que ela não tinha... Eu sou a neta mais velha. Então a neta mais velha... E depois a minha irmã, que é a segunda neta. Só depois é que veio o restante dos outros primos. Então nenhuma das duas mais velhas tocava piano.
P/1 - E vocês são em duas irmãs?
R - Duas irmãs.
P/2 - Mas tinha um piano na sua casa?
R - Não, nem piano tinha. (risos)
P/2 - Não tinha? (risos)
R - Não tinha, mas veio a ter agora com a minha filha, com a minha filha menor que espontaneamente foi estudar órgão e gosta muito, o negócio dela é música... Matemática, para dizer a verdade, música é matemática, então ela tem esse lado de sentar e ficar estudando, já fez seis anos de órgão e não sei o que. E inglês. (risos) A ordem foi ao contrário, primeiro ela foi para o inglês, depois para o... (risos) Não, é verdade, era um trauma. Essa minha avó era um inferno! Ela me torturava com duas coisas, primeiro era isso, que eu não tocava nada. A outra hora é quando eu comecei a fazer 20 e poucos anos, 21. Todo aniversário a mulher chegava para mim e dizia assim: "Eu não quero morrer sem ter netos."
P/2 - Você era a mais velha...
R - Eu era a mais velha, quer dizer, tinha que ser comigo. Ela falou eu acho que uns três anos, no quarto ano eu virei para ela e disse: "Olha, avó; neto eu arrumo, mas depois a senhora fala com o meu pai." (risos) Se o problema dela era morrer sem ver o neto eu arrumava, não tinha problema. (risos) O bisneto. E no fim ela acabou vendo as minhas duas filhas nascerem. Então ela foi bisavó...
P/1 - Tudo direitinho.
R - Tudo direitinho, é. Como tem que ser. (risos) Mas é uma pressão.
P/1 - E quando você nasceu qual foi a primeira casa que você morou? Era essa na Mooca?
R - Não, os meus pais tinham casa própria.
P/1 - Onde?
R - A primeira que eu morei foi no Belém. Nós morávamos no Belém porque a indústria era lá e o meu pai assumiu a indústria, então morávamos perto da indústria. Quer dizer, morávamos perto de onde...
P/1 - Assumiu a indústria do seu avô?
R - É.
P/2 - De calçados?
R - É, foi a de calçados, a metalúrgica logo venderam. Então meu avô tinha a indústria de calçados e as lojas de calçados quando o meu pai assumiu essa parte. Depois assumiram um tempo a parte da fazenda, mas depois a fazenda acabou. Quer dizer, não é que a fazenda acabou, a cidade chegou na fazenda, então não tinha mais sentido. Hoje tem um bairro que tem o nosso nome, chama-se Jardim Romano. Era a fazenda do meu avô.
P/2 - Onde era isso?
R - Depois de São Miguel Paulista. A cidade foi crescendo e chegou lá na fazenda, longe. (risos) Então meu pai assumiu também a fazenda, daí os irmãos... O irmão e o cunhado acabaram dividindo isso e montaram um bairro. Lá é um bairro, chama-se Jardim Romano. Só mora bandido, mas... E nas beiras do Tietê, quer dizer, de vez em quando inunda. Ir para a fazenda era bom, de vez em quando o Tietê subia, ficava aquela parte como se fosse o rio Nilo, ficava aquele...
P/2 - Fertilizava e tudo.
R - Aquele húmus e tudo mais, era legal!
P/1 - A dádiva da Zona Leste. (risos)
R - Agora, para as pessoas morrerem lá... Para as pessoas é meio complicado. Foi usada alguma influência da família naquela época. Eu me lembro bem dessas discussões em casa, de chegar no prefeito e fazer a linha de ônibus chegar até a fazenda porque eles iam lotear a fazenda do meu avô construindo a escola e dando para a prefeitura. Porque o loteamento é estruturado como uma pequena cidade mesmo, então o centro é um lugar de negócios, onde tem uma igreja, a escola, um posto de saúde, entendeu? As casas são distribuídas em volta desse lugar, e esse lugar está preservado... E mais para cima não inunda, enfim. (risos) Me lembro dessas coisas assim, do pessoal, do meu avô... Esta foi uma das últimas coisas que o meu avô fez, foi à igreja, lá no loteamento. Eles construíam de dia e quando era à noite o povo ia lá e roubava. Roubavam os vitrais, as portas, os tijolos, enfim, roubavam tudo. (risos) Quando eles chegavam de manhã não tinha nada, tinha que começar tudo de novo. Lembro-me do meu avô colocando segurança armada para ver se acabava a igreja, e quando ele acabou chamou o bispo ver para quem ia doar. Enfim, tem o ritual para você doar, tem uma coisa lá. Então ele chamou o bispo e falou: "Tá aqui!" O bispo... Depois até retiraram a segurança, pois já tinha dado para o bispo. Aí o bispo chegou lá, já tinham levado todos os vitrôs embora. Depois o bispo foi lá e disse: "Olha, precisamos repor algumas coisas..." Foi quando o meu avô disse assim: "Vamos fazer o seguinte, eu dou os vitrôs na sua mão e o senhor fica com eles. Na hora que der para o senhor instalar lá na igreja... porque o padre já está lá, aí o senhor instala o vitrô. Eu vou ficar dando até..." (risos) Enfim, mas isso é assim, primórdios. Depois o pessoal se estabeleceu lá e ficou mais calmo. Agora tem gente morando, tem o usuário daquele lugar que acaba protegendo.
P/1 - E era fazenda do que?
R - Eles tinham um pouco de gado, tinham um pouco de plantação, nada assim muito... Não era grande produtor de laranja, não era nada disso, era uma coisa, sei lá, acho que era mais para desviar só para não colocar todo o dinheiro numa coisa só.
P/1 - E você ia nessa fazenda?
R - Nunca fui.
P/1 - Nunca foi?
R - Nunca fui, nem quando loteou, nada, nunca fui. Só sei que ela existe, vi apenas a planta no papel, mas nunca fui.
P/1 - E esta sua casa no Belém, você tem lembranças dela?
R - Ah, eu tenho.
P/1 - Como que ela era?
R - Inclusive tenho lembranças físicas da casa. Eu acho que eu morei lá até uns cinco anos de idade, seis anos de idade. Eu levei um tombo de três degraus da escada e fraturei a clavícula. Coloquei um gesso e fiquei 45 dias... Se você tirar meu raio X você vai ver. Meu cadáver é fácil de ser reconhecido porque tem uma clavícula quebrada, a outra clavícula quebrada e uma perna quebrada. (risos) Fica uma cicatriz no osso, dá para você me reconhecer depois de morta. (risos) Então assim, eu caía da escada... Eu estava ajudando a minha mãe a varrer. Dava-me uma vassoura 38 vezes maior do que o meu tamanho e acabei caindo da escada. Era uma escada de madeira, eu me lembro bem. E me lembro bem também de ter operado as minhas amígdalas e estar nesta casa. Eu ficava no quarto em cima e eu tinha muita fome. Tinha operado a amígdala e não podia comer, tudo isso enquanto o povo comia embaixo, e aquele cheiro de comida... E não podia, só guaraná e sorvete. Então me lembro bem da casa. Quarenta e cinco dias depois que eu tirei o gesso desta clavícula, caí da cama da minha avó, da minha avó materna, que estava doente.
P/1 - Boazinha. (risos)
R - Ah, criança é... (risos) E a coitada da mulher estava deitada no meio da cama, doente. Eu estava pulando de um lado para o outro e a minha avó disse: "Você vai cair, você vai cair, você vai cair." E eu caí! (risos) Caí e engessei o outro braço. E fiquei mais um tempo com o braço engessado, agora o outro. Quando não era esse, era o outro. Enfim...
P/1 - E depois vocês foram para qual casa, para qual bairro?
R - Depois nós fomos para a Mooca, aí atrás da casa dessa minha avó... A casa da minha avó paterna hoje é um restaurante chinês.
P/1 - Na Paes de Barros?
R - Na Paes de Barros, a minha avó morava naquela casa.
P/1 – Na Rua Visconde de Inhomerim?
R - Isso, numa esquina, isso. Aquela era a casa da minha avó. Você vê?
P/1 - É bonita aquela casa.
R - Pois é, imensa, super legal. Agora que eu lembrei. Da minha outra avó não, da minha outra avó já foi destruída e tem um prédio no lugar. Nós fomos lá para trás da casa dela, quer dizer, ela morava numa rua e a gente morava a dois quarteirões, mais ou menos na mesma direção da casa, mas dois quarteirões para trás.
P/2 - E essa casa como é que era? Há alguma lembrança dessa?
R - Ah, essa casa também era imensa. Essa era uma casa grande. Ela era pequena de frente, mas era muito comprida, ela ia para a outra rua e era muito comprida, tinha um jardim interno, um jardim de inverno. Para você ter uma ideia do tamanho dessa casa, nós tínhamos três cachorros, três dog alemão na casa. Sabe o tamanho do dog? Um cachorrinho. (risos) E eles ficavam do lado de fora da casa, não ficavam dentro. Era uma casa muito legal, tinha um quintal muito grande. E aí minha irmã e eu andávamos a cavalo no cachorro, era super divertido. (risos)
P/1 - E você já tinha entrado na escola, nessa altura?
R - Ah, já, já tinha. Nossa, mas eu fiz... Eu fiz jardim da infância. Não, naquela época a criança entrava com sete anos no primário, então eu fiz jardim, o pré...
P/1 - Já estava na Mooca?
R - É, já estava na Mooca.
P/1 - Em que escola você estudou?
R - Na Sagrada Família, no Ipiranga, porque era um colégio de freiras e minha mãe tinha estudado num colégio de freiras. A família inteira estudou em colégio católico, colégio só de meninas, enfim, aquilo que tem que ser. Eu adorava ir para o colégio, achava o máximo. Estudava latim, já pensou estudar latim? Até a segunda série ginasial − porque naquela época era ginasial − eu tinha latim. Que tal? Fiquei de segunda época também. Essa parte eu não conto, mas enfim, tinha latim. O que eu acho uma grande perda, a gente devia continuar tendo, é muito legal saber falar latim. Para o português da gente é uma coisa muito legal. E depois, se você vai fazer biologia, então é direto, porque tem tudo a ver. Aí fiquei no Sagrada Família até o segundo ginasial. O Colégio Sagrada Família mudou, era longe da minha casa, era super longe.
P/1 - Como você ia para lá?
R - Eu ia de ônibus escolar, que também era divertido. Eu me lembro até do nome do motorista, se chamava senhor Sílvio. Pode ou não? Sabe por que eu sei? Porque eu estava sempre atrasada. Então tinha aquele negócio: "Espera um pouco, seu Sílvio, espera um pouco!" (risos) Enfim, tenho certeza, o homem chamava seu Sílvio. (risos) Eu sempre chegava atrasada, saía comendo e com clips no cabelo. (risos) Enfim, daí o colégio mudou, ele foi para o começo da Anchieta, que é aquele colégio grande, Regina Mundi, tem no começo da Anchieta, perto do Posto Policial. Bom, se já era longe no Ipiranga imagine... Ficou impraticável poder ir para o outro lado do mundo, então eu saí de lá e fui estudar no mesmo colégio que minha mãe estudou, que é o Colégio São José, lá no centro da cidade.
P/1 - Na Liberdade.
R – É, na Liberdade. E que são freiras francesas. Só que na época da minha mãe elas falavam tudo em francês, era um negócio mais certinho, na minha época já era mais avacalhado. Mas tinha também mil folclores. Eu odiei ter mudado de colégio. Odiei, odiei. Adolescente mudando de colégio, odiava! Eu cuidei disso com as minhas filhas, eu falei: "O colégio que vocês forem entrar vai ter que ficar para sempre." Até o segundo grau, nada de mudar, adolescente que tem turma, que tem... Adolescente é um horror. Não aceita, não gosta, pergunta o que é que o outro acha, enfim, é o diabo. Então quando as minhas filhas foram para o colégio, a primeira coisa que eu fiz foi pegar um colégio que tivesse começo meio e fim e só saísse para o vestibular para não ter que mudar. Mas eu acabei me adaptando super bem. Tomei uns dois zeros lá naquele colégio por indisciplina. (risos) Mas o povo me usava, eu era muito santa.
P/1 - Era muito rígido ou você...
R - Não, é... A gente achava que ia dar um jeito. Eu tinha uma professora de matemática, enfim, o primeiro zero eu tomei com a professora de matemática. A professora se chamava Dona Luci Mattar, irmão do Pedrinho Mattar, que toca piano. Vai ver que piano tem alguma coisa que ver comigo.
P/2 - É a sina.
R - A dona Luci era um sapato! Era uma baixinha, gordinha, atarracada! E professora de matemática então, nunca é legal. A dona Luci era péssima, péssima! (risos) Os cadernos tinham que ser da Rosenheim. Já ouviram falar da Rosenheim? É uma loja de desenhos, mas desenhos para arquitetos e tudo mais, vende até penas para você desenhar... Como chama? Nanquim. Folha daquele papel canson, que você só encontra não sei aonde. E a Rosenheim tinha caderno que era de brochura, tudo numeradas. Então a dona Luci era assim, o caderno da Rosenheim, de forma que você não pudesse arrancar a folha do caderno. Eu não sei que importância tinha, mas não podia.
P/2 - Ela conferia?
R - Calma, já chego lá, você vai ver. (risos) Os enunciados do problema à tinta e a resolução à lápis, enfim, tudo de forma que você não borrasse nada, você apagava e tal.
P/1 - Matemática! (risos)
R - E não dá para arrancar a página: "Porque isso aqui ficou ruim. Arranca. Não tem..." E tinha que ser de 150 páginas. Não, eu me lembro, o meu caderno ainda era marrom. Não, isso é trauma. E de tempos em tempos a dona Luci sorteava uns...
P/2 - Terror! (risos)
P/1 - Isso porque ela é de matemática! (risos)
R - Para bater carimbo e para ver se você tinha feito a tarefa, então você chegava lá e ela dava mil exercícios, não tinha outro jeito. Ela chegava lá e chamava aqueles três cristãos daquele dia: "Traz o caderno aqui na frente." Aí você chegava, tinha feito a tarefa e ela "pimba", batia o carimbo. No final do mês ela conferia quantos carimbos você tinha, e se você não tinha feito: zero! Certo? Não; era muito simples aprender matemática, altamente motivador! (risos) E ela era professora na segunda série do ginásio, foi justamente quando eu mudei. E eu estou sentada lá − coitada de mim − assim, menina boba, eu era boa. Cheguei lá e ela chamou, ainda me lembro, Maria Teresa Saavedra, era a maldita que sentava atrás de mim: "Maria Teresa, o seu caderno." E a Maria Teresa: "Não trouxe, empresta o seu." (sussurrando) E eu emprestei, entendeu? Só que você acha que o professor não está vendo? E a dona Luci estava vendo tudo. Então ela deixou a Maria Teresa lá na frente: "Bellkiss, traga o seu caderno." (risos) Então: "O meu caderno já está aí." (risos) Bom, nem sei o que eu falei, eu acho que eu não falei nada! "A senhora tem zero e a dona Maria Teresa também tem zero, pronto!" Zero em matemática! Sabe o que é zero em matemática?! Não dá para recuperar nunca mais na tua vida: "Vou ter que tirar 30 na prova para poder... Nossa Senhora! Como é que eu vou fazer para recuperar isso? Nunca na minha vida." (risos) E até hoje eu só sei até a tabuada do dois, e com alguma dificuldade ainda, se você me perguntar muita coisa, de repente, eu não sei, não dá. (risos) A dona Luci era fogo, minha filha... E o pior é que eu tinha feito a tarefa, a outra desgraçada é que não tinha feito, ainda fui ajudar, tomei no pé da orelha, tomei zero. É terrível! Depois disso nós ainda tivemos também uma outra professora de matemática na quarta série do ginásio... Como chamava essa mulher? Eu me lembro bem da cara dela, mas não lembro o nome. Essa também era adorável, ela tinha um caderninho preto, um caderno onde ela colocava todos os absurdos que os alunos falavam, tudo isso só para contar para os outros, então assim, você não sabia nunca quando estava sendo divulgado, entendeu? Por exemplo: "Ah, tem uma aluna que, imagina, calcula! Diz que o seno é não sei o que..." (risos) Quando você tem 15 anos de idade isso é terrível. Foi divertida essa época de escola, enfim, muito divertido, mas eu odiava aquela escola. Depois, até eu me adaptar... Depois pegamos a turma, aí você já estava enturmada, enfim... A hora que o pessoal viu que eu também tirava zero, então... Mas o professor de inglês, por exemplo, me amava de paixão, porque ele chegou no primeiro dia de aula... Começava na segunda série, ele entrou na sala falando em inglês e tudo mundo assim... Vai ver que todo mundo tocava piano. (risos) E eu era a única. Ele fez qualquer pergunta, eu peguei e levantei respondendo em inglês. Nossa, o homem achou assim, o máximo! Na segunda série eu já estudava inglês, fazia dois anos e pouco, então eu achava o máximo. E eu tinha outra professora também que dava aula aqui no Dante Alighieri, miss Amália.
P/2 - Miss?
R – Sim. Enfim, ela dava aula de inglês, por isso era miss Amália. Então a miss Amália uma vez me chamou, na quarta série... Essa também é uma peça raríssima. Ela dava aula de inglês, ela não falava o inglês norte americano, era inglês. E eu falava americano, então já tinha aquele conflito que eu achava que parecia o "pircorococór", enquanto ela falava em British. Então ela chamava sempre alguém para pôr a prova na lousa, um dia ela me chamou. Você ia lá para frente, ela ditava a prova e você colocava na lousa. E aí você imagina, ditando, mil erros, ela fazia comentários, enfim, era um escracho! E comigo não tinha erro, porque eu falava inglês há quatro anos. Ela podia falar o que quisesse que não teria erro. Ah, mas em um exame lá ela pegou no meu pé, isso não teve dúvida. Eu tenho uma letra muito grande, não sei se já viram minha letra. Assim, um escracho, bem grande. Aí fui lá e pus... Nessa época já tinha dom para professor, colocava uma letra grande para todo mundo enxergar. Miss Amália... Lembro-me: "Você é míope, menina? Você é míope, menina?" "Sou, sim senhora." Usava óculos. "Por isso que a sua letra é grande, você mesma não enxerga o que está escrevendo, por isso que põe essa letra grande na lousa." (risos) Que legal!
P/1 - Vai ver que ela tocava piano. (risos)
R - Não, isso com 15 anos, na frente da classe inteira, é um trauma, fala a verdade, heim? Mas como ela falava de todo mundo, então era todo mundo igual, não tinha problema. Então foi isso, esse colégio era ótimo, e essas freiras eram as mesmas freiras que sustentavam, que trabalhavam... Até hoje ainda é a mesma congregação que trabalhava na Santa Casa de Misericórdia. E me lembro que uma vez nós fomos... Quando eu já estava no segundo grau, que eu também fiz no São José, nós fomos à Santa Casa porque nós fazíamos essas coisas de retiro, visitas a outras entidades que eram mantidas pelas irmãs, enfim, eu me lembro de ter ficado muito impressionada com essas freiras, muito impressionada, porque as nossas eram todas dondocas, todas certinhas e não sei o que lá... Eu me lembro da Irmã Luísa, que era responsável pela nossa classe, já no colegial. Se a gente estivesse no recreio e entrasse no banheiro para chamar alguém, nossa; a irmã Luísa ficava horrorizada: "Por que comer no banheiro, como que alguém podia comer no banheiro!?” Então de jeito nenhum. A gente brincava, se alguém entrava dizia assim: "Se a irmã Luísa te pega comendo no banheiro..." E era aquela coisa de mocinha mesmo. E me lembro das irmãs da Santa Casa que era com o hábito dobrado assim, na cintura, manga arregaçada... Porque as freiras não mostravam, era até aqui “assim”, bem... A manga arregaçada e o hábito dobrado na cintura cuidando dos doentes, o véu preso, sabe, assim? Nossa, eram umas mulheres muito fortes, muito lindas, e fazendo uma coisa que as nossas não faziam, as nossas pareciam assim, as donas de casa mesmo. Todas em oração, todas não sei o que, não podia comer no banheiro, não podia andar fora da passadeira, sabia isso?
P/1 - Passadeira?
R - É, tinha uma passadeira... Ia para a diretoria, aliás. (risos) Tudo encerado. Na época não tinha sinteco, era encerado. E tinha uma passadeira, aquelas... Como é que chama isso? Vinólia, não é? Aquelas coisas de plástico. Então ia assim, aí você olhava... Eu me lembro também bem desse corredor, porque era o terror de todo mundo, mesmo porque se a diretora te chamou, é porque você estava lá em cima. Aí você olhava assim e não tinha ninguém, você punha o pé fora da passadeira... (risos) Não, parecia linha! Tinha uma senhorinha que tomava conta: "Você pôs o pé fora da passadeira!" (risos) A mulher aparecia pendurada assim, do lustre aparecia e: "Pôs o pé fora da passadeira!" (risos) Era o diabo! A gente fazia de propósito: "A Aninha está olhando?" "Não." "Então põe o pé fora da passadeira." Era batatinha, você colocava o pé e a Aninha aparecia. (risos) Então você dá risada, mas é assim. Você quer ver outra super legal? A irmã Madre Cecília. Nessa época o nosso arcebispo era o Dom Aguinelo Rossi, que depois, quando eu saí do colégio, foi para o Vaticano. Era assim, íntimo do meu pai, aliás. Ficavam os dois lá conversando, porque meu pai era... Como chama isso? Caixa? Tesoureiro. Tesoureiro é mais bonito, tesoureiro da Associação de Pais e Mestres. O meu pai começou a aplicar dinheiro da Associação, fez render, aplicou não sei o que... Então o Dom Aguinelo ficou assim, impressionadíssimo com o meu pai, unha e carne. E para a gente fazer ginástica, nós tínhamos um uniforme de lã marrom e o lacinho na blusa, que não podia dar desmanchado. (risos) De pregas ainda, Fernanda, de pregas! Plissê! Então assim, a minha mãe que era uma mulher esperta, pegou e fez o seguinte, fez um lacinho postiço para a gente. Foi ela que inventou o lacinho postiço, minha mãe! O lacinho vinha assim, tinha a gola e ele ficava pendurado porque ele era continuação daqui, só que aqui ele tinha um colchetinho que você pregava, o laço estava sempre feito, entendeu? Não tinha aquele negócio de ficar amarrando, desamarrando e tomando bronca tal... Enfim, era só pregar o lacinho e estava ótimo, estava sempre feito. Isso a minha mãe é super prendada mesmo, e espertíssima.
P/1 - É, é uma ideia ótima.
R – Não. Depois os americanos copiaram. Não tem essas gravatas prontas? Então, isso foi ideia da minha mãe, já na época do colégio eu já usava. (risos) Ela tinha traumas porque no dela, por exemplo, ela usava meias, e as freiras passavam em revista as meninas, porque elas usavam meia com liga, então elas tinham que levantar a saia para ver onde estava a liga, não podia estar para baixo, tinha que estar em cima. É, a minha mãe tinha os traumas do colégio também, então ela sabia como era a disciplina e já começou alguns truques: "Olha, amarra o laço aqui, não sei o que..." Bom, enfim... E nós tínhamos um uniforme de ginástica... Ah, meu Deus, aquele uniforme era... Bege, porque era para ficar nos tons do colégio. O vestido era um vestido com cintura, godê. (risos) Você dá risada, Fernanda? Você não viu. É com uma bermuda por baixo. (risos)
P/1 - Para não ter perigo? (risos)
R - Para não ter perigo. Não, bermuda não, porque podia ainda ver assim, era preso nas coxas, como chama isso?
P/1 - Corsário?
R - Um samba-canção, gigante, assim, bufante, certo? A gente ia fazer ginástica com isso. (risos) Você já viu aquele filme antigo das meninas jogando tênis de saia longa? Então, era quase o meu tempo, quase o meu tempo. Coisa horrorosa! E também tinha um lacinho, tudo tinha lacinho, meninas tinham que ter lacinho. E nós já estávamos no colegial, nós nos trocávamos dentro da sala com tudo fechado, nos trocávamos e tinha um ritual para trocar. Primeiro punha o calção, depois você punha o vestido por cima, desabotoava a blusa... Não, mulher tem que aprender essa discrição, não é esse escracho de hoje. Tirava a blusa, colocava o vestido, abaixava e pronto, você estava vestida. E também era aprendido isso com a professora dentro da sala cuidando para que não virasse uma zona, todo mundo pelado, essas coisas não tinham. (risos) Uma vez nós estávamos saindo para ir para a ginástica, do lado de fora, e a gente jogava vôlei, handebol, enfim, eram esportes ao ar livre. Nós estávamos nos trocando dentro da sala, como se fosse um vestiário, estávamos conversando e não sei o que... Eis então quando abrimos as portas. Quem está do lado de fora? A madre superiora. A irmã Cecília tinha o hábito de andar assim... Ela era uma mulher muito bonita, com o olho azul, uma loira linda, e ela estava sempre assim. Madre superiora. Na minha sala eu era a primeira no corredor e tinha dois degraus, a madre Cecília em cima, com as mãos “assim”. Pegou a classe em flagrante delito conversando ao se trocar. (risos) O que era uma zona! Conclusão: passamos os 45 minutos da aula virados para a parede, vestidas, viradas para a parede, sem trocar uma palavra para aprender a não falar enquanto se trocasse. Tudo com a madre Cecília vendo. Você pensa que era só dar a bronca e ir embora? Não! A madre Cecília fica. "Quarenta e cinco minutos? Deu o horário da aula? Agora as senhoras podem entrar na sala e se trocar em silêncio que eu estarei do lado de fora ouvindo se as senhoras vão se trocar fazendo barulho." E a professora também virada para a parede, porque a professora estava na sala para olhar a gente. (risos) Então todo mundo, porque ela não teve disciplina de manter a classe em silêncio.
P/2 - A professora também? (risos)
R - A professora também, todo mundo! (risos)
P/3 - A senhora serviu o Exército? (risos)
R - Não, pois eu fiz no colégio, não fiz? Um colégio de meninas! (risos) O mais gostoso dessa história toda é quando a gente podia transgredir, aí então era três vezes melhor. Quando eu fui ver essas irmãs da Santa Casa, nossa, elas eram outra coisa, elas conversavam com os meninos, com os acadêmicos, conviviam com os homens doentes. O que era uma coisa! Para as outras: "Meu Deus do céu, como é que elas podem fazer isso?" Eu achava que as verdadeiras freiras eram aquelas da Santa Casa que tinham um serviço humanitário. Não era, enfim, as nossas, que eram todas... Com os pozinhos, uns batonzinhos, enfim... Elas não usavam, mas enfim, era uma elite. Tratava as meninas bem, a gente não tinha... Não dava esse trabalho para freira. Mas tem umas coisas, eu gosto muito, eu me lembro bem, boas coisas.
P/1 - A sua irmã estudava nessa escola também?
R - Estudava, claro!
P/1 - Quantos anos vocês têm de diferença?
R - Quase três anos, quase três anos.
P/2 - Essas visitas para a Santa Casa, como era isso, essa dinâmica?
R - Não, a gente ia visitar. Para dizer a verdade, acho que era bem dentro daquela linha: "Vamos ver os pobres, está vendo?” Existe um outro lado do mundo que adoece!" E eu era apaixonada por essas visitas na Santa Casa. Nossa, até hoje... Aquele prédio quando eu entro mexe demais comigo, é lindo, todo gótico! Eu acho incrível. Aquela igrejinha no meio... muito lindo, muito lindo! Eu sou apaixonada pela Santa Casa. Se eu não tivesse dado certo aqui no HC [Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo] eu estaria na Santa Casa hoje, com certeza. Aliás, eu sempre tive uma raiva do povo daqui da USP [Universidade de São Paulo], eu gostava da turma da Santa Casa, eu ia nos bailes da Santa Casa e ainda paquerava os residentes da Santa Casa. (risos)
P/1 - E fez toda a carreira no Incor?
R - Pois é, você vê? E me casei com um da Escola Paulista de Medicina, que não tinha nada a ver. Podia ter casado na Santa Casa, “droga”. (risos) Mas fica no lugar de idealizado, talvez. Eu era apaixonada por essas visitas. E tinha uns outros lugares legais que a gente ia também, eram nos retiros espirituais, que também era uma bagunça! O retiro era para as freiras. Na realidade a gente fazia uma bagunça deliciosa, só as meninas e piquenique e tal, e a gente ia para Itú, que é convento das freiras. Eu acho que um colégio que chama São José, também lá em Itú. E era um lugar fantástico, porque coincidia com a estação do ano em que as jabuticabeiras estavam em flor. Nossa, imperdíveis, um perfume inacreditável! E elas têm um monte de jabuticabas, de pé de jabuticabas, então ficava um perfume inesquecível. Esses retiros têm o cheiro de jabuticabeira em flor, muito legal. A gente saía de lá e ia dançar na Santa Casa depois. O Centro Acadêmico chamava Centro Acadêmico Manoel de Abreu. Por que é fácil de guardar? Porque o Centro Acadêmico tem como sigla CAMA, então a gente ia dançar na CAMA, ou no CAMA, como queira, mas... (risos) Pronto, acabou. (risos)
P/2 - Deixa eu perguntar uma coisa em relação à sua criação familiar. Você comentou de seu pai, disse que ele era um homem com visão à frente, como é que era isso dentro de casa? Como é que se estruturou?
R - Ainda é, ainda é. Ele é sempre assim mesmo. Por exemplo, a alta do dólar em Janeiro, dois reais o dólar, ele virou e disse: "Olha, eu não dou tantos meses, isso aqui vai cair para 1,65." Aí eu disse: "Pai, como é que você sabe?" "Simplesmente sei, você vai ver que vai cair." Não sei como é que ele sabe, eu sei que cai mesmo. (risos)
P/1 - E quem exercia a autoridade na sua casa, de fato?
R - Ah, a dupla dinâmica. Minha mãe até hoje é fogo, não tem esse negócio: "Vou esperar o seu pai chegar." Não. Porque eles são muito unidos, então o que um pensa o outro tem certeza. (risos) Não tem isso de... Sempre os dois. Evidentemente você fica assim... O pai é a figura masculina, não está com você o dia todo, mas muitas vezes em que... Da minha irmã eu não lembro, eu acho que a minha irmã é mais chegada mesmo na minha mãe, mas muitas vezes que eu tive pergunta de grande conflito pessoal, eu ia perguntar para o meu pai, na maior facilidade, tranquilo. Os dois têm ótimo trânsito em casa.
P/1 - E tinha assim, alguma expectativa para que você seguisse alguma carreira?
R - Tinha expectativa para eu não aprender piano, isso sim era ponto pacífico. E aprendesse inglês, isso talvez por certa facilidade para falar. Você vê que eu não tenho dificuldade para falar. Não sei se subentendido ou não, ou por causa da família mesmo... Por exemplo, a gente conversava muito em italiano. Com a minha avó então é assim, ou você falava em italiano ou você morria de fome, não tinha outro jeito. E eu vivi muito na casa dessa minha avó materna. Línguas sempre foram uma coisa muito incentivada, eu gostava de francês, tinha facilidade com o francês, então aprendi na escola, como o colégio era de freiras, a gente tinha um francês puxado e bravo mesmo, mas quando eu entrei na faculdade eu fui fazer um curso na Aliança Francesa, fiz quatro anos de Aliança, então tinha essa coisa assim, de línguas, é uma coisa bárbara: "Você tem que falar mesmo, você tem que ir para frente." E depois eu fiz um curso de italiano, agora, em 1987. Eu não sabia ler e escrever em italiano, você acredita? Então toda vez que eu tinha um texto em italiano eu precisava ler alto para poder ouvir o que eu estava lendo. Falei: "Ah, isso é uma vergonha, eu vou fazer um curso." Fiz um curso de três anos. Foi legal, porque aprendi a falar o italiano milanês, o fino. Eu falava dialeto napolitano, que é coisa mais de gente não culta... Então tinha essa coisa assim, de línguas a qualquer tempo, a qualquer hora: "Tem mesmo é que fazer e tal." Agora, de profissão, assim: "Queremos que você faça isso." Não. Meu pai só achava que tinha que fazer. E curioso que vinculado a um medo dele da guerra. Pode ou não? O meu pai não tem nada a ver com a guerra, não nasceu na época da guerra, mas ele tinha um medo da guerra, então assim... Medo da guerra e do comunismo. Ele dizia o seguinte: "Vocês precisam estudar..." E talvez por isso o incentivo para estudar línguas. "Porque se a guerra vier vocês não vão lavar o chão, você pelo menos vai ter uma posição dentro de um escritório, porque eles vão precisar de você, entendeu?" Então essa atividade intelectual sempre foi muito estimulada por causa disso, por causa do medo da guerra, dele. E ele nunca... O pós-guerra para ele sempre foi uma coisa super tranquila, muito tranquila. Ele era uma das pessoas que era beneficiado, não que não tinha problemas, mas porque como o meu avô tinha uma metalúrgica, então no pós-guerra − nós estamos falando de 1944 − o meu avô trocava a gasolina da metalúrgica que eles usavam para lavar os talheres e os metais, trocavam por carne, combustível e por outros veículos. Então o padeiro... Enquanto todo mundo ia para a fila, o padeiro entregava o pão na casa do meu avô. A carne também era entregue na casa do meu avô, pois ele tinha acesso ao combustível, entendeu? Então a guerra não foi traumática para o meu pai, muito pelo contrário; mas ele tinha essa coisa de: "É a única coisa que você pode levar com você. Você vai perder a casa onde mora, o chão, vai perder tudo, mas isto você não vai perder e o pessoal não vai te pôr para limpar o chão. Você vai ter uma posição diferenciada, então precisa estudar." Era essa a diretriz em casa, entendeu?
P/1 - Então você foi fazer o curso de psicologia?
R - Ih, essa parte, sabe que eu não queria ser entrevistada sobre isso?
P/1 - Você sabia que ia chegar nisso uma hora? (risos)
R - Eu tinha certeza, mas eu não avisei antes porque já ia pular essa pergunta. (risos) Que droga, não? Eu tinha uma colega de escola, chamava Sílvia... Nós temos que decidir as coisas muito cedo na vida da gente, enfim, o que é que vai fazer. É o diabo, ninguém sabe nada... Estava naquele negócio de: "Bom, então... Sei lá, vamos ver o que é que nós vamos fazer." A Sílvia dizia assim: "Ah, eu vou prestar psicologia." "Ah, é?" "Ah, é. É legal, a gente vai lá e presta." E a Sílvia entrou na PUC [Pontifícia Universidade Católica], que tal? Só que nesse ano eu não prestei psicologia. Ela prestou e entrou logo depois que entrou no colégio, o colégio era forte, era muito legal.
P/1 - Entrou sem cursinho, sem nada.
R - Entrei sem cursinho. Mas eu não prestei, eu fui fazer cursinho. Eu fui fazer cursinho para medicina. Eu também não sabia bem porque, mas eu gostava muito de biologia. Aliás, eu prestei biologia na USP também. E por uma desorganização do pessoal eu perdi uma prova no vestibular, imagina. Sabe qual foi a prova que eu perdi? Inglês. (risos) Não é gozado isso? Tirei zero na prova de inglês no vestibular. Você aguenta isso? Não é possível, tirar zero. (risos) Eu gostava muito de bichinho, de célula, esses negócios assim. Acho... Continuo achando muito legal, até hoje. Na hora que eu soube que tirei zero na prova, que eu não tinha entrado, que a “maledetta” não tinha me dito que eu tinha prova lá, sei lá, foi uma desorganização... Ela disse e eu não fui, não vi, sei lá, qualquer coisa. Eu sei que eu tirei zero nessa e não entrei. Mas fiquei excedente, imagina. Com zero e tudo, fiquei excedente. Eu adorava biologia, gostava demais mesmo. Aí falei: "Bom, então eu vou fazer o seguinte..." Nesse ano eu não entrei na escola, eu falei: "Bom, se eu estou excedente, no ano que vem eu entro." Então eu fui fazer um ano de cursinho. Aliás, era os primórdios do Objetivo, essa capa da Veja, e tinha um cursinho muito bom que se chamava Brigadeiro, que era o must. Depois é que o Objetivo veio, que era na frente do colégio. Eu sabia onde era, era o mesmo caminho que eu tinha que fazer, que eu fiz durante vários anos, então fazia o Brigadeiro. Fiz um ano de cursinho para medicina e falei: "Bom, o que eu faço? Estudo muito e aí eu entro em biologia com tranquilidade, porque se o nível de exigência é maior aqui, na outra eu vou entrar." A Sílvia entrou em psicologia e tinha uma outra amiga, a Judith, − que fazia o cursinho também, que fazia escola com a gente e tal − a Judith foi mais esperta, hoje eu vejo que ela foi mais esperta. Ela pegou e prestou matemática, simultaneamente. Ela entrou em matemática, só que a matemática é uma matéria do cursinho e psicologia não é matéria do cursinho, então não dá para você... Quer dizer, você não aproveita na hora de prestar vestibular o que você estava fazendo. Bom, então eu fiz o cursinho para medicina e falei: "Quer saber de uma coisa? Eu vou prestar biologia também, mas eu vou prestar medicina, porque eu já estou fazendo cursinho mesmo." Prestei Santa Casa, aquela famosa! Falei: "Ai, Santa Casa!" Eu entrei na Santa casa, você acredita? Era número duzentos; duzentos e alguma coisa. E a conta era assim: a Santa Casa fazia as provas em Dezembro, depois fazia a Escola Paulista de Medicina e o CECEM, coisa antiga. Fazia o CECEM, então o povo ia desistindo, porque a Santa Casa não prestava na Escola Paulista, porque já tinha entrado ou então ia lá e prestava na Paulista e entrava na Paulista e desistia da Santa Casa, tinha aquele remanejamento, até o mês de março estava todo mundo trocando de escola. O azar foi tão grande que naquele ano a Escola Paulista ameaçou fechar por falta de verbas, então quem entrou na Escola Paulista e entrou na Santa Casa não saiu da Santa Casa: "Não vamos entrar nessa escola que vai fechar amanhã." E eu fiquei na lista de espera. Falei: "Putz!" Eu estava bem pertinho, acho que tinha aproximadamente 50 caras na minha frente. Eu falei: "Entro, tranquilo." Aí quando nós prestamos a FUVEST... Eu me lembro da questão de física até hoje, era uma questão de física a prova toda, um enunciado que era: "O trajeto de uma nave espacial até a lua." Porque estava na moda. Naquela época lá foi que o homem chegou até a lua. E tudo, a prova inteira era a respeito desse enunciado. "Quanto tempo levava para chegar lá." "Qual era a velocidade no epicentro de não sei da onde." "A que distância estaria da elipse não sei de quem." "Quanto tempo levaria..." "A força da gravidade não sei onde." (risos) Era tudo sobre isso, sobre Física Espacial. Como é que nós vamos chamar isso aí? Mas, enfim, diabo de prova. (risos) Eu me lembro dessa prova até hoje. Verdade, foi isso que caiu na prova. Bom, enfim, aí eu entrei no CECEM , eu entrei em Botucatu. Mas uma menina, senhorita...
P/2 - Que estudou em colégio de freira...
R - Morar em Botucatu seis anos?
P/1 - Numa república?
R - Naquela época não, eu teria meu próprio apartamento e tal, mas longe de casa: "Que coisa mais desagradável." Aí eu não fui para Botucatu. Também não entrei na Santa Casa. (risos) Não conseguiram resolver o impasse, e aí a Sílvia de novo, disse assim: "Presta psicologia, pois é aqui na esquina de casa." Prestei na PUC, só prestei na PUC e entrei, lógico. Não é que eu queira falar mal das senhoras aqui presentes, mas eu tinha feito um cursinho para medicina, tinha feito científico, e aí tinha aquele povo que fazia psicologia e que tinha feito secretariado. (risos) Clássico, naquela época tinha clássico, era dona de casa, transeunte, sei lá o que... (risos) Lógico que eu entrei? Não, vai passando: "Você quer fazer vestibular? Faz e entra em psicologia." Com todo respeito. Aí eu entrei em psicologia, fui ficando.
P/2 - Foi ficando?
R - É, fiquei. (risos) Mas eu dei um jeito, eu fui gostando “médio”. Fui gostando porque tinha que estudar aqueles Merleau Ponty da vida, que eu não entendia nada, aqueles filósofos muito sofridos para a minha cabeça, não dava para acompanhar. E hoje eu vejo que está no lugar errado, quer dizer, você tem que ter uma maturidade para ver esse pessoal, para ver essas linhas de pensamento. Hoje eu releio esse pessoal com muita propriedade, enfim... Mas aí no segundo ano nós tínhamos neuroanatomia, na Escola Paulista de Medicina, porque a PUC não tinha o laboratório e foi... Tinha um convênio entre as duas escolas. Eu fui vendo aquele funcionamento daquele cérebro, era isso, tinha tudo a ver com biologia, tinha tudo a ver com aquilo que eu achava legal. Aí eu fui ficando. Virei monitora... Monitora para todos os cursos da Escola Paulista... Estudava loucamente o cérebro, adorava! Depois eu tive psicobiologia...
P/1 - Isso logo no segundo ano?
R - É, logo no segundo ano. No terceiro eu já era monitora, no segundo eu estava aqui na psiquiatria. Essa foi uma turma minha aí que chegou... Nós éramos a turma da janela, tinha uma divisão na classe, era a turma da janela e a turma da porta − já vou explicar o porquê − a turma da janela chegou e disse assim: "Escuta, vamos lá na psiquiatria." "Ah, vamos!" Então nós viemos, dezoito anos de idade.
P/1 - Que ano que era isso, Bellkiss?
R - Eu entrei em 1966. Não, 1967 que eu fiz, acho... 67, 68. Enfim, foi quando esses pirados da vida aceitaram a gente como estagiário. Imagine, eu não entendia nada de louco, não entendia nada de loucura nem de nada de nada. Fui aprendendo ao vivo e em cores. Aprendi psicopatologia, fui vendo as pessoas, aliás, por isso que eu coloquei no meu memorial, isso é verdade mesmo, aprendi mais com os doentes do que com qualquer coisa que pudesse passar na minha frente. Aprendi essa limitação que o sistema neurológico traz, essa coisa que a pessoa perde os seus limites. Ela não sabe quem ela é... Você vê as pessoas fazendo coisas e fala: "Mas por que essa pessoa está fazendo isso?" Não está mais no controle dela. É um aprendizado muito bonito, aprendi muito respeito pelo doente. Muito, muito mesmo! Bom, aí tem a minha vida aqui dentro do hospital. Mas nessa época de escola era uma época... Você perguntou que ano que era. Você como historiador sabe que ano que era? Era uma época que a gente queimava o Rockefeller porque ele tinha anunciado lá nos Estados Unidos que ele ia tomar um cafezinho no bar da esquina, e nós éramos contra, então queimava o Rockefeller. Queimava a bandeira norte-americana porque não sei quem tinha dito que o Vietnã... "Ah, não. Concordamos com o Vietnã." Então queimava a bandeira norte-americana. Era uma época terrível para fazer escola, e eu fazia PUC ainda. Então... A polícia entrava com os cavalos! Nossa, era uma coisa horrorosa. Nós tínhamos colegas que foram presos dentro da sala.
P/1 - Você participou de alguma coisa lá?
R - Eu não participava, eu era da turma da janela, era a turma aterrorizada. Tinham os ativos, que era a turma da porta, que abria a porta: "E agora nós vamos não sei que..." Por isso que eles sentavam perto da porta, inclusive. (risos) A turma da janela ficava mais assim: "Eles foram." Mas é verdade, é essa a história mesmo. Nós éramos apavorados. A turma da porta saía mesmo, não estava nem aí. E uma dessas meninas foi presa, uma colega nossa de classe. Depois ela morreu bestamente, morreu num acidente de automóvel, grávida. Um ônibus bateu no carro dela, ela estava “super” grávida, muito grávida. Teve um descolamento de placenta e um sangramento interno e não perceberam, ela morreu disso. Quer dizer, não tinha nada a ver. E morreu perto da escola, inclusive. Tinha acontecido uma eleição para ver os representantes dos alunos nos encontros da UNE [União Nacional dos Estudantes], enfim, tinha mil encontros escondidos, mil encontros em tudo quanto é lugar, um tumulto para a escola, nessa época. Ela ganhou com uma margem super pequena de votos,e aí foram todos, se não me engano eles foram para um lugar perto de Itaici, alguma coisa assim. Um buraco que não tinha nada. E a polícia ficava de olho, o Exército ficava de olho. Eles prenderam esse pessoal por causa da padaria, porque assim, uma cidade que tinha dez caras, que consumia cinco pães, passou a consumir 500 pães. E não tinha aumentado ninguém na cidade. (risos) Quer dizer: "Para onde estão indo os pães? Então está indo para algum lugar." O Exército chegou lá e prendeu todo mundo, lógico, isso é tão elementar. Levou todo mundo por causa dos pães. (risos) Lembro-me bem desse raciocínio. E aí ela passou um tempo no DEOP'S [Departamento de Ordem Política e Social] e não sei o que... Bom, enfim, tinha... E você tinha aquela neura: "Você pode conversar com esse aqui?" "Não." "Ele veio de onde? É quem?" É complicado. Essa época da escola foi muito ruim, e a minha turma foi a última turma pequena na escola, nós éramos 50 alunos, foi a última turma que fez o curso em seis anos, depois passou para cinco anos, então era uma turma muito estudiosa. Nós éramos obrigados a fazer todo o curricular, não tinha isso de optativo, você tinha que fazer tudo. Então quando a gente estava faltando em uma aula é porque a gente estava estudando outra coisa, não tinha essa de fazer baderna. Era muito tranquilo, por exemplo, aula de psicologia industrial. Eu fazendo aula de psicologia industrial? Nunca, não tinha nada a ver com a história. Você me encontrava no hospital ou estudando na biblioteca sobre isso ou, sei lá, sendo monitora... Quer dizer, eu estava na escola, mas não estava nessa aula. E essa minha turma se diferenciou muitíssimo, tanto que a maior parte dos professores hoje na PUC eram da minha classe, de gente que estudava. Eram todos muito dedicados. Foi uma época também... Um tumulto. Um tumulto, mas muito legal, teve bons resultados. As pessoas são super dedicadas.
P/3 - Naquela época era fácil conseguir informações que vinham dos Estados Unidos, informações dentro da área, das pesquisas de lá para cá?
R - Olha, difícil não era porque... Vou falar da minha parte, da psicologia aplicada às áreas da saúde. Os médicos sempre viajaram muito, eles sempre traziam de congresso e eles têm essa movimentação, então era fácil de conseguir. Assim, se você não tivesse naquela hora ou quisesse ou soubesse de algum lugar você pedia e alguém trazia para você.
P/1 - Quais eram as disciplinas na PUC mais vinculadas à área de saúde dentro da psicologia?
R - Bom, nós tínhamos um departamento. Eu fui professora desse departamento, que era o departamento que congregava as neurofisiologia, neuroanatomia, neuropatologia, fisiologia geral, psicobiologia, genética do comportamento e genética simples. Tinha uma parte de genética inicial e depois genética do comportamento, depois o que a gente tinha mais? Esses eram vinculados a esse departamento, depois tinham umas outras coisas, como, por exemplo, atendimento à crianças com deficiência mental, recuperação e reabilitação desse pessoal. Você era obrigado a saber um pouco da biologia, você era obrigado a conhecer um pouco o funcionamento desse corpo, mas estava ligado mais à psicologia do desenvolvimento, então como é que você adquiria uma habilidade motora? Como é que você adquiria, por exemplo? Fala. Mas era ligado mais à deficiência e à parte infantil. A gente tinha psicopatologia também, que era de um outro departamento, mas que...
P/1 - Dentro da área?
R - É, mesma área.
P/1 - Na USP tinha essas matérias ou na PUC era mais...
R - Tinha porque todos os programas eram iguais, eles eram fixos, entendeu? Hoje é que tem essa coisa assim, do aluno poder escolher o optativo que ele quiser, faz o que ele quiser no ano que ele tem vontade... Não, naquela época era tudo quadradinho.
P/1 - Você tinha grade curricular e tinha que cumprir.
R - Isso, você tinha que fazer aquilo lá e não tinha discussão. Não tinha ciclo básico, não tinha nada. Você entrava na escola e você tinha que fazer. Eu me lembro da gente estudando antropologia, filosofia, não sei o quê. Todo mundo tinha as mesmas coisas, não tinha escapatória. Você podia ser feliz ou não, mas você ia estudar aquilo.
P/1 - Você pegou “Problemas Filosóficos e Teológicos do Homem Contemporâneo”?
R - Do Homem Contemporâneo... Aprendi “Estudo de Problemas Brasileiros” também, você era obrigado a ter, que não estudava nada, mas enfim.
P/1 - E aí depois desse estágio que você fez na psiquiatria...
R - Ah, então. Nós viemos, o homem deixou a gente ficar. Era um psiquiatra, psicólogo, que era o chefe, mas nós tínhamos muitos “cupinchas” pelo prédio inteiro, então um deles − que era o chefe da enfermaria masculina − tinha sido meu professor no cursinho, porque para sobreviver ele dava aula no cursinho. Eu o encontrei por aí e falei: "Olha, não entendo nada, não sei de nada." Ele dizia assim: "Ah, vem assistir as reuniões clínicas, sente aí, vamos conversar, não sei o que..."Aí eu aprendi psicopatologia na marra, assim, com ele, ao vivo e em cores também. Sabe aquele prático? Ele era psiquiatra, eu não era, mas eu participava das reuniões clínicas e podia dar o palpite que eu quisesse, perguntar o que eu tinha vontade. Nessa época a psiquiatria estava passando por uma revolução, estava sendo introduzido psicodrama, que era uma técnica nova de abordagem dos sujeitos, e tinha uma parte de integrar o residente e o estagiário dentro da loucura do hospital, a gente tinha que ter um espaço para conversar sobre isso, o sociodrama. Tinha uns psiquiatras abertos para isso, era super legal, eles convidavam a gente e era só você querer ir. Querer... Eu quis ir, eu queria, então: "Senta aí, vamos ver, não sei o que." Bom, então eu ia me metendo. E a PUC era aqui perto. Tá vendo? Se eu estivesse estudado em Botucatu não dava certo. A PUC era aqui perto então assim − viu, dona Sandra? − a cada meia hora eu estava aqui e ia para lá, enfim, ficava no trânsito. Não, porque esse pessoal de hoje é assim: "Ah, eu não posso, eu vou para a PUC." Então assim: "Vai para a PUC? E daí? A PUC tem umas janelas, tem uns buracos... Vai embora, não fica lá." (risos) E o negócio era cativante. E eu ia ficando. Eu ia ficando. Eles deixavam eu ficar, tinham disponibilidade para me explicar e tinha essa parte do sociodrama. Os residentes eram da mesma turma que a gente, na mesma idade. Enfim, era super legal, muito legal. Nessa época estava mudando o grande papa da psiquiatria nacional, que era o Pacheco e Silva. O Pacheco tinha acabado de se aposentar e estava no lugar dele o Barros, e o Barros era assim, mais “fraquito”, não era o Pachecão. Me chamava muito a atenção porque o Barros, apesar de ser titular da Faculdade de Medicina da USP, quando o Pacheco entrava com o carro no estacionamento o Barros levantava da cadeira, pois o Pacheco tinha entrado no estacionamento. Eu falei assim: "Mas que raio de Pacheco e Silva, mas quem é esse?" Era uma coisa assim, era bem claro. O professor titular e o resto do mundo, mas o resto do mundo tinha um monte de atividades que a gente podia fazer e era bárbaro, até que os homens descobriram o que a gente estava fazendo e quando descobriram mandaram acabar com tudo. Então assim: "Acaba com a comunidade terapêutica, acaba com o sociodrama, acaba com isso, acaba com aquilo e vamos voltar à psiquiatria rígida, estática, formal, não sei que mais." Mas aí eu estava enturmada com todo mundo, eu já podia falar com todo mundo, eu tinha avançado na neurologia, já estava tendo neuropatologia e, enfim, estava definitivamente apaixonada, definitivamente apaixonada. Um dia... Lá na psiquiatria eles mandavam uns pedidos. O hospital inteiro mandava uns pedidos em um papel, ia lá para a psiquiatria e o psicólogo escolhia qual que..."Ah, esse não gostei." Então não tinha uma ordem muito... Não tinha fila. Era assim: "Ah, esse aqui eu não sei fazer, esse eu não sei quem é, esse é muito longe, esse só pode vir quarta-feira e quarta-feira eu não venho." Enfim, qualquer critério. Nessa pasta tinha um fulano da neurologia... Ah, e nós ficávamos sentadas no hospital e o paciente é que vinha. Na pasta tinha um rapaz com Moléstia de Wilson, lá da neurologia. Lembro-me bem, isso era dezembro. Eu falei: "Putz, da neurologia. Legal esse pedido." Fui lá para o chefe: "Posso?" E podia tudo, conquanto que não desse trabalho: "Pode!" Foi aí que ele errou, se não tivesse me deixado brincar tanto eu estaria lá até hoje, subordinada. (risos) "Pode, pode!" Chamou o rapaz, aí veio ele lá. Um cara fantástico, hoje ele é médico em Belo Horizonte, um cara muito legal, que sabia tudo sobre a Moléstia de Wilson. Eu não sabia nada sobre a Moléstia de Wilson, nem sabia o que era, tinha chamado ele porque era da neurologia. Deu-me uma aula. Na primeira entrevista foi uma aula dirigida a mim pelo paciente, enfim, tudo sobre o que era a moléstia de Wilson.
P/1 - Está no Memorial essa história, eu já li.
R - Pois é. Não, é que são coisas marcantes. É o excesso de cálcio no sangue, então você tem que controlar com dieta. Mas ele dá problemas neurológicos muito sérios, né? Dá problemas de motricidade, vai comprometendo as funções intelectuais, se você não cuidar. Parecido com o fenilalanina, enfim, essas moléstias todas. Bom, então eu tinha que fazer um exame intelectual nele, um teste. Fiz o teste... Não. Mas a relação foi ótima, porque ele era meu professor. Ele falou assim: "Não, olha, eu tenho uma irmã lá na neurologia. Por que você não vai lá? O quadro dela é mais avançado. Você vai lá e compara os dois." Olha o método científico do paciente me ensinando. Eu falei: "Ah, então tá bom." Eu cheguei lá: "Olha, posso ir?" "Ah, pode, pode!" (risos) Tudo pode, contanto que eu saísse da frente. Cheguei lá na neurologia: "Olha, vim ver a dona fulana de tal." O preceptor, que hoje é o professor titular da neurologia, doutor Milberto Scaff, que atendeu o ministro, era preceptor dos residentes. Cheguei: "Olha, vim ver a fulana." "De onde você é?" "Da psiquiatria." "Olha, nós precisamos de você aqui em cima, porque você veja bem..." Aí passou a visita comigo na enfermaria. Eu só tinha ido ver a mulher. Passou a visita, me explicou tudo sobre sífilis, hidrocefalia, ataxia motora, epilepsia... Bom, eu saí de lá atordoada, porque eu já não sabia mais... "Volta aqui amanhã." Eu falei: "Ops." Voltei três vezes, cinco vezes... Cheguei para o tio lá embaixo: "Escuta, posso ir?" "Pode!" Eu falei: "Então fui." (risos)
P/1 - Nunca mais perguntou nada para ele. (risos)
R - Não, mas eu me lembro de uma reunião que teve... Porque eu era estagiária da psiquiatria, só que eu vivia na neurologia, era a minha turma. Um dia chamaram os estagiários, e nessa época era psicóloga lá na psiquiatria a Lati Fiagsi, que hoje é professora titular de psicologia lá na Escola Paulista de Medicina. Ela era contratada e me deu nota baixa porque eu era muito rebelde. Eu nunca aparecia, vivia na neurologia. Como eu podia fazer tudo o que eu quisesse? Está pensando que era o que? "Crau" na avaliação, você acredita? "Todos os estagiários, menos ela. Ela não conta porque ela nunca está aqui." Era eu. Fiquei triste, falei: "Tá bom. Tudo bem? Já passou? Passou? Então tchau." Voltei para a neurologia, depois eu comecei um movimento de volta para psiquiatria, porque eu estava estudando lesões de lobo temporal e focos de epilepsia, e estava voltando dos Estados Unidos o doutor Raul Marino, que hoje é o titular da cirurgia, da neurocirurgia. O Raul estava voltando e ele me convidou para voltar lá para a psiquiatria porque ele ia montar o laboratório para estudar epilepsia, então voltei para psiquiatria.
P/1 - Nessa trajetória você achava que a psicologia podia ser um fator de limitação para você continuar nessa área clínica, não?
R - Não, muito pelo contrário, eu podia fazer qualquer coisa. Que limitação? Eu podia estudar e discutir de igual para igual, e eles me ensinavam. Eu tinha acesso, tinha possibilidade. Imagine, de jeito nenhum. Nessa época eu voltei para a PUC, agora como professora. Quer dizer, eu já era monitora de algumas cadeiras ligadas à biologia, terminou o convênio da Escola Paulista com a PUC e eu assumi a cadeira de herança. O professor chegou e disse assim: "Ela é que tem que herdar a cadeira." A PUC concordou, eu montei o laboratório de neuroanatomia. Com o meu carro eu vinha aqui no Instituto Médico Legal, pegava os encéfalos dentro do formol e levava lá para a PUC, enfim, o laboratório que tem lá hoje na PUC fui eu quem montou... O pessoal tinha horror de mim, horror. Na escola não tinha... É assim, psicólogo gosta muito de falar. Tudo: "Eu acho... Vamos interpretar... Seria bom se fosse..." E na minha prova era assim: "O que é isso?" Não dá para interpretar. Ou é ou não é, entendeu? O pessoal era mau, era o diabo! Bom, mas enfim, aí comecei o trabalho com o Raul... Você dá risada? É porque você não tirou zero comigo. (risos) Comecei o trabalho com o Raul e fui me preparando para ir para Boston, porque o centro de neuropsicologia era lá. Eu falava inglês, lembra? Continuava falando, então estava fácil de ir, prestei o TOEFL [Teste de Inglês como uma Língua Estrangeira], enfim, estava de mala pronta. Aí entra o professor Zerbini no meio do circuito aí. Nessa época estava começando as cirurgias cardíacas e a máquina do coração e pulmão dava muito problema no pós-operatório. Problemas neuropsicológicos por causa da oxigenação do sangue. O professor estava discutindo filtro de membrana e oxigenação por bolhas. Ele estava estudando a máquina, chegou na neurologia e falou que precisava que esse aspecto fosse estudado. O pessoal da neuro foi muito legal. Virou e disse: "Olha, a única pessoa que pode estudar isso para você é a Bellkiss." Aí o professor foi atrás de mim, eu estava indo para Boston, ia para o Canadá, ia passar um bom tempo lá fora. O professor foi atrás de mim e me convidou para fazer um trabalho lá na Beneficência Portuguesa, um trabalho de pesquisa. Eu fui avaliar os pacientes para ele, mas tipo assim: "Estou indo. Até logo, vou ficar aqui, ver uns três e vou embora." Mas a equipe, quando não conseguia lidar com o paciente, me chamava: "Olha, aquele lá não conseguiu dormir à noite, aquele lá a família está brigando com não sei quem. Você não podia dar uma olhada?" "Bom, então tá bom, eu paro aqui um pouco, vou lá, volto." E eu nunca concluí essa pesquisa, nunca. A primeira cirurgia cardíaca que eu vi foi lá com ele, com ele e com o professor Bittencourt. Aí fui ficando no Instituto.
P/1 - Você foi convidada a entrar na área?
R - É, fui convidada para fazer uma pesquisa. Aí surgiu o Instituto do Coração e eu estava com a minha mala assim, parada nessa ilha do meio, indo para o Canadá. (risos) O professor veio e disse assim: "Você não gostaria de ficar aqui?" Então assim, de novo voltou Botucatu: "Eu vou para lá para o Canadá? Sozinha, naquele frio? Ou fico aqui na esquina de casa? Deixa eu ver." (risos) Ah, mas foi um sofrimento muito grande. Um grande conselheiro meu nessa época foi um professor de neurofisiologia, que trabalhava com a gente lá, o Núbio Negrão. O Negrão é o professor de fisiologia lá... Quer dizer, era aqui na medicina, mas está lá embaixo agora, acho que no Instituto de Ciências Biológicas ou qualquer coisa assim. Nossa, mas eu sofri demais com o Núbio, falei: "Núbio, e aí? Vou para onde?" "Não, vê onde você tem mais oportunidade, vê não sei o que." Eu falei: "Putz, mais oportunidade eu tenho no Coração." Apesar de estar... Eu só fazia neurologia. Eu sabia só sobre aquilo. Sei lá, achei que aqui valia à pena apostar. Falei: "Então eu vou ficar aqui, vou ver o que acontece. Sem pensar que depois podia resgatar. "Não gostei, então eu vou embora." Aí eu vim para cá.
P/2 - Isso a gente está falando 1974... O comecinho de 73, 74?
R - É, final de 1973, começo de 74. Aí apareceu...
P/1 - Você já tinha se formado?
R - Eu já tinha me formado. Eu tinha me formado em 73, aí apareceu essa chance na minha vida, que foi uma vaga − imagina! − na psiquiatria, para ser contratada. Eu falei: "De novo não!" (risos) Aí eu falei: "Olha, eu vou, mas de vez em quando eu posso ir para outro lugar? Para a neurologia..." "Ah, pode!" Tudo podia. "Ah bom, então eu vou." (risos) "Vamos concentrar assim, os pedidos de tal e tal clínica são meus." "Ah, tá bom, então pode." Isso foi dia 10 de maio de 1974, exatamente quando fui contratada pelo HC, para a psiquiatria. Em Agosto eu estava me mandando daqui para o Instituto, definitivamente, de mala e cuia. O pessoal me odiando mesmo, porque eu estava indo embora. (risos) Não era brincadeira. E nesse percurso... É uma coisa muito interessante... Eu digo sempre para o pessoal da psicologia que diz: "Ah, psicólogo não tem chance, não tem vez, não sei que..." Tudo mentira, viu? Nesse percurso choveu pedido da dermatologia. Bom, queriam que eu fosse ver os doentes, estava começando transplante de fígado, a unidade de fígado me namorou um tempão para eu ir para lá. Mas aí também eu precisava ser fiel a alguma coisa, não era mais possível essa de qualquer hora um chegar fazendo uma proposta e eu ir embora, não é possível. Eu falei: "Não, eu sou do Coração." Quando o prédio dos ambulatórios, esses da frente, estavam sendo construídos... Eu não me lembro que ano era isso, mas o Instituto já funcionava... Deveria ser 1980, depois vocês dão uma olhada que época era essa. A superintendência veio me convidar para montar o serviço de psicologia aqui do prédio dos ambulatórios. A primeira pergunta foi: "Isso quer dizer que eu vou sair do Coração?" "É, que com esse prédio, como é que você vai ficar nos dois?" Eu falei: "Então eu não vou." Foi aí que a doutora Matilde teve chance, porque eu não fui. A Matilde é uma das pessoas mais antigas dentro da área de psicologia hospitalar no país, a primeira referência que a gente tem é de 1953, de uma gaúcha, no Hospital das Clínicas lá no Rio Grande do Sul. Agora não lembro dela, mas tem na minha tese de doutorado. Em 1954 a doutora Matilde entrou aqui no HC, na ortopedia. Ela tinha todas as possibilidades do mundo para ser a pessoa mais famosa do planeta se ela quisesse, podia ter promovido o serviço dela, uma barbaridade, e até hoje a ortopedia tem três psicólogos subordinados a um fisiatra, quer dizer, nem um serviço não é. Por que eu estou dizendo isso? Porque naquela época os Estados Unidos tinha muito resto de guerra, então eles estavam desenvolvendo próteses, estavam desenvolvendo reabilitação, estavam desenvolvendo um monte de outras coisas para absorver esse pessoal que tinha problemas ortopédicos mesmo, feridos de guerra, compreende? Eles estavam investindo maciçamente em tudo quanto é lugar. A ortopedia foi montada pela Fundação Rockefeller, então tinha um dinheiro louco. Se você for lá na ortopedia você vai ver no hall de entrada, tem uma bengala do Franklin Delano Roosevelt, que pessoalmente veio inaugurar o prédio, então a mulher tinha tudo na mão para fazer... Ela tinha dólar na mão, ela tinha uma Fundação na mão, numa época em que você não falava em Fundação, você tinha os Estados Unidos investindo nisso: "Vamos trabalhar em prótese, em reabilitação, em equipe multidisciplinar..." Porque a história deles era diferente, era um bando de gente de guerra, mas nós não. Nós tínhamos, por exemplo, os congênitos. Nós tínhamos outros tipos de lesão e que ela podia ter investido, entendeu? E não investiu, ficou amorfa, continuou repetindo o modelo do consultório dentro do Hospital, que não se aplica. Como eu podia fazer qualquer coisa eu fui indo. (risos) Eu ia para cá, ia para lá, ia não sei o que... Mas eu cheguei 20 anos depois dela! Quer dizer, 20 anos ela podia ter... Não que ela não tenha feito nada, ela fez muita coisa, evidentemente, mas podia ter dado um impulso, criado um modelo, uma escola com muito mais propriedade do que eu, muito mais, muito mais. É uma mulher estudiosa, inteligente, respeitada, tem a turma dela lá, ela podia ter feito coisas incríveis. Foi a minha orientadora no mestrado e ela me reprovou no mestrado, no exame de qualificação. (risos)
P/1 - A sua orientadora?
R - A minha orientadora. Para você ver que nós temos um relacionamento fantástico. (risos) A hora que ela viu que eu vinha vindo ela falou: "Eu preciso podar essa menina aí porque não vai dar muito certo." Então no exame de qualificação do mestrado eu fui reprovada por ela. Que tal? E eu que tenho uma parte... Uma lesão cerebral importante, continuei com ela como orientadora no mestrado. Continuei com ela, foi bom. Só que aí eu comecei a fazer umas exigências, do tipo assim, a banca era só de mulheres e só de psicólogas. Eu falei: "Olha, o meu negócio não é mulher. Eu tenho esse problema. A banca precisa ter um homem e precisa ter um médico, senão eu não vou para a banca." (risos) É verdade, eu não estou brincando. Aí a escola: "Bom, quem você apresentaria se fosse, talvez?" Eu falei: "Tá bom, eu apresento o doutor Radi Macruz", que era livre docente, professor adjunto, membro do Conselho Diretor, o clínico do... Unha e carne aqui com o Zerbini. Eu falei: "Imagina, tá bom. Eu vou apresentar esse aí. Eu o quero na minha banca." Porque fica aquele negócio em mulher, aquele drink em família. O que é isso? (risos) Eu falei: "Não, o que é isso? De jeito nenhum." Aliás, a minha vida sempre foi pontuada incrivelmente por um monte de homens. Assim, no mestrado, é uma coisa inédita, eu tinha um homem e um médico. No meu doutorado, imagina, numa escola de psicologia, todos os examinadores eram homens. Todos! Cinco, todos homens. Eu não tenho nada contra as mulheres, mas que é um sapato, é. Eu falei: "Bota os homens aí. Esse negócio de só mulher não dá certo." (risos) Na livre docência também, eu tinha dois homens na mesa e dois médicos. Não tem jeito, esse negócio de só mulher não dá certo. Aí o doutor Macruz chega lá, porque as mulheres se rendem: "Menino, você não sabe como é isso. O senhor gostaria de começar pela arguição? Gostaria de um café?" Sabe como é? Aí o homem diz assim: "Gostei do trabalho dela." Elas dizem: "Ah, nós também." Pronto. (risos) Eu passei no exame de qualificação. (risos) Não é ser machista, mas pô, é verdade! Aí eu passei, passei na qualificação e falei para a Matilde: "Eu me lembro dessa desgraça dessa mulher no meu pé." Aliás, ela esteve aí hoje de manhã. Quando eu cheguei às sete e meia da manhã a primeira pessoa que eu vi hoje foi ela, você acredita nisso? Eu não acredito. (risos) Ela chegou para mim e disse assim... porque eu saí pisando firme a hora que elas me reprovaram, e começaram com um negócio assim... Por isso que eu pedi um homem: "Vimos no seu trabalho que você não cita a doutora Lúcia Bonilha, aqui presente. Por que você não a citou?" Eu disse: "Ah, não sei, ninguém mandou citar." A outra disse... A arguição da Lúcia: "Você não citou a Rosa Macedo aqui do lado, por que você não citou a Rosa?" Eu falei: "Pô, o que é isso? O povo vai ficar... eu, ela... você luta por mim, eu luto por você." Eu falei: "Não, pode parar. Vamos botar um homem aí, esse negócio não está dando certo." Aí a Matilde foi atrás de mim porque eu saí pisando todas. "Você ficou um pouco chateada?" Porque eu tinha sido reprovada.
P/2 - "Você ficou um pouquinho magoada? Tem alguma coisa te chateando?" (risos)
R - Eu falei: "Não, Matilde, não fiquei" Eu falei: "Não fiquei e inclusive tem um baile hoje em casa." (risos)
P/1 - Foi reprovada pela própria orientadora. (risos)
R - Pela própria orientadora! Não, é o cão. Não, eu mereço, eu mereço! Eu falei: "Não, não fiquei chateada. Inclusive tem um baile lá em casa hoje à noite, de comemoração que eu fui reprovada. Se você quiser ir... Mas vou dizer uma coisa, em seis meses eu vou apresentar outra qualificação e é outro mestrado. Com você ou sem você." Cuidei de tudo e em seis meses eu estava apresentando outra qualificação, com homem na banca. Passei no mestrado e não sei o que. E aí vem aquele meu lado ostra, sabe como é que é? Vou fazer o doutorado e quem você acha que eu convido para ser a minha orientadora? Vamos, rápido, você, que é um menino inteligente, (risos) fala. Quem?
P/2 - Matilde?
R - Isso, muito bem. Que rapaz inteligente. Convidei a Matilde. Você aguenta isso ou não? O povo olhava para mim e dizia: "Eu não acredito, você deve ser lesada medular, cerebral, alguma coisa, você deve ter tido algum problema neurológico, porque a mulher te reprova no exame e te ferra na apresentação e você convida ela para...Não, não é possível." E eu falei: "Não, mas olha..." E isso é verdade mesmo, eu penso nisso. Ela tinha muito tempo de casa... Com todo respeito, é uma psicóloga a quem eu devo prestar homenagens, reconhecer como uma pessoa mais antiga... Eu sou muito a favor dos velhos. Normalmente a nossa sociedade não está nem aí com o velho, com o saber que o velho tem. Eu achei que era de bom tamanho para ela não ficar chateada, eu convidava para ser minha orientadora.
P/1 - Bom, nem ela acreditava mais?
R - Ah, sei lá, viu? Aí levei umas 39 ferradas dela, para falar o português claro.
P/1 - No doutorado?
R - É, no doutorado. Do tipo assim: "Pedi os seus papéis, você mandou?" "Mandei." "Manda de novo." "Tem que ler." "Tá bom. Vai lá em casa às quatro horas da tarde e nós vamos ler." Chegava às quatro horas da tarde: "Menina, eu estou indo para o supermercado agora. Sabe o que é? Amanhã, talvez, hoje não dá mais." "Mas você não pode fazer o supermercado ao contrário? Marcou comigo." "Tá bom, então lá não sei onde." "Deixei os papéis no carro. Não deu para ler, está tudo no carro." Ai, eu estou sentindo que alguma coisa não está bem. Eu falei: "Essa dona vai me danar de novo, não vai dar certo", mas estou quieta lá. Um dia teve qualquer problema dentro do hospital... Não, que problema nada, o superintendente mandou a psicologia se organizar e escolher um representante para discutir estágios na FUNDAP [Fundação do Desenvolvimento Administrativo], o grupo inteiro se reuniu e, conclusão: "Vamos fazer uma votação." A Matilde saiu por qualquer motivo e o povo pegou e votou em mim. Eu já tinha estágio aqui há um tempão. Como eu era estagiária, eu tinha sido estagiária, eu sabia o que não era um estágio, então o meu estágio era assim, como diz o outro, um exército. Aí foi meu nome: "Ah, o grupo de psicologia resolveu que Bellkiss queria ir." Quando ela soube, procurou todo mundo que tinha faltado na reunião para votar, para fazer uma lista paralela indicando uma outra pessoa, − que não ela, evidentemente, que ela nunca aparece, né? − a Maria Rita. Aí o superintendente recebe dois nomes e eu fico sabendo que receberam dois nomes: "Como é que é? Uma votação paralela? O que está acontecendo? Ah, então vai a Maria Rita." O superintendente chama todo mundo, chama as partes. (risos) Vai fazer uma acareação, chama as partes. E o superintendente é muito ocupado, então nós ficamos na sala de espera. A Matilde virou para mim e diz assim: "Olha, aqui nós temos o mesmo cargo." Porque nessa época ela já era diretora aqui do prédio dos ambulatórios. "Aqui nós temos o mesmo cargo, mas lá fora eu sou tua orientadora."
P/1 - Ela falou isso aqui dentro?
R - Falou lá na superintendência. "Então você veja o que você vai falar" "tá bom, eu vejo". Eu entrei, o superintendente queria ouvir as partes, e o meu discurso foi muito simples: "Olha, o senhor me desculpe, eu estou extremamente envergonhada de ter que resolver um problema da psicologia aqui na sua frente, mas o senhor decida o que o senhor quiser. Teve uma votação legítima, não sei que, tal, mas o senhor fique totalmente à vontade para fazer o que quiser". Ele ouviu o discurso da outra, − que foi surpreendente − achou que eu ia ser combativa e não sei que, mas achou que a ameaça deu resultado. O superintendente ouviu e perguntou qual tinha experiência: "A Maria Rita quem é? A senhora faz o que? A que horas? Que dia?" Bom, estava na cara que era eu a indicada e ele optou mesmo no final: "Eles podem se retirar e quando eu decidir comunico." Obviamente comunicou que eu seria a representante, saí de lá e fui imediatamente à PUC, pedi para trocar o orientador porque eu não podia admitir que o orientador me manipulasse externamente, inclusive ao nosso relacionamento. Imediatamente, mas imediatamente. Como é perto, viu, Sandra? (risos) Fui até lá na PUC e pedi para sair imediatamente. Falei: "Não, a Matilde não." Nossa, isso foi o caos na escola: "Como? Você vai matar a mulher do coração" "bom, eu já fiz o que eu pude" "não, mas você não pode, porque você não vai ter nenhum orientador. Vocês precisam de mim, porque na hora que tem a avaliação da Capes vocês vão precisar dizer quantas teses foram defendidas de doutorado, e não tem ninguém defendendo tese de doutorado em lugar nenhum. Vocês precisam do meu número, e como o meu trabalho está pronto, vou sair daqui e vou à USP, vou defender lá na USP." Bom, então reunião: "o que nós vamos fazer com a Bellkiss? "Bom, então quem você sugeriria, assim, por exemplo?" Eu peguei e sugeri o doutor Humberto de Moraes Novaes, que era nada menos do que o representante da América Latina para Assuntos de Saúde na Organização Mundial de Saúde. Um homem, né? Falei: "Sugiro este homem. Alguma dúvida do curricular do homem?" "Vamos estudar." Eles ficaram estudando, tal..."Tá bem, então a gente aceita." "Então tá bem." O doutor Humberto ia para as reuniões para me defender, porque tinha umas reuniões lá da congregação, lá da pós graduação. Eu me lembro um dia: o Humberto chegou, um dia que nós estávamos fazendo uma orientação, supervisão, o Humberto chegou e disse assim: "Escuta, você teve algum caso dentro da escola? Tá tendo algum caso dentro da escola? Porque tem que ter alguma coisa atrás que eu não consigo ver o que é." (risos) "Não estou tendo caso com ninguém dentro da escola." (risos) "Não, não é possível, tem que ter alguma coisa nebulosa, porque aqui não anda, não vai." Eu falei: "Ah, então..." Contei da Matilde, ele conhecia a Matilde da época em que ele era superintendente substituto e foi o primeiro diretor executivo aqui no Instituto. Estava sendo montado o Departamento de Reabilitação da Vergueiro do Hospital e ele era o executivo dos dois lugares, e a Matilde estava lá, então ele conhecia bem a peça, enfim... Bom, e ele foi, me defendeu, não sei o que... nomeou um coorientador, porque ele vivia em Washington. Nós chegamos a fazer supervisão em vôo, no trajeto Nova Iorque e São Paulo, nós combinamos: "Bom, eu estou saindo de Nova Iorque..." Ele vinha de Washington, a gente combinou um vôo para fazer a supervisão no avião. (risos) Porque não dava, o homem não tinha jeito. Uma delícia, uma delícia. Daí foi para a minha banca de doutorado, então tinha cinco cavalheiros. Ele, que era o meu orientador, o presidente da banca, o Carlos Del Nero, que tinha sido meu coorientador, o representante dele aqui, que era médico também, o Tolentino Rosa, que eu não conhecia e que a escola indicou assim: "Vamos pôr esse aí." E o coitado chegou, aquele paraquedas de ouro. Sabe aquele paraquedas de ouro? Do tipo: "Adorei o seu trabalho, gostei muitíssimo!" "O senhor sabe que o senhor está fazendo aqui na escola?" (risos) "Queria ter feito eu o seu trabalho." Esse não sabe de nada. E dois da escola, o Peter Spink.
P/1 - É marido, parente da Maridiene?
R - É marido da Maridiene. E o Luís Carlos... Agora eu confundo com o Nogueira. O Nogueira é Luís Carlos? Aquele um que era chefe de departamento da USP. Não, desculpe, Luís Carlos Figueiredo, é isso mesmo. O Nogueira é da USP e o Figueiredo que é da PUC. Luís Carlos Figueiredo. Bom, aí começa a dissertação... O doutor Humberto tinha me ensinado a fazer uma coisa, ele tinha me dito para fazer uma coisa que eu não tinha sacado para que. Mas depois, nossa, foi a coisa mais legal que eu já fiz na minha vida. Às vésperas da defesa o Humberto virou para mim e disse assim: "Vá à biblioteca e leia os trabalhos dos examinadores." "Para que?" "Não, vá ler." O Luís Carlos Figueiredo, por exemplo, tinha feito... Deixa-me ver se eu lembro... Mas era qualquer coisa instrumental, com ratos no laboratório, ratos albinos cruzando com ratos não sei o que. O que eu tinha que ficar lendo aquele trabalho? Mas o homem mandou: "Não, vai lá e leia." "Tá bom." Eu lá, lendo sobre ratos albinos no laboratório, que sapato, viu? Bom, aí fomos para a defesa. Obviamente, magnânima, Matilde estava na plateia, claro. (risos) Está certo? É uma coisa assim: "Esta minha filha muito amada que... enfim..."
P/3 - Torcida!
R - Ah, sim, claro. Tá certo que ela foi vestida de negro, mas... (risos)
P/1 - Tipo: "Mãe perdoa tudo." (risos)
R - Isso. (risos) É isso aí mesmo. Aí começa pelo Tolentino, que era o cara de fora: "Adorei, achei isso fantástico. Mas olha, puxa, queria ter feito, não sei o que..." E o povo do lado de cá da banca já assim para ele: "Como?" "Essa aqui é aquela que a gente vai dar zero e você está falando que gostou do trabalho." (risos) "Adorei, que legal, você trabalha no Instituto! Que legal, que não sei o que...” Bom, mil elogios. Resultou num 10 final, evidentemente. Bom, daí vai para o Peter Spink, que tinha que fazer as honras da casa, certo? O Peter me arguiu, não sei o que... Aí de repente bem teatral, porque fica assim, eles lá em cima e você na mesinha lá embaixo, é bem mais alto do que isso aqui. E ele assim, fechou a tese e disse: "Não vou perguntar nada disso, eu só quero saber duas coisas. De quem é que você tem raiva e para quem você fez esse trabalho." E ficou... Naquela época ele fumava cachimbo, naquela época podia fumar em qualquer lugar, então ele ficou lá fumando cachimbo. Não tinha que responder mais nada, só essas duas perguntas. Eu falei: "Ah, eu tenho raiva dos psicólogos porque não buscam o seu lugar, não fazem isso, não lutam, não sabem se posicionar, têm a chance de ser multidisciplinar e não vão lá e lutam, não sei o que..." E eu senti que a hora que eu... Porque ele estava bem assim, com aquele cachimbão... Leitura corporal. (risos) A hora que eu fui falando... Ele não me conhecia, o Peter. Ele conhecia o doutor Humberto porque nas reuniões ele participava... O Peter foi relaxando na cadeira, foi voltando para trás e relaxou. Eu falei: "Esse cara está convencido de que eu sou legal." Aí ele vira e a outra pergunta era: "Para quem foi que você fez esse trabalho?" Desgraçadamente na primeira página do Luís Carlos Figueiredo, do trabalho de doutorado dele, o cara foi tão arrogante... Ele pôs uma frase do Vansoline: "Este trabalho eu dedico para mim mesmo." (risos)
P/1 - E aquilo vinha na sua cabeça. (risos)
R - Eu olhei para aquele Luís Carlos e falei: "É agora." (risos) Eu falei: "Parodiando o professor Luís Carlos, com todo o respeito, na sua tese de doutorado ele cita, ele escreveu isso, “eu fiz esse trabalho para mim”, está certo? É tudo o que eu fiz na minha vida, é o que eu gosto de fazer, não sei o que lá... Agora, se o resto puder usar, vou ficar muito feliz, mas esse trabalho em primeiro lugar atendeu às minhas necessidades." O Luís Carlos quis morrer! Bom, não preciso dizer que ele veio com todos os trens e os elefantes que ele tinha comprado e uns emprestados para cima de mim. Deu-me sete. Sete, a nota mais baixa que você pode tirar num doutorado. O cara veio com todas, falando da falta de respeito que eu tinha tido com a PUC tirando a professora Matilde, que isso não se fazia, que mostrava que eu era um candidato indisciplinado... Soltou todos os cachorros. Que eu devia...
P/1 - Na banca, assim, na frente de todo mundo?
R - Na banca, na frente de todo mundo. Mas eu já tinha citado ele, eu falei: "Ah, narcisista por narcisista, narcisista e meio, eu vou ser como eu sou." (risos) Fui eu quem citou o outro?
P/1 - Ainda bem que você tinha ido ler.
R - Você viu? Lendo sobre ratos albinos, não sabia nada sobre ratos albinos. (risos) Desgraça. Comecei pela primeira página. Falei: "O senhor citou lá na sua tese de doutorado..." (risos) Em cima, o velho Humberto olhando assim para mim: "Vá com calma!" (risos) Ele fazia uns sinais discretos assim, do tipo: "Menos”, “agora vai." (risos) Aí o Luís Cláudio... Foi uma coisa inédita: "Porque a senhora, além de faltar ao respeito, não cita a doutora Matilde em nenhum lugar do seu trabalho". Era um levantamento sobre a atuação dos psicólogos brasileiros no Brasil, que eu fiz em 1987, um levantamento de 1987. "A senhora não cita a doutora Matilde em lugar nenhum. Aliás, ela está aqui na plateia. Matilde, você quer falar alguma coisa?" (risos) Eu olhei para ele e falei: "O senhor vai me desculpar, mas a defesa da tese é minha, a plateia pode se manifestar?" (risos)
P/1 - É surreal. (risos)
R - Eu falei: "A plateia pode se manifestar? A defesa é minha." Aí a Matilde logicamente não queria falar nada. Eu falei: "Só falta a outra..." "Não, se alguém mais quer falar alguma coisa... a história da sua vida..." (risos) E eu tenho uma teoria que as meninas estão cansadas de ouvir, quando a vaca está no brejo, não adianta puxar a vaca. Afunda a vaca, porque ela já está no brejo, tá certo? A minha vaca já estava no brejo. Eu falei: "Esse cara vai me reprovar. Desgraçado, vai ser agora." Eu falei: "Nós temos um problema de comunicação." Com toda... Não, eu sou uma mulher fina: "Nós temos um problema de comunicação ou eu não sei escrever, não sei me expressar direito, ou o senhor não sabe ler. Página 15, doutora Matilde Neder. Página 38, doutora Matilde Neder. Página 52, Matilde Neder. Então as referências que o senhor disse que eu não fiz, eu fiz. Estão todas aqui. Ou o senhor não leu, ou eu não deixei claro, porque a doutora Matilde Neder está mencionada nas páginas." Bom, enfim, a banca se retirou, não sei o que lá... E o cara me carcou um sete porque ele não podia me reprovar, acho que o doutor Humberto deve ter açoitado o homem. (risos) Falou: "Não, reprovar não" "então qual é a menor que eu posso dar para ela?" "Sete." Ele me deu sete. Foi boa essa vivência. Você vê que nada foi fácil, o pessoal depois fica assim: "Ah, você é mestre, doutora , é tudo fácil." É nada, sofrido que é o cão. Bom, enfim, aí era...
P/1 - Foi o primeiro doutorado...
R - Com esse assunto no país, foi.
P/1 - Sobre essa temática no país?
P/2 - E você credita esse tipo de relação tumultuada a essa questão? A ser uma inovação de estar trabalhando com uma nova área? Ou é uma questão de personalidade, mesmo?
R - Não, eu credito a Matilde Neder mesmo. (risos)
P/1 - Nada mais profundo do que isso. (risos)
R - É, não precisa ficar muito... Não exagera. Não, porque tem gente que é maquiavélica, vê Antônio Carlos Magalhães, você vai trabalhando por conta.
P/1 - Não, mas tinha essa coisa do novo, uma coisa...
R - Ah, do novo, mas nada impeditivo. Eu tinha feito a tarefa corretamente do ponto de vista metodológico, tinha bibliografia... Não tinha porquê... O trabalho, do ponto de vista científico estava perfeito.
P/1 - Mas você acha que tinha, assim, um embate, em termos do conhecimento, mesmo? De um posicionamento contra a área ou era...
R - Na Escola, na PUC era contra ela mesmo. Brio, brios. Mas sobrevivemos todos. (risos) Bom, e aí.
P/1 - Você estava entrando no Serviço de Psicologia.
P/2 - É, então, nesse período que estava se estruturando o Serviço só tinha esse da ortopedia? Era o único lugar onde...
R - Não, tinha na psiquiatria; dentro desse hospital tinha na psiquiatria também. Era de onde eu vinha.
P/1 - Era onde ela fez a passagem.
R - Mas o modelo era uma transposição do consultório para dentro do hospital, era isso que não funcionava. Não adianta, não pode funcionar, porque assim, a psicologia lá na psiquiatria é no quarto andar, é até hoje, então você ficava no quarto andar − que é o último − e todas as enfermarias nos andares de baixo, entendeu? Então assim, o mundo acontecia embaixo e você no quarto andar. Aí alguém mandava um papel para você: "Olha, atenda o seu Pedro porque você tem que fazer um teste de personalidade." Ah, mas eu nunca tinha visto o seu Pedro, não tinha a menor ideia. De repente chamava o seu Pedro, depois um atendente vinha, trazia o seu Pedro e botava na minha frente, você aplicava um teste. O seu Pedro ia embora, você fazia um relatório e mandava o papel de volta para o prontuário, para o psiquiatra, para alguém... Você não via! Isso é como é no consultório. Mas acontece que dentro do hospital o doente está lá. Por que eu não posso ver o doente com outro doente, entendeu? Ver a família desse doente que está chegando? Enfim... Por que eu tenho que fazer um teste de personalidade? Eu não posso ficar olhando para ele para dizer: "Olha, esse é assim. Puxa, ele tem uma dificuldade, ou não tem..." Enfim, conversar com a enfermeira que fica 24 horas por dia com ele, entendeu? Por que eu não posso andar pelo hospital? E quando for discutir o caso dele eu não tenho nada para falar? Eu tenho para falar. Porque me perguntam alguma coisa, entendeu? Então funcionava de uma maneira muito estática. Na realidade você não tinha acesso ao doente, você tinha acesso apenas um instante, a uma foto com o doente, aí você mandava ele embora. Não que não funcione, funciona! No consultório funciona, mas a verdade é que no consultório eu dependo de você, então assim: "Onde você mora?" "Eu moro lá na esquina" "de onde você vem?" "Eu venho..." "Como é que você vem?" "Eu venho de ônibus, eu venho não sei o que mais e tal..." E lá na enfermaria não, eu posso chegar e dizer assim: "Não, eu não me dou bem com aquele fulano lá." "Ah, eu vou ver como é o relacionamento dos dois, eles estão lá os dois." Por que não?
P/2 - Você resolve ali. Os dois têm um contexto também.
R - Claro, claro. E depois outra, eu fico dependendo da informação que o outro me traz, mas eu posso ver com os meus olhos. E para que eu fiz seis anos de escola? Acho que para ter algum olhar diferente.
P/1 - Você estava falando da estrutura, dos moldes do serviço de Psiquiatria, como é que funcionava o Serviço lá no...
R - Não, ele perguntou se aqui era o primeiro, se tinha outros. Então, no HC não. No HC tinha na psiquiatria, tinha na ortopedia e tinha um povo que eu invejava, mas morria de inveja, que era o pessoal do Instituto da Criança, que naquela época era uma enfermaria só, não era um Instituto. O prédio não estava pronto ainda e eles trabalhavam num sistema multidisciplinar, absolutamente integrado. Chamava-se Equipe de Higiene Mental. A assistente social tinha a mesma voz que o psiquiatra, que tinha a mesma voz que o pediatra, que tinha a mesma voz que o psicólogo, enfim, era fantástico, bárbaro, maravilhoso! Eu morria de inveja, porque era assim, no andar que você entra do prédio velho, do HC, de um lado era neurologia e do outro lado era pediatria, era bem coisa de vizinho mesmo, e eu ficava na neurologia olhando aquele pessoal da pediatria trabalhando: "Ah, um dia eu quero trabalhar assim." Super integrado, nessa equipe multidisciplinar, todo mundo sem disputar lugares... Pelo menos do lado de fora a gente imaginava assim. Então uma criança precisava de atendimento psicológico, psíquico, tanto fazia aí o psiquiatra como o psicólogo, tinha o mesmo peso. Imagina! Quando isso poderia acontecer? Então eu tinha uma inveja miserável daquele povo, maior respeito, porque a minha história na psiquiatria era outra, de perna para o ar, então tinha esse serviço também. Logo depois... Eu acho que o Instituto da Criança, se não for simultâneo, é logo depois do Instituto do Coração, é mais ou menos na mesma época. Eles vão lá para o prédio novo e o Serviço de Higiene Mental aumenta, eles têm um trabalho fantástico, publicam muitíssimo, mas passam também por uma história muito interpessoal, porque a chefe da Higiene Mental era casada com o professor titular, era uma psiquiatra casada com o professor titular de pediatria, então tinha muito essa troca. Inclusive se você for lá agora... O Serviço de Higiene Mental eu não invejo mais não, deu uma afundada assim, trinta cruzes. Por quê? Porque ele teve um caso fora, eles se separaram... (risos) Acabou com o Serviço.
P/2 - Estava equilibrado no casamento? (risos)
R - E eu não sabia, mas enfim. Sabe quando você olha do lado de fora e fala: "Aquela grama é mais verde?" Mas não é não. Bom, mas enfim, tinha esse Serviço de Higiene Mental que durante muitos anos se sustentou magnificamente. Doutora Dulce Marcondes, uma mulher invejável.
P/2 - Doutora Dulce Marcondes era psicóloga ali?
R - Ela era psiquiatra. Casada com o pediatra, entendeu? Mas ela tinha essa cabeça aberta, de todo mundo igual, todo mundo dá palpite, todo mundo tem coisa para contribuir, enfim...
P/2 - Que foi o modelo que veio um pouco se aplicar? Pelo menos essa perspectiva no Serviço de Psicologia...
R - É, mais ou menos. Porque, por exemplo, psiquiatra aqui eu podei o quanto eu consegui, tanto que você vê que aqui não tem psiquiatra. (risos) Eu não tinha caso com psiquiatra, não era casada com psiquiatra, então... (risos) Aqui não, vamos fazer Higiene Mental não. É assim, o Serviço de Psicologia, psiquiatra não. E o Serviço Social faz a parte deles, cada um faz o seu pedaço. Nada de muito integrado assim, não. (risos) É verdade, foi boicote mesmo, meu filho. O que mais? Será que elas não gostariam de perguntar alguma coisa? A Fernanda está arrumando o cabelo.
P/1 - Bom, então eu com a minha incontinência vou perguntando. (risos) E aí o Serviço... Quer dizer, como é que foi esse começo, essa estruturação do Serviço junto com a estruturação do próprio Incor?
R - Bom, em 1974 eu era recém-formada ainda. Até hoje, para dizer a verdade, eu não sei se eu sei alguma coisa de psicologia... Eu acho que eu não devia saber... Eu não sei nada, então naquela época eu não sabia nada mesmo, mal eu sabia assinar meu nome. Mas eu tinha muita prática, eu tinha quatro anos de hospital e sabia todo o porquê do Serviço de Psicologia não dar certo. "Ah, não dá certo por causa disso, do papel. Não dá certo porque vocês não discutem o caso. Não dá certo porque vocês não mostram a cara. Não dá certo porque vocês não estão no andar..." Enfim, eu sabia exatamente tudo o que não era para fazer. "Não dá certo porque vocês aceitam estagiário e não dão programa de estágio para o cara." Quer dizer, qualquer coisa o cara pode. Segunda-feira não pode... Quer dizer, o que ele espera naquele dia? O que vai acontecer com ele naquele dia? Não sabe. "Então vamos organizar essas coisas" e nós tínhamos um grupo, nós trabalhávamos na obra. Na realidade o Instituto começou a funcionar em Janeiro de 1977, foi quando abriu as portas para o primeiro paciente, e nós trabalhávamos na obra. Até é gozado porque esses 13 eram itinerantes: "O pessoal vai passar o cascolac aqui ou vai pintar aqui..." Então nós estávamos no primeiro andar, mudava todo mundo para o segundo andar, voltava todo mundo para o térreo, entendeu? Tinha muita pulga. É, pulga, porque era uma obra. Tinha pulga. (risos) O Jorge, que era o farmacêutico... Vocês não conheceram o Jorge. É uma peça raríssima, é um nordestino... Jorge Washington, um cearense divertidíssimo, ele foi presidente da CM, da Central de Medicamentos lá, porque aqui o doutor Seigo Tsuzuki era o Ministro da Saúde... E foi assim, super divertido, porque a gente ficava cutucando o Jorge: "Jorge você tem que fazer um negócio para parar com as pulgas, não é possível a gente vir trabalhar com esse monte de pulga." Então o Jorge fez um preparado chamado Stop Pulga. (risos) A dona Zilá, que era a faxineira do pessoal da obra... Sabe aquela mulher que fica fazendo cafezinho para os engenheiros? É uma nordestina atarracada, pequeninha, ela ainda está no prédio, aí em algum canto. Atarracada, pequeninha, enfim, assim que ela fazia a limpeza da sala e antes da gente chegar ela aplicava o Stop Pulga que o Jorge tinha desenvolvido, então dava para a gente trabalhar. A dona Zilá, como ela era nordestina, se identificava muito com o Jorge, porque eles falavam inclusive no mesmo português. Era muito engraçado, porque, assim, todo mundo era doutor: "Doutor fulano, doutor sicrano..." E o Jorge era o Jorge, então a dona Zilá: "Jorge, sabe o que é? Acabou não sei o que aqui..." (risos) Todo mundo era doutor e o Jorge, que era dono do Stop Pulga, era Jorge, e com tapinha nas costas ainda. (risos) Dos 13 tinha o Paulo, que era engenheiro; o César, que era veterinário; o Jorge... Eram poucos homens. A maior parte mulher, na área da saúde a maior parte é de mulher. Era assim, precisava limpar a sala ou qualquer coisa: "Ah, não, os homens têm que varrer." A vassoura ia para o Jorge: "Jorge, você tem que varrer" e nessa época ele foi para o Japão, então nós fizemos uma festa para ele. E ele era carinhosamente chamado de Maria, que é a nossa empregada: "Maria, tá com muita pulga." (risos) Maria fazia o Stop Pulga. "Maria, vai falar lá com a dona Zilá..." (risos) Então até nesses achados e perdidos do Instituto deve ter alguma foto: "Adeus, Maria. Boa viagem, Maria", porque a Maria foi para o Japão. (risos) Era assim, um clima muito legal, um clima de muito entrosamento. Eu era muito assustada, porque eu era recém-formada e tinha essas feras, assim. A dona Líris era enfermeira do pronto-socorro do HC, que é o maior pronto-socorro da América Latina em movimento. Imagina uma enfermeira chefe do pronto-socorro, quem era eu para entender de hospital? Aquela mulher entendia tudo sobre doente. Então eu tinha assim, né... Eu sentava perto dela. A Wanderli era um colosso de mulher, trabalhava na Secretaria de Educação, foi diretora ou é diretora da Universidade de Guarulhos, fundou isso. E eu lá, formada fazia 15 dias, assim, metida, metida mesmo. Mas o que eu não sabia é que eu dava muito medo neles, porque eles ficavam nessa coisa de psicóloga bruxa. Sabe, assim, olhou para os olhos e disse: "Seu passado te condena", entendeu? Ou então: "Nunca mais fale comigo ou divulgarei tudo o que sei." (risos) A dona Líris até hoje tem uma mania de ficar desenhando folhas. Sabe aquela pessoa que fica com o lápis assim? Então, ela fica com folha. Ela faz folha sobre folha, sobre folha, sobre folha e não sei o que... Ela não sentava ao meu lado porque e se eu olhasse pra... Uma vez ela falou isso: "Você fica olhando e interpretando os desenhos que a gente faz." (risos) Eu falei: "Poxa". Todo mundo tinha medo de todo mundo, entendeu como é que funcionava? Assim, um estava chegando, o outro não sei o que... Então, enfim... Mas eu aprendi muito, demais. Aprendi na questão de administração hospitalar, o doutor Humberto era o nosso diretor naquela época, pessoalmente. Aos finais do dia ele tinha reuniões com o grupo todo e ele tem umas exposições muito interessantes, do tipo: "Todo mundo devia fazer administração hospitalar", então foi nessa época que eu fiz esse curso de administração para entender minimamente o funcionamento do hospital, e depois você delirar em cima. "Então eu gostaria daquilo... Mas por que isso só pode ser desse jeito?" Você tinha que saber. Ele achava muito que a gente tinha que sair para conhecer lugares, para conhecer outros trabalhos. Ah, outra coisa, principalmente com as mulheres, ele achava que jamais você devia se apresentar com o cabelo descolorido: "Como é que é isso? Não, você saia hoje e a tarde inteira e vá pintar o seu cabelo, vá fazer a unha, porque você vai ser um diretor, um diretor vai chegar com a unha lascada? Suspenda todas as reuniões que você tem e vá fazer a unha." Sabe? Ele tinha umas coisas assim. E ele era muito integrador, assim, de sentar mesmo. A gente sentava em círculo lá em baixo, no hall de entrada: "E o que você acha disso?" "Não, mas é um problema no centro cirúrgico." "Não, não tem problema." Ele chamava o veterinário: "O que você acha disso?" "Eu faço cirurgia." "Não, mas qual é a opinião como leigo, como ouvinte..." Enfim... Todo mundo falava, e o grupo aprendeu a se respeitar. Nós crescemos muito juntos, com todos os medos e cabeleireiros juntos. (risos) A gente compartilhou muita coisa, isso faz uma grande diferença, em chegar num hospital em que já está tudo instalado e você entra, e você crescer junto com eles. Eu acho que esse foi um diferencial importante, crescer junto. A gente aprendeu a se respeitar. Não que não tenha tido briga, tivemos ao longo do tempo mil arranca rabos, mil ficar de mal, enfim... Mas acho que 90% foi boa a coisa. O espaço está conquistado, não tem o que discutir.
P/2 - E o contato com o doutor Zerbini, como era?
R - Ah, o professor era uma pessoa ótima. Quando ele se aposentou fui eu que fiz o discurso dele, de despedida. A secretária dele tem até hoje o meu discurso. Eu nem sei onde está, mas ela tem, porque toda hora ela vive citando, a dona Ediméia. Sabe quem é a dona Ediméia, do Conselho? Ela também se aposentou agora, esse mês, estava secretariando o professor Adib. Nossa, eu me senti assim: "Quem era eu para me despedir do mestre, do arquimestre, super mestre?" E fizemos uma festa para ele, foi super legal. Depois eu voltei o contato com ele... Ele era uma pessoa super ocupada, falava baixo, era uma pessoa legal de trabalhar, mas era o Zerbini, se essas mulheres aí me davam um certo receio, imagine o professor. Mas dava oportunidade para todo mundo, o professor tinha uma máxima que eu acredito piamente, que é: "Nada resiste ao trabalho." E nada resiste mesmo ao trabalho. Não adianta ficar brigando com o outro. Simplesmente vá lá e faça, a hora que você fizer isso vai estar comprovado, se você acreditar, se for realmente o certo, né? Não tem... O que está errado? Qual é a premissa que está errada? Ele falava manso, falava baixo... Aliás, se vocês quiserem eu acho que até a Sociedade Brasileira de Cardiologia tem uns vídeos gravados com ele. Seria legal vocês verem. Eu não sei se a gente tem na casa, mas não é difícil de conseguir. Depois eu tive contato com o professor na época... Assim, mais próximo mesmo, de frequentar o quarto dele e tal, na época em que ele estava morrendo, que ele morreu aqui no Instituto e eu estive com ele muitas vezes. Não sei se eu vou dizer um atendimento psicológico, porque nem me atrevo, mas tentando olhar para o lugar para onde ele estava e tentando melhorar. Orientando a família e tentando melhorar para ele. Então, por exemplo, o professor estava muito desistido da vida, porque ele dizia que ele só sabia fazer duas coisas: jogar tênis e operar. E ele não podia operar, não podia jogar tênis, então tinha acabado tudo. Eu sentei com ele, sugeri, então: "Vamos ler alguma coisa, professor" "é sobre medicina?" "Não, professor, vamos ler sobre outra coisa" não, então eu não quero ler. Se não for sobre medicina eu não quero". Ele estava bem na suíte do lado de lá, no oitavo andar... A suíte é do lado de cá, desculpe. A suíte é em um canto, assim, tem muita janela. Eu falei: "Professor, então vamos andando." O quarto fica aqui na suíte e tem uma varanda grande: "Professor, vamos andando então. A gente vê as pessoas lá na rua um pouco", mas ele precisava sair da cama um pouco, então fomos andando. Ele chega e diz: "Eu odeio pessoas, por isso que eu vou fazer cirurgia, porque aí as pessoas já estão anestesiadas e eu não preciso conversar com elas." (risos) Eu falei: "Professor, tá duro, viu? Como é que nós vamos fazer? O que nós vamos ver lá embaixo?" (risos) Nós chegamos lá no cantinho − e tem aquele monte de barraquinha, eu não sei se vocês lembram do Hospital antes de ter esse estacionamento no meio, tinham essas barraquinhas que hoje estão na calçada, hoje estavam todas no meio. Aí o professor chegou, andou comigo, olhava lá para baixo e dizia assim: "Mas porque eu estou vendo isso? Essa coisa é uma imundície, uma imundície. Um monte de infecção, esse povo precisando trabalhar desse jeito, sem ter condições de vida, sem ter condições de higiene”, mas fez um discurso! "Professor, eu acho melhor a gente voltar para a cama, o senhor não quer ver gente, o povo que o senhor está vendo está errado. “Então tá." (risos) Era uma tourada, mas nessa época em que ele estava adoecendo ele me contou muito da vida dele. A irmã dele, que hoje é uma voluntária também aqui no Hospital, também contou. Eu me lembro que ele me contou uma passagem muito interessante, é interessante porque a pessoa vai resgatando a vida, no final. E o dele era um câncer importante, generalizado, então era só esperar morrer mesmo, não tinha outro jeito, e ele sabia disso. Ele me contou que foi um filho temporão. Contou que quando ele nasceu a mãe colocou ele numa caixa de sapatos porque ele era muito pequeninho e não tinha como vingar, então ela fez uns embrulhados com lã e ficava numa caixa de sapatos. É. Interessante. Então esse foi o meu contato com ele, assim, muito carinhoso. No final foi muito mais do que carinhoso porque... É, sei lá, é interessante a gente estar com a pessoa no final da vida. Muito doído, mas enfim...
P/3 - E o primeiro contato que você teve com ele, como foi?
R - Então, o primeiro contato foi lá na Beneficência Portuguesa, os homens da neurologia me mandaram para lá para falar com ele.
P/1 – Nossa! Naquele momento já receber um convite dele, assim...
R - Ele me levou para o centro cirúrgico: "A senhora já assistiu uma cirurgia cardíaca?" "Não senhor" "então vamos lá em cima" "vamos." (risos) Tem esse problema, eu nunca digo não "vamos, professor." Chegamos lá: "Essa menina vai entrar." A paramenta, lava, não sei o que, tal... Enfim, o auxiliar dele era o professor Bittencourt. A cirurgia era muito longa, por isso um outro médico. São oito horas, eles fazem em etapas. Uma turma abre, o cirurgião principal entra no tempo principal, faz a cirurgia e aí ele sai, aí era o Bittencourt que estava fazendo. Já chegou, já me levou: "Olha, tal, vai levar isso..." Fica aquele monte de nome que faz de conta que eu sei tudo. Eu não entendia nada, nem de anatomia, nem sabia o que eu estava vendo, mas enfim... Ele fez o que tinha que fazer, cinco minutos. Aí sai e o professor Bittencourt, acabou a cirurgia. Ele acertou comigo: "olha, eu quero que você faça isso, você não vai saber quem são os pacientes, quer dizer, qual bomba está em qual paciente, você vai coletar os dados e depois vai me dizer, por grupos. Então olha, esse grupo tem características semelhantes, esse também tem, e eu vou dizer para você quais estavam em qual bomba para a gente ver se tem alguma correlação." E a Beneficência Portuguesa já era um hospital grande, não era desse tamanho, gigantesco, mas já era grande. Mas não tinha lugar para eu examinar os pacientes, então ele me cedeu a sala dele: "Você atende na minha sala nas horas que eu não estou. Nas horas que eu estou no centro cirúrgico você usa a sala para chamar os pacientes e atender." Aí eu atendia no andar, na sala dele. Legal, eu também acho muito legal. E isso não dá para apagar mais, já foi. Foi super legal.
P/3 - E o professor Décourt?
R - O professor Décourt é uma pessoa diferente, é incrível. Ele é uma pessoa extremamente rígida. Rígida com ele mesmo, metódico toda a vida, então ele é muito duro no contato, porque para ele tudo é muito bem organizado, tudo muito bem claro, muito bem decidido. E o cirurgião era o outro. Gozado. Mas o Décourt é uma capacidade cultural... Sabe aqueles médicos que você imagina assim... Bom, deixa-me ver um médico. O que é um médico? O médico, o delegado e o padre? O professor Décourt é esse médico, ele sabe tudo sobre qualquer coisa. Pergunta para ele sobre Plutão? Ele faz um discurso sobre Plutão. Pergunta alguma coisa sobre Pluto, ele faz um discurso sobre Pluto. Sabe, assim? É inacreditável, uma capacidade impressionante, um homem cultíssimo. Até hoje... Ele tem quase 90 anos de idade, ele dá as aulas dele sem nenhuma dica escrita, ele lembra os dados, lembra os resultados, onde ele leu, que referência, em que ano, uma coisa fantástica, fantástica. É muito interessante, muito interessante. Enquanto do Zerbini vinha a parte prática, do Décourt vinha a hiper cultura. Mas eu tinha menos contato com ele, apesar dele ser, enfim, acolhedor. Não sei o que mais, ele nunca foi assim, muito... Sabe aquele pai que você passa na porta e vê: "Aquele lá é meu pai" e você não entra na sala. (risos) Ele é mais esse tipo. Mas pelo contrário, você pode entrar na sala dele, vai todo mundo em reverência lá, eu mesmo já fui várias vezes pedir referência bibliográfica ao professor, ele tem a maior disponibilidade, cabeça fantástica, enfim... Mas ele é mais quadradão, assim. No lugar dele o ativo era o professor Radi Macruz, que também era o clínico e era o que lidava com a gente, era como o segundo, o em comando, era o professor Radi Macruz. O Radi Macruz é um turcão... Eu não sei, vocês conhecem ele?
P/2 - Não.
R - É um turcão, ele assim: "Veja bem. Compreende bem?" Então assim: "Compreendi professor." (risos) "Compreende bem?" "Compreendo, professor."
P/2 - E foi ele que você chamou para ir para a defesa da sua tese?
R - Claro. (risos) Vou levar minha turma. (risos)
P/2 - Doutora Bellkiss, esse período de 74 a 77 foi um período de organização mesmo, montagem de... Preparando para...
R - Isso, escrever manuais.
P/1 - É, como é que foi esse manual?
R - Então, em função disso. A gente estava vendo bem os nossos inter-relacionamentos, então : "Onde eu pego, quando você larga, o que ficou..." Tinha uma brincadeira muito divertida que era: "Com quem fica o guarda-chuva do paciente" De novo o guarda-chuva. Porque o paciente morre. O paciente dá entrada no hospital, então os bens dele vão para um cofre da enfermagem, só que a enfermagem não quer mais esse cofre: "Não, nós não queremos cofre" "bom, então passa para o pessoal da manutenção" "não, não sei o que." Então caía na mão do Paulo, que era um engenheiro, e o engenheiro: "Bom, mas eu sou engenheiro, como é que pode?" (risos) Era aquele negócio, entendeu? Foi nessa época que a gente estava acertando aparos importantes, aliás, críticas inclusive, , críticas que se fazia ao Hospital. Por exemplo, quando a ambulância chega na porta do pronto-socorro, quem é que... Porque cada prédio tem um pronto-socorro, então quem é que fala: "Isso aqui é para a ortopedia? Isso aqui é para o Instituto do Coração". Quem é que fala? O médico? O médico entra na ambulância e vê? Se ele entra na ambulância e vê e o cara morrer no meio do caminho entre o prédio central e a ortopedia, por exemplo, é omissão de socorro, porque o médico viu, então quem é que faz isso? Sabe quem é que faz? O porteiro. O porteiro abre a ambulância, olha para o cara e diz: "Isso é ortopedia. Tchum!" Quando chegou aqui no Instituto do Coração a gente chegou e disse: "Não, mas o porteiro não pode fazer isso. Não pode, não tem a menor condição" "bom, então quem vai fazer?" Aí fica: "A enfermeira faz" "ah, não, a enfermagem não, a enfermagem não pode" "então o atendente..." Entendeu? Então nesse período foi um período assim, um período de acertar essas coisas que todos nós tínhamos como crítica do lugar de onde a gente vinha vindo. E ainda com alguns detalhes, por exemplo... Naquela época a gente já pensava nisso. Quando o cara entra na Enéas de Carvalho Aguiar, nós somos o primeiro pronto-socorro. Então a ideia é: "Como é que nós vamos usar como estratégia para educar a comunidade dizendo: o pronto-socorro central é lá, não venha aqui porque aqui nós só vamos atender cardiologia." Entendeu? Nesse tipo de coisa que a gente levou três anos pensando, não é à toa que o Instituto funciona. Pode não ser a 18ª maravilha, mas a hora que ele abriu a porta, nós sabíamos exatamente quem devia estar em qual lugar, o que ia fazer... Se eu falhasse: "A culpa é sua ou a culpa é minha". Ou você podia chegar e dizer: "Ele é que falhou" e nós sabíamos que ele tinha falhado porque isso estava escrito. Nós tínhamos combinado e conversado sobre isso. Ele não tinha o menor jeito de chegar e falar: "Sabe o que é? Para quem eu mando?" "Não, leia o que está escrito para quem você manda, o próximo passo". A gente passou fazendo papéis. Bom, aí a história vai confundir com a história do Instituto. Tinha um historicão, um histórico que todo mundo faz. Você vai ao médico e... Você vai ao hospital e o cara te manda para a fisioterapia, depois para a nutricionista. A primeira coisa é: "Como o senhor chama? Quantos anos o senhor tem? Onde nasceu? Onde mora? Sua família mora junto com o senhor? Como mora?" Quer dizer, têm umas coisas que eu vou perguntar, a psicologia vai perguntar, todo mundo vai perguntar, então a gente fazia um historicão, um histórico mesmo. Eram coisas que a gente marcava. O primeiro da fila marcava e colocava o historicão na pasta e já rodava. Quando chegava lá eu partia daquele ponto: "Ah, então senhor Pedro, 25 anos, mora no Vale do Ribeira e vive com cinco filhos e desempregado..." Isso eu já sabia, estava escrito no historicão.
P/2 - Toda a estrutura mesmo? Funcionamento...
R - Tudo, tudo. Papéis e tais...
P/1 - Cotidiano, como seria.
R - É, exatamente.
P/2 - Aí abriu a porta e funcionou?
R - Manda bala! Acho que sim.
P/1 - Como estava agendada? Como estava estruturado naquela época?
R - Como assim?
P/1 - Tipo válvula...
R - Tudo igual.
P/1 - Como é hoje?
R - É, exatamente como é hoje.
P/1 - E aí, os primeiros psicólogos que entraram, como é que foi essa entrada dos...
R - Então, o primeiro psicólogo era eu mesma, era grupo de um... Então Janeiro de 1977... Dia oito de Fevereiro de 1977 nasceu minha filha. Eu estava assim, em Janeiro de 77. Eu fiquei um mês aqui, naquela época a gente só tinha três meses de licença maternidade, então rapidinho eu estava voltando. Você vê que horror, não? Que mãe, fala a verdade. Bom, e aí era eu mesma. Daí foram sendo agregados. Nessa época, dos três anos nós já tínhamos feito uma previsão do quadro de pessoal. Quer dizer, para manter essa estrutura que todos nós tínhamos pensado, qual seria o quadro de pessoal. E na proporção que o Hospital ia crescendo, as pessoas iam sendo contratadas também, pessoas de todas as profissões. Tinha um planejamento de psicólogos no ambulatório, nas unidades de internação. Eles foram paulatinamente sendo contratados, assim como foram as enfermeiras, farmacêuticos, nutricionistas, enfim, todo mundo. Mas era a gente mesmo que fazia tudo. Porque assim, se veio mais dois, eu era a terceira, então tinha que estar lá, não tinha outro jeito. Toda vez que teve... Quer dizer, eu ia mudando de lugar de acordo com o progredir do Hospital. A tarefa estava bem sedimentada, estava bem esclarecida, as arestas estavam aparadas, aí entrava um colega no meu lugar e eu mudava para outro lugar. Ia para a enfermaria, ia para o programa de transplante, então assim, à medida que ia abrindo uma frente nova, eu ia indo atrás do prejuízo.
P/2 - E foi a senhora que contratou os primeiros psicólogos do Serviço? E o perfil era como? Era gente que você tinha trabalhado?
R - Nós tínhamos até uma briga legal aí. É porque é assim, o Humberto saiu e aí entrou o Seigo Tsuzuki. Depois do Seigo entrou o Zé Manoel, era auxiliar do Seigo e aí vitaliciamente. O professor Zerbini já tinha duas meninas, pois era de Guaratinguetá. Então tinham duas psicólogas de Guaratinguetá que tinham despencado aí, e o professor falou para o Seigo: "Ah, vê lá o que você consegue", porque o professor não era de mandar, não era nada disso. É tipo assim: "Vê lá o que você consegue" e o japonês veio com tudo para cima de mim: "Olha, o professor Zerbini mandou você contratar" eu falei: "Então não vou contratar. Se foi mandado..." "Você está desrespeitando o professor Zerbini" "não, não estou desrespeitando, simplesmente estou dizendo que mandado... Qual é a qualificação?" "Não, é amiga de não sei quem" "ah, isso não é qualificação, então tchau", aí o Seigo: "Então eu vou levar o problema para o Conselho Diretor." Levou o problema para o Conselho Diretor, não sei que... Aí o Conselho: "Tá bom, então faz o seguinte, abre um concurso público". Porque era Estado, não sei o que, então veio o Seigo lá: "Nós vamos fazer o concurso público e você vai fazer o concurso público" "tá bom". Porque eu não era concursada, naquela época não tinha, era por indicação, análise do currículo, tinha uma equipe que fazia isso, enfim... "Tá bom." Aí foi o pedido de abertura do concurso para o superintendente, que era o doutor Oscar César Leite. O superintendente nomeia a banca. Presidente da banca: Bellkiss. (risos) O japonês ficou louco da vida, louco! "Como é que ela pode ser presidente da banca que ela mesma vai estar?" (risos) Ficou de mau um tempão comigo, sem falar comigo. E as meninas não passaram, viu? O professor Zerbini não ficou de mau de mim. (risos)
P/1 - Elas voltaram para Guaratinguetá?
R - Sei lá para onde foram. Aqui eu sei que elas não ficaram. (risos) Não, mas foi tudo feito como tinha que ser. Não é porque eram elas, elas foram reprovadas mesmo. Não foram bem, uai! Não tinha outro jeito. Então não tinha muito um perfil, assim, acho que era mais... Quer dizer, tinha que ter um conhecimento mínimo de psicologia, mas era mais assim, o perfil da pessoa. Era aquela pessoa que queria investir ou era aquela amorfa que vem para um concurso público e vai ser funcionária pública para sempre, entendeu? Não era isso que a gente estava querendo. Você queria alguém eu tivesse um "tcham", tivesse um...
P/2 - Pique.
R - É. Um negócio assim, de acreditar. Enfim...
P/1 - E o aprimoramento?
R - O aprimoramento foi uma proposta que a Wanderli discutiu muito comigo. Na época ela era diretora da Divisão de Enfermagem, mas ela estava muito com a escola. Lembra que eu falei que ela era muito ligada com educação e tal? Era muito ligada com a escola de Enfermagem aqui da USP, e nós começamos a conversar muito. Eu já tinha o estágio naquela ocasião, um estágio regular para graduação e até na graduação tinha essa coisa de que o estágio tinha que ser voluntário, a pessoa não tinha que vir aqui porque ela estava querendo dinheiro, ela tinha que vir em primeiro lugar porque queria aprender. Conversei muito com a Wanderli, aí me lembrei que tinha um modelo de aprimoramento, de residência em psicologia dentro da área de hospital no Hospital de Clínicas de Ribeirão Preto. Eu fui conversar lá com a diretoria, nessa época já era o José Manoel, e tinha a Fundação. Isso daí eu vou fazer um parêntese. Eu louvo... O meu relacionamento com o Zé e o relacionamento com a Fundação sempre foi muito bom, bem do tipo de apostar e acreditar nos projetos, seja lá qual fosse a loucura que eu fosse apresentar, o povo chegava e dizia para mim: "Tá bom, nós vamos fazer. Quanto custa? O que você quer? O que está precisando?" Então muito do que o Serviço é, é por causa desse... Eu não sei se é bem uma aposta no escuro, porque tem um jeito, uma cara... Os resultados naquilo que você está apostando, mas sempre apostaram. O aprimoramento foi uma dessas apostas. Eu propus ir à Ribeirão Preto para passar um tempo lá e olhar como eles estavam estruturados, trazer esse modelo para cá, para a psicologia e para a enfermagem. Imediatamente foi tudo liberado, fui à Ribeirão, olhei qual era o projeto deles, fizemos as modificações para a gente aqui e depois a gente começou. Fui até a FUNDAP mil vezes... A FUNDAP é uma Fundação para aperfeiçoamento de pessoal do Estado, ela não estava estruturada para todo esse movimento. A partir daí começou a se organizar também para a Secretaria de Saúde, para outros hospitais, enfim... E nós tivemos algum problema... Nisso entra o José Manoel de novo, aqui na superintendência, porque o superintendente ficou um pouco ressabiado: "Como? Aprimoramento para não médico? Isso não". A FUNDAP não tinha as bolsas ainda, a Fundação Zerbini foi lá e bancou as bolsas para aquele ano e o Incor bancou começar sem o superintendente ter autorizado. Já a partir do ano seguinte eles resolveram copiar e ampliar o modelo para todos os não médicos e para todos os Institutos. Mas foi assim que começou, foi uma aposta mais ou menos... Um sonho, uma idealização ou sei lá o que. A mesma coisa foi com relação ao Encontro Nacional de Psicologia Hospitalar, que isso foi... Acho que foi Outubro de 1983, não sei, qualquer coisa semelhante.
P/1 - O primeiro Encontro?
R - O primeiro Encontro. O primeiro Encontro também era assim, ninguém sabia... Ele não era primeiro, chamava-se Encontro porque eu discuti com o meu pessoal, eu falei: "Ah, vamos ver como é, o que está acontecendo. Vamos chamar um povo. Precisamos de dinheiro para começar". A Fundação bancou. A gente tinha feito um evento para 600 pessoas, e apareceram 900. No dia em que começou o evento parava ônibus − muita gente − o povo descia de mala e cuia, nós ficávamos, assim: "Onde nós vamos botar todo mundo? Não tem lugar" "Ah, mas não está escrito em lugar nenhum que não tem lugar, que são vagas limitadas, então tem que aceitar todo mundo”. A Fundação prontamente contratou aquele pessoal para a transmissão simultânea, colocou duas salas... Sabe, assim? Apostou, foi atrás, o resultado foi bom. A Assembleia, esse conjunto de pessoas, propôs que esse fosse o primeiro Encontro e que depois ele continuasse, mas ele não tinha número nenhum no começo, não era para ser nenhum, nem primeiro, nem nada, era só um encontro, por isso chama Encontro, aí só fizemos o segundo. Tivemos problemas também com a doutora Matilde, pois o Encontro tinha começado daqui e eu, muito da besta − aquele meu lado ostra − cheguei uma vez em uma reunião com as psicólogas e falei: "Olha, o Incor está propondo Serviço de Psicologia, Fundação, não sei que..." E a mulher: "Ahã, ahã." Bom, saiu a reunião e ela "pimba", foi no superintendente: "Olha, como ela está fazendo sozinha o Encontro? O senhor decrete que seja para todo mundo”. O homem me chama: "É para todo mundo" "mas já tá pronto!" "Não, não interessa" "sim senhor". Então: "É para todo mundo." (risos) Mas enfim... Quando ficou marcado que teríamos o segundo, aí então tinha que convocar todas as colegas do complexo, e a doutora trabalhando atrás, no contra fluxo. Era terrível. Nós montávamos um grupo de pessoas... por exemplo, contato com os convidados: "Você vai telefonar para esses dois convidados" E ela era da turma do mal, certo? (risos) Aí quando chegava a próxima reunião: "Você ligou?" "Não" "pô, não vai dar tempo, você teria que ter ligado" "ah, não liguei. Não pude, não deu." Ou então chegava: "Ah, liguei" E não tinha ligado. Quando nós percebemos esse mecanismo − isso a Carmem pode falar muito para vocês, porque a Carmem estava muito perto de mim nessa ocasião, compartilhando inclusive o mesmo ódio (risos) − nós começamos a montar um grupo paralelo, então ia a minha turma para a reunião e os convidados da turma: "Olha, você telefona para aqueles dois, tá bom?" "Ahã, tá bom." Reunião paralela: "Carmem Sílvia, por favor, pegue a lista da fulana de tal e telefone" Então ia a Carmem Sílvia atrás: "O senhor já foi convidado?" "Não" "então o senhor está sendo convidado. Até logo." "Até logo." Próxima reunião de todo mundo junto: "Você ligou?" "Ah, não deu tempo." A Carmem: "Não, mas eu liguei". Então a tarefa tinha sido cumprida, entendeu? Foi um embate terrível. Era muito fechado em cima da tarefa, muito afim de fazer, e o outro pessoal segurando para a coisa não andar. Aí ficou famosa uma frase que eu falei uma vez: "Com vocês ou sem vocês o evento vai sair de qualquer jeito. Se vocês quiserem participar, muito bem, se vocês não quiserem participar, não tem o menor problema, porque nós vamos fazer o evento de qualquer jeito." E fizemos. Tinham umas que se chegaram, as outras... Enfim... Mas a tia do mal era muito maior, então o povo morria de medo.
P/1 - E relação mesmo, do Serviço de Psicologia aqui do Incor com a Sociedade de Cardiologia?
R - A Sociedade de Cardiologia do Estado?
P/1 - Do Estado de São Paulo.
R -Todos os homens famosos da cardiologia do Estado estão aqui conosco, então é fácil se relacionar com a Sociedade. Na época do Encontro, em 1983, o Protásio é que era o presidente da Sociedade. O Protásio veio e falou para a gente estar junto no Congresso de Cardiologia do Estado, era um congresso em Santos que ia acontecer dali a uns dois meses. Sabe o barco andando, atracando, e eu ainda lá atrás com a canoa remando, correndo atrás do prejuízo? "Mas Protásio, como é que nós vamos fazer?" "Ah, não sei. Você fale com as pessoas, vamos fazer um simpósio paralelo, esteja com a gente em Santos." O presidente do Congresso mesmo... Hoje é um grande amigo meu, mas ele nem sabia o que estava acontecendo: quem eu era, o que a psicologia estava fazendo lá, o que estava falando, por que tinha que ser encaixado, enfim... Mas nós chegamos juntos e fizemos acontecer esse simpósio. Depois nunca mais a gente se largou, então do relacionamento do congresso nós temos, eu acho, uns 20 anos... Eu não sei fazer conta. Lembra da dona Luci? Eu não sei fazer contas. Mas eram 20 e poucos anos e depois... Não, que 83, nada. Isso é antes. 1983 é quando começa o departamento formal, com papel escrito. Aí a Sociedade muda os estatutos para poder abrigar os não médicos. Foi a partir do contato com a psicologia e com as enfermeiras que elas vão por inércia, elas são em maior número. Fazer o que? Tem uns apêndices que você tem que carregar, umas bóias junto com a canoa, mas... (risos) Enfim, a vida é assim. Eles mudam os estatutos e a gente passa a ser formalmente associados, afiliados da sociedade, mas começamos com o contato com o congresso, tendo um simpósio específico e participando de algumas mesas na parte médica. Isso foi legal, porque tem que mudar os estatutos no cartório. Enfim, é uma coisa mais complicada. Não é assim: "Vamos mudar os estatutos." Não, tem que aprovar em Assembleia, todo mundo tem que ir... E aí já tínhamos outros presidentes. Era o Luís Carlos Bento de Souza, que é o diretor clínico do Hospital do Coração. Do Luís Carlos, quando começou mesmo, é o professor Ramírez que foi o primeiro presidente em que o departamento oficialmente estava começando. Aí a gente montou o curso de especialização de Psicologia aplicada à Cardiologia, lançamos o livro, passamos a escrever na revista da Sociedade... Isso é tranquilo.
P/2 - E as enfermeiras junto? (risos)
R - O que você quer que eu faça? Tem um preço. Mas nós fomos mais espertas. Elas dizem que a gente é mais esperta mesmo, porque elas estão ocupadas trabalhando e a psicologia está namorando. Pode ou não? (risos) Que elas estão lavando o doente, trocando esparadrapo e nós, lindas, banhadas, perfumadas, ali, olhando para os médicos, enquanto elas estão... É a visão da dona Líris, é verdade. Tem até uma brincadeira. Posso contar a brincadeira?
P/1 - Pode.
R - Não vai pôr isso no livro porque não pode.
P/1 - Não.
R - Mas está gravado. Anyway. A dona Líris é assim: ela é um pouco revoltada com as psicólogas porque diz que namoram os médicos, culpa dessas meninas aí. Nós tínhamos um uniforme que era a parte de baixo azul claro e a parte de cima e os sapatos brancos. O dia que nós implantamos esse uniforme foi assim, um alvoroço. Todas as psicólogas chamando atenção, todo mundo no prédio: "Pensei que era coincidência. Agora estamos vendo. Puxa, que legal, e não sei que..." Bom, e a dona Líris, num tom pejorativo, chamava a gente de borboletas azuis. (risos) Não preciso te dizer. Olha o que eu tenho que aguentar. Ainda preciso segurar a moral da turma. “Borboletas azuis”. No dia do meu aniversário ela me deu uma borboleta, um broche de uma borboleta. Tudo bem, que era a borboleta chefe. (risos) Depois de muitos anos nós mudamos o uniforme e passamos a adotar o avental. Aliás, por pressão das próprias mulheres: "Porque o azul claro não combina, depois eu vou no supermercado buscar o moleque na escola, como é que vai fazer? Não está na moda azul claro, todo mundo fica me olhando com esse azul claro." "Tá bom." Então fizemos o avental, pensamos aí no bordado baseado no hemocentro. Só o hemocentro e nós tínhamos esse bordado. Agora está generalizado, mas foi a psicologia do Incor que começou, e um belo dia estamos marcados: "Então dia tal, todo mundo de avental." "Pá", todo mundo de avental, a casa inteira em polvorosa: "Pô, a psicologia mudou de avental, mudou de uniforme. Puxa, que legal, que ótimo! Super charmoso, bordado do lado, ninguém tinha..." Aí vem a dona Líris: "Olha, Bellkiss, eu falei para as enfermeiras aproveitarem que a psicologia perdeu a cintura". Porque você está de avental, agora o médico não sabe mais, não enxerga direito como é que é. (risos) Vocês perguntaram, eu estou falando.
P/1 - Estou adorando a história. (risos)
P/2 - Está ótimo. (risos)
R - Ela vem para mim: "Olha, Bellkiss, eu falei para as minhas enfermeiras aproveitarem, porque a psicologia perdeu a cintura." Eu falei: "Líris, aí é que você se engana. Isso é um truque psicológico, porque as enfermeiras estão de branco, transparente ou não, o médico está vendo. Mas com a gente, para ele sentir vai ter que pôr a mão". (risos) Não preciso te dizer que ela ficou furiosa comigo. Eu falei: "Porque agora ele não só vai imaginar, como vai ter que pôr a mão, ele não vai saber como é que é." (risos) Não teve jeito. E já posso adiantar que as psicólogas não perderam porque vestiram o avental, viu? Nós estamos ganhando das enfermeiras, não estamos? Viu como elas sabem disso? (risos) Caiu tudo aí? Puxa! A outra vermelha que vai explodir. É dose. Aí tem os folclores entre elas também, que corre solto: "Fulano de tal está paquerando tal residente. Elas estão paquerando tal residente." Aí vem: "A Bellkiss proíbe, viu? Não pode paquerar residente". "Eu proíbo? Nunca me manifestei à respeito da vida sexual do outro. Você faça o que quiser. Aqui dentro da Casa não, mas fora..." Não tem o lema? É: "A Bellkiss proíbe namorar os residentes." (risos) Mas deve ser intriga da oposição. (risos) Pronto, e todo mundo feliz, uma mais vermelha que a outra. Sabe que tem uma que está namorando um residente. Uma das aprimorandas está namorando um residente. Não, é um folclore, eu não sei o que é que mantém isso. Tem uma atual que está namorando um residente: "Olha, eu gostaria que você fosse a primeira a saber, e você já fala para a Bellkiss se eu posso namorar o fulano." (risos) Eu falei: "Eu vou saber se pode? Nem sei quem é o menino." (risos)
P/1 - Vá conversar com ele. (risos)
P/2 - Vá conversar com ele, perguntar quais as intenções. (risos)
P/1 - "É sério?" (risos)
R - "Você pretende casar com a menina?" (risos) Ah, é um folclore, fala a verdade. A gente ganha pouco, mas é divertido que vocês não fazem ideia. Ah, então espera lá, vamos continuar na Sociedade. Então, aí a gente começou na Sociedade do Estado. O nosso, o congresso da Sociedade do Estado de São Paulo, só perde para o da SBC, o da Sociedade Brasileira de Cardiologia, mas se você prestar muita atenção, tem algum ano que nós estamos mais do que a SBC. O nosso congresso, por exemplo, é para duas mil pessoas. O da SBC é para quatro mil pessoas, três mil pessoas, depende de onde está o congresso. Então assim, esse ano a SBC vai ser em Recife, em Setembro. O cara que está no sul não dá para ir até Recife, fica muito caro para ele, precisa se locomover, precisa de muito tempo, então o que ele faz? Nesse ano ele vem ao congresso de São Paulo, que é mais perto, compreende? Então dependendo de onde está a SBC, o pessoal prefere vir ao congresso de São Paulo. Na SBC nós temos a representação mais expressiva mesmo, a maior contribuição de trabalhos e tal, é satisfatório e suficiente vir ao nosso congresso. Então a SBC olha muito para o modelo de São Paulo, o que nós estamos fazendo... E eles começaram a convidar a psicologia para estar junto com eles, depois. Desde... Essa data eu não me lembro. Com quem eu estava vendo o livro da SBC? Foi com você? Você lembra o ano que era isso?
P/4 - 40 anos.
R - Não, o livro é 40 anos, mas eu não estou há 40 anos com eles. Foi o congresso de Brasília com o doutor Marim, não lembro que ano que era isso. Bom, de qualquer forma, deve ser por volta de 1980 e alguma coisa.
P/2 - Oitenta e pouco, 85.
P/1 – Oitenta e seis, eu acho. Eu estou com o livro, eu xeroquei. (risos)
R - É lindo aquele livro, muito legal.
P/1 - Maravilhoso. Muito bem feito mesmo.
R - Em 1994 eu assumi a... O presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia era o professor Ramírez, e aí ele fundou o Comitê de Psicologia. Não é um departamento porque não tem tanta gente, até para ser inscrita. Eles fundaram então o Comitê, que é menor do que um departamento, mas é de bom tamanho. E a gente tem um evento separado dentro do congresso, por exemplo, esse aqui que vai ter em Recife, existe um dia que vai ser o dia do Fórum da Psicologia, e eu mesma vou participar de algumas mesas médicas, no congresso médico.
P/1 - Quer dizer, fora do dia específico vocês têm participação dentro da cardiologia mesmo?
R - Isso, na parte dos médicos.
P/1 - E nessa altura, a relação com o Conselho de Psicologia... Quer dizer, o Serviço do Incor, qual a relação com ele?
R - Ah, sempre foi uma relação inútil. O Conselho não serve para nada. Para que serve? O banco de dados, por exemplo, que vocês devem ter visto por aí, que nós fizemos no ambulatório, foi por causa de um desconforto com o Conselho. Quer dizer, eu quero mandar alguém para ser atendido em Atibaia: "Ah, o Conselho não pode dar porque fere a ética, porque precisa ir para o plenário para discutir quem é que vai..." Putz, o cara já morreu, já foi embora, já desistiu de fazer o atendimento psicológico. Eu preciso de uma coisa mais rapidinha. O Conselho não está acostumado a trabalhar com essa coisa da saúde mesmo. Tem que ser rápido, não dá para... Enfim, aí me enchi tanto de ficar dependendo do Conselho que nós montamos nosso próprio banco de dados. Então assim: o Conselho reconhece o nosso lugar, mas a gente não tem nenhum relacionamento, ou não tinha. Esta gestão do Conselho Federal, que está fazendo muitas coisas, muitas revisões, por exemplo, de graduação, de formação das pessoas, de especialização e de residência, tudo tem vindo muito procurar a nossa experiência. Sabe, tem perguntado, tem me convidado para fazer parte da Comissão de Residência e Psicologia. Convidaram-me para a reunião do MERCOSUL [Mercado Comum do Sul], mas com eles eu estou sempre com o pé atrás. Já fui avisada pelo Conselho Regional da sexta região que é São Paulo, vou fazer uma gravação em vídeo, como sendo uma das... Como chama isso? Os pioneiros da psicologia, ou sei lá o quê.
P/1 - Quer dizer, ao longo desse tempo que o Serviço foi se estruturando, a experiência daqui também foi irradiando para outros lugares, outros Estados?
R - Ah, mas com certeza. Essas meninas aprimorandas, as residentes e as estagiárias estão espalhadas pelo Brasil. Nós temos gente em um monte de lugar. Tem em Recife, em Maceió, em Goiânia, em Porto Alegre...
P/2 - Em Fortaleza tem um com o nome da senhora.
R - Em Fortaleza tem meu nome, é meu Serviço. (risos) O Serviço tem meu nome. É um barato, porque o pessoal ficou me enchendo a paciência dizendo: "Olha, esse negócio de vivo dar nome, como é isso?" Eu falei: "Isso deve ser coisa de nordestino. Nordestino tem mania de homenagear todo mundo, de tirar foto." Eu vivo tirando foto com todo mundo. Aí falou: "Não, mas dar nome tem que ser assim, quando a pessoa morreu." Eu falei: "Tá bom, mas eu estou indo à Fortaleza de avião. Ainda no trajeto o avião pode cair e a homenagem vira póstuma." Só que não caiu, eu ainda cheguei lá, inaugurei a placa, foto, fiz a palestra, participei do coquetel e voltei. Ainda não morri. (risos)
P/1 - Que bom. (risos)
P/3 - A homenagem é boa para os vivos.
R - É, pois é. Mas a gente não costuma fazer isso. Costuma fazer depois que o outro morreu.
P/1 - É, mas é ótimo isso.
P/3 - Tem gente que não dá flor para quem está vivo, só dá para quem está morto.
R - É. Não, mas é verdade. A nossa secretária, a Cida, não recebe presente no aniversário, nem cumprimenta no aniversário. Ela diz que dar presente é uma coisa ruim por causa do João Batista e Salomé. Tá bom. (risos) Vá enfartar esse aí. Que bom que você está no Instituto do Coração, você já enfarta no lugar certo.
P/1 - Se acontecer qualquer coisa já está encaminhado, ela sempre fala isso. Bom, essa estruturação do banco de dados, enfim, vocês sentiram essa necessidade porque não... Quer dizer, vocês buscaram isso no Conselho e vocês mesmo acabaram fazendo.
R - Para encaminha as pessoas...
P/1 - Como foi esse mapeamento? Como foi a feitura disso?
R - Ah, mil coisas. A gente foi à Secretaria da Saúde e perguntou... Que também é uma bagunça generalizada, eles não sabem onde tem, onde estão e o que estão fazendo. A gente começou com as clínicas das escolas e depois as meninas que vinham aqui fazer estágio e residência. Enfim, quando saíam elas passavam a ser uma referência.
P/1 - De atualização também?
R - Isso, é. E aí ele foi se retroalimentando. A gente atualiza isso a cada dois anos, e já faz eu acho oito anos, sei lá, uns dez anos que o banco de dados existe. As pessoas ligam para cá para saber: "Olha, eu preciso mandar alguém para o Rio de Janeiro. Quem você tem no Rio?" Às vezes eu não tenho indicação do Rio, mas eu sei alguém: "Olha, eu não sei, mas liga para a Elisabeth que é professora da PUC e fala para ela onde a pessoa está, e a Beth diz: "As pessoas ligam para cá, muito, muito... Os outros colegas, dos outros hospitais”.
P/1 - Acabou virando uma referência?
R - Ah, e aí não vai para a plenária, nós não temos problema ético, enfim... Para nós está muito claro o que a gente está fazendo. Eu não indico você porque você é minha amiga. Eu indico você porque você está na cidade. Mas a pessoa vai me retornar essa informação, vai dizer: "Olha, aquela mulher lá, que você me mandou, é uma louca varrida. Não estava. Mudou de cidade..." Aí eu marco lá na folha: "Olha, essa aqui não existe mais, mudou." É uma coisa mais ágil, não tem... E se a gente tiver possibilidade de dar duas referências nós damos, entendeu? Não. É porque você me dá os 10% depois. Puxa, eu estou preocupada com as 12 perguntas dele quando é que vai ser. (risos)
P/1 - Vai, Zé, pode perguntar. Como se estrutura essa parte funcional...
R - Não, mas na verdade, sabe o que é? Eu tenho um compromisso que eu já desmarquei na Segunda-feira. Se eu não for, provavelmente o cara não vai acreditar.
P/1 - Que horas são?
R - São 17h45.
P/1 - O compromisso não é aqui no Incor?
R - Não.
P/1 - É no Morumbi. (risos)
R - Não, é em Moema.
P/1 - Bom...
R - É, se eu sair assim... 17h50, dá. Ainda eu vou chegar meio...
P/1 - Bom, a gente...
R - Ah, mas vocês não querem saber mais nada de mim. Querem?
P/1 - Ah, queremos. (risos) Essa estruturação, por exemplo, o contrato de trabalho do psicólogo hoje, conversando com o André, a gente viu que mudou. Quer dizer, quando ele está no último dia do aviso prévio ele passa para o de 20 horas. Quer dizer, partindo do pressuposto já que a gente tem essa informação, você não precisa contar. Quais são os prós e os contras desse regime de 20 horas, 40 horas... O que muda, quais são as perdas e danos?
R - Depois de uma certa idade você vai se sujeitando às pessoas. Eu não acredito no trabalho de 20 horas. Creio que você ou fica inteiro aqui ou não fica. Mas os mais novos dizem para mim que: "Não, é bom o outro sair, ter um outro emprego, trabalhar. É bom para todo mundo. A rotatividade das pessoas aqui é porque elas vão para fora, não sei que mais e tal." "Então tá bom, então vamos tentar." Mil vezes a gente tem esbarrado porque assim: "Bom, então vamos fazer pesquisa..." "Ah bom, mas ela não pode fazer pesquisa porque ela é 20 horas." Mas antigamente todo mundo podia fazer pesquisa" "ah, vai atender o estagiário aprimorando, não sei o que... Então vamos convocar uma reunião para..." "Não, ela não porque ela é 20 horas e então sai fora das 20 horas." Acaba sobrecarregando o núcleo, o núcleo já está esperneando porque está sobrecarregado, mas foram eles que propuseram, eu só fui lá lutar pela ideia. Lutei e consegui a ideia, mas ainda tenho as minhas restrições. Se alguém fosse começar um trabalho hoje no Hospital e viesse me perguntar eu diria: "Você faça 40 horas". O modelo tem dado mais ou menos certo, eu acho que se tivesse começado assim tudo bem, mas nós tínhamos a experiência anterior e acho que nós perdemos. As pessoas perderam. Eu não perdi nada, porque eu continuo fazendo a pesquisa, continuo fazendo ensino, continuo fazendo assistência. E eles perderam. Eles são tarefeiros, agora. Faz assistência, ponto; basta. Eu penso, eu faço a pesquisa... Quer dizer, o núcleo pensa, faz a pesquisa, ensina... Que é a parte gostosa também. Porque só fazer assistência também é um sapato! E esse Hospital aqui é um hospital de assistência, pesquisa e ensino, então fica uns conflitos. Vai para a reunião: “É com ela que eu falo?" "Não. Qual é o assunto?" "Nós queríamos fazer um projeto de pesquisa" "não, ela só faz assistência" "não, mas ela é que está enturmada com a gente" "não, mas ela não vai fazer". Sei lá, tem pessoas no núcleo que dizem que as pessoas estão mais felizes, também acho que há controvérsia. A vida é assim.
P/1 - Pensando nessa sua trajetória profissional desde o tempo da graduação, se você pudesse mudar alguma coisa na sua vida, você mudaria?
R - Nada. Nada. Nem o conflito para decidir se eu ia para o Canadá ou se eu ficava aqui, não mudava nada.
P/1 - Nem se tocava piano ou aprendia inglês?
R - Nunca! Nunca, prefiro aprender inglês. (risos) “Nadica” de nada. Bom.
P/1 - Tem alguma coisa que você gostaria de deixar registrado? Deve ter milhares que não deu para a gente perguntar.
R - Não, se eu lembrar eu vou registrando.
P/1 - A gente pode voltar também?
R - Claro! Quem é a pessoa interessada nesse projeto? Diz para mim. (risos) Fora você, evidentemente, que eu sei que você é interessada.
P/1 - O que você achou de dar o seu depoimento para esse projeto, dessa experiência de estar contando isso para a gente agora?
R - Ah, eu acho um barato isso. Para mim tudo começa pela história, tudo. Também morro de dizer para essas mulheres: "Se a roda já está redonda então para que vocês vão começar pela roda quadrada, não é? A história é super importante, super importante. Agora, ela é única. Você pode contar a história, não dá para você transmitir a história. Não dá para você chegar e falar: "Olha, vá e faça assim", isso não vai dar certo, ela é absolutamente única. Se as pessoas estavam na minha vida, eu estar na vida dessas pessoas, nesse momento, nesse dia, nesse horário, desse meu jeito e o outro com aquele jeito... Quer dizer, se fosse diferente não seria escrito isso, então é absolutamente única, não dá para copiar. Mas achei legal. Eu gosto de ficar contando história. Eu tenho uma dificuldade para falar, terrível. (risos) Minha mãe sempre diz... Aí sim, depois minha mãe diz: "Você devia ter feito direito". Quem sabe?
P/1 - Sua primeira filha foi fazer.
R - Foi fazer agora. (risos)
P/1 - E as suas filhas? Você tem quantas filhas?
R - Eu tenho duas.
P/1 - Que idade elas estão agora?
R - Tenho uma de 22, que faz Administração de Empresas. Eu acho que devia fazer Direito, ela cansa verbalmente. (risos) É aquela coisa de argumentação e contra argumentação afiadíssima. Eu falei: "Olha, minha filha, se você fosse fazer Direito o juiz ia falar “quem é a sua advogada?” “Fulana de tal” “nossa! Já ganhou, não precisa nem defender nada”, assinava e pronto."(risos) Essa minha filha faz Administração de Empresas aqui na PUC e é estagiária do City Bank, está mais ligada nessa área internacional. Ela diz que nem pensar de entrar no Hospital, que é muito parado: "Esse negócio aqui vocês não sabem se está chovendo, se está não sei o que. Você tem que ser gente linda, pôr um tailleur maravilhoso, ver gente famosa! Nada desse negócio de gente morrendo. Não, isso aí não, nem pensar." E a minha outra filha, a menor, tem 19 anos e faz Engenharia Química. Ela tem loucura... Essa toca órgão. (risos) Mas ela fala inglês.
P/1 - Antes de ter aprendido órgão. (risos)
R - Antes de ter aprendido órgão. Recebeu o papel dela lá dos estados Unidos conferindo o certificado de Michigan, quer dizer, afiadíssima no seu inglês. A outra também, fez o inglês, conforme tem que ser, só que a de 22 já parou de estudar e essa parou de estudar agora, né? Desde os nove anos as meninas estão estudando inglês. Ah, tem que ser, né? Ela faz Engenharia Química e sempre foi apaixonada por números, sempre apaixonadíssima por números. As duas falam muito bem. Essa minha segunda aqui tem prêmio aqui... Lembra daquela livraria antes do Baile Verde, na Gabriel Monteiro da Silva? Então, ela ganhou um prêmio de literatura lá, contando histórias.
P/2 - Ganhou um prêmio aqui também, não teve algum concurso do Incor, interno?
R - Ganhou um prêmio aqui também, é verdade. É, um pessoal metido, que nem a mãe. (risos)
P/1 - E o seu marido é médico?
R - Ex-marido.
P/1 - Ex-marido.
R - Faz favor, fique claro. Ex-marido. (risos)
P/1 - Você casou com quantos anos Bellkiss?
R – Vinte e cinco.
P/1 - Com um médico da Paulista?
R - É, médico também. Médico também, obstetra. Não tem nada a ver com nada.
P/1 - E há quanto tempo você é separada?
R - Acho que seis anos, cinco anos, qualquer coisa assim, entre cinco e seis anos. Não, espera lá, seis anos, indo para sete. Seis anos. Então é isso.
P/1 - Terminou com a parte “Caras” agora. (risos)
R - A parte “Caras”, é. (risos) Quer que eu traga uma foto do meu apartamento para você?
P/1 - Sentada na sala, no banheiro... (risos)
R - Eu sentada na sala, eu ali pensando... (risos)
P/1 - Abre o livro assim, põe uns livros de arte na mesa. (risos)
R - E pior é que tem uns livros mesmo lá, mas eu leio os livros, não é pra tirar fotografia não. (risos)
P/1 - Tá bom.
R - Pronto?
P/2 - Muito obrigado.
Recolher