Capítulo 1
A Primeira Escolha Que Eu Achei Que Era Minha
Eu não entrei pro crime porque passava fome. Em casa, nunca faltou o básico. Meu pai e minha avó sempre fizeram o corre deles pra sustentar a gente. Trabalhadores, batalhadores, faziam o que podiam pra garantir a sobrevivência da família.
Minha mãe era a mulher da casa — firme, presente. Cuidou da gente como pôde. Mesmo sofrendo com a violência do meu pai, ela foi guerreira. Se manteve forte pra cuidar de nós.
Meu pai tinha um problema com a bebida, e isso, às vezes, trazia problemas pra dentro de casa. A nossa convivência familiar era abalada em vários momentos. Posso dizer que isso também foi uma das coisas que me empurraram pro mundo do crime. Mas não foi só isso.
Claro que, em boa parte, foram minhas escolhas. Mas hoje eu também consigo ver que o Estado tem sua parcela de culpa por não promover uma justiça social eficaz nas favelas.
Faltava oportunidade — não só por parte do Estado, mas da sociedade como um todo. Eu via os outros com chance de fazer seu dinheiro. Quando tinha festa, baile na quebrada, eu queria ter grana pra sair com as gatas — e não tinha. Queria roupa de marca, tênis da hora. Queria curtir, sair, ter acesso às coisas que meus pais, com todo esforço, não podiam me dar. Não porque não queriam, mas porque o mundo sempre pesou demais sobre os ombros deles.
O crime apareceu como um atalho. Rápido, sedutor, cheio de promessas. Aos 13 anos, com a mente ainda em formação, eu me deixei levar. A primeira vez que botei um dinheiro no bolso vindo do corre, senti que o mundo tava mais leve. Curtindo do jeito que dava, saí pela quebrada com o peito estufado. Mas era só ilusão.
Aos poucos, fui entrando mais fundo. O que começou como uma forma de ganhar dinheiro pra diversão virou rotina, vício, dependência. Eu já não sabia mais viver longe daquela adrenalina. Me sentia alguém. Me sentia respeitado. O crime me deu isso — mesmo que...
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A Primeira Escolha Que Eu Achei Que Era Minha
Eu não entrei pro crime porque passava fome. Em casa, nunca faltou o básico. Meu pai e minha avó sempre fizeram o corre deles pra sustentar a gente. Trabalhadores, batalhadores, faziam o que podiam pra garantir a sobrevivência da família.
Minha mãe era a mulher da casa — firme, presente. Cuidou da gente como pôde. Mesmo sofrendo com a violência do meu pai, ela foi guerreira. Se manteve forte pra cuidar de nós.
Meu pai tinha um problema com a bebida, e isso, às vezes, trazia problemas pra dentro de casa. A nossa convivência familiar era abalada em vários momentos. Posso dizer que isso também foi uma das coisas que me empurraram pro mundo do crime. Mas não foi só isso.
Claro que, em boa parte, foram minhas escolhas. Mas hoje eu também consigo ver que o Estado tem sua parcela de culpa por não promover uma justiça social eficaz nas favelas.
Faltava oportunidade — não só por parte do Estado, mas da sociedade como um todo. Eu via os outros com chance de fazer seu dinheiro. Quando tinha festa, baile na quebrada, eu queria ter grana pra sair com as gatas — e não tinha. Queria roupa de marca, tênis da hora. Queria curtir, sair, ter acesso às coisas que meus pais, com todo esforço, não podiam me dar. Não porque não queriam, mas porque o mundo sempre pesou demais sobre os ombros deles.
O crime apareceu como um atalho. Rápido, sedutor, cheio de promessas. Aos 13 anos, com a mente ainda em formação, eu me deixei levar. A primeira vez que botei um dinheiro no bolso vindo do corre, senti que o mundo tava mais leve. Curtindo do jeito que dava, saí pela quebrada com o peito estufado. Mas era só ilusão.
Aos poucos, fui entrando mais fundo. O que começou como uma forma de ganhar dinheiro pra diversão virou rotina, vício, dependência. Eu já não sabia mais viver longe daquela adrenalina. Me sentia alguém. Me sentia respeitado. O crime me deu isso — mesmo que fosse tudo falso.
Quando completei 15 anos, veio o primeiro trauma. Numa curtição com uns colegas, com bebida e droga, começaram a brincar com uma arma. Por acidente, eu acabei tirando a vida de um irmão que tinha a mesma idade que eu.
Esse foi, sem dúvida, o meu maior trauma. Fiquei sem chão. Tentei sair do mundo do crime, mas já era tarde. As portas da rua e da justiça já tinham se aberto pra mim, e sair dali era cada vez mais difícil.
E então veio o segundo baque. Uma lesão à bala, causada pelo próprio Estado. Não foi rival. Não foi guerra de facção. Foi a polícia.
Com medo de voltar pro sistema socioeducativo, tentei fugir — e fui atingido pelas costas. Frio, direto, sem piedade. Fui tratado como bicho. Ali, sangrando no chão, com um único tiro de carabina que me deixou paraplégico aos 17 anos, eu vi a verdade: o sistema nunca me enxergou como ser humano — nem quando eu tava errado, nem antes disso.
Foi nesse dia que a ficha caiu. Eu percebi que não tinha nada de poderoso. Que a mesma rua que me abraçou, tava pronta pra me matar. E o mais cruel: ninguém se importaria.
Sair do crime foi mais difícil do que entrar. Porque entrar é fácil. É rápido. Te dá prazer. Te engana. Mas sair exige coragem. Exige dor. Exige renúncia. Exige vontade de viver — e eu tive que encontrar isso em mim.
Hoje, quando olho pra trás, eu não esqueço de onde vim. Nem das escolhas que fiz. Mas também não deixo o sistema me calar. Porque sobreviver não é crime. Crime é negar a um jovem as possibilidades de sonhar.
Capítulo 2 — Quando o Corre Vira Prisão Invisível
No começo, o crime parecia liberdade. Vida fácil. Dinheiro entrando, roupa da hora no corpo, respeito no olhar dos outros. Eu me sentia no topo do mundo, mesmo estando, na real, cavando meu próprio buraco. Cada curtição, cada festa, era só disfarce pro vazio que crescia por dentro.
Me sentia alguém. Moleque de 14, 15 anos, com arma na cintura, dinheiro fácil no bolso e postura de bandido da quebrada. Era isso que eu queria mostrar pro mundo. Mas, por dentro, eu ainda era o mesmo garoto que só queria viver bem, ser notado. Fui buscar grana pra suprir as vontades de um adolescente comum — só que na vida errada.
Mas o corre tem um preço. E ele sempre cobra.
Comecei a ver amigos morrerem. Primeiro foi um conhecido. Depois, um parceiro de infância. Às vezes, nem dava tempo de chorar — o corre não para pra ninguém. E quanto mais eu perdia, mais me enterrava. Como se o crime fosse a única resposta pra dor. Me afundei sem perceber.
A rotina era louca: acordar com medo, dormir com um olho aberto. Cada esquina podia ser a última. A polícia vinha pesada, os rivais armavam emboscada, e a qualquer momento tudo podia virar luto. A mente nunca descansava. Eu tava preso — mesmo fora das grades.
Teve dia que eu quis parar. Teve noite que olhei pra minha avó e senti vergonha. Ela nem precisava falar nada. O olhar dela dizia tudo. Mas eu já tava fundo demais. Já tinha nome na rua. Já tinha dívida com gente perigosa. E o crime, ao contrário do que muitos pensam, não deixa você sair fácil.
Foi aí que eu entendi: a mesma rua que me abraçou, podia ser meu caixão. A mesma mão que te dá o dinheiro, é a que puxa o gatilho. E não importa o quanto você corre... o final parece sempre o mesmo: cadeia, caixão ou cadeira de rodas.
No meu caso, foi a cadeira de rodas.
No começo, achei que era castigo. Um acerto de contas pelo mal que causei. Mas hoje eu vejo diferente: foi um livramento. Uma segunda chance. Uma oportunidade de Deus pra que, através da minha história, eu pudesse alcançar outros jovens. Mostrar que o crime não é caminho — é armadilha.
O brilho do corre apagou quando a realidade me bateu forte. E mesmo no meio do caos, eu ainda sonhava. Sonhava em mudar. Sonhava em viver diferente. Mas pra isso, eu ia ter que encarar o maior inimigo: eu mesmo.
Capítulo 3 — O Preço da Liberdade Que Nunca Foi Minha
Depois da cadeira de rodas, muita coisa mudou. E não tô falando só do corpo, mas da alma. O corre parou, as ruas ficaram pra trás, mas o peso do passado continuou comigo. A liberdade que eu achava que tinha vivido se revelou uma mentira cruel. Eu nunca fui livre. Nem quando tinha dinheiro, nem quando andava. Eu era só mais um produto de um sistema que escolhe quem vai sonhar e quem vai sobreviver — e eu tinha sobrevivido, por pouco.
A quebrada continuava igual. O corre rolando, os moleque novo entrando, como eu entrei um dia. E isso doía. Ver que tudo seguia o mesmo ciclo. Que a próxima vítima já tava ali, fardada com o uniforme do abandono.
Eu comecei a perceber o quanto a gente é ensinado a se odiar. A não se achar digno de algo melhor. A acreditar que o crime é o único caminho, porque ninguém nunca mostrou outro. A escola virou só lembrança. O Estado, quando aparecia, era com farda, tapa e tiro. Nunca com oportunidade.
Na cadeira de rodas, eu virei estatística duas vezes: ex-infrator e deficiente. E mesmo assim, ninguém quis saber da minha história. Nem perguntar por que eu fui parar ali. Pra muita gente, era só mais um bandido punido. Mas não era castigo. Era consequência. E consequência de um erro que não começou comigo — começou muito antes, nas políticas que nos negaram tudo.
Tive que reaprender a viver. A me olhar no espelho e aceitar as marcas. A lidar com a culpa, com os pesadelos, com os silêncios. Não foi fácil. Ainda não é. Mas cada dia que eu levanto, mesmo sem andar, é um ato de resistência.
Hoje eu falo. Escrevo. Me exponho. Porque se minha dor puder evitar que outro moleque passe o que eu passei, então ela serve pra alguma coisa. O sistema tentou me matar, mas eu tô aqui. E enquanto tiver voz, eu vou falar: a liberdade de verdade só existe quando a gente tem escolha. E pra muitos de nós, essa escolha nunca existiu.
Capítulo 4 — O Silêncio Também Grita
Depois de tudo que vivi — da bala, da cadeira de rodas, das perdas — veio um tempo em que o silêncio começou a falar mais alto do que qualquer grito. Era o silêncio dos dias longos, das noites sem sono, da mente cheia e do corpo travado. Mas também era o silêncio da ausência: dos parceiros que se foram, das oportunidades que nunca chegaram, da juventude que me foi arrancada cedo demais.
Esse silêncio doía. Não porque era vazio, mas porque tava cheio demais. Carregado de tudo que eu queria esquecer. Os barulhos do passado ainda ecoavam dentro de mim — os tiros, o choro dos meus familiares, os gritos da madrugada quando a polícia arrombava a porta do meu barraco. E agora, tudo isso voltava como um filme sem som, passando só pra mim, dentro da minha cabeça.
Muita gente pensa que, depois da cadeira de rodas, veio a paz. Que minha guerra tinha terminado. Mas a batalha só mudou de lugar. Agora era dentro de mim: contra a depressão, contra a culpa, contra a sensação de que eu não servia mais pra nada. E o pior inimigo era aquela voz que ninguém escuta, mas que te destrói por dentro dizendo: “acabou pra você”.
Mas não acabou.
Foi no meio desse silêncio que eu comecei a escutar algo diferente. Comecei a perceber que minha história ainda tinha um propósito, e que o objetivo era bem maior: alcançar pessoas através da minha vivência. Minha dor podia virar direção. Mesmo ferido, eu ainda podia alcançar outros. A favela tá cheia de moleques passando pelo que eu passei — vivendo sem ser vistos, morrendo sem serem lembrados, acreditando que o corre é a única saída.
O sistema segue maquiado de justiça, mas é o mesmo de sempre: que te dá bala antes de te dar escolha. Que oferece cela antes de oferecer escola. Mas, mesmo com tudo isso, a favela resiste. Porque enquanto houver um jovem sonhando, tem esperança. E enquanto houver quem sobreviveu, tem voz.
Eu sobrevivi. Mas nem todo mundo tem essa chance. E é por eles que eu continuo falando. Porque o silêncio também grita. E o grito mais forte vem de quem, mesmo calado, se recusa a ser esquecido.
E foi nesse silêncio que eu comecei a reconstruir quem eu era. Porque antes de me levantar fisicamente, eu precisei aprender a me levantar por dentro.
Capítulo 5 — O Peso de Levantar Sem as Pernas
Levantar depois de cair é difícil. Mas levantar sem as pernas... é outra batalha. A queda foi física, mas o tombo mais pesado aconteceu por dentro. A vida me quebrou de um jeito que nem eu sabia por onde recomeçar. Pra tentar amenizar a dor, mergulhei nas drogas. A cadeira de rodas virou minha nova realidade, mas minha mente demorou pra aceitar.
No começo, tudo era ainda mais difícil. Não só pela depressão, mas também pela falta de dinheiro até pra comprar uma cadeira de rodas. O custo era alto, e minha família não estava preparada — ninguém tá. Podiam até esperar o pior... mas não isso. Cuidar de uma pessoa com deficiência é uma luta diária. Só minha mãe e alguns poucos sabem o tamanho desse peso.
A rua, que um dia foi palco da minha falsa glória, agora parecia distante. Intocável. Eu, que andava com postura de bandido respeitado, agora precisava de ajuda até pra fazer a higiene pessoal. O orgulho ferido sangrava mais do que a própria bala.
Mas foi ali, naquele chão onde a vida me derrubou, que eu comecei a olhar pra cima. E entendi que levantar, às vezes, é parar de olhar pras pernas... e começar a olhar pra dentro.
Eu precisava me reconstruir. Não só como homem, mas como ser humano.
Com o tempo, entendi que minha missão tinha mudado. Que agora eu carregava outra arma — a palavra. E que com ela, eu podia atingir corações, não corpos. A cadeira virou púlpito. Minha história virou mensagem. Minhas cicatrizes, ferramentas.
Não foi fácil. Ainda não é. A dor continua. A revolta às vezes volta. Mas agora, eu luto com propósito. Quero mostrar que é possível se levantar mesmo quando tudo diz que acabou. Quero ser a prova viva de que o sistema tentou apagar mais uma vida — e falhou.
Hoje, cada vez que compartilho minha história, é como se eu me levantasse um pouco mais. Porque o peso de levantar sem as pernas é grande — mas viver sem sonhar... é ainda maior.
Capítulo 6 — Antes Tarde do que Morto
Durante muito tempo, eu achei que já era tarde pra mim. Tarde pra mudar, tarde pra sonhar, tarde pra viver de verdade. A rua me ensinou que quem vacila morre, que quem tenta sair acaba virando alvo. E eu acreditei nisso por anos. Mas hoje eu sei: antes tarde do que morto.
Porque se tem uma coisa que a vida me mostrou com dureza, foi que nem sempre a gente morre quando para de respirar. Tem gente que segue vivo, mas sem alma, sem direção, sem fé. Eu quase fui um desses. E teria sido, se não tivesse escutado o chamado da vida no meio do caos.
A cadeira de rodas não me matou. O sistema não me apagou. A dor me ensinou a ter força, e o arrependimento me ensinou a ter verdade. Eu não nego meu passado. Ele é parte de mim. Mas ele não me define. O que me define é o que eu escolho fazer com ele agora.
Quando olho nos olhos de um jovem da quebrada que tá flertando com o crime, eu não vejo só erro — eu vejo a falta de opção. Vejo o mesmo moleque que eu fui: querendo ser alguém, querendo respeito, querendo viver sem ser invisível. A rua oferece isso. Mas cobra caro. E quase sempre cobra com a vida.
É por isso que eu falo. É por isso que eu escrevo. É por isso que eu insisto. Porque, mesmo depois de tudo, eu ainda acredito. Acredito que dá pra virar o jogo. Que dá pra construir um caminho novo mesmo com as pernas paradas. Que dá pra encontrar sentido mesmo no meio da tragédia.
Minha vida hoje é outra. Não perfeita. Não fácil. Mas verdadeira. E cada dia que eu acordo é uma prova de que ainda dá tempo. De que ainda tem chance. De que ainda vale a pena.
Eu poderia ter morrido ali, no chão, com a bala atravessando minha coluna. Mas Deus me deixou aqui. E se Ele me deixou, é porque ainda tem missão.
Então, se você tá lendo isso e pensa que é tarde demais... lembra: antes tarde do que morto.
Capítulo 7 — Onde a Dor Vira Caminho
Chega uma hora em que a dor deixa de ser só ferida — e vira direção. No começo, ela parece só destruição, peso, castigo. Mas, com o tempo, quando a gente sobrevive, ela começa a apontar pra onde a gente precisa ir. E comigo foi assim.
Eu passei anos achando que minha dor só servia pra me lembrar do que eu perdi. Mas hoje eu entendo: ela também me lembra do que eu ainda posso construir. Porque, por mais que eu tenha perdido movimento nas pernas, ganhei algo que muitos ainda não têm — consciência.
Consciência do sistema que falha. Consciência das armadilhas que chamam de oportunidade. Consciência do valor da vida. E é essa consciência que hoje guia meus passos, mesmo que eles sejam dados com as rodas de uma cadeira.
Eu já fui exemplo do que não fazer. Hoje, quero ser prova de que é possível recomeçar. Não é bonito, não é rápido, não é fácil. Mas é possível. E isso basta.
Voltar pra quebrada depois de tudo, olhar nos olhos da juventude e contar minha história — sem romantizar, sem maquiar, sem vitimizar — é meu novo corre. Porque se minha vivência puder impedir um moleque de seguir o mesmo caminho que eu, já valeu a pena.
A dor me deu voz. E com ela, hoje eu grito por quem ainda não consegue falar. Grito pela mãe que chora em silêncio, pelo jovem que ainda acha que o crime é destino, pelo irmão que tá preso no corpo ou na mente. Porque, no fim das contas, a dor que quase me matou, foi a mesma que me deu sentido.
Não existe atalho pra uma vida digna. Mas existe escolha. E quando a dor vira caminho, cada cicatriz vira um mapa. E eu tô aqui, com meu corpo marcado e minha alma acordada, mostrando o caminho que ninguém me mostrou.
Capítulo 8 — Sonhar Também É Sobrevivência
Por muito tempo, sonhar me pareceu um luxo distante. Na quebrada, a gente aprende cedo que sonhar demais pode doer. Porque a realidade vem rápido pra lembrar que quase nada é pra gente. Mas com o tempo, eu entendi que sonhar, na real, é um ato de resistência. De quem, mesmo apanhando da vida, ainda acredita que existe algo além da dor.
Quando eu tava na ativa, meus sonhos eram rasos — tênis caro, dinheiro fácil, respeito forçado. Eu achava que tava vencendo, mas era só mais uma peça no jogo que sempre termina com a gente perdendo. A verdadeira vitória, descobri depois, era conseguir deitar a cabeça no travesseiro e sentir paz.
Hoje eu sonho diferente. Sonho com oportunidades reais pra juventude da favela. Sonho com escola que ensina de verdade, com família que não precisa escolher entre comer e pagar a conta. Sonho com quebradas onde o corre é com carteira assinada e o respeito não vem pela arma, mas pela caminhada.
E não, não é sonho bobo. É necessidade. Porque o sistema já rouba tudo da gente: o tempo, a saúde, os amigos, o corpo. Se ele também roubar nosso direito de sonhar, aí sim a gente morre de vez — mesmo de pé.
Eu sobrevivi, e por isso carrego a missão de manter o sonho vivo. Não só o meu, mas o de cada jovem que ainda acredita que existe saída. Porque existe. Ela é difícil, cheia de pedrada, mas existe. E começa quando a gente acredita que merece mais.
Sonhar também é sobre se manter vivo num mundo que tenta te apagar todos os dias. E se tem uma coisa que eu aprendi é que enquanto houver um sonho dentro de nós, o sistema nunca vai vencer por completo.
Capítulo 9 — Quando a Dor Vira Semente
A dor tem muitos caminhos. Pode virar raiva, silêncio, desistência. Mas também pode virar semente. No meu caso, demorou pra eu entender isso. Porque, no começo, tudo que eu queria era esquecer, apagar o passado, fingir que nada tinha acontecido. Mas quanto mais eu tentava enterrar minha história, mais ela gritava dentro de mim.
Não tem como apagar o que a gente viveu. E nem precisa. Porque a dor, quando encarada de frente, pode florescer em algo maior. Foi com ela que eu aprendi a olhar pro lado, a entender que eu não era o único, que minha luta era coletiva. A favela inteira carrega cicatriz. A diferença é o que a gente faz com elas.
Eu escolhi fazer da minha dor um caminho. Uma ponte. Uma voz. E comecei a usar tudo que me machucou como ferramenta pra construir algo novo. Não foi do dia pra noite. Teve recaída, teve lágrima escondida, teve noite que eu pensei em desistir. Mas cada vez que alguém dizia \\\"sua história me tocou\\\", era como se uma flor nascesse no meio do concreto.
Hoje, eu sou prova viva de que dor também pode ser fértil. Que da terra mais seca pode brotar esperança. Que a vida, mesmo quando quebra a gente, ainda oferece chance de renascer. E eu escolhi renascer. Não como o moleque que buscava respeito na marra, mas como homem que entendeu que a verdadeira força é transformar a própria queda em degrau pra outros subirem.
A dor me marcou. Mas também me moldou. E agora, onde ela um dia reinou, eu planto palavras, ideias, futuros possíveis. Porque a favela precisa disso: de semente. E se a minha dor puder virar jardim no coração de alguém, então tudo que passei vai ter valido a pena.
Capítulo 10 — Quando a Dor Vira Produto
No mundo onde eu cresci, tudo vira comércio. A alegria, o medo, o talento, até a dor. E quem lucra com isso, quase nunca é quem sente.
Depois que fui baleado e parei numa cadeira de rodas, começaram a dizer que minha história era “inspiradora”. Que eu tinha vencido, superado, dado a volta por cima. Mas ninguém queria saber da parte mais importante: o porquê de eu ter caído. Ninguém queria falar do abandono, da falta de acesso, da exclusão que me empurrou pro crime. Só queriam o final bonito, com lição de moral.
O sistema capitalista faz isso o tempo todo. Pega a tragédia da favela e transforma em espetáculo. Ganha dinheiro com documentário, com palestra, com projeto social cheio de nome bonito, mas que não chega de verdade onde tem que chegar. Transformam o sofrimento da quebrada em marketing de ONG. Dão troféu pra quem sobrevive e esquecem quem morreu tentando.
A justiça social não é caridade. É reparação. É olhar pra quebrada e entender que ali não falta talento, falta oportunidade. Não falta sonho, falta estrutura. E o capitalismo não quer resolver isso — porque um povo com consciência não aceita ser explorado. Então eles vendem entretenimento, anestesiam com consumo, jogam os de baixo uns contra os outros pra manter o topo intacto.
Eu não sou história de superação. Eu sou o grito de quem cansou de ver o sangue dos nossos irrigando o lucro dos outros. Cansou de ver o tráfico sendo combatido com fuzil, mas nunca com emprego digno. Cansou de ver a educação pública virar sucata, enquanto se investe em presídio e em arma pra polícia militar.
Minha luta agora é por justiça. Pela favela que ainda é criminalizada só por existir. Por cada jovem preto que ainda acredita que o corre é o único caminho. Pela minha mãe que chorou em silêncio, pela minha avó que orou sem parar, por todos os que ficaram pelo caminho.
Eu não quero aplauso. Quero mudança. Quero uma revolução que comece com a verdade sendo dita — doa a quem doer. Porque enquanto o capitalismo transformar tudo em produto, inclusive a nossa dor, a gente vai continuar sendo estatística. E eu nasci pra ser mais que número. Eu nasci pra ser voz.
Capítulo 11 — O Lucro Acima da Vida
Na quebrada, a gente aprende cedo que existe uma ordem no mundo. E ela não é feita pra gente vencer. É feita pra gente servir, sofrer e, se possível, sumir. A vida vale pouco quando se nasce no CEP errado. Vale menos ainda quando se é preto, pobre e periférico.
O sistema não falha. Ele funciona exatamente como foi planejado: pra manter os de cima no poder, e os de baixo distraídos, divididos, dopados — ou mortos.
A escola não ensina nossa verdadeira história. A mídia não mostra nossas vitórias, só nossas prisões. A saúde pública não cuida, só remenda. E a política? Essa só aparece na favela de quatro em quatro anos, prometendo o que nunca vai cumprir.
O capitalismo lucra com tudo isso. Lucra com nossa mão de obra barata, com nosso consumo desesperado, com nosso sofrimento transformado em conteúdo. O sistema suga nossa energia, nosso tempo, nossos sonhos — e quando não serve mais, descarta. Eu sou prova disso. Só virei “importante” depois que tomei um tiro. Só virei “exemplo” quando virei estatística.
Mas não aceito ser vitrine de superação se isso não vier com transformação de verdade. Eu não sou troféu do sistema. Sou denúncia viva do que ele fez comigo — e com milhares que não sobreviveram pra contar.
A justiça social que eu defendo não é esmola, é direito. É terra pra plantar, escola pra formar, saúde pra cuidar, cultura pra libertar. É o direito de existir sem medo. De andar na rua sem ser caçado. De crescer sonhando, não se escondendo.
Enquanto a vida da favela valer menos que o lucro dos grandes, não existe paz. Enquanto a dor for moeda, o sistema é criminoso. E a gente, resistência.
Minha voz hoje carrega o peso de quem perdeu muito. Mas também carrega a força de quem não foi vencido. Porque no final das contas, a maior revolução é existir — e não se calar.
Capítulo 12 — Da Dor Que Vira Arma Contra o Sistema
Eu não sou herói, nem quero ser. Minha história não é conto de superação pra emocionar burguês em rede social. Minha história é tapa na cara de quem fecha os olhos pro que acontece todo dia na favela. A dor que me atingiu não é só minha — é coletiva. É a dor do povo preto, periférico, explorado desde que o Brasil é Brasil.
O capitalismo transformou tudo em produto: a fé, a educação, a saúde, até a dor virou mercadoria. Hoje vendem curso de \\\"resiliência\\\", \\\"autoestima\\\" e \\\"inteligência emocional\\\" como se fosse possível curar ferida com palestra online. Mas ninguém quer falar da raiz. Ninguém quer encarar que o sistema é construído pra moer vidas como a minha e vender esperança como se fosse milagre.
Enquanto isso, nas quebradas, a molecada continua crescendo cercada de polícia, ausência e promessas quebradas. Continuam olhando pro tráfico como trampolim, porque a escola não garante futuro e o mercado de trabalho fecha as portas antes mesmo da entrevista. A favela segue sendo fábrica de sobrevivente. E o pior: o mundo se acostumou com isso.
Mas eu não me acostumo.
Minha paraplegia não me silenciou. Me fez gritar mais alto. Cada vez que falo, falo por aqueles que não podem mais. Cada vez que conto minha história, é pra denunciar um sistema que lucra com a nossa desgraça. Minha dor virou arma — e eu aprendi a mirar com palavra.
E não é porque hoje eu estou “reconstruído” que a luta acabou. Pelo contrário. A reconstrução é diária. A revolta é combustível. E a meta não é virar exemplo individual, é fortalecer o coletivo. A gente só muda o jogo se mudar as regras. E pra mudar as regras, tem que expor o tabuleiro.
Minha missão agora é essa: não deixar que a minha história vire apenas uma tragédia que emocionou alguém por alguns minutos. Eu quero que ela incomode. Que ela revolte. Que ela provoque. Porque só assim, talvez, a gente comece a virar o jogo.
Capítulo 13 — O Sistema Quer Nos Calar, Mas a Favela Ainda Fala
O sistema tem medo da nossa voz. Porque sabe que quando a favela fala, o asfalto treme. E por isso tentam nos calar de todos os jeitos: com bala, com cadeia, com silêncio. Mas tem uma coisa que eles ainda não entenderam — quem sobrevive, vira memória viva da injustiça. E memória viva incomoda.
Quando eu tomei aquele tiro, o recado era claro: \\\"Cala a boca, morre aí, desaparece.\\\" Mas eu não morri. E agora eu falo. Não com ódio cego, mas com consciência. Falo porque entendi que minha vida tem função política. Que minha existência é resistência. Que meu corpo, hoje em cadeira de rodas, é um protesto contra tudo que quiseram me negar.
A favela não precisa de piedade. Precisa de estrutura. Precisa de política pública de verdade, e não esmola eleitoreira. Precisamos de escola que ensine o menino a sonhar, e não só a repetir. De saúde que chegue no morro com dignidade. De trabalho que respeite a inteligência e a força de quem sempre teve que se virar com nada.
Mas isso não gera lucro. E é por isso que não interessa pra eles.
O capitalismo não quer que a gente pense — quer que a gente consuma. Quer que o moleque deseje o tênis, mas nunca entenda quem lucra com ele. Quer que a quebrada continue se matando por migalha, enquanto os donos do jogo se enriquecem com a guerra. É tudo calculado. É tudo projeto.
E se é projeto, tem que ser enfrentado com outro projeto: o da consciência.
Por isso eu continuo aqui. Porque enquanto um só de nós entender que o problema não tá só na nossa escolha, mas nas opções que nos deram, já valeu. Enquanto um moleque ouvir minha história e pensar “posso fazer diferente”, já é vitória.
Eles querem nos calar. Mas a favela ainda fala. E vai continuar falando — com a voz, com a arte, com a luta, com a dor que virou verbo. Porque a nossa palavra é semente. E mesmo no concreto, a gente aprende a florescer.
Capítulo 14 — O Grito Que Ecoa da Favela
Eu achava que a maior dor era a bala. Depois achei que era a cadeira. Mas a dor mais profunda é a de ser invisível num sistema que lucra com tua desgraça. A favela sangra todos os dias, mas ninguém quer ver. Porque mostrar nossa dor não vende. Não gera lucro. A não ser quando vira matéria sensacionalista ou documentário premiado — sempre pelas mãos de quem nunca pisou no chão quente da comunidade.
O sistema capitalista fez da nossa vida um produto. Nossa miséria é vitrine. Nossa dor, espetáculo. E enquanto a elite enriquece, a favela afunda, sem acesso, sem estrutura, sem respeito. O menino que se perde no corre é só mais um número. A mãe que chora pelo filho é só mais uma imagem na TV. Eles fingem que se importam, mas o que eles querem mesmo é manter a engrenagem girando — desde que a gente continue na parte de baixo dela.
Eu sei o que é ser usado como estatística. Sei o que é ter a vida atravessada por um sistema que me ofereceu a cadeia antes do emprego. A bala antes do livro. A morte antes do sonho.
Mas agora eu também sei o poder de resistir.
Minha cadeira virou trincheira. Minha voz, ferramenta. Cada vez que falo, denuncio. Cada vez que conto minha história, exponho esse sistema que nos quer calados, conformados, mortos ou presos. Cada linha que escrevo, cada jovem que me escuta, é um ato de rebeldia contra essa lógica perversa que transforma tudo — até o sofrimento — em mercadoria.
A favela não é carência, é potência. Mas é preciso investir nela com justiça, não com esmola. É preciso escutar o grito que sai do beco, da laje, da escola precária, da mãe que cria três filhos sozinha, do moleque que quer viver sem ter que se armar.
Eu sobrevivi, mas não quero ser exceção. Quero ser o começo de uma nova narrativa. Porque enquanto houver um de nós de pé — ou sentado, mas consciente — o sistema não venceu.
Capítulo 15 — A Luta Não Acabou, Ela Só Começou
Cheguei até aqui, não porque fui forte o tempo todo, mas porque nunca parei de lutar. Cada dia foi uma batalha — contra o medo, contra a dor, contra o sistema que tenta me apagar. O sistema, esse monstro de mil cabeças, tenta nos engolir, mas não sabe que a nossa força está na resistência. Nós, que fomos condenados ao invisível, sabemos o valor de ser visto, de ser ouvido. E mais importante: de lutar.
O capitalismo nos coloca em uma corrida desigual, onde a vida se compra e a morte se vende. Eles querem que a gente viva na periferia das oportunidades, na borda dos direitos, no limite da humanidade. Mas quem nasce com o fardo da desigualdade aprende a se reinventar. Aprendi a levantar da dor. Aprendi que não existe cadeado que prenda quem se recusa a ser esquecido.
Muitos já me perguntaram o que me mantém de pé. A resposta nunca foi simples. Mas hoje eu sei que a razão maior é que minha dor não é só minha. Minha história não é só minha. Ela é de todos que, como eu, foram renegados à margem. É a dor da favela, a dor do jovem que não teve chance, a dor de um sistema que nos nega tudo e ainda nos chama de culpados.
Eu vejo agora que meu papel vai além de ser só um sobrevivente. Eu sou um grito, uma voz que se recusa a calar. Eu sou a lembrança de todos os que não chegaram até aqui, mas que mereciam. Eu sou a resistência que nasce da dor, mas que se ergue pela esperança. Porque a luta por justiça social não é uma corrida de um só, mas de todos que, como eu, acreditam que o futuro pode ser diferente.
E, mesmo quando me sinto cansado, mesmo quando as cicatrizes pesam, eu sei que a luta não terminou. Ela só começou. Porque o sistema não vai parar até nos ver mortos ou presos. E nós não podemos parar até ver a justiça finalmente feita.
Então, sigo. Porque a luta não é só minha. Ela é de todos que querem viver com dignidade. Ela é de todos que se recusam a aceitar a injustiça como destino. E, enquanto houver um de nós que se recusa a ser silenciado, a revolução vai continuar.
E a verdade que ninguém pode calar é simples: sobreviver não é crime. Mas deixar o sistema continuar nos destruindo é.
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