Entrevista de Ivete Caetano de Oliveira
Entrevistado por Sofia Tapajós
Recife, 17/06/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1468
Realizado por Museu da Pessoa
Revisada por Sofia Tapajós
P/1 - Entrevista de Ivete Caetano de Oliveira, entrevistada por Sofia Tapajós. Recife, 17 de junho de 2025. Projeto Vidas, Vozes e Saberes em Um Mundo em Chamas. Entrevista número PCSH_HV1468. Ivete, obrigada pelo seu tempo por estar aqui. Queria começar te perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Ivete Caetano, eu estou morando atualmente em Recife, Pernambuco. É o dado, é o local não, né?
P/1 - E onde você nasceu?
R - Eu nasci em Parnaíba, no litoral do Piauí. E nasci em 1966, dois anos após o golpe.
P/1 - E como que era Parnaíba quando você era criança?
R - Parnaíba não tinha universidades, tanto é que quando a gente terminou o ensino médio, a gente saiu. A grande maioria das mulheres da minha família saíram para fazer faculdade fora, no caso aqui em Recife. E Parnaíba é uma cidade do litoral, de turismo, mais com um pouco de indústria, pouco comércio, então não tinha um futuro muito grande para quem é jovem. A grande maioria das nossas amigas saiu de Parnaíba, foram para outros estados, outras cidades, foram para a capital, Teresina.
P/1 - E você consegue descrever como era a paisagem de Parnaíba?O que você via?
R - Ah… Parnaíba tem o terceiro maior delta do mundo. É uma cidade que fica no litoral, então é muito sol, muito vento, mar. As lembranças que a gente tem da infância é na praia, comendo caranguejo. O almoço do domingo, geralmente, era caranguejo. Depois, quando as famílias melhoravam de renda, aí passava a ser o frango. Mas, geralmente, as famílias que tinham baixa renda, era o caranguejo que a gente comia no domingo. Hoje em dia é luxo, né? Naquele período, não. Então, é uma cidade muito ampla. Ela é plana. Não tem morros. Totalmente...
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Entrevistado por Sofia Tapajós
Recife, 17/06/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1468
Realizado por Museu da Pessoa
Revisada por Sofia Tapajós
P/1 - Entrevista de Ivete Caetano de Oliveira, entrevistada por Sofia Tapajós. Recife, 17 de junho de 2025. Projeto Vidas, Vozes e Saberes em Um Mundo em Chamas. Entrevista número PCSH_HV1468. Ivete, obrigada pelo seu tempo por estar aqui. Queria começar te perguntando o seu nome, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Ivete Caetano, eu estou morando atualmente em Recife, Pernambuco. É o dado, é o local não, né?
P/1 - E onde você nasceu?
R - Eu nasci em Parnaíba, no litoral do Piauí. E nasci em 1966, dois anos após o golpe.
P/1 - E como que era Parnaíba quando você era criança?
R - Parnaíba não tinha universidades, tanto é que quando a gente terminou o ensino médio, a gente saiu. A grande maioria das mulheres da minha família saíram para fazer faculdade fora, no caso aqui em Recife. E Parnaíba é uma cidade do litoral, de turismo, mais com um pouco de indústria, pouco comércio, então não tinha um futuro muito grande para quem é jovem. A grande maioria das nossas amigas saiu de Parnaíba, foram para outros estados, outras cidades, foram para a capital, Teresina.
P/1 - E você consegue descrever como era a paisagem de Parnaíba?O que você via?
R - Ah… Parnaíba tem o terceiro maior delta do mundo. É uma cidade que fica no litoral, então é muito sol, muito vento, mar. As lembranças que a gente tem da infância é na praia, comendo caranguejo. O almoço do domingo, geralmente, era caranguejo. Depois, quando as famílias melhoravam de renda, aí passava a ser o frango. Mas, geralmente, as famílias que tinham baixa renda, era o caranguejo que a gente comia no domingo. Hoje em dia é luxo, né? Naquele período, não. Então, é uma cidade muito ampla. Ela é plana. Não tem morros. Totalmente plana. As ruas muito largas. É uma cidade belíssima. E, assim, rodeada do mar, pelo rio Parnaíba, um rio que nunca seca. Também nunca inundou a cidade, é um rio perene, e ele deságua no mar. E é esse encontro do rio do mar que tem o encontro do delta, né? São dunas. As lembranças que eu tenho do litoral do Piauí são muitas dunas. São areias, areias, areias. E assim, é tudo muito lindo, né? Porque você junta o mar, o sol, a areia, o calor, então, as lembranças são maravilhosas.
P/1 - E o que você fazia para se divertir na praia?
R - O divertimento na praia era a gente entrar no mar. Eu, particularmente, não gostava muito porque a gente quase que morre afogado. Eu e as minhas irmãs, a gente quase morre, então assim... Mas nunca deixei de gostar do mar. Era isso, era a gente ir, porque a areia, tudo isso é muito gostoso no litoral, eu, particularmente, gosto de tudo. Eu gosto da areia, eu gosto do barulho, eu gosto do sol, eu gosto do calor, eu gosto da água salgada, de tudo. Então, as lembranças, elas são lembranças muito afetivas, memórias afetivas da nossa infância. Apesar de a gente ser de uma família muito pobre, eu acho que a gente... O litoral permite isso, é um equipamento de lazer que eu acho que no Brasil é o mais democrático que tem, com possibilidade de acesso, independente da sua renda, o mar está ali para lhe acolher, para lhe abraçar e para lhe acalentar, porque o barulho do mar é um acalento.
P/1 - Você falou das suas irmãs, quantas irmãs você tem?
R - Nós somos dez filhos, nove mulheres e um menino, que hoje é homem. Então, é uma família marcada pelo feminino, e com uma força muito grande da minha mãe. A minha mãe vai fazer 90 anos esse ano. Lúcida, extremamente lúcida. Ela trabalha com ervas medicinais. E ontem eu estava comentando, no encontro dos aposentados aqui do SINTEPE [Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco], que a gente deixou de passar fome quando ela passou a trabalhar. Meu pai trabalhava, mas trabalhava como motorista, eu acho que naquela época ele ganhava o que hoje é um salário mínimo. Meu pai era motorista, acho que nem naquela época eu tinha condições de sustentar a família. E eu lembro… o que eu lembro da fome naquele período? Eu lembro que uma vez eu estava com fome e só tinha café e farinha. Ontem eu estava comentando num encontro… Ontem eu estava comentando no encontro dos aposentados aqui do SINTEPE, que a gente deixou de passar fome quando minha mãe foi trabalhar. Ela foi. E eu tinha gravado um vídeo que eu estava falando dela, no encontro aqui do SINTEPE. Aí ela viu esse vídeo, minha irmã mostrou pra ela. Aí ela disse, mas você não falou que eu era feirante. Isso ontem, eu conversando no telefone com ela, porque ela está no Piauí, né? Aí, por telefone. Aí ela disse “mas você não falou que eu era feirante”, eu disse “falei, mãe, é porque o pessoal da comunicação cortou” [risos]. Mas, assim, ela tem isso com muito orgulho, né? E a lembrança que a gente tem é que a gente passou a comer direito quando ela abriu uma banca no mercado público. A banca era o que, era uma mesa de madeira, a estrutura de madeira e a lona que cobria. E aí ela se acordava muito cedo, eu lembro que a gente saía umas quatro horas da manhã, a gente morava uns três quarteirões do mercado público. O mercado público não era nada coberto. Era uma rua onde as bancas se armavam e se vendia de tudo na frente de um mercado que era fechado, que vendia carne. Se vendia verdura, fruta, e tinha o pessoal que vendia comida. Minha mãe era uma delas. Então, ela oferecia o café para o pessoal que vinha fazer consulta no INSS. Muita gente passava mal, porque o caldo que ela fazia era muito forte. Aí eu lembro que o pessoal que vinha do interior da zona rural ficava suando quando tomava o caldo, e às vezes passava mal, porque estava muito tempo sem comer, porque viajou. E aí ela oferecia café da manhã, almoço, ela não oferecia jantar. Quando dava três horas da tarde, a gente ia embora pra casa. Aí ela começava todo o serviço do dia seguinte, que era fazer os bolos, pra levar no dia seguinte, então, assim, ela não parava. Então, eu lembro que foi aí que a gente passou a ter o que comer no café, a gente almoçava lá no mercado, e de tarde também a gente já passava a comer o que ela já estava preparando para levar. Então, eu acho que é isso que ela tem tanto orgulho.
P/1 - E você falou que ela conhecia ervas medicinais também?
R - Sim, minha mãe, ela era... Eu acho que eu disse ontem também que se ela tivesse vivido na Idade Média, ela seria queimada na fogueira, porque ela mexe com ervas medicinais. E uma das coisas que as mulheres foram identificadas como bruxas, porque elas trabalhavam, né, com ervas medicinais, elas curavam as pessoas. Então, naquela época, a igreja via isso como uma heresia, elas diziam que curavam. E é meio contraditório, porque Deus criou a natureza exatamente para curar as pessoas, né? Então, por exemplo, babosa. Babosa, eu lembro que quando a gente tinha problema, quando eu fiquei grávida, eu tive problema de... Eu vou falar porque não tem problema nenhum, é hemorróida. Então, eu não tomei remédio nenhum. Ela pegou a babosa, descascou, cortou os pedacinhos, envolveu em goma, botou no congelador e fazia um supositório natural. Eu não precisei tomar remédio nenhum, e eu fiquei curada, numa época em que eu estava grávida, quer dizer, tudo se complica mais. Mais problema de gastrite, ela faz a garrafada, que ela chama de garrafada, a gente chama de garrafada, né? E também lambedor. Esse lambedor que eu tomei agora foi ela que fez. Então, assim, remédio para asma, para os meus meninos, eu nunca dei remédio de farmácia. Quando a gente, sempre que a gente está gripado, a gente toma o lambedor que ela faz, porque ela ainda faz. Ela vai fazer 90 anos, mas ela ainda faz. E, assim, às vezes as pessoas estão com cisto, os remédios que ela prepara, tudo com... Eu não sei dizer, viu? Mas se você perguntar, ela lista imediatamente todas as ervas que ela utiliza. Eu não consegui decorar ainda o que é cada um, função. Eu sei algumas coisas, assim, como a babosa, mas ela sabe tudo decorado. Então, assim, a casa dela é muito frequentada pelas pessoas que querem um remédio, ou para gastrite, ou porque está com cisto no ovário, ou porque está com problema na garganta… Mas assim, ela não descarta o médico, ela diz, vá ao médico. Mas, é muito assim… às vezes processo alérgico também. Eu tive uma amiga que tomou a garrafada dela porque estava com muita alergia. Ela disse que os grandes problemas da nossa saúde é do estômago. Tudo passa pelo que a gente come, o que a gente não come.. é o estômago, que é o centro de tudo. Ela tá deixando minha irmã, minha irmã está aprendendo a fazer essas garrafadas. E, às vezes, quando ela não vem para cá, ela manda o saco com as ervas para a gente ferver, para depois a gente coar e colocar numa garrafa de vidro, tem que ser numa garrafa de vidro. Então, desculpa... Então, assim, ela tem muita sabedoria, gente, ela foi professora leiga, não chegou a terminar a educação básica toda, nem ela, nem meu pai. Meu pai não sabia ler, inclusive. Sabia dirigir um ônibus, mas não sabia ler. Mas todo, só não fez universidade quem não quis. Que foi uma irmã minha que casou, duas irmãs que casaram e não quiseram continuar, e meu irmão, que eu acho que hoje, olhando daqui para trás, eu acho que ele tinha problemas de aprendizagem. E naquela época ninguém sabia. Então ele tinha muita dificuldade, muita dificuldade, e foi o único que também não fez a faculdade, mas todas as outras fizeram universidade, a gente concluiu. Eu saí de Parnaíba porque não tinha universidade lá. E aí eu disse, se naquela época o governo Lula já existisse, eu não teria saído de lá, porque hoje, lá, depois do governo Lula, tem duas universidades. Tem a Universidade Federal e tem a Estadual, além de outras particulares. Mas, na época que eu terminei com 18 anos de ensino médio lá, não tinha universidade nenhuma, nem pública, nem privada. Então, obrigou muita gente a sair, realmente, para quem queria estudar, a sair da cidade.
P/1 - E como você decidiu fazer a universidade?
R - Como a gente decidiu? Os livros sempre tiveram muita presença lá em casa. Eu lembro, meu pai, apesar de não saber ler, eu lembro que ele comprou uma mesa enorme, grande, porque nós éramos muitos, e na mesa cada um tinha a sua gaveta embaixo, e a gaveta era para guardar os livros, e os lápis. Então, ele criou, mesmo sem ser alfabetizado, ele criou o que a gente chama hoje de um ambiente alfabetizador. E, quando ele via, ele trazia. Eu lembro que nos presentes mais significativos que a gente ganhou foi quando ele trouxe, ele disse ele ganhou, era uma coleção das revistas em quadrinhos da Turma da Mônica. Nossa! Como aquilo teve um impacto na vida da gente. A gente nunca tinha visto tanta coisa. E a gente ia muito na biblioteca da escola, que não tinha muito esse acervo, porque eu me lembro que eu estava na oitava série, eu estava lendo livro de Cinderella, porque não tinha muita opção de acervo bibliográfico, né? Então, os livros sempre fizeram muito parte da nossa vida, o incentivo para estudar. Eu acho que minha mãe, pelo fato dela trabalhar e a gente poder comer, eu acho que possibilitou que todas nós, mulheres, terminassem o ensino médio, porque era muito comum, em família de baixa renda, as meninas irem trabalhar como empregadas domésticas, porque não tinham o que comer, então terminavam deixando de estudar para poder trabalhar na casa de família. E nossa família não, eu acho que por conta disso, a gente, todo mundo, nós podemos, nós vivemos isso de concluir o ensino médio sem ter a necessidade de trabalhar, porque tinha comida dentro de casa. Então, a grande maioria da gente, a gente fez magistério, que era a antiga escola normal, que hoje praticamente não existe mais, porque a LDB [Lei de Diretrizes Básicas] estabeleceu que a escolaridade mínima para quem fosse professor teria que ser o curso de pedagogia, mas naquela época, não. Você fazendo o curso normal, que eram três, quatro anos, quatro anos do ensino médio, você poderia ensinar, né? Educação infantil, até a quarta série. Ali encerrou, o que a gente ia fazer? Eu já terminei o ensino médio com um emprego numa escola. Mas a gente queria... Todo mundo lá em casa sempre gostou muito de estudar, de ler, uma família de leitores, até hoje. Tanto é que nós somos seis professoras na família. Então, era quase que natural a gente ir fazer faculdade, porque aquilo já fazia parte da vida da gente. A leitura, os livros, os estudos. Eu acho que é isso.
P/1 - E por que você escolheu o curso que você escolheu? Qual foi o curso?
R - Eu acho que quem vem de uma classe que é mais pobre, não tem escolhas, digamos. É diferente dos meus meninos hoje, que não precisaram trabalhar, que tinham todo o tempo dedicado aos estudos, eles puderam escolher o que é que eles queriam fazer. Eu acho que a gente estava espremido, condicionado pelo trabalho, porque você termina o ensino médio, aí eu vim para cá e eu passei logo no concurso de professora de primeira à quarta do Estado. Então, eu com 18 anos, eu já pagava aluguel, já pagava água, já pagava luz. Então, era quase que natural, se você completou 18 anos, você tem que se virar. Seus pais não são mais responsáveis por você. Então, assim, quem trabalha e quem estuda fica meio que numa condição limitada de escolha, né? Porque eu consegui pagar um cursinho durante um tempo, mas, como o número de vagas era um bem pequeno, principalmente nas universidades públicas, a concorrência era muito alta. E eu lembro que a gente chegou a fazer, mas eu não passei. E aí eu... E aí os cursos são sempre aqueles cursos menos concorridos. A verdade é isso. Os nossos estudantes hoje, ainda hoje, eles seguem esse padrão, eles vão para os cursos menos concorridos, não aqueles que eles gostariam. Aí você pergunta, qual o curso que você gostaria de fazer? Hoje eu não sei, porque eu gosto do que eu faço. Então, apesar de não ter tido um leque de possibilidades, eu me descobri na educação. Quando eu comecei a fazer, eu sempre gostei de história, mas eu passei para pedagogia. Aí eu não gostei porque era muito amplo, eu gostava de um foco, de algum estudo mais específico. Aí mudei para história. Nessa mudança, pronto, acho que me encontrei na história. Recomendo para todo mundo fazer história. História e filosofia são duas áreas de conhecimento básicas para quem quer se inserir no mundo. Compreender o mundo, saber quem é você no mundo, é filosofia e história. Eu não cheguei a fazer filosofia, eu gostaria muito, mas não fiz. Mas me encontrei em história. Então, quando comecei a fazer história, meu Deus! Então, eu sou... isso no mundo, você consegue compreender, inclusive, as determinações históricas. Por que eu nasci pobre, né? E os meninos hoje têm uma autoestima muito baixa, os nossos estudantes, porque terminam colocando na família, ou nele, a pobreza que eles vivem. Então, a história tem essa possibilidade de dizer, não, existiram condições históricas e econômicas que inserem as pessoas nesse lugar e nesse lugar. Então, eu me compreendi no mundo. Não sei se eu tivesse tido a possibilidade de escolher, se eu escolheria a história, eu escolhi aquilo que a minha condição econômica me permitiu. Mas eu me encontrei na história e não me veria diferente em outro lugar, fora da educação. Porque a educação, a gente se apaixona, a gente se encanta com as possibilidades que a educação tem. Eu estava falando, acho que foi ontem, num podcast que eu participei, você que acompanha juventudes, você que acompanha vários jovens, porque uma escola tem 400 jovens no ensino médio, tem 800, tem 1.500, então, você consegue, e ao mesmo tempo, se você tem experiência de rede particular, você consegue identificar a determinação histórica das condições dos jovens, daqueles que têm uma rede de amparo, de proteção, de cuidado, daqueles que não têm. Os jovens no mesmo nível de inteligência. E você vê que eles vão se transformando em pessoas diferentes, porque eles não têm... Então, você consegue ver o impacto que é a educação na vida, quem trabalha na educação consegue perceber o impacto que é a presença e ausência da educação na vida de uma criança, na vida do jovem. Então, assim, é muito forte quem trabalha na educação o significado que tem aquela política para a vida das pessoas.
P/1 - E aí voltando um pouco, como você se sentiu quando você chegou aqui?
R - Sozinha. Muito só. Porque quando você tá no ensino médio, você tem muitos amigos, né? Eu tinha amigas assim, que eu não conseguia nem andar sem ela, eram duas amigas. E, de repente, você vem para uma cidade grande que não tem laços, absolutamente ninguém. Quem estava aqui? Eu tinha duas irmãs aqui, apenas. Então, eu me lembro disso, um sentimento… [choro] Hoje eu tô demais. Mas acho que é isso, a gente vai... recuperando as memórias, né? Mas eu acho que assim, assim que eu cheguei aqui, o fato de eu ter começado a trabalhar, ter estudado, você vai reconstruindo, né? Mas... e só com um longo tempo é que você vai se inserindo. Mas... eu me lembro disso. Você perguntou agora o que eu me lembrei. Solidão. Vamos pra outra.
P/1 - E esse primeiro trabalho aí, nessa escola aqui, como que foi?
R - A primeira escola que eu trabalhei foi lá em Jardim Paulista Baixo. É o município da região metropolitana do Recife. E eu encontrei uma pessoa do sindicato nessa escola, na sala dos professores. Que eu cheguei, eu vi um aviso do sindicato, eu acho que era essa necessidade de se inserir, né? Aí eu perguntei, eu disse assim, “como é que a gente faz para se filiar?”. Eu era recém concursada, eu fiz o concurso, acho que foi em janeiro, e aí, quando foi em agosto, a gente já assumiu, quem fez o concurso na época. E aí, eu perguntei como é que a gente faz para se filiar ao sindicato. Aí tinha uma pessoa da diretoria do sindicato, que é uma pessoa que tem muita referência aqui para a gente, que é a companheira Morena, que é a Florentina Cabral. Aí ela estava na sala dos professores quando ela ouviu eu fazer a pergunta. Naquela época não era sindicato ainda, porque o SINTEPE foi fundado em 1990, era a APENOP, a Associação dos Professores, que já tinha passado por um processo de retomada da mão dos pelegos da época da ditadura, já estava na mão desse grupo que lutou contra a ditadura e que era combativo na luta pelos salários, recuperação das defasagens provocadas pela inflação. Aí ela disse assim, “vamos para uma reunião”, era dia de sábado, lá na Ilha do Leite, aqui no Recife. Eu morava em Paulista nessa época e trabalhava em Paulista, ela também. Aí ela começou a me levar para as reuniões da Associação dos Professores no sábado de manhã, porque todo mundo estava em sala de aula, inclusive ela, porque não existia liberação sindical na época. Então, a APENOP, a Associação dos Professores, fazia reunião no sábado pela manhã. Aí eu passei, toda vez que ela ia para a reunião, ela dizia, “vamos, vamos”. Aí eu comecei a ir, comecei a participar das conferências, dos congressos... Mas, assim, era todo mundo muito mais velho do que eu, porque eu tinha 19 anos. E, nessa época, os de mais idade, que estou chamando de mais velhos, eram 30, 31, 34 anos, 35. Eu sempre me sentia deslocada, porque eram pessoas com mais idade do que eu, não tinha juventude participando. Eu fui uma das primeiras, acho que, jovens que começaram a participar. Isso era na época da APENOP, era 1986. Em 1986, a gente fez uma greve. Nessa greve, eu me lembro demais de umas palavras de Paulo Freire, porque eu já conhecia Paulo Freire. Eu conheci Paulo Freire no ensino médio, porque tinha a representação dos estudantes, que a gente fazia escolha, e aí tinha a representação das salas e tinha a representação da escola toda, que ele chamava de governadora. Então, fui eleita como governadora. Eu sempre ia falar nas palestras. Lembro que a diretora da minha escola me deu um livro, A Importância de Ler, de Paulo Freire, um livrinho de bolso. Foi a primeira vez que tomei contato com Paulo Freire, foi no Ensino Médio, porque eu ia fazer uma palestra na semana pedagógica, era uma semana de debates, num curso de magistério, eu ia falar sobre a importância de ler para a gente. E aí eu falei da minha experiência, e também daquilo que ele falou no livro, sobre. E uma coisa que ficou bem marcada daquela época que ele disse foi que os livros didáticos eram descontextualizados da realidade, isso eu nunca esqueci na minha vida, o que eu li naquele livro. Porque batia exatamente com a realidade da minha experiência de leitura. Então, assim, aí, quando a gente fez a primeira greve que eu participei, que foi em 86, foi no governo Arraes, eu me lembrei de outra frase que eu tinha lido em Paulo Freire, que era “a greve educa”. E como a gente aprendeu naquela greve, a se inserir no mundo, com capacidade de intervir nele, de fazer a transformação, de ser sujeito de direitos. Eram coisas que Paulo Freire colocava isso com muita força, isso tinha um impacto muito grande na gente na época, porque a gente estava aprendendo, todo mundo estava saindo de uma ditadura militar, um período de redemocratização muito forte, 85 tinha sido as diretas. Então, eu entrei em 1985 no concurso, 86 nós fizemos uma greve, porque o governo de Miguel Arraes quis dar o reajuste apenas para professores de primeira a quarta, não queria dar um reajuste para os professores de quinta ao ensino médio. E eu lembro que a minha fala teve um impacto muito grande, porque eu estava contemplada com o reajuste e eu disse “não vamos aceitar, somente se for um reajuste para todo mundo”. A gente estava aprendendo a se inserir no mundo como cidadão, como sujeito político, com capacidade de influenciar, de decidir. Isso tem uma força com muita potência, principalmente para quem está aprendendo a viver ainda. Acho que aquela greve marcou. E, como era Associação, aí depois começou a se fazer discussões com a Associação dos Orientadores, dos Supervisores, a Comissão dos Administrativos para a gente fundar um sindicato. E aí, vinha aquela discussão, não podia ser um sindicato só com a profissão, a gente tinha que botar um sindicato que representasse todo mundo na escola. Aí o SINTEPE, que é hoje, o SINTEPE foi fundado em 90. Em 90, então demorou aí uns 15 anos para ele ser fundado. Eu participei da fundação, estava no congresso da fundação, mas eu saí depois, eu não fiquei na direção, eu acho que participei da primeira gestão e da segunda. Depois eu saí, eu fui trabalhar com formação sindical, voltei também para a sala de aula, e eu só retornei para o SINTEPE agora, no ano de 2000, depois que eu me aposentei. É isso.
P/1 - Na sala de aula, como você se sentia na sala de aula?
R - Eu acho que quando a gente, quando eu me aposentei, a gente sente falta da escola, bastante. Eu ainda fiquei muito tempo na escola. Aliás, quase todo mundo de lá da minha escola, quando se aposenta, fica indo para as festas, para os eventos, ninguém consegue se desligar, né? Eu acho que o que é que tem numa escola? Eu acho que na escola tem vida. Eu acho que trabalhar com a juventude é uma das coisas melhores que você pode ter na vida, entendeu? Porque você… é como se aquele ânimo da vida passasse para você, então você nunca está desanimado, apesar de ser uma profissão extremamente exaustiva, cansativa. Eu acho que tem um nível de esgotamento, principalmente hoje, muito grande, uma exaustão emocional, psíquica. Hoje está muito mais difícil você ser professor do que há algum tempo atrás, mas nunca foi fácil, né? Nunca foi fácil. Eu acho que a escola é um dos espaços de trabalho mais gratificantes. Não é só por causa dos salários, mas do ponto de vista do reconhecimento do retorno que você tem, de você se reconhecer num trabalho, quando o outro reconhece você como uma pessoa que pode ajudar a transformar a vida dele, então, não tem como nem você dimensionar o impacto que você tem na vida das pessoas. Porque você trata bem, porque você acolhe, porque você tem o cuidado com a pessoa em si e também pelo conhecimento, pelo conhecimento, que o conhecimento é tudo. O conhecimento transforma. Ninguém pode dizer que o conhecimento não transforma as pessoas. Então, é você ver as mudanças. Os meninos chegavam com 15, 16 anos, você via os meninos saírem três anos depois completamente diferentes. Então, qual é o trabalho que garante isso? Você perceber, apesar… porque tem os dois lados a profissão docente, ela tem o que existe de melhor e o que existe pior, está ali junto. Não tem como você dizer que é um ambiente tedioso, não tem. O que foi mais forte quando me aposentei, foi o barulho. Eu percebi que a escola é muito barulho. Por isso que, quando a gente chega em casa, a gente não quer barulho. Pode olhar, todo professor, quando chega em casa, ele não quer barulho. Quando eu me aposentei, foi que eu percebi o silêncio. Na escola, você não tem silêncio, é um ambiente muito barulhento. Então, quem tem problema com barulho não se dá bem trabalhando numa escola. Mas, ao mesmo tempo, aquilo é a vida, né? Os meninos, quando você entra na escola, que vêm falar com você, depois os meninos pensam naquilo, depois tem um problema para você resolver, depois tem aquele... Eu já tirei menino de dentro de camburão na frente da escola, porque os meninos estavam fumando, na frente da escola, chegou o camburão, botou uns cinco meninos da gente, quer dizer, dentro do camburão. Quando a gente viu, correu todo mundo, correram cinco professores, porque a gente conhecia os meninos, e a gente foi conversar com os policiais “Não, não leve, não, não leve, não”. Aí a gente começou a falar dos meninos, “esses meninos, tira nota 8, tira nota 10, não leve, não, eles só fizeram besteira aqui na frente”. Depois a gente deu um carão neles, vocês foram fumar um negócio de maconha aqui fora, minha gente. Entendeu? Isso não é lugar, não. A gente conseguiu tirar e os policiais não levaram. Então assim, tem muito disso que a gente faz, a gente não tem sossego, mas é tão bom quando você encontra na feira, “professora!”. Quando você é professor, você não passa invisível em lugar nenhum, nem na feira, nem no supermercado, “professora!” Quando você vai na universidade, “professora!”, o menino já está na faculdade, é tão bom. Outro dia, encontrei um na barraca de menino de fruta, lembra? Que eu disse “Por que você está aqui com essa barraca de fruta no meio da rua? Você não está estudando mais, não?”, “Não, eu não”. Aí eu dei um carão nele: “Vai estudar!” Aí os meninos gravaram, fizeram um vídeo com isso. “Vai estudar, você tem que estudar. Você não pode estar aqui menino de fruta, não. Isso não vai lhe dar futuro, não, você adoece você não tem nem como se sustentar.” Eu não sei, porque também não peguei o telefone dele nem nada se ele foi estudar ou não, mas é isso, a gente nem fora da escola deixa de ser professor, mas é uma profissão que eu recomendo bastante se você quer se realizar nela. Agora, entendendo que você não pode ser o super-homem, a super-mulher, porque você não consegue dar conta de tudo, por mais que você seja extremamente comprometido, porque o desempenho dos estudantes, eu sempre digo isso para o governo, não depende só do professor. Aí eu digo assim, “por que não depende só do professor?”. Porque quando o aluno entra na sala de aula, isso foi uma frase que, num projeto que a gente estava fazendo, que um aluno disse pra gente, e eu nunca esqueci isso, porque eu achei isso impactante, ele disse assim, “professora, quando a gente entra dentro da sala, a gente vem com tudo que acontece na nossa família, entra”. Aí a gente começou a conversar sobre isso, né? Com o que cada um entrava na sala de aula. Aí um entrava com o pai que estava preso, um entrava que a mãe tinha bebido muito, um entrava com a fome que passou na família, um entrava com o assédio e a violência que sofreu na rua, o outro entrava com o irmão que era deficiente e não tinha como ajudar. Então, na sala de aula, cada um entra com coisas muito pesadas, muito pesadas. E, quando o aluno disse isso, e a gente começou a conversar na sala de aula, isso foi muito forte, o que ele disseram, porque a gente sabe disso, mas a gente nunca tinha pensado por esse lado. O que você carrega na sua mochila quando entra na sala de aula? Tudo isso. Então, assim, todos os problemas da sociedade entram junto com o aluno, então tem que entender isso. Você tem que entender que você está ali com um papel muito, digamos, importante na vida de cada um deles, mas não é você que consegue salvar todos eles, entendeu? Por exemplo, casos de abuso, que tem uma pesquisa, inclusive, que diz que os casos de abusos, eles são revelados nas escolas, na sua grande maioria nas escolas, porque ali onde as crianças, os meninos e as meninas, eles se sentem seguros para relatar o que está passando. Mas a gente já teve situações de casos de abuso que a gente convocou o conselho, convocou a rede de proteção que deveria funcionar, e a rede de proteção não funciona, e aí a família sumiu com a menina. Toda vez que a gente pegava um caso assim, os professores diziam, a gente não vai adiantar, vai ser pior porque eles vão sumir com a menina, porque a rede de proteção não funcionou. Então a gente é um pouco de tudo, mas, ao mesmo tempo, a gente tem que entender que a gente não pode salvar todo mundo, senão a gente termina adoecendo. E tem professores adoecendo bastante, e eu acho que a saúde mental dos professores hoje precisa de uma atenção maior das políticas públicas, porque realmente tem um nível de adoecimento, inclusive mental, mas eu acho que é por conta da natureza do nosso trabalho, que é um trabalho que exige bastante envolvimento. Não tem como você botar o pé na sala de aula e não se envolver, é impossível. Impossível. Porque eles estão ali, né? Os corpos estão ali, os olhos, os sonhos, os traumas, as utopias, as esperanças que eles têm, então, não tem como você não... É um trabalho que... Então, se você não quer se envolver, nem entre numa sala de aula. Mas, ao mesmo tempo, entendendo que você se envolve, mas você não consegue, digamos, salvar todo mundo de algumas situações que são bem traumáticas.
P/1 - E aí, Ivete, voltando um pouco pra sua vida, você comentou que tem filhos?
R - Tenho, eu tenho dois meninos, uma menina, que no Nordeste a gente chama de menino, né? Mas ela já tem 27, ele tem 24, e o caçula 21. O caçula faz a faculdade de Medicina, é o primeiro médico da família, né? E o segundo, do meio, faz Educação Física, e a minha menina fez Filosofia e mestrado em Filosofia, agora resolveu criar filho. Tá no segundo, na segunda gravidez, então eu vou ser avó de dois. O meu do meio, ele tem... ele é uma pessoa com deficiência, então, assim, foi muito difícil, muito difícil. Porque, primeiro, demorou demais o diagnóstico, assim, pra gente entender o que era. Eu acho que isso há uns 10 anos atrás, 15 anos atrás, não tinha muitas pesquisas como tem hoje. Mas o meu do meio, ele aprendeu a ler com 12 anos, e ele teve até, dos 3 anos até os 14, ele teve acompanhamento de terapeuta ocupacional, psicóloga, pedagoga e psicopedagoga, para trabalhar a memória, porque ele tem uma alteração no lóbulo frontal, que é exatamente o lóbulo frontal, que é responsável pela memória, organização, planejamento. Mas até a gente descobrir isso, foi um longo tempo sem a gente saber. Eu não sei porque a médica não me disse, a neurologista na época, talvez ela pensasse que eu ia desistir dele ao saber que era um problema congênito, mas é uma das coisas que uma mãe... Hoje a gente se chama mãe atípica, naquela época não tinha isso. Hoje a denominação das mães que têm filhos com deficiência são mães atípicas, né? Então, eu acho que é aquela questão assim, que eu acho que a médica pode não ter dito, porque eu fiz exame na época com neurologista, mas ela não me disse que tinha. Quando eu fui refazer, anos depois, foi que o médico da época me disse qual era o problema que ele tinha, né? No lóbulo frontal. Mas eu acho que pode ser que ela tenha dito, porque é muito comum as mães desistirem dos seus filhos quando eles têm uma deficiência que não tem cura, mas eu acho que isso é um dos conselhos que eu dou. Não desista nunca, porque o ser humano, o cérebro, ele tem uma plasticidade enorme, ele tem, pela deficiência dele, dificuldade de memória. Mas ele não aprendeu a ler com 5, 6 anos, mas com 12 anos ele aprendeu. Eu dizia isso sempre muito, ele vai aprender a ler. Algumas escolas não acreditavam que ele ia aprender a ler, mas eu nunca desisti, que ele ia aprender a ler, e ele com 12 anos aprendeu a ler, e hoje ele faz Educação Física na universidade, com a dificuldade que ele tem. Porque, outro dia, eu disse assim, se você precisar, quando ele passou, foi ele que fez a seleção, sozinho, totalmente independente. A escola ajudou bastante a criar essa autonomia. Mas, quando ele passou, eu disse, se você precisar de suporte, você me avise. Mas, ele disse, não, eu vou iniciar. Aí, eu lembro que teve um dia que ele também não me falou, ele pegou o laudo dele e levou para a faculdade, eu vi quando ele estava levando. Eu disse, “você vai levar o laudo?” Ele disse, “vou”. Eu acho que ele estava querendo algum suporte que ele não estava tendo, acho mais tempo, ele consegue responder, mas ele precisa de mais tempo para responder. Aí eu lembro que eu disse assim, “você está precisando de suporte?” Ele disse, “não, mas eu tive que ler um livro inteiro para responder uma pergunta”, eu disse, “muito bem, é isso mesmo, tem que ler um livro inteiro”. Então, assim, ele consegue, porque ele não tem deficiência intelectual, mas ele tem dificuldade de aprendizagem, e as escolas não têm pesquisas científicas para cada tipo de dificuldade. Os professores vão tateando, experimentando o caminho para o aluno aprender, e ele teve uma professora que acompanhou ele até os 14 anos, e ela sabia bastante o que ele precisava, que era muito exercício de memória. Mas é isso, eu acho que é Lucas, Lucas tem uma história de muita resistência, de muita força. Porque também tem isso, da criança, e ele não tem uma autoestima baixa, não. Ele é muito, assim... muito consciente de quem ele é, apesar das dificuldades. Ele é muito mais do que as dificuldades que ele tem. Então, foi muito difícil. Hoje, olhando para trás, eu não sei como eu sobrevivi, mas é difícil. Eu fico imaginando as mães que têm filhos deficientes, não é fácil. Não é fácil, não é fácil. O sentimento de desistir é muito grande nas mães, principalmente as que vivenciam isso praticamente só, porque geralmente os homens não conseguem ficar e não conseguem dar o suporte. Meu ex-marido mesmo achava que era besteira do meu menino, que era tipo um preguiça, que ele não queria aprender, e que ele deixava que o tempo resolvia. E não é, a gente que é professora que sabe, o impacto que é todas as políticas de suporte, o fisioterapeuta, o psicopedagogo, todos esses suportes que a criança tem fazem uma diferença enorme, seja qual for a deficiência, seja qual for. Pega uma criança autista que não tem acompanhamento, e pega uma a criança autista que tem acompanhamento, é totalmente diferente, totalmente diferente. Então, assim, faz sim diferença aquilo que a criança tem como suporte em termos de políticas públicas, o acesso. É isso.
P/1 - Quando seus filhos eram crianças, o que vocês faziam nos momentos de lazer?
R - A vida foi muito divertida. Eu ainda tenho uns bilhetinhos de Tiago, meu caçula, que ele dizia assim, “mãe, você foi a melhor mãe do mundo”. Eu vou chorar de novo [risos]. Aí ele disse assim, “mãe, você foi a melhor mãe do mundo. Você encheu a nossa casa de amor, música e livro” [choro]. Ele era tão pequenininho quando disse isso, mas achei isso tão forte, porque foi isso, muito livro, muita música. E a gente se divertia, tipo assim, a gente tinha toda sexta-feira… A gente tinha… Menina, estou chorando demais. A gente tinha toda sexta-feira o dia do cinema, lá em casa, depois eu descobri que minha menina tinha diabetes, aí comecei a me sentir culpada. Mas a gente tinha um cinema, que era no meu quarto, todo mundo sentava na cama, e a gente ia assistir filmes até dar o sono. Aí eu botava uma mesinha cheia de coisa de cinema, pipoca, aquelas besteiras, depois eu me arrependi, porque eu nunca comprei essas coisas, aí eu criei um dia para eles terem, porque eu chegava na casa das minhas amigas e meus meninos ficavam loucos pelos biscoitos recheados, que não tinha na feira lá de casa. Aí minhas amigas ficavam dizendo, “Ivete, você está matando esses meninos de fome”, aí eu criei a sexta-feira, que eu comprava as besteiras que eles não podiam comer durante a semana, que era o dia do cinema. Tiago também, Tiago sempre saía com essa, ele disse assim: “eu estou gostando da minha casa”. Eu disse, “por que você gosta da sua casa, Tiago?” Ele disse, “porque tem cinema”. Eu achei muito massa ele revelar. O lazer deles sempre foi uma prioridade da minha vida, era o cinema que a gente fazia em casa, eu fazia muita brincadeira com eles. Como eu era professora, eu fazia muita brincadeira com eles. Quando era final de semana, eu juntava os dois sofás, botava o lençol em cima, criava aquela cabana, botava o tapete embaixo, botava a almofada, pronto. Eles podiam dormir ali na cabaninha, era o dia de dormir na cabana. Aqui no Nordeste a gente tem muita festa, né? Tem o Carnaval, tem o São João, tem várias festas, e todas as festas eu guardava as roupas, as roupas de São João, as roupas do Carnaval, as roupas de fantasia que eles iam, e eu criei um balde, um cesto grande, que eu botava tudo ali, e aí eles passavam o ano se fantasiando das coisas, de Emília, de Sítio do Picapau Amarelo, de tudo. Então, era um cesto, isso aí era uma coisa que eles sempre brincaram. A infância deles foi numa casa, porque eu morava numa casa, não morava num apartamento, então, eles tiveram um quintal, eu plantei pé de manga... Então, eles tiveram esse privilégio, mesmo morando em Recife, ter um quintal para correr. Os meninos correram demais, misericórdia! E também muita coisa, Recife é uma cidade com muita cultura, o Recife Antigo, eu levava eles para a feira da Rua do Bom Jesus, que tinha atividades, e sempre com muito verde, natureza e parques, eu morava perto da Universidade Federal, que tinha um laguinho, pronto. Outra coisa que eu fazia bastante era piquenique nos parques, e ainda tenho hoje o cesto de piquenique, bonzinho, de vime, que a gente comprou no Mercado de São José, e eu ainda tenho o tapete vermelho feito daquele material de rede que faz aqui no Nordeste, eu ainda tenho o tapete vermelho, estou esperando para usar com o meu neto. Mas eu botava todos os lanches e, quando dava o domingo, a gente ia para o Laguinho da Federal, ou então para a Jaqueira, eu procurava criar coisas relacionadas à natureza, nunca gostei de levar isso para shopping. Nem gosto de shopping. Até hoje, quando vou, vou obrigada para comprar alguma coisa, porque acho muito estímulo, aquelas luzes, aquelas coisas. Então, era terra, era árvore, era natureza, acho que mesmo a gente morando no Recife, onde tem poucos parques, porque não tem muitos, tem poucos, eu acho, deveria ter mais, eu acho que a gente conseguiu garantir na infância deles todo esse contato que é preciso com a natureza. Porque criança precisa brincar, né? Criança aprende brincando. As pessoas pensam que criança brincando tá só ali passando o tempo, não é. Todo o cérebro dela está se moldando a partir daquilo que ela tá aprendendo brincando. Então, assim, o lazer da gente era muito isso, lazer voltado mesmo pra infância, pro brincar, né? Por ele estar na natureza. Nunca tive dinheiro para viajar, então a gente não viajava, porque nunca sobrava dinheiro, e era nessas coisas que podiam ser mais baratas mesmo. Era um piquenique num parque. A praia, a praia tinha, tinha praia todo domingo. Vamos, ninguém nem tomava café. Hoje a minha menina estava falando, essa semana, disso, ela tem muito isso forte na lembrança dela. Os sanduíches que eu fazia de frango com verdura, a pastazinha de verdura, eu enrolava tudo no guardanapo, botava dentro do cesto, vamos para a praia. A gente tomava café na praia, porque eu levava o suco na garrafa, levava o sanduíche e as frutas. Então, todo domingo era sagrado para ir para a praia, que é um equipamento de lazer mais democrático que existe, praia. Hoje a gente não está podendo mais ir para a praia em Boa Viagem, por causa dos tubarões, mas nessa época não tinha tubarão, então a gente ia. Aí tinha as piscininhas. Pronto, era praia, parque, eram essas atividades que a gente fazia. E as atividades que a gente fazia dentro de casa, viu? Porque fazia muita, muita. Tem muita coisa para você brincar com criança, de fato, né? Você pega... Eu pegava as caixas de papelão, que às vezes você compra alguma coisa. Entra aí, menino, aí eu saia puxando a caixa de papelão. Até o lençol, essa semana eu estava brincando com o meu neto: Bota um lençol aí, aí ele se deitou no lençol. Peguei o lençol assim e vamos. Aí saía andando pela casa toda. Menino, esse menino ria tanto, ria tanto. Então, assim, tem coisas de brincadeira que você não precisa comprar coisas. Você pode, que é isso, é você e a criança, e algum objeto. Entendeu? Então, assim, era muito isso, brincar lá em casa. Eu acho que eles tiveram uma infância muito boa.
P/1 - Você falou da Praia de Boa Viagem, que dava para ir, que não dava. Eu queria saber o que mudou nessa paisagem de Recife, desses tempos, para cá.
R - Eu acho que a Praia de Boa Viagem continua muito urbanizada, só cresceu a urbanização. Mas há muito tempo que tem aqueles prédios ali na Praia de Boa Viagem, o que é diferente de Parnaíba, no Piauí. A Praia de Parnaíba, que é de Luiz Corrêa, não tem prédio na beira da praia. Interessante, né? A diferença dos centros mais urbanos, urbanizados, de especulação imobiliária. Parnaíba não tem prédios, tem os bares, são bares grandes, abertos, ali na areia da praia. Depois tem a pista, e muito tempo depois, eu não sei se é porque a areia de lá, o volume de areia e de dunas é muito grande, então isso também dificulta a moradia na beira da praia, muito vento lá, muito vento. Coisa que não tem aqui, digamos assim, não sei se é porque os prédios cortam. Então, eu acho que essa parte da urbanização não mudou muito em Boa Viagem, Boa Viagem continua com a mesma característica. Reformaram a orla, botaram barracas, fizeram um calçadão, mais manutenção. Mas eu acho que a única diferença hoje da praia de antigamente é isso, porque eu acho que ela ainda é uma praia razoavelmente com áreas limpas, mas por conta da questão de Suape, eu acho que a industrialização ali... Eles mudam a rota da vida marinha, então, isso trouxe os tubarões para Boa Viagem, que não tinha. E também muitos aterramentos no Recife, o shopping Recife, por exemplo, foi um aterramento do mangue. E o mar se nutre do mangue, né? É um canal direto. Então, muitas áreas do Recife foram aterradas, áreas de mangue, é claro que isso tem um impacto na vida das espécies no mar, mas a vida dos tubarões, a vinda dos tubarões, que não existia na praia de Boa Viagem, eu acho que foi uma das coisas que mais provocou mudanças, porque realmente tirou as pessoas, as pessoas que vão para lá, elas vão mais para ficar ali, mas não para o banho. Hoje mesmo, eu quase não vou na praia de Boa Viagem. Eu vou para outro, o litoral sul, mais adiante, que aí você pode tomar banho, além de ficar na beira do mar, você pode tomar banho. Mas eu acho que Boa Viagem teve muito impacto disso, do porto de Suape. Foi depois do porto de Suape. O pessoal da Federal disse que o impacto é muito forte, nessa vida marinha. Então, acho que isso. De Boa Viagem, isso.
P/1 - E aí, voltando aqui para o sindicato, por que você voltou para o sindicato depois que você se aposentou?
R - Primeiro porque eu sempre gostei de participar de atividades sociais, de atividades sindicais. Eu sempre gostei desse movimento, da política. Eu nunca deixei de militar, eu sempre participava, mas eu não estava na direção do sindicato. Mas eu participava das greves, eu participava das atividades, participei de vários congressos, ainda não estava na linha de frente. E aí, quando eu me aposentei, eu disse, é uma coisa que eu gosto de fazer, eu vou voltar, conversei com o pessoal que estava aqui na época, foi o período também da eleição, foi o período que tinha eleição, o ano que tinha eleição. Ah, se eu vou de novo, né? Assim, como quem não quer nada e, de repente, eu estou aqui onde estou. Mas é isso, eu voltei porque eu gosto, eu gosto da política, eu gosto dessa, digamos assim, essa movimentação onde você tem uma capacidade de influenciar e mudar as coisas, sabe? É muito ruim quando você tá num lugar que você vê coisas muito erradas e sérias acontecendo e as pessoas ali perto, você sofrendo por aquilo, e você cruzar os braços, não fazer nada, né? Então, quando eu me aposentei, eu disse, então, eu vou voltar, porque eu acho que é importante ajudar, contribuir nessa resolução dos problemas. A nossa categoria enfrenta muitos problemas, de falta de autonomia docente, assédio moral, direitos que são negados. Então, assim, foi um período muito forte, eu acho que foi após o golpe de 2016, em Dilma, então, acho que aquilo impactou muitas pessoas nesse sentido, assim para onde é que a gente está indo? E o que é que você está fazendo nesse mundo para contribuir para ir para o rumo certo? Então, são espaços coletivos que decidem, não é você estar no individual. Embora eu sempre estive participando, mas... Eu acho que é isso, porque eu gosto, eu gosto da política, eu sempre digo que, quando estou nos espaços em que está se discutindo política, principalmente nos espaços onde existe o termo pejorativo, contra a política, eu disse que sou professora de História, a política nasceu na Grécia, a política, como a gente entende hoje, no mundo ocidental, porque na Grécia, na polis, política, do nome das cidades gregas, as polis, e lá os cidadãos, que geralmente eram homens, donos de propriedade, porque as mulheres não eram consideradas cidadãs, se reuniam para discutir os destinos comuns. Então, política no seu sentido, inclusive filosófica, é isso. Existe a política da bandidagem, existe a política eleitoreira, existe a política que é do interesse privado, mas a política não nasceu pelo interesse privado, nasceu pelos interesses coletivos, o próprio Estado nasceu pelos interesses coletivos. Então, eu sempre recupero isso, que a gente que tem, digamos, um compromisso com as pautas coletivas, com os direitos coletivos, a gente precisa entrar na política para influenciar a política no seu sentido, digamos assim, radical, o sentido original da palavra. Política não é a defesa da minha vida, do que eu vou acumular como patrimônio, isso não é política. A política é a defesa dos interesses coletivos. Então, acho que é um pouco isso. Eu sempre gostei muito de política, como historiadora, eu sei que a gente faz diferença no mundo. E sempre foi uma coisa que eu gostei de fazer, esse movimento sindical, então, foi a partir daí, da minha capacidade de contribuir.
P/1 - E como a questão da climatização chegou até você?
R - A luta que a gente fez esse ano na nossa campanha salarial é um dos pontos da nossa campanha salarial educacional, porque a nossa campanha, ela tem um nome, campanha salarial educacional. Nós temos as pautas financeiras que dizem respeito aos profissionais de educação, mas nós temos a pauta que diz respeito à escola. Então, ali a gente discute tudo, desde a questão da homofobia, do racismo, nós temos reivindicações específicas sobre isso, a questão das escolas quilombolas, escolas indígenas, sobre o currículo, a nossa pauta de reivindicações com os itens que são da política educacional, ela é maior do que a pauta, os itens da questão financeira. Então, isso veio com muita força pela própria categoria. Nas visitas que a gente fazia nas escolas e nas assembleias que a gente fez, a categoria começou a pontuar bastante isso, porque a gente teve situações onde tinham estudantes desmaiando por conta do calor, professores com pico de pressão, por conta da temperatura elevadíssima. Nós temos, não só aqui na capital, mas no sertão também, uma temperatura térmica muito prejudicial, e aí os meninos diziam, “como é que a gente pode aprender com o juízo fervendo?” Porque literalmente fervia com o calor, o cérebro. Então, assim, foram vários casos que tiveram que suspender a aula, porque realmente não conseguia ter um dia normal, várias escolas tiveram que suspender aulas nesses períodos de muito calor, intenso. Muita gente passando mal, bastante gente passando mal. Então, a gente colocou isso na pauta, assim como a gente coloca também a questão da melhoria da merenda escolar. Nós colocamos isso na pauta e, assim, foi uma das pautas de maior adesão dos estudantes, os estudantes foram às ruas, o movimento foi, inclusive, espontâneo, porque eles ligavam aqui para a gente: “Olha, nós vamos fazer um ato aqui na frente da escola. Você até pode mandar o carro de som, vocês podem vir?”. E eram os estudantes ligando para o sindicato. E aí, quando a gente chegava na escola, os professores também estavam envolvidos, e aí, ficava todo mundo junto naquela luta. Então, o governo do estado já começou a aclimatizar. No acordo coletivo que foi feito esse ano, eles se comprometeram a aclimatizar todas as escolas até o final de 2026, eu não sei se eles vão conseguir, mas fizeram um acordo, nós vamos cobrar. Disseram no início do ano que jogaram a culpa, em várias escolas que a gente levou essa situação, a culpa na Neoenergia, que é a Neoenergia que não estava dando conta do volume, na época, eles tinham listado 50 escolas prioritárias e a Neoenergia só tinha conseguido colocar a subestação em 20 escolas. Aí eu não sei se eles já conseguiram resolver esse problema com a Neoenergia, mas o que eles afirmaram pra gente é que vão climatizar todas as salas de aulas até o final do ano. Eu acho isso uma das pautas mais importantes, porque hoje, com a crise climática, a crise climática é percebida de fato pelas pessoas. Tem os negacionistas que ficam aí querendo negar a realidade, mas até na temperatura que você está na sua casa você sente que o mundo não é mais o mesmo. E isso quando não tem as enchentes, as catástrofes, mas mesmo sem existir enchente, nenhuma catástrofe, digamos assim, perto de você, que é quando as pessoas acreditam, de fato, nas coisas, você consegue visualizar pela temperatura térmica que está muito elevada. Então aqui houve realmente muito pico, no verão principalmente, agora está mais ameno porque está chovendo, mas no verão o calor é insuportável.
P/1 - Como você sente no seu dia-a-dia as mudanças climáticas?
R - Eu ou eu no mundo? Porque a gente está aqui, está no mundo todo, né? Acho que só não vê quem não quer, só não vê quem não quer. Mas quem tem um mínimo de conhecimento tem acompanhado, né? Que tudo está mudando. Os mares, os rios, os desastres, que não são desastres, são catástrofes ambientais, e acho que tem muito a ver com isso. O ser humano, com a Revolução Industrial, não cuidou, o mundo moderno não cuidou da terra que ele acolhe, e aí dá retorno. O rio dá retorno, o mar dá retorno, isso é visível. Só realmente quem não quer enxergar, porque quer usar, inclusive, politicamente isso, porque eles enxergam, mas fazem uma opção política por negar, porque é do seu interesse fazer esses confrontos, porque tudo hoje é isso, se não tiver confronto, não dá crescimento, não dá seguidor, não dá público. Então, muitas vezes, eles nem sabem ou não acreditam naquilo que afirmam, a gente já viu vários negacionistas dizendo isso. Aquele Nikolas mesmo, quando foi entrevistado, que ele afirmava que a Terra era plana, sim, mas você estudou, você comprova? O que é que lhe ampara? Não, nunca li sobre isso, não. Mas dizer que a Terra era plana dava seguidor, criava o confronto de ideias. Então, assim, nem eles acreditam naquilo que eles afirmam, eles só utilizam aquela performance para ter resultado eleitoral, então, é uma estratégia de poder, não é de fato o conhecimento. Isso eles mesmos já disseram. Então, acredita quem realmente não quer ver, é isso.
P/1 - E como que tem sido essas lutas, mobilizações pela questão climática, da climatização?
R - Tem mais sido na discussão da política educacional. A gente, como sindicato, a gente tem várias pautas que a gente sai do sindicato, a gente tem a questão da defesa da criança e do adolescente, e tem as pautas, a defesa da democracia, a defesa de uma justiça tributária, essas pautas que a gente tem feito é mais na discussão mesmo do currículo, que a gente fez no Plano Nacional de Educação, porque esses setores da política que querem usar isso politicamente, eleitoralmente, eles atuaram bastante na discussão do Plano Nacional de Educação, e que vai ter a discussão das emendas, porque vai ter a votação do Plano Nacional de Educação. Então, é uma das lutas, e uma das pautas da nossa política de atuação sindical, a gente conseguir realmente garantir que, isso estando no currículo, você tem possibilidade de fazer um debate em cada local de trabalho, em cada escola. E isso fazer parte do cotidiano da formação integral das nossas crianças, dos nossos jovens. Então, acho que a luta principal em relação à questão ambiental hoje passa pelo Plano Nacional de Educação, para a gente conseguir garantir essa temática, garantir essa problematização, garantir uma concepção sobre essa problemática digamos assim, uma concepção que seja verdadeira. Porque o que eles querem é tirar tudo isso do currículo, do Plano Nacional de Educação, como se isso não fosse uma coisa a ser enfrentada. A extrema-direita, a direita, eles vão atuar politicamente muito forte em vários temas, o tema da questão climática, o tema da questão dos direitos humanos que passa pelo combate ao racismo, combate à homofobia, combate à misoginia, ao capacitismo, todas essas questões eles vão atuar muito fortemente para derrotar a gente que é do movimento que faz a educação. E aí a gente não pode permitir, a mobilização já foi grande, e agora vai ser maior ainda, porque vai ter a votação no Congresso Nacional.
P/1 - E aí voltando para a luta pela climatização, vocês chegaram a fazer greve, alguma coisa assim?
R - Fizemos várias paralisações, várias paralisações na rede estadual toda, é uma rede estadual com mais de… São 1.156 escolas, nós temos mais de meio milhão de estudantes no ensino médio, que a nossa rede é praticamente todo ensino médio, nós temos algumas escolas do ensino fundamental, ensino fundamental 2. Então, você pega exatamente a adolescência dos meninos que estão nessa fase do ensino fundamental e ensino médio. Fizemos muitos atos em frente às escolas, bastante, e aí ganhou muito as redes sociais, ganhou as redes, os blogs, ficou muito na mídia, muita cobertura da televisão. Então, foi um movimento, uma campanha salarial muito, digamos assim, com muita adesão da sociedade, a adesão da sociedade foi muito forte. Muitos debates que a gente ainda vai continuar, porque a gente participou da Conferência do Meio Ambiente aqui, foi muito traumatizador, porque foi extremamente desorganizada, extremamente desorganizada pelo governo do Estado e praticamente não houve uma conferência, porque uma parte se retirou. Enfim, esperamos que as outras conferências, principalmente das mulheres, aqui não se repita o que aconteceu com a Conferência do Meio Ambiente. Mas o SINTEPE participou, mas as entidades do movimento sociais escreveram uma carta, inclusive, que o Governo do Estado não garantiu estrutura, não garantiu almoço, então, foi uma confusão do ponto de vista organizativo. Então, a discussão realmente ficou bastante comprometida. Então, assim, a luta segue, mas a nossa campanha salarial conseguiu fazer desse tema um tema, digamos assim, central nos nossos debates sobre as condições de trabalho e sobre as condições de ensino, e também de vida na escola, porque os meninos chegam de 7h30 e eles largam de 17 horas, então, eles passam muito tempo dentro da escola. A gente, inclusive, começou a fazer um debate que a gente não encerrou, porque nessa campanha salarial, nós colocamos com muita ênfase a questão da climatização das salas de aula. Mas a gente começou a fazer umas conversas com os professores da área de ciências, biologia, e eles estão... A gente ficou de fazer uma reunião agora, quando iniciasse a campanha, para a gente elaborar propostas, porque uma das coisas que a gente vai levar para a campanha salarial do próximo ano é fazer uma grande campanha de replantio de árvores, nas escolas, nas proximidades, fazer disso uma luta da sociedade, porque um dos professores estava falando para a gente, “Ivete, eu coloquei o termômetro da temperatura, eu coloquei do lado da sala de aula, de fora, que não tinha árvore, do lado da calçada, e nós colocamos”, ele dizendo a experiência que ele fez com os estudantes da sala dele, “nós colocamos o termômetro do outro lado, onde tinha a árvore, que é a parte interna da escola, a temperatura foi muito diferente”. Então, ele disse assim, “ali eu debati com os alunos, que a gente precisa fazer esse movimento de muito replantio, de replantio de muitas árvores, nas escolas e fora das escolas”. Então, a gente achou essa ideia maravilhosa, porque a gente só estava com a ideia de usar ar-condicionado, que não resolve e até compromete, e essa ideia e outras que vão vir nessa reunião, nós achamos maravilhoso, porque aí a gente pode realmente estar atuando politicamente para o mundo ficar melhor, e a escola também. É isso.
P/1 - E aí hoje como que é seu dia a dia?
R - Ah, meu dia a dia, meus meninos já estão todos grandes, eu não preciso mais acordar para fazer o café deles. Quando eu acordo, eu gosto de preparar o café da manhã, que é uma coisa que eu sempre fiz lá em casa, a gente comer junto, sem celular na mesa. Mas quando está todo mundo adulto, cada um tem os seus horários, um resolve dormir até mais tarde, porque estudou até mais tarde, só tem aula de tarde. Outro tem que estar 7h30 na faculdade, então já sai mais cedo, mas o dia a dia tem sido assim. Eu me acordava de 5h30, 5h20, porque eu tinha que sair, no máximo, 6h20 de casa, com eles três, porque se eu passasse em determinados pontos da cidade do Recife, depois de 6h40, eu não chegava de 7h00, que era o horário deles pegarem, 7h00, 7h10. Então, eu não me acordo mais de 5h30, porque não preciso, essa é a primeira grande mudança. A outra é não preciso mais fazer o café. Porque já tem fruta, já tem pão, né? Aí eu me acordo quando eu quero fazer uma tapioca, quando eu quero fazer um cuscuz, né? Quando eu quero fazer um cafezinho ali, bem, mas aí já tem liquidificador, ele já faz um... Acho que hoje a principal mudança é isso, né? O cuidado que a gente se ocupava tanto, a gente se ocupa menos agora, e estar na frente de um sindicato como é o SINTEPE é estar à frente de uma prefeitura. Porque o trabalho não para, as demandas são imensas, tanto cotidianas, a gente acompanha desde um professor que está tendo desconto do salário a uma professora que está sofrendo assédio na escola. Até os estudantes e as mães vêm recorrer a gente para resolver problemas, “Meu filho não está tendo atendimento na educação inclusiva”. Então os problemas são grandes e são pequenos, eles são cotidianos e eles são pontualmente. Nossa luta não é só estadual, nossa luta é nacional. Então, a gente acompanha toda a pauta do Congresso Nacional que nos afeta: Reforma administrativa, reforma como está sendo proposto agora, a reforma do ponto de vista tributário, que afeta a nossa categoria, a isenção do imposto de renda para quem ganha até 5 mil reais, afeta a nossa categoria que está no início, que entrou agora. Nós tivemos praticamente 10 mil novos concursados na rede. Então, todo mundo está ganhando o piso salarial do Ministério, todo mundo vai ser afetado por essa proposta, então, nós temos lutas nacionais. E temos as lutas estaduais, em defesa da escola pública e em defesa da valorização, porque, por exemplo, hoje, antes de vir para cá, meu celular, acho que recebeu umas mil mensagens, porque sexta-feira vai ser o pagamento e o governo esqueceu de colocar na folha o pessoal que apoia o escolar, que é o cuidador da educação inclusiva, é aquele que empurra o cadeirante, que leva para o banheiro, é o que ajuda, né? O aluno com dificuldade a se alimentar, a se alimentar, é chamado apoio escolar. Esqueceu, simplesmente, de colocar ele no reajuste. Aí eu tive que falar com os secretários, falei com a secretária executiva, então, antes de chegar aqui para a entrevista com vocês, eu dei um outro expediente, eu já estou no segundo expediente. Então, assim, isso aqui é uma imensidão de questões a tratar e a gente não tem um cuidado muito grande de não deixar a categoria sozinha com seus problemas, que são nossos, portanto. E, de cada coisa que chega aqui, a gente dá retorno, e de cada problema que a escola está sentindo, a gente se reporta ao governo para solucionar. Isso vai, tanto a gente que está aqui, que é da direção estadual, como os nossos núcleos. Ontem mesmo o Núcleo Regional do Sertão de Itaparica foi numa escola, gravou a situação da escola, já fez reunião com o governo lá, na gerência, e hoje está nas redes sociais nossas, a gravação da situação da escola. Então, a gente tem um acompanhamento da situação das escolas que afetam o direito à educação, não afetam só o nosso direito como profissional, afetam o direito de muita mais gente, que é o direito à educação, que é o direito dos estudantes. Então, é uma luta que não para, ela é imensa, ela é cotidiana, ela é estratégica, ela é gigante. A semana passada, a gente fez uma luta que a gente movimentou a Assembleia Legislativa toda. Porque nós fizemos uma campanha salarial, acertamos um reajuste com repercussão no nosso plano de carreira, o projeto de lei todo arredondado, discutido com a gente, tudo que estava polêmico na legislação que eles iam enviar para a Assembleia Legislativa, nós tivemos o cuidado de sentar com o governo, tivemos cinco reuniões antes deles enviarem o projeto de lei para a Assembleia Legislativa, e a gente é mergulhado em um momento onde o Governo do Estado e a Assembleia Legislativa estão numa disputa imensa, numa briga, no meio de um tiroteio a gente ficou... eu disse, “vocês colocaram a gente no meio de um tiroteio”. E aí a gente percebeu que o Governo do Estado queria utilizar o nosso projeto de lei, que tem uma repercussão social, por ser da educação, para forçar a aprovação de outros projetos de lei que ela queria aprovar, como o empréstimo, o projeto de lei, de empréstimo. E aí a gente teve que movimentar uma articulação imensa na Assembleia Legislativa para aprovar um projeto de lei que foi costurado com o governo, foi acordado com o governo. Quando a gente percebeu que o governo queria fazer isso, a gente começou a fazer uma articulação com o presidente da Assembleia Legislativa, os presidentes das comissões, finanças, administração, justiça e educação, e a gente teve que fazer uma mobilização fora da campanha salarial praticamente, a gente teve que lotar o plenário, a gente teve que puxar um dia de paralisação, que foi o dia da votação, para o pessoal lotar a Assembleia Legislativa, foi quarta-feira… segunda-feira passada, que a gente pensou que já ia para São João, eu disse para a governadora, “Governadora, viemos aqui no Palácio solicitar que a V. Exª dialogue com a sua bancada, para a sua bancada comparecer à Assembleia Legislativa para votar num projeto que foi acordado com o governo”. Então, a gente nem está pedindo mais nada porque já está tudo consolidado num projeto de lei. Aí eu disse para ela, era para o governo estar comemorando a negociação que fez com o Sindicato, e era para a gente estar preparando as nossas quadrilhas nas escolas e a gente achava que a gente ia brincar o São João com o nosso reajuste e aí a gente é pego de surpresa no meio de um tiroteio e aí depois a gente disse que não ia ser bucha de canhão pra estar sendo usado, e fizemos uma articulação com a Assembleia Legislativa e conseguimos garantir o coro de 25 deputados e o projeto de Lei foi aprovado apesar do governo estar com essa posição de orientar a bancada do governo para esvaziar as votações. Passou, né? Aí hoje foi um susto. Apoio escolar não está no reajuste, porque já saíram os lançamentos futuros dos salários, que vai ser pago sexta-feira. Aí foi o turno que eu tive que dar antes de chegar nessa entrevista aqui.
P/1 - Ivete, queria perguntar também o que você sonha para o futuro.
R - Ah, eu sonho em tanta coisa. Um mundo melhor. Nossa! É muito difícil a situação, viu? Como eu sou professora de História, eu sei que nada é imutável, né? E como sujeitos históricos nós temos, nós temos uma capacidade muito grande de influenciar. E, como eu sou professora de História, eu sei que as coisas não são lineares, não é porque você conquistou a democracia aqui que ela vai sempre existir, não é. A humanidade não funciona assim, o mundo não funciona assim. Então, você pode pensar que o mundo está evoluindo para melhor e, de repente, você tem um retrocesso de 200 anos, isso é perfeitamente possível na história. Então, eu acho que a gente está vivendo tempos muito sombrios, que a gente já teve tempos parecidos com esse, eu sempre tenho dito isso, que não é igual, que nenhum tempo é igual ao outro, mas esse período de caos, instabilidade, de grandes confrontos, de grandes disputas, inclusive de ideias sobre que mundo as pessoas querem, a gente já viveu isso na véspera das duas grandes guerras mundiais que o mundo já viveu. E a gente sabe qual foi o resultado disso, foi catástrofe. Países inteiros destruídos completamente. Só não foi afetado territorialmente a América, nem a América do Norte, nem a Central, nem a América do Sul, porque a guerra não chegou aqui, mas a Europa, a Ásia, e uma parte da África tiveram seus territórios destruídos. E a humanidade caminha assim. São tempos muito sombrios para se viver, isso joga um peso. Quais são os seus sonhos? Sonhos que a gente pudesse ter um mundo com mais estabilidade, com mais segurança para as pessoas viverem, com mais segurança para as pessoas existirem. Mas, ao mesmo tempo, como historiadora, eu vejo esse período de caos como um momento de grandes possibilidades. Eu não sou pessimista, nem fatalista, eu vejo como um mundo de grandes possibilidades, o mundo pode sair melhor ou pode sair pior, depende muito da gente, da nossa atuação, para onde a gente quer levar o mundo. Eu não quero ver meus netos vivendo num mundo onde tenha preconceito, discriminação, violência contra aquilo que as pessoas são. Não quero ver meus netos num mundo onde tenha guerras. Hoje, o que a Palestina está vivendo, e outras regiões do mundo com guerras, sempre em nome da religião, quase sempre, mas nunca é pela religião, são coisas que nos assombram, são coisas que nos assombram. Mas, como educadora que a gente é, a gente é sempre esperançosa, esperançar de Paulo Freire sempre está no nosso norte, e, como historiadora que nós somos, nós também temos muita paciência histórica, então, é um misto, é um misto de... de tristeza pelo momento sombrio que a gente está vivendo, pelo momento em que a nossa civilização está vivendo um momento de barbárie, é um momento de barbárie. Nós estamos vivendo um momento muito singular, que poucas pessoas vão viver, assim como poucas pessoas viveram o período antes das duas guerras mundiais. Então, nós estamos ao mesmo tempo em um período muito privilegiado, porque a gente vai ver onde é que vai dar esse mundo que está hoje vivendo uma barbárie, momentos de muita violência contra as pessoas, contra os povos, então, dependendo do que for feito hoje, a gente pode ter um mundo mais justo, um mundo com menos desigualdade, um mundo com mais distribuição de renda, um mundo com mais direitos. Eu acredito muito nisso, nesse esperançar de um mundo onde as pessoas possam viver sabendo que tem segurança para existir. Porque alguns não têm, nem condições de sair na rua, e outros não conseguem nem sair porque a bomba chega, como é na festa de Gaza, a situação que o genocídio, que os povos palestinos estão vivendo no mundo hoje, nos assombra. Mas, ao mesmo tempo, nos dá esperança de que a gente pode mudar o mundo. Eu acho que o sonho é isso, né? A esperança é essa, de que a gente possa mudar o mundo para melhor.
P/1 - E como a sua história de vida pode ajudar a mudar o mundo para um lugar melhor?
R - Acho que é acordar e ir à luta todo dia. É isso, não tem. Não tem um plano mágico, não, não existe um plano mágico para isso. Existem as pessoas se envolverem, se comprometerem, saírem da sua posição individualista, do seu mundinho e entender que, inclusive, o seu mundinho, o seu individualismo, ele só vai existir se esse mundo for para uma outra lógica, uma lógica onde a natureza esteja incluída, respeitada, preservada, e uma lógica onde todo mundo tenha direito a viver a vida plenamente com direitos à saúde, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer. Então, eu acho que... Qual foi a pergunta mesmo que tu fez?
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Como a sua história de vida pode ajudar a construir esse mundo?
R - Eu acho que a minha história de vida é uma história de vida comprometida com a mudança social, com a transformação social. Eu acho que isso dá sentido para a vida, não me vejo numa vida onde eu coma, durma, vou para o meu lazer, vou para as minhas viagens, quando sobrar dinheiro, vou beber minha cerveja, vou com meus amigos, não me vejo tendo essa vida. Eu tenho essa vida. Eu tenho essa vida, mas não me vejo vivendo só essa vida. Eu me vejo inserida sempre no coletivo, nessa perspectiva de mudança da sociedade. Então, eu acho que isso é a minha história de vida. Foi sempre uma história de vida, ser inserida nessas mudanças. Desde quando eu me fiz gente, me entendi como gente, eu acho que a história de vida, para mim, ela segue um fluxo quase que lógico. Da minha história de vida com a história de vida do mundo, da sociedade, plenamente inserida no coletivo. Nunca tive uma vida, digamos assim, aquela vida burguesa, individualista, você está na sua família. Para mim, a minha família é o mundo, são as pessoas que estão. E aquelas pessoas que são a minha família, são as pessoas mais próximas de mim, que eu cuido, que eu acolho, que eu protejo, mas até o cuidado delas depende do cuidado dos outros. Não existe separação entre mim, a minha família e a sociedade. Nós somos um todo. É isso.
P/1 - O que você achou de contar a sua história hoje?
R - Eu chorei tanto, você chorou? Você se emocionou, não foi? Sobre a manhã de hoje, acho que ainda vou passar vários dias sistematizando o que ocorreu aqui. Acho que falar sobre a vida da gente nos leva a repensar muitas coisas, e é nem só repensar no sentido racional, mas até do ponto de vista do impacto de pensar sobre o que aconteceu com você, o que é que aquilo traz em termos de suas emoções, o peso que aquilo tem. Eu sempre digo para amigos, estudantes, que é muito importante você fazer terapia. Eu nunca fiz, eu um dia vou fazer. Mas eu acho que é um pouco disso, você recuperar nas suas memórias, inclusive suas memórias afetivas, lhe posiciona diferente no mundo, contar a sua história faz você resgatar memórias que vão fazer com que você se reposicione no mundo. Porque eu não sabia o que falar sobre o que aconteceu comigo me fazia chorar, e me fez chorar hoje, de vários momentos aqui, acho que uns três momentos eu chorei. Eu não pensava que eu relembrar isso na minha vida ia me fazer chorar. Então, por que eu chorei? Essa é uma pergunta. Qual é o significado disso na minha vida? Então, por que eu chorei? Tem coisas aí que não estão resolvidas, eu acho que recuperar a memória das nossas vidas, elas podem ter um significado muito grande para quem a gente vai ser daqui por diante, por que isso teve um impacto? Eu acho que isso é para todo mundo, não é só eu, e eu acho que isso tem muito a ver com a terapia. Porque quando você faz terapia, você recupera as coisas para re-elaborar, na sua mente, aquilo que você viveu, então, o que eu fiz hoje foi terapêutico. A gente fica pensando sobre isso, né? Então, assim, eu acho que o momento de hoje vai dar muitos pensamentos, muitas re-elaborações, inclusive quem sou eu, Ivete Caetano, a partir do que eu relembrei hoje. E quem sou eu, Ivete Caetano, inclusive para as pessoas que vão me assistir, porque as nossas histórias impactam na vida das outras pessoas, eu já aprendi isso. Histórias impactam na vida das pessoas. De quem escuta, de quem relembra, de quem traz as memórias do passado para o presente. O passado não é passado. O passado pode ser o presente, pode ser o futuro, tudo está conectado. Então, acho que eu saio daqui com a pergunta, quem sou eu, Ivete Caetano? A partir desse depoimento. Porque eu chorei várias vezes. Acho que é isso, né?
P/1 - Tem alguma coisa que faltou você falar? Que você queira trazer?
R - Eu acho que o fato de ser mulher. Mas aí daria uma outra entrevista, viu? Porque eu nasci no meio de muitas mulheres, eu acho que a gente não percebe as violências que as mulheres sofrem. A gente já teve vários relatos de irmãs nossas que relataram abusos e a gente nunca tomou conhecimento desses abusos. E também como abusos são traumas que não são percebidos na consciência, muitas vezes ficando inconsciente, a gente fica às vezes até se perguntando, né? O que é que eu vivi que eu não me lembro, mas que definiu minhas atitudes hoje? Eu acho que essa questão eu só vim perceber muito tempo depois. Essa questão do fato de ser mulher, o que foi que a gente viveu? O que foi que a nossa mãe viveu? Muitas violências que minha mãe viveu, inclusive, eu tenho lembrança na minha infância da minha mãe grávida, meu pai empurrando ela da rede grávida, isso eu tenho lembrança, mas a gente não sabe, a gente não... Até a gente passar a tomar conhecimento das violências que as mulheres sofrem, a gente não entende isso como uma violência com homens, como uma violência de gênero, como uma violência contra as mulheres. A gente tem que dizer, não, foi uma briga, né? De meu pai com minha mãe, e não foi, né? Então, eu acho que a questão de ser mulher é uma questão que tem muita, digamos, tem muita centralidade nas nossas vidas. A gente foi para uma profissão majoritariamente feminina, e hoje a gente tem conhecimentos, quando a gente está discutindo a questão dos assédios, inclusive sexual, nas escolas, a gente tem muito relato de professoras que são assediadas por professores, por diretores, e até por alunos homens. Então essa é uma questão que a gente vem acompanhando como sindicato. Eu acho que o fato da gente ser mulher e assumir a presidência de um sindicato grande, o maior sindicato do estado de Pernambuco, eu sou a segunda mulher presidenta em 35 anos, todos os outros foram homens. Eu acho que isso também coloca questões para a gente se afirmar como uma liderança, porque há questionamentos à liderança, desde uma mesa de negociação até internamente. Eu não sinto muito isso da categoria. Não sei se é porque a categoria é majoritariamente feminina ou também não sei se é porque o sindicato é muito bem avaliado, a gente tem uma relação muito boa com a nossa base. Mas tem os questionamentos, você está numa posição de comando, numa posição de liderança, isso foi uma coisa que a gente não estudou ainda, qual é o impacto disso? Pelo fato de você ser mulher. Mas eu sei que tem. O mundo da política é muito masculino. Você vai para determinados lugares e você só vê homem. Às vezes está só você como mulher, e isso também tem um peso. Eu acho que a gente sente menos porque o nosso sindicato tem muita força mobilizadora da categoria, é um sindicato que impõe respeito na relação com o governo, então a gente percebe isso menos. Porque é a força da instituição que vai na minha frente, antes de eu chegar como presidenta mulher, está a força da instituição, a força coletiva de um movimento. Mas eu acho que essa questão da mulher é uma questão também, é um recorte, que também é um recorte que merece ser problematizado, estudado… E eu senti muitas dificuldades para realmente me afirmar como liderança no meio de homens, e a gente suou para dizer, “ela é uma liderança”. Porque por mais que você fizesse, havia questionamentos que não são ditos, porque ninguém é misógino, ninguém é preconceituoso, contra as mulheres, todo mundo no movimento sindical de esquerda, todo mundo sem preconceito, sem discriminação, mas não é bem isso. Eu acho que esse recorte, eu acho que só quando a gente entra numa vida mais adulta que a gente consegue perceber isso. Hoje as meninas estão percebendo isso mais cedo, porque a gente está falando, se pegarem no seu cabelo e você não quiser, se pegarem em você, se derem um beijo à força, isso está errado. Antigamente, quem sabia disso que isso era errado? Ah, ele que é muito folgado, deixa pra lá. Não é. Então, acho que esse recorte das mulheres, Isso hoje é muito forte na minha trajetória. É isso.
P/1 - Ivete, obrigada pelo seu tempo, pela sua partilha.
R - Muito história, né?
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