Em 40 anos de resposta à aids no Brasil, muitas histórias foram contadas a partir do ponto de vista das políticas públicas, dos números e das pesquisas. Eu trago uma perspectiva diferente: a de um advogado que, dentro de um processo judicial, viu de perto como o HIV atravessa corpos, territórios e direitos – e como, ainda hoje, o acesso à saúde precisa ser disputado na Justiça para que a vida de pessoas concretas seja levada a sério.
Esta é a história de um adolescente pobre, preto, do interior de Pernambuco, internado há mais de dois anos, cuja sobrevivência passou a depender não apenas da medicina, mas também de decisões judiciais, de liminares urgentes, de recursos, de ofícios e insistências. Conto essa experiência não como um triunfo pessoal, mas como um fragmento da memória coletiva da luta contra o HIV/AIDS no Brasil, marcada por resistência, solidariedade e, muitas vezes, por omissões do próprio Estado que deveria proteger.
É a partir desse lugar – o lugar de quem acompanha a dor pelas lentes frias de um processo eletrônico, mas também pelos olhos aflitos de uma família – que narro o caso a seguir;
Eu, Abraão Fernandes Nogueira, advogado, defensor de direitos humanos, OAB/PE 61.357, entrei nesse processo com um único objetivo: tentar salvar a vida de um adolescente.
Ele é um adolescente, 16 anos, negro, pobre, do interior de Pernambuco, Serra talhada, Quando conheci sua história, ele já estava internado há mais de dois anos em um hospital público, lutando contra um HIV extremamente agressivo, que já tinha “queimado” praticamente todas as opções de tratamento disponíveis no SUS.
Os médicos eram unânimes: nenhuma medicação habitual fazia mais efeito.
A infecção avançava, o corpo enfraquecia, as internações se prolongavam. O que restava de infância e juventude estava sendo vivido entre leito, exames e dor.
Foi nesse cenário que apareceu a possibilidade de um medicamento ainda não incorporado...
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Em 40 anos de resposta à aids no Brasil, muitas histórias foram contadas a partir do ponto de vista das políticas públicas, dos números e das pesquisas. Eu trago uma perspectiva diferente: a de um advogado que, dentro de um processo judicial, viu de perto como o HIV atravessa corpos, territórios e direitos – e como, ainda hoje, o acesso à saúde precisa ser disputado na Justiça para que a vida de pessoas concretas seja levada a sério.
Esta é a história de um adolescente pobre, preto, do interior de Pernambuco, internado há mais de dois anos, cuja sobrevivência passou a depender não apenas da medicina, mas também de decisões judiciais, de liminares urgentes, de recursos, de ofícios e insistências. Conto essa experiência não como um triunfo pessoal, mas como um fragmento da memória coletiva da luta contra o HIV/AIDS no Brasil, marcada por resistência, solidariedade e, muitas vezes, por omissões do próprio Estado que deveria proteger.
É a partir desse lugar – o lugar de quem acompanha a dor pelas lentes frias de um processo eletrônico, mas também pelos olhos aflitos de uma família – que narro o caso a seguir;
Eu, Abraão Fernandes Nogueira, advogado, defensor de direitos humanos, OAB/PE 61.357, entrei nesse processo com um único objetivo: tentar salvar a vida de um adolescente.
Ele é um adolescente, 16 anos, negro, pobre, do interior de Pernambuco, Serra talhada, Quando conheci sua história, ele já estava internado há mais de dois anos em um hospital público, lutando contra um HIV extremamente agressivo, que já tinha “queimado” praticamente todas as opções de tratamento disponíveis no SUS.
Os médicos eram unânimes: nenhuma medicação habitual fazia mais efeito.
A infecção avançava, o corpo enfraquecia, as internações se prolongavam. O que restava de infância e juventude estava sendo vivido entre leito, exames e dor.
Foi nesse cenário que apareceu a possibilidade de um medicamento ainda não incorporado ao sistema público, mas que representava a única chance terapêutica para o quadro dele: Rukobia (fostemsavir), produzido fora do país e disponível, à época, apenas no exterior – no caso dele, na Inglaterra, remédio esse que supera R$ 240 mil reais a unidade.
Era literalmente a diferença entre ter uma última chance ou apenas esperar o pior.
A decisão de entrar na luta
Quando tive o primeiro contato com o caso, eu sabia que seria um processo difícil. Não apenas pelo remédio em si, caro e importado, mas porque o réu não era um só: União, Estado de Pernambuco e Município de Serra Talhada estavam na outra ponta. Um adolescente, preto, pobre, internado há anos, enfrentando toda a estrutura do Estado para ter acesso a um frasco de medicamento.
Decidi atuar de forma pro bono, ou seja gratuitamente,
Não havia como olhar para aquela história, ouvir o pai, ver as fotos dele ainda criança, e transformar isso apenas em “mais um caso”. Eu não queria que a condição econômica fosse mais uma barreira entre ele e a única possibilidade de tratamento.
Passei dias mergulhado em laudos, diretrizes internacionais, pareceres médicos, notas técnicas. Escutei com atenção a equipe de saúde que o acompanhava, pedi relatórios detalhados, juntei cada exame que mostrava a falência dos esquemas anteriores. Cada documento era uma forma de gritar para o Judiciário: não se trata de luxo, se trata de vida.
A resistência do Estado e a força da Constituição
A ação judicial foi construída com urgência e responsabilidade.
Insistimos na gravidade do quadro, na falência terapêutica, na inexistência de alternativa eficaz. Demonstramos que o Rukobia (fostemsavir) não era uma aposta, mas a última linha de tratamento recomendada para situações como a dele em protocolos internacionais.
Foi então que a realidade se impôs: apesar da liminar deferida, houve resistência do Estado de Pernambuco em cumprir a decisão e fornecer a medicação. Vieram justificativas burocráticas, dificuldades administrativas, alegações de custo e de ausência do remédio nas listas oficiais.
Essa postura, porém, caminhava na contramão do que afirma o artigo 196 da Constituição Federal, que estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Na prática, enquanto a Constituição garantia esse direito no papel, um jovem negro e pobre continuava no leito, aguardando um medicamento que já tinha sido reconhecido pelo Judiciário como necessário e urgente.
Foi preciso insistir, reforçar pedidos, comprovar cada etapa, mostrar que aquela liminar não era “mais um papel”, mas uma ordem judicial que carregava o peso da vida de alguém. A cada atraso, eu lembrava nos autos que o tempo, ali, não era um detalhe processual: era parte do tratamento.
Depois de muitas idas e vindas, ofícios, cobranças e comprovações, recursos, o que estava decidido finalmente saiu do papel:
o medicamento foi adquirido e enviado da Inglaterra, com todos os registros juntados ao processo. A caixa que cruzou o oceano trazendo o Rukobia simbolizava não só o avanço da ciência, mas também a força de uma família e de uma defesa que se recusaram a aceitar a negação de um direito básico. Fazendo valer inclusive o que conta no Estatuto da Criança e do adolescente que assegura a PROTEÇÃO ABSOLUTA.
O que esse caso me ensinou
Nem tudo na vida é vitória simples.
A doença já estava muito avançada, o corpo já tinha sofrido demais, e a medicina nem sempre consegue reverter o que o tempo e a negligência acumulam. Esse adolescente acabou vindo a óbito, e isso também está registrado no processo.
Mesmo assim, eu não enxergo esse caso apenas como uma derrota.
A luta pela medicação deu a ele algo que o Estado lhe negava há muito tempo: respeito. Houve tentativa, houve cuidado, houve investimento de energia, dinheiro público e esforço humano para que ele tivesse acesso a um tratamento digno.
E, juridicamente, o processo abriu caminho.
Comprovou que é possível, sim, obrigar o Poder Público a fornecer medicamentos de alto custo, importados, ainda não incorporados formalmente às listas oficiais, quando está em jogo a sobrevivência de uma pessoa concreta — com nome, rosto, história, família.
A luta contra o HIV para além do remédio
Esse processo me fez encarar, com mais força, o quanto a luta contra o HIV no Brasil não é só biomédica; ela é social, racial e territorial.
O HIV atinge corpos, mas o preconceito escolhe quais corpos podem sofrer em silêncio.
Quando um adolescente negro, do interior, precisa de uma ação judicial para ter acesso a um medicamento, não é só um problema de orçamento — é uma expressão de desigualdade histórica.
Aprendi, nesse caso, que:
• O direito à saúde não é automático: muitas pessoas só alcançam esse direito se tiverem quem brigue por elas em juízo.
• A epidemia de HIV dialoga com racismo e pobreza: quem mora longe dos centros, quem depende exclusivamente do sistema público, costuma chegar ao tratamento avançado mais tarde, com menos informação e mais estigma.
• A judicialização não é um capricho: em situações como a desse rapaz, é uma forma de concretizar aquilo que o SUS, sozinho, ainda não consegue entregar em tempo hábil.
• O sistema de justiça também conta histórias: cada petição, cada laudo, cada despacho é um pedaço da vida de alguém.
Ao olhar para trás, vejo que esse processo é parte da história da resposta brasileira à aids. Ele mostra como a sociedade civil — advogados, famílias, médicos, movimentos sociais — continua sendo fundamental para pressionar o Estado a ir além do mínimo e garantir acesso a tecnologias que podem mudar destinos.
Por que continuo nessa luta
Atuar pro bono nesse caso não foi um gesto de caridade; foi um compromisso ético e humano.
Eu me reconheço nesse tipo de causa porque acredito que o Direito só faz sentido quando se aproxima de quem mais precisa. E, na luta contra o HIV, quem mais precisa ainda são, em grande parte, pessoas pobres, negras, periféricas, muitas vezes invisíveis.
Esse adolescente não está mais aqui, mas a história dele segue viva.
Ela atravessou o interior de Pernambuco, entrou em um hospital público, passou pelas telas frias do processo eletrônico, cruzou o oceano junto com um medicamento vindo da Inglaterra e, agora, encontra espaço na memória coletiva de um país que, há 40 anos, resiste à epidemia de aids com ciência, solidariedade e luta.
Contar essa história é também um pedido:
que nenhuma outra pessoa precise esperar tanto, adoecer tanto e depender de tanta burocracia para ter acesso ao que já existe no mundo e pode salvar vidas.
Porque, no fim, é disso que estamos falando:
não de caixas de remédio, mas de tempo de vida, de dignidade, de abraços que ainda podem acontecer.
Sigo, firme, de forma voluntária, auxiliando outras pessoas que vivem com HIV/AIDS a terem acesso aos seus direitos fundamentais.
Abraão Fernandes Nogueira – OAB/PE 61.357
E-mail: abraaonogueira.adv@gmail.com
(81) 9 84420785
Processo nº 0800642-75.2023.4.05.8303 – TRF5.
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