Projeto Heranças e Lembranças
Depoimento de Samuel Feigenbaum
Entrevistado por Karen e Diane
17 de setembro
Realização Museu da Pessoa
Entrevista número HL_HV076
Revisado por Gabriela Ramos
R – Nome, Samuel. Data de nascimento, 21 de fevereiro de 1919. Local, Polônia. Cidade... Era aldeia, não era cidade, Spass. O país, já falei, era Polônia. Nome do pai, Mauricio. Nome da mãe, Dina. Na Polônia, o meu sobrenome era Edelstein e, naturalmente, mudei meu nome para Feigenbaum, porque meus avós por parte de meu pai não tinham casado no civil, só no religioso. A minha avó tinha o sobrenome Feigenbaum e o meu avô, Edelstein. O meu pai veio para o Brasil com o passaporte de sobrenome Edelstein, pois quando nós fomos viajar, quer dizer, eu, minha mãe e meu irmão, fomos viajar para o Brasil, na hora de tirar os documentos, tínhamos que apresentar uma certidão que o sobrenome do meu pai era Feigenbaum, sobrenome da sua mãe, minha avó. Assim, passou a ser o meu sobrenome Feigenbaum. Lógico que na Polônia o meu sobrenome de Edelstein constam de todas minhas certidões, de colégio e depois de ginásio. E depois, já no Brasil, encontra dificuldade de assinar Feigenbaum, porque estava acostumado a assinar Edelstein.
P/2 – O senhor teve alguma dificuldade de papéis, de documentos, alguma vez, por problemas legais no Brasil por esses dois nomes?
R – Não, porque no Brasil eu sou Feigenbaum. No Brasil, não me foi exigido apresentar certidões dos cursos concluídos na Polônia. Quando cheguei ao Brasil, resolvi estudar e fiz o então chamado artigo cem, entrando direto no quarto ano ginasial, e por isso que não havia necessidade de apresentar documentos relativos aos cursos que fiz na Polônia. O artigo cem cobria, tornava desnecessária a comprovação do currículo anterior, era a lei do Brasil, foi a razão que não tive dificuldade com o sobrenome.
P/2 – O senhor ainda tem seus documentos?
R – Tenho, claro. Agora, do outro lado, por parte da minha mãe, a minha mãe e da família Horwitz, por parte da mãe dela, da minha avó e por parte do meu pai, Schnitzer. E meus tios, alguns tios também tiveram esse problema de sobrenome, porque meus avós, por parte da minha mãe, também não tinham casado no civil. Costume e validade para os judeus era o casamento religioso. Bom, nasci numa aldeia chamada Spass, que fica na Polônia. Galitzia, em polonês Mala Polska, quer dizer Polônia pequena. E durante muito tempo pertencia ao Império Austro-Húngaro. E meu pai, durante a guerra de 14, a Primeira Guerra Mundial, era o oficial, coronel do exército austríaco. A família do meu pai, todos eles se ocupavam com o comércio de madeiras e florestas. Tinham serrarias próprias. O meu avô, meus tios, como o meu pai, tinham florestas e serrarias próprias, além das arrendadas. O meu pai não era bom negociante, mas os meus tios eram negociantes respeitados. Além da própria produção, compravam madeira para exportação. Meu pai trabalhava na Polônia para um firma tcheca. A Tchecoslováquia pertencia ao Império Austro-Húngaro, que, depois da guerra, tornou-se também independente. Era a firma Schlesinger, uma firma que se ocupava com exportação de madeira. Mas ao mesmo tempo, ele manteve o seu próprio negócio, ampliando-o, comprando florestas e ampliando a serraria montada em Spass. A sua própria serraria. Eu e meu irmão nascemos nessa serraria, um pouco afastada da aldeia. Praticamente isolada do resto da aldeia. Da parte de minha mãe, o que eu posso contar é o seguinte: a descendência, a árvore genealógica da minha mãe, era de um grande "Imus", os Horovitz. Tinham pergaminhos da sua descendência, do Reino de David. A minha mãe tinha recebido da minha bisavó uma coroinha com a Estrela de David cravejada de brilhantes e de pérolas, com dois leões de cada lado da Estrela de David, também cravejados com brilhantes. Quando já tinha um ano e pouco, nós nos mudamos por interesse da firma onde meu pai trabalhava e meu pai tinha adquirido também lá florestas. Nós nos mudamos para uma cidade chamada Turka, que fica nos Cárpatos, nas montanhas cobertas de florestas.
P/1 – Mas a sua aldeia, Spass, ficava geograficamente perto de que cidade?
R – Spass pertencia ao município de Dolina e ao estado Stanislavov. A Polônia também se subdividia em regiões, como se fossem estados. Lemberg, em polonês Lwów, a capital daquele grupo de estados hoje está sob domínio russo, quer dizer, toda essa área está sob o domínio russo. A minha família é uma família religiosa, ortodoxa e naturalmente respeitava todas as leis e preceitos religiosos judaicos, todas as festividades se festejavam. Na cidade de Turka, nós ficamos praticamente dois anos e meio. Eu, com aproximadamente quatro anos de idade. Mudamo-nos para Rozniatow, onde moravam meus avós maternos. Guardei algumas lembranças que me marcaram na cidade de Turka. Já com a idade de treze anos, consegui ir sozinho até a casa do rabino da cidade, sem perguntar a ninguém onde ficava. Os meus parentes que me acompanharam ficaram admirados porque eu saí de Turka com menos de quatro anos de idade. Rozniatow era uma parte do planalto polonês. A razão da mudança foi ter o meu avô materno sofrido um acidente no inverno e ficou paralítico. Homem muito interessante, muito religioso, muito estudioso, um grande talmudista, tinha voz muito bonita, muito linda. Ele usava cadeira de rodas, assim mesmo. A grande sinagoga da cidade o convidava para rezar no Rosh Hashaná e Iom Kipur. Naturalmente lhe custava muito sacrifício para ficar em pé o tempo todo. E foi ele que começou a me introduzir e começou a me ensinar as rezas em hebraico e já com 5 anos de idade... Um ano depois da nossa vida em Rozniatow, eu já traduzia o Pentateuco do hebraico para o ídiche. Em casa só se falava em alemão.
P/1 – E o senhor tinha que idade nessa época?
R – Tinha atingido cinco anos. Com cinco anos eu já estava alfabetizado em hebraico, e com oito anos já tinha começado a estudar o Talmud-Guemara. Nesse intervalo meu avô morreu.
P/1 – Mas em casa só se falava alemão?
R – Em casa, só alemão. Estudava hebraico. O hebraico, traduzíamos para o ídiche no cheder e na Yeshiva. Aí comecei a aprender o ídiche, porque até a idade de cinco anos, mais ou menos, eu não sabia uma palavra sequer em ídiche, só falava alemão.
P/1 – E polonês?
R – Polonês, a gente falava o mínimo em casa, mas na escola pública, se falava como língua base o polonês. O ucraniano se usava muito no contato com os goim.
P/1 – Ah, é?
R – É, mais em alemão.
P/1 – Mas na rua não precisava falar...
R – Os judeus falavam mais o alemão do que o polonês, o ucraniano, ou até do ídiche, porque, sob o domínio do Império Austro-Húngaro, os judeus desta região viviam sob a plena liberdade, comparado com a vida que levavam sob o domínio russo ou alemão. Tinham suas escolas, as suas Yeshivas, as suas sinagogas. Vestiam-se como queriam. Ninguém os perturbava na sua vida espiritual-religiosa. Podiam manter todos os preceitos determinados pela religião. Podiam educar seus filhos a critério de cada família. Podiam ter terras, podiam trabalhar e explorar a agricultura, podiam ser artesãos, podiam praticar o comércio, podiam arrendar terras de outros, etc. Com o domínio polonês, começaram as restrições, o antissemitismo e até pogroms. Contudo, os judeus gostavam de viver um próximo ao outro, formando guetos, mas sob o governo do Imperador Franz Joseph, não tinham receio de se estabelecerem e formarem famílias em aldeias. Tinham aldeias que só morava uma única família judaica. Estas foram as razões que levaram os judeus a falarem alemão, se tornarem patriotas austríacos e servirem o Exército Austro-Húngaro com toda a coragem e patriotismo. Os judeus, sob o Império Austro-Húngaro, estudavam a história dos pais, mas sob o domínio polonês. Os judeus começaram a sentir o antissemitismo que antes não havia e começaram a sentir, então, perseguições, ao ponto que toda vez que eu saía de casa para ir à escola, para ir ao ginásio, para ir às escolas judaicas, estudar o hebraico, o Talmud, etc., tanto a minha avó como a minha mãe sempre me faziam a seguinte preleção: “Lembre-se que você é judeu, lembre-se que você é judeu.” Então, como judeu, o rapaz judeu não podia reagir, praticamente era proibido reagir a qualquer ofensa de um goim. Tanto ofensa física quanto ofensa moral. E, naturalmente, todos os jovens judeus se educavam e se criavam com complexo de medo. Chegou a tal ponto que eu tinha medo de rapazes muito menores do que eu, muito mais jovens. Rapazes goim, quando a gente passava na rua, eles começaram a gritar: “Zydzie Parszyne – judeu sarnento. Zydzie do Palistine – teu lugar é na Palestina, teu lugar não é aqui.” E a gente não reagia, jogavam pedras na gente, batiam na gente e a gente ficava sempre com aquele complexo, aquela fobia de ter medo de goim, evitar o goim e não reagir ao goim. Bom, toda essa covardia, naturalmente, todo esse medo sempre chega a um dia que a gente reage, e, sem saber de onde veio a coragem, aconteceu que eu reagi, reagi e vi que não era tão fraco, que eu podia bater no goim, tanto quanto o goim me batia. A reação veio de repente e de forma bem violenta, mas antes, para poder reagir, eu tive que apanhar muito, deixei me bater. Eu me recordo que eu era tão covarde, a gente ficava tão acovardado com o martelar de se lembrar que éramos judeus, que um dia meu tio chegou da Alemanha e me trouxe de presente um relógio, não tinha tido relógio até então. Para mim era um caríssimo presente. Eu tinha mais ou menos dez anos. Num sábado, ao voltar da sinagoga, na rua passou um rapazinho goim menor do que eu, me arrancou o relógio, eu não reagi, fiquei quieto. E, assim, muita coisa que a gente tinha, eles chegavam a exigir da gente, a gente entregava, medo, e na mente manter fixado aquilo que todo dia era aconselhado: não reagir, não reagir.
P/ – Vocês frequentavam as escolas judias?
R – Não, também polonesa.
P/1 – E na escola, como é que acontece?
R – Bom, na escola, isso eu vou chegar lá. Na escola polonesa, vamos dizer, primeiro ano, segundo ano, naturalmente, a gente ouvia tanto dos professores, toda hora, os goim podiam virar a escola de pernas para o ar, mas o "id", quando falava baixinho um para o outro, o professor sempre chegava e batia na gente e gritava que nosso lugar era na Palestina e não na Polônia. No terceiro ano primário, dentro da escola, formou-se o gueto. Nós éramos quarenta alunos numa classe.
P/1 – Isso em que cidade?
R – Na Polônia, em Rozniatow. E éramos sessenta numa classe, trinta moças, quarenta rapazes. Das trinta moças, mais ou menos a metade, cinquenta por cento, era de judias, e cinquenta por cento de católicos, e entre os quarenta rapazes, éramos cinco judeus, quer dizer, a predominância dos rapazes era goim. Nessa parte da Polônia, a população polonesa de polacos católicos, a elite, eles se chamavam de poloneses verdadeiros, era mais ou menos vinte por cento da população e governaram toda a região. A maior parte era de ucranianos e ortodoxos, e o diretor da escola era um ucraniano. Mas todos os outros professores eram poloneses católicos e, sem exceção, antissemitas. Ele também, naturalmente, sofria as consequências do ambiente polonês. Ele nasceu nesta região, com certeza era a décima geração nascida lá, mas era ele um ucraniano dentro da Polônia, um estrangeiro. Ele também sofria boicotes e não era aceito na sociedade polonesa, também era discriminado e sofria perseguições relativas, naturalmente não as perseguições dadas aos judeus. Toda essa inimizade que havia entre os vários grupos étnicos na nossa região, como os poloneses não podiam enfrentar os ucranianos, que eram em número maior, então, naturalmente, quem pagava sempre o pato era o judeu. O diretor era obrigado a concordar com a formação de guetos para os rapazes judeus em todas as salas de aula. Como era o gueto? As moças judias que constituíam, vamos dizer, cinquenta por cento da turma de moças, e era um grande número, então, elas não foram isoladas como os rapazes. Os colegas da escola, com exceção de dois ou três, não exigiram o isolamento dos rapazes, os professores obrigaram a direção da escola a isolar os judeus, formando um gueto. A sala de aula era formada por carteiras, em cada carteira, tinha um lugar para três alunos. As carteiras ficaram perpendiculares às janelas e paralelas ao quadro negro. Os cinco rapazes judeus da minha classe ficaram juntos numa carteira que ficava sob a janela e perpendicular ao quadro negro. Cinco numa carteira para três. A nossa carteira era transversal às outras carteiras.
P/1 – As moças também?
R – Não. As moças não tinham, porque eram em grande número, então as carteiras das moças ficavam em posição normal e igual das moças goim.
P/1 – Mas separadas, as judias...
R – Não, não, as moças judias sempre ficavam juntas em carteiras de só moças judias, mas nunca uma moça goim se sentara numa carteira onde ficava uma judia, eram carteiras com moças judias e carteiras com moças goim.
P/1 – Mas os próprios colegas faziam essa separação? Se não tivesse vindo nada da direção teria havido também isso?
R – Eu não acredito que houvesse essa separação. O que havia era um outro sistema de ação, vamos dizer, dos rapazes em relação aos rapazes judeus. Como em quase todo colégio, os alunos recebiam deveres para serem feitos em casa, deveres que tinham o peso da prova. Por exemplo, na Europa, na Polônia, não havia provas parciais. Os professores questionavam os alunos o ano inteiro, o tempo todo e acompanhava a vida escolar de cada aluno. Acompanhava os deveres e os deveres eram corrigidos pelos professores. Os rapazes que se aproveitavam dos alunos judeus, como se aproveitaram? Os alunos goim chegavam na escola sem o dever e exigiam que os judeus chegassem mais cedo e transcrevessem para os cadernos deles. Não pediram emprestado os nossos cadernos, mas exigiam que a gente passasse a limpo para os cadernos deles. E um dia me rebelei, me rebelei e me neguei a transcrever o dever para o colega. Este colega era um rapazinho baixinho, de sobrenome Wishinsky. Ele tinha um irmão que estava na cadeia como bandido. Pelo fato do seu irmão estar na cadeia como "herói-bandido”, ele tornou-se xerife na nossa classe. Ele batia em colegas goim duas vezes maiores do que ele, mas o respeitavam, imaginem nos judeus. Ele chegava na escola e me escolhia sempre, o pato para transcrever os deveres. Um dia me rebelei e disse que não transcreveria. Foi num dia de inverno, me rebelei, e me neguei a transcrever o dever. Ele aceitou como um desafio de um judeu, dizendo pra mim: “Quando nós sairmos da escola, você vai ver, você vai pagar por isso.” Aí fiquei pensando: “A quem vou apelar para me ajudar?” Entre os nossos cinco rapazes ídiche, tinha um rapaz, Nahemia Shapira, que era filho do padeiro, e como era filho do padeiro, também tinha mais comida, era o mais forte, lógico. Dois colegas e ambos filhos de funileiros. Um chamava-se Anchel Diamant, de família muito pobre, ele era muito fraco, ele ia à escola muitas vezes sem ter tomado café, sem ter comido nada em casa. O outro era Jacob Eckstein, também filho de funileiro, órfão de pai e tinha um irmão funileiro que andava muito de aldeia em aldeia para consertar panelas, telhados, etc., para receber um pão e alguns ovos em pagamento para levar para casa para o irmão e mãe viúva. O quarto era o Isi Koral, filho de um judeu considerado o mais rico da cidade. Por ser filho de pai rico, era tratado em casa a pão de ló, era filho único, os pais o tratavam com um cuidado como se fosse um eterno doente, só falava polonês. Tinha professor particular para aprender o hebraico. Ele não era tão frágil como se apresentava, sempre bem vestido, sempre bem penteado, etc., falando fino. Entre os colegas, a gente o julgava afeminado, considerado, mas pelo seu procedimento, pela suas atitudes, era, contra Wishinsky, o mais fraco. Quando me rebelei, esse caso Wishinsky comigo, então, apelei para o filho do padeiro, considerado o mais forte, para me acompanhar. O mais rico não adiantava. Resposta: pode contar comigo. Tocou o sino, foi o primeiro a pular pela janela e fugiu. Ai, fiquei sozinho, fiquei sozinho na escola...
P/1 – Que idade?
R – Eu tinha já dez anos a onze anos. A escola ficava numa elevação, ficava no alto. Acabou a aula, descemos, todos os rapazes goim da escola nos acompanharam. Os rapazes goim comunicaram uns aos outros: ''Olha, vai ter uma briga, hoje vamos pegar um judeu, vamos assistir o Wishinsky bater num judeu...” e não sei que mais, etc. e tal. Aí todos nos acompanharam, parecia até um enterro. Nenhum aluno judeu apareceu, medo! Complexo de medo formado na cabeça do jovem nos guetos, medo da minoria contra a maioria. O medo que levou milhões aos fornos crematórios, a grande maioria, sem um ato de resistência. Medo que alguns poucos ensinaram ao mundo que não existe quando a causa é justa. Ao lutarem contra a besta nazi-fascista, sem armas, conseguimos resistir e liquidar os milhares de nazistas. Sem medo, os heroicos defensores de Israel, infligindo derrotas às centenas de milhões de árabes. Chegando em baixo, na parte plana, as centenas de rapazes formaram um círculo. O Wishinsky tirou o casaco, jogou o casaco para o lado, jogou os livros para o outro lado. E o meu casaco, para mim, tinha muito valor, e os livros, mais ainda, porque não tinha dinheiro para comprar outros e nem possuía todos os livros, eu era obrigado a tomar emprestado para estudar. E descemos. Só uma colega, Chana Halpern, além de colega, era uma vizinha, veio assistir. Aproximou-se de mim, pegou meus livros, deixei o casaco no chão e naturalmente fui enfrentar a briga. Tão logo que tirei o casaco, o Wishinsky não me deu tempo, caiu em cima de mim, começou a me bater e bater. Eu, sem reagir, sem nada, apanhando muito. Eu parado, apanhando. Quando me deu um pontapé no osso do pé, e me doeu muito, minha raiva e ódio se manifestou e foi então que reagi. Reagi, comecei a bater de todas as maneiras, agarrei ele e caímos, eu em cima dele. Ele caiu com as costas em cima do gelo e deu o estalo das costas dele contra o gelo, me assustou, pensei que o tinha matado. Pensei que o tinha matado, mas não o matei, o que matei foi o meu medo, o meu complexo em enfrentar um goim. E quando nos levantamos, bati nele ainda mais. O grito de um rapaz que o diretor estava vindo acabou com a luta. Não veio ninguém. Não ficava bem um goim apanhar de um judeu. Contudo, os goim ficaram satisfeitos, pois vinguei eles também. A partir desse dia, ele chegava na escola e pedia por favor meu caderno emprestado e mandava um outro rapaz copiar para ele. E obrigava a todos que quisessem tomar emprestado o meu caderno a me pagarem um ‘x’ lá. Dois, três grossen, moeda polonesa. Tinha dias que eu recolhia dez, quinze, vinte grossen. Então a primeira coisa que fazia com esse dinheiro: ia comprar pão e cadernos para meus dois colegas, filhos de funileiros, que não tinham. Comprava pra dar a eles. Contudo, eu e a minha família passamos muitas vezes fome.
P/1 – O senhor falou que seu pai tinha comprado florestas, tinha serrarias. E como é que vocês passaram fome?
R – Sim, eu vou chegar lá, porque meu pai já estava no Brasil e nós ficamos praticamente sem o que comer.
P/1 – O seu pai veio para o Brasil em que ano?
R – Meu pai veio para o Brasil em 1942.
P/1 – E ele veio para fazer o que?
R – Eu estava dizendo que nós também não tínhamos o que comer. Assim mesmo, eu dividia com os outros. Somos três irmãos e tinha a minha mãe. Dois irmãos e uma irmã também. Minha irmã e a mais velha, e meu irmão e o mais novo. Eu sou o do meio. Eu disse que nós não tínhamos condições e antes tinha falado que nós tínhamos florestas etc. e tal. Quando nos mudamos de Turka para Rozniatow, a minha mãe, de todos os seus irmãos, era a única que ficou na Polônia. Então nós nos mudamos para Rozniatow mais para ajudar meus avós maternos. Todos os irmãos da minha mãe viviam na Alemanha. Os dois irmãos da minha mãe serviram o exército alemão durante a guerra, chegaram a oficiais do exército alemão, deixaram de ser austríacos, se tornando alemães. Sempre vinham à Polônia visitar os pais e sempre mandavam dinheiro para sustento dos pais. Meu avô faleceu, meu pai já tinha viajado para o Brasil. Quando meu pai chegou ao Brasil, desembarcou em Natal. Foi a Natal, porque tinha lá dois primos. Um era Jaime Horowitz, um grande talmudista, muito conhecido, escrevia muito e era um dos judeus mais cultos de Natal. Um dia me encontrei com o Senhor José Palatnik, hoje falecido, também de Natal, num bate papo informal. Perguntou admirado: “Então Jaime Horowitz era primo da tua mãe?” E era primo em primeiro grau. Porque o pai do Jaime Horowitz, Hersh Horowitz, e minha avó materna, Sura Horowitz Schnitzer, eram irmãos. O outro primo da minha mãe, primo em primeiro grau, era falecido, Moisés Fassberg. Por isso meu pai escolheu Natal, para lá se estabelecer. Inicialmente, como novo imigrante, deu um duro muito grande até que conseguiu ganhar alguma coisa. O início era arranjar um pequeno crédito e sair vendendo à prestação as mercadorias adquiridas. Era um clientelchik, um mascate.
P/1 – Mas ele veio para ganhar dinheiro?
R – Qual era a razão da saída da Polônia? Eu tinha comentado antes que nós tínhamos florestas, tínhamos serrarias e tínhamos muitas terras, e ainda mais que tínhamos joias que ainda eram da... Como diziam as pessoas da família, que eram da época do reino de David. Na mudança de Turka para Rozniatow, viajamos de trem e, naturalmente, todas as joias tinham sido guardadas num baú. Foi roubado o baú todo, com todas as joias, e aí ficamos sem as joias. Meu pai saiu da Polônia por uma razão muito simples: começou a crise mundial, a crise econômica mundial. Ele comprou florestas no auge da exportação de madeira, e comprou serrarias. E assumiu empréstimos bancários. Quando saiu da Polônia com objetivo de ganhar dinheiro, a crise ainda não tinha atingido o auge. Era viajar para o Brasil, ganhar dinheiro e voltar para a Polônia, pagar os compromissos e ampliar mais os negócios. Tão logo que ele desembarcou no Brasil, veio a grande crise, uma crise histórica, comentada até hoje.
P/1 – Então havia uma ideia generalizada de que no Brasil se ganhava muito dinheiro?
R – Não tinha a ideia de como ia ganhar dinheiro e em quê, mas havia uma ideia formada na Europa que nos países americanos se ganhava muito dinheiro. Naquela época, se viajava muito para a América, para o Novo Mundo, se viajava muito para a Argentina. O Brasil era um ilustre desconhecido e se julgava que o Brasil fosse uma região da Argentina, e os judeus argentinos, quando escreviam para casa, falaram de como estavam bem, etc. e tal, descobriram um país de liberdade, viver em liberdade, como judeus e ganhar dinheiro. O que um judeu podia procurar no mundo, senão um país para viver em liberdade, ganhar seu dinheiro, educar seus filhos, mandá-los para as melhores escolas, assistir os filhos receberem títulos de doutor? Mas quando chegaram, por exemplo, no Brasil, a realidade era outra, o dinheiro não se encontrava espalhado na rua, tinha que se dar um duro, lutar e trabalhar. Com meu pai aconteceu o mesmo, era lutar, e nós na Polônia. Depois de três anos no Brasil, em Natal, ele mudou-se para a Paraíba, depois para Maranhão, para Maceió sucessivamente e acabou se fixando em Pernambuco. Começou a ganhar muito dinheiro para a época, esquecendo-se praticamente da existência da família na Polônia. Deixou de escrever, deixou de mandar o pouco dinheiro que ele mandava, e, de outro lado, os bancos, os credores começaram a nos apertar, pagamento, pagamento, pagamento. O que aconteceu? Minha mãe, que não era negociante, que não conhecia os negócios, assim mesmo tinha que enfrentar a situação. Começou a vender as serrarias, as florestas, as terras. Tudo que nós tínhamos foi vendido para pagar as dívidas e por muito custo. Após muita luta foi possível pagar as dívidas e sair-se do zero a zero, tanto em dívida como também em pagamento. Aí ficamos sem nada, ficamos sem nada mesmo e ficamos sem comida e sem saber se o papai estava vivo. Inicialmente, nós comprávamos fiado na venda do Deutscher. E à medida que a dívida estava crescendo, e sem saber onde o papai estava, a gente escrevendo, mandando cartas para Natal sem receber resposta, então mamãe começou a diminuir as compras, comprando somente farinha para fabrico de pão caseiro.
P/1 – Sua mãe não trabalhava?
R – Não havia trabalho para senhoras e o Ihus não permitia fazer qualquer trabalho. Nas quartas feiras, era dia de feira e os camponeses iam à cidade vender os seus produtos, a mamãe comprava algumas dúzias de ovos e as revendia logo. Não podia especular, pois não tinha capital. O lucro era três a quatro ovos para os filhos. Em 1929, o inverno chegou a menos 33 graus celsius, muito frio, e todos os jornais e comentários eram que até então não havia inverno tão frio na Europa. Em casa, absolutamente nada. Sem um pedaço de lenha para aquecer a casa é muito pior, nada de comida.
P/1 – Morava quem? Os três irmãos e ...
R – Nós morávamos na casa que pertencia aos nossos avós. Mamãe e nós, os três irmãos.
P/1 – Seu avô já tinha falecido?
R – Meu avô já tinha falecido, mas minha avó ainda era viva. Ela ficava na parte da frente da casa, nós ficávamos na parte dos fundos da casa e no meio ficava a cozinha.
P/1 – Mas esses avós eram pais da...
R – Da minha mãe. E tinha os avós por parte de meu pai, que moravam em turma. A minha avó materna não faltava nada, absolutamente nada. Ela levantava de manhã, começava a rezar, ficava rezando até meio dia, depois entrava na cozinha, preparava o seu café com leite, pão com manteiga, comia, etc. e tal. E ela nem sabia que, na mesma casa, separados pela cozinha, vivia sua filha com seus netos sem ter alguma coisa em casa para comer, se tínhamos roupa para o inverno ou se a casa estava quente ou fria, nem nada. Por que? Porque mamãe evitava que ela entrasse na nossa parte da casa. Como que evitava? Ia procurá-la para ajudar a arrumar a parte da casa dela, e a minha avó não chegou a saber que a gente passava fome e frio. A preocupação da minha avó era rezar. Rezava na parte da manhã, almoçava, tirava um cochilo, depois acordava e rezava os salmos, a reza de Minha, da tarde; o Mariv, a reza da noite; e Kriat Shema Israel antes de dormir.
P/1 – E ela vivia do dinheiro…
R – Do dinheiro que recebia dos filhos e mandavam o bastante à avó, uma mulher com setenta e tantos anos. Na época, fazia cada semana um novo vestido. E nesse inverno de 1929, chegou um momento que nós tínhamos passado dias e dias sem botar nada na boca, nem tampouco um pouco de água quente na boca, então a gente passava dormindo, ficávamos dormindo para distrair da fome e do frio. Uma noite, eu não aguentei mais a situação, resolvi pegar alguma lenha para, pelo menos, esquentar um pouquinho de água, para tomar água quente. Minha avó tinha lenha para o inverno todo, eu não ia roubar da minha avó. Então o que eu fiz? Em frente da nossa casa tinha uma família, Berman, que tinha uma mansão muito grande, e a mansão era cercada por uma cerca de madeira. Então eu saí de noite, frio, tremendo, comecei a arrancar pedaços de sarrafos da cerca para poder levar para casa. E o quadro... Vejo até hoje. Tem muitos quadros que estão fixados na minha memória, como se tivessem acontecido comigo ontem. Olhem que saí de Turka com menos de quatro anos, quando voltei, muito mais tarde, acertei a casa do rabino. Fui ver os arcos de Turka por onde passava o trem, me lembrava do policial que avistava da janela da nossa casa, de quem eu tinha medo. São quadros que marcavam, e se fixavam na minha memória. Então esse quadro da cerca, que vou lhes narrar, está vivo na minha memória. Enquanto estava numa ponta da cerca arrancando os sarrafos, eu escuto barulho, porque no inverno se escuta o eco muito mais forte, eu escuto que alguém estava arrancando sarrafos da outra extremidade. Olho assim e vejo um velhinho, o Senhor Schindler, arrancando pedaços da cerca. Aí peguei, ajudei-o a juntar o feixe de sarrafos, fiz o feixe e ajudei ele a carregar para casa dele, depois fui carregar para minha casa o meu feixe. Roubamos sarrafos da cerca praticamente o resto do inverno, sempre ajudando o velhinho. Roubamos, não para aquecer a casa, e sim para esquentar um pouco de água. Uma prima da minha mãe, a Golda Kasner, veio fazer num sábado à tarde, no último mês de inverno, uma visita a gente. Chegou em casa, encontrou a gente deitado na cama, frio dentro de casa igual ao de fora, sem nada em casa para lhe oferecer além do frio. Então ela começou a perguntar o que estava acontecendo com... Falou com a mãe. A mamãe fez com que a gente não pedisse nada a nossa avó, então o que acontecia? Tanto como meu irmão e minha irmã, nós levantamos sempre a cortininha para ver o que minha avó está comendo e, naturalmente, nos subia a saliva. E a gente engolia a própria saliva, era a nossa alimentação. Mas pedir à avó, contar à avó que nós estamos passando necessidade, isso não, isso mamãe não permitia. A prima da minha mãe viu que em casa não tinha nada, ela era bem religiosa. E era sábado, ela foi para casa, buscou um saquinho de batata, pão, trouxe lenha, acendeu o fogo no sábado e cozinhou batatas quentes para nós comermos. Escreveu uma carta para um dos tios, um dos irmãos da minha mãe, para Herman Schnitzer, que morava em Wattenscheid, Alemanha, contando a nossa história. Então ele resolveu vir. Na primavera, ao tomarmos conhecimento da visita, surgiu um problema. Qual era problema? Como minha mãe ia receber o irmão da Alemanha, em casa? Tem que se oferecer alguma coisa ao tio que vem de tão longe. Então eu resolvi pedir ao homem que nós vendemos a serraria de Rozniatow, Zacharia Liberman, Presidente da Kehilah, para me dar serviço durante os dias de páscoa dos ucranianos – ortodoxos –, pelo menos alguns dias, para eu poder ganhar algum dinheiro para mamãe poder, naturalmente, fazer compras. E como os goim não trabalhavam, então ele tinha um serviço para acabar, ele me deu trabalho. Depois de três dias, ele me chamou e disse: “Olha aqui, você não dá para esse trabalho." Eu tinha onze anos, lógico que não dava para esse trabalho. “Esse trabalho não é para um judeu, esse trabalho é para um goim.” Mas tinha judeus trabalhando.
P/1 – Ele era judeu?
R – Ele era judeu, e tinha judeus também trabalhando. E eu tinha que carregar tábuas. Peguei uma tábua, eu numa ponta e o outro judeu na outra ponta. Era um judeu mais antigo, mais acostumado. E doía sempre quando botava uma tábua em cima do ombro, eu perguntava ao meu companheiro de trabalho: “Escuta, o teu ombro não dói?” Ele disse que não. “Mas por que não te dói e o meu ombro dói?” Ele disse: “Porque você tem um ossinho aqui, eu não tenho mais esse ossinho.” Aceitei, eu tenho um ossinho, aí comecei a me queixar a Deus, porque ele me castigou e me deu um ossinho, ao companheiro não. Não adiantava questionar Deus com isso, e no fim do terceiro dia de trabalho, e após as ponderações acima, o Senhor Liberman disse: “Toma aqui cinco zlotys.” Naquela época, cinco zlotys era muito dinheiro, correspondia a um dólar. Um dólar por três dias de trabalho e você pode levar lenha daqui quanto você puder carregar. Então fiz um feixe de lenha enorme, lógico, não podia carregar, aí comecei a arrastar, arrastar até fora da cerca da serraria e depois fui para casa, chamei meu irmão e minha irmã, todo mundo, fomos arrastando para chegar em casa com lenha. É bom lembrar que a serraria ficava aproximadamente a um quilômetro da nossa casa. E com esses cinco zlotys, minha mãe comprou, me lembro como se fosse hoje, uma galinha, comprou dois quilos de farinha para fazer pão e macarrão, comprou fermento, sal, seis ovos, um quilo de açúcar e batata e fez, então, o almoço para receber o irmão Herman, meu tio. O tio chegou da Alemanha e já sabia de toda a nossa situação, ele só não sabia que eu fui trabalhar três dias na serraria para poder ter galinha em casa para recebê-lo. E ele deu algum dinheiro à minha mãe, liquidou a nossa dívida com os Deutscher, deu dinheiro a minha avó e acertou com a minha mãe e a avó que irá comprar uma vaca leiteira. A casa da minha avó era muito grande e tinha uma área de terra para se plantar capim e hortaliça. A mamãe terá que tomar conta do estábulo, tratar da vaca. O leite produzido pertencia um dia à avó e outro à nós. O leite que mamãe tirava no dia dela, tinha que dar para comer, para os estudos dos filhos e vestir.
P/1 – Por que ela continuava comprando fiado se não sabia como iria pagar?
R – Tinha comprado fiado pensando no milagre de um dia o papai se lembrar da nossa existência e mandar algum dinheiro. E como o milagre não se deu, parou de comprar. Se não fosse a Golda, não sei o que aconteceria conosco. O Senhor Deutscher sempre passava em casa antes do tio vir da Alemanha e perguntava: “Por que que a senhora não vem comprar mais?” “Mas eu não posso, tenho medo de não poder pagar.” “Compra, não se incomoda. Deus é grande.” O Senhor Deutscher queria ficar, mas minha mãe não queria, tinha medo de não poder pagar. Como já tinha historiado antes, à vovó não faltava nada, tinha de tudo: casa aquecida, comida, dinheiro para distribuir entre os pobres, dinheiro para roupas novas, enfim, tudo, e ela não podia imaginar e nem lhe passava pela cabeça que na outra parte da casa morava sua filha com seus netos, passando fome e sentindo frio. A minha avó era uma pessoa muito boa, tenho certeza absoluta que se ela soubesse como nós estávamos passando, ela iria dividir conosco o último pedaço de pão. A minha avó tinha e levava uma vida metódica, despreocupada. Levantava de manhã, pelas oito horas, lavava-se, fazia a prece Mede Ani, tomava uma xícara de chá, rezava a reza vespertina, acabava normalmente ao meio dia, preparava o seu almoço na base de leite, rezava, depois recitava os salmos, tricotava um pouco, aí veio a reza matutina, preparava o jantar, constituído de café com leite, pão com manteiga e queijo branco caseiro. Preparava o jantar e começava a reza noturna. Jantava, conversava com os vizinhos um pouco e ia dormir. A vida metódica não lhe deu oportunidade de dar uma parada, pensar e analisar a vida da filha e dos netos, e isto, pode parecer irreal, mas é a pura verdade. A porta da cozinha, para nossa parte da casa, era de madeira e vidro. Os vidros do nosso lado tinham uma cortininha. Enquanto a avó preparava a sua comida, nós, as três crianças, ficávamos olhando pelas frestas e engolindo saliva. Quando a avó saía da cozinha, nós entrávamos na cozinha para aproveitar um pouquinho da quentura. É bom lembrar que a nós faltava tudo, menos as duas velas para mamãe acender na sexta feira, véspera de sábado.
P/1 – Mas como o senhor explica essa atitude da sua mãe e o orgulho? Como ela pode deixar os filhos passando fome, vendo que a mãe tem?
R – A resposta que devo dar a esta pergunta será dada pela própria explicação e ensinamento ministrado pela mamãe a nós. Quando a gente perguntava: “Por que a vovó tem tudo e nós não? Por que a vovó é rica e nós não temos nada?” A mamãe explicava: "Pirkei Avot." A ética dos pais explica: quem é rico? Aquele que se satisfaz com o que possui. “Olhar para aquele que tem, e inveja, inveja, e se rebelar contra o bom Deus, porque ele deu a alguém mais um pouco do que a outro. Pedir e também ter inveja e rebeldia, eu não quero vocês, meus filhos, que pequem contra Deus e Deus vos abençoará.” Esta é a resposta.
P/1 – Não é bem ídiche mame isso.
R – A nossa mãe estava pronta de dar a vida por nós. No Brasil, morando em Salvador, Bahia, também passamos fome. O que nós ganhávamos trabalhando clientela, à prestação, com dinheiro tomado, emprestado a juros, o que sobrava só dava para comprar farinha de mesa de mandioca, misturar com água e viver assim meses seguidos, difícil de conceber.
P/1 – Eu fico me perguntando… A sua avó, certamente ela não sentava na mesa com ela?
R – Tanto com nossa avó, quanto quando nosso avô vivia, como ela também, a nossa vida era separada da vida dela. A gente não comia, vamos dizer, na cozinha, nós tínhamos a parte dos fundos. De fato, ela não sabia o que nós sentíamos, ela só soube quando meu tio chegou. Porque a preocupação dela já foi descrita acima.
P/1 – Era rezar.
R – Não faltava nada a ela, se preocupava com Deus e rezar para Deus, pela família toda. Bom, vai ver que não rezou pela gente. Isso, naturalmente, eu estou contando a parte da vida, vamos dizer, econômica, financeira, a vida que a gente levava em casa. Mas eu queria contar muito da cidadezinha.
P/1 – Aí ela ficou com o leite?
R – Ficou com o leite, e do leite fazia-se a manteiga, vendia-se a manteiga, vendia-se também iogurte, e com a receita a gente se sustentava e dava para frequentar o cheder, onde estudava Tora e o Talmud. E do outro lado, também pagava-se o colégio polonês, contudo era estadual, mas sempre tinha despesas que tinham que ser pagas.
P/1 – E o cheder era pago?
R – Sim, era pago. A cidade, oitenta por cento da população da cidade em Rozniatow eram judeus e vinte por cento eram goim. Dos vinte por cento goim, devia ter uns dois por cento de poloneses, católicos o resto eram ucranianos ortodoxos. Mas os dois, três por cento de polonesas infernizavam a vida dos judeus e eles se consideravam a elite e donos da Polônia. Os judeus ucranianos eram considerados como donos da Polônia, minorias; os ucranianos eram considerados pelos poloneses como subprodutos. E os judeus eram considerados de sub do subproduto. O comércio da cidade ficava na mão de judeus, os poloneses viviam de arrendamento de terras, eram latifundiários ou funcionárias públicas. E os ucranianos trabalhavam no campo, eram camponeses.
P/1 – Havia discriminação entre os poloneses e ucranianos?
R – Muita. Os intelectuais ucranianos eram perseguidos, eram raros os ucranianos ocuparem postos governamentais de importância. O caso aqui do diretor que foi aceito por ser um grande intelectual, por isso ele foi aceito, de outra forma não seria aceito. Contudo, na escola se estudava também o ucraniano e um pouco de literatura ucraniana. Como donos de áreas enormes de terra, eles arrendavam para os camponeses ucranianos, e, como a maioria dos poloneses não precisavam trabalhar, viviam passeando, jogando tênis, cartas, farras e festas, etc., etc. A cidadezinha era formada por uma praça principal, e ao redor da praça, os judeus mais abandonados estabeleceram-se com o seu comércio e moradia. Os poloneses moravam num bairro isolado, considerado aristocrático e chique, e, de fato, era o bairro chique em comparação com o resto. Os judeus pobres moravam junto ao rio, numa pobreza tremenda, pior do que os nossos favelados no Brasil. Na cidade, perto do centro, tinha três sinagogas grandes e cada tipo de sinagoga tinha um nome separado. Tinha o Beit Hamikdash, que era frequentado pelos judeus mais religiosos, mais radicais, os fanáticos. Depois tinha o Beit HaKnesset, que era frequentado por profissionais artesanais: funileiros, alfaiates, sapateiros, etc. E tinha o Shil, frequentado pelos modernos, que liam jornais, não usavam capotas e nem o shtreimel, eram: advogados, médico, dentistas, professores de literatura, ídiche e hebraico, os artistas teatrais. Os sionistas também frequentavam Die Grosse Shil, A Grande Sinagoga, que era a mais bonita e a maior. E depois tinham umas quatro ou cinco sinagogazinhas pequenas. Além de estudar no ginásio, eu estudava na Yeshiva Ktana, pequeno seminário, estudava no Beit Hamikdash. Nessa Beit Hamikdash, os judeus, grandes talmudistas, se reuniam para estudar o que no mundo inteiro se estudava, a mesma página do Talmud, chamado de Daf Haiom. A página do dia, eu ia também estudar. O Daf Haiom, eu era o único menino entre os judeus velhos de barba e peito grisalhos. Eu era o único jovem, de onze anos e doze anos. A consequência era a seguinte: os pais chegavam em casa, questionavam os filhos. “O garoto Samuel, o pai dele não está aí, não tem praticamente pai, ninguém o está obrigando e ele estuda diariamente e vocês, que têm tudo, não lhes falta nada, não estudam.” Muitos apanharam muito dos pais em casa. Chegou ao ponto que colegas meus começavam a ficar com raiva e ódio de mim, me boicotando, porque eu ia estudar no Beit Hamikdash. Eu ia estudar, porque não tinha condições de pagar professores e escolas, eu tinha que aprender o máximo sem gastar, eu tinha consciência da nossa situação, eu tinha que evitar de pagar. E tive que caminhar assim, levar a vida assim mesmo. Quando meu tio Herman veio à Polônia em visita e soube da nossa situação, prometeu levar um ano ou dois anos depois a minha irmã Lea para a Alemanha, naturalmente, para folgar a situação em casa. Na Alemanha... Iria ver como fazer para levar a minha irmã, ano 1930. A Lea pintava muito bem, estudava muito literatura polonesa, alemã, hebraica e ídiche, conhecia muito a literatura alemã, porque em casa se falava alemão. Ela sabia praticamente de cor todas as obras de Schiller, do Goethe e de muitos outros.
P/1 – Como é que ela arranjava esses livros?
R – Em Rozniatow, tinha uma grande biblioteca da época do Império Austro-Húngaro, que além dos livros alemães, tinha poloneses, hebraicos, ídiche, ucranianos, franceses e russos. A Lea dominava perfeitamente o alemão, a gramática alemã e o alemão literário profundo. E meu tio resolveu levá-la para continuar estudando na Alemanha, ela tinha dezesseis anos, e para facilitar mais a nossa via econômica na Polônia.
P/1 – Ele tinha uma boa vida na Alemanha, então?
R – Ele tinha uma grande loja de calçados na Alemanha e estava muito bem. Mamãe tinha, na Alemanha, quatro irmãos e duas irmãs. Entre os irmãos da minha mãe, ele era, talvez, o mais pobre, mas um coração rico que não tinha tamanho. Dois filhos que vivem no Canadá, eu estive há pouco com eles, sempre estou com eles, e comentei todos os fatos e disse a eles que talvez a nossa sobrevivência devemos a ele, ao tio Herman. Ele nos mandava pacotes de roupa e sempre, antes das festas judaicas, ele mandava também dinheiro para nós. E com isso nós vivíamos.
P/1 – E o dia de leite da sua avó, ela não consumia o leite todo da vaca.
R – Sim.
P/1 – Sua mãe não aproveitava também esse leite?
R – Não, era dela, ela vendia e o dinheiro era dela, sagrado. Eu estou explicando a você, é difícil mesmo conceber, como a sua pergunta foi há pouco, ídiche mame deixar os filhos sofrer, etc. e tal. Existe uma expressão talmúdica em hebraico, Sameach Be Helko, que a pessoa tem que estar satisfeita com aquilo que tem. E de onde vem essa expressão? Porque a gente faz a seguinte pergunta: quem é rico? O Talmud pergunta quem é rico, então ele responde: rico, Osher, chama-se em hebraico, é aquele que se satisfaz com tudo que tem. E, nesse princípio, a minha mãe, como religiosa, então, ela vivia nesse princípio e na esperança de que Deus vai mudar um dia a situação. E nessa situação ela também criou a gente e nos educou, nos encaminhou dessa forma. Acabou que nós não reclamamos. Eu tinha um primo, Max Edelstein, filho do irmão do meu pai, Samuel... O meu nome é Samuel, porque os judeus dão o nome em homenagem e em memória dos falecidos. O meu nome, Samuel, é em memória do tio Samuel, que morreu na primeira Guerra Mundial. Eu ficava com inveja do Max, porque Max pegava moedas e tilintava umas moedas no bolso. Eu pensei que isso fosse a maior riqueza do mundo, a maior fortuna, não imaginava quanto valiam as moedas, quanto dinheiro tinha, quanto que tinha que ter um homem para ser rico. Umas moedinhas, para mim, era fortuna. Eu me recordo quando o meu avô materno faleceu, meu avô faleceu no inverno, e nós estávamos nessa fase já, pobres. E estávamos dormindo e de repente ouvimos a mãe começar a chorar alto, a gritar e ficamos assustados. Levantamos da cama e entramos no quarto de onde vinha os gritos, no quarto do meu avô. E tinha uma mesa redonda e nos puseram em cima da mesa, usava uma camisola comprida de dormir, queríamos saber do que que se tratava e porquê o choro da mamãe. Meu avô ainda estava vivo. Então ele chamou a mamãe: ''Dina, venha cá, pega aqui cinco zlotys e pague a Shlomo Jungerman, não quero deixar o mundo.” Inverno, frio e ele estava praticamente nas últimas. Minha mãe foi pagar os cinco zlotys. Foi cumprir o último desejo do meu avô. Depois nos chamou e queria se despedir dos netos, queria abençoar-nos. Aproximamos da cama, abraçou a minha irmã mais velha, abençoou, desejou muitas felicidades, etc., etc., etc. Depois chegou a minha vez, era o segundo, pegou com as duas mãos e as colocou em cima da minha cabeça, falou, pedindo a Deus, para que o neto dele, Samuel, Shmuel, filho de Moshe, meu pai, jamais seja rico para não esquecer de Ti Deus e da humanidade. Fiquei revoltado. Como é que meu avô pode desejar a um neto de não ser rico, se os sonhos, se a minha visão do mundo era riqueza, se o meu pai saiu da Polônia para ganhar dinheiro, como que eu não devo ser rico? Questionei as bênçãos do meu avô até depois da minha vinda ao Brasil, já com idade de quinze anos eu questionava as bênçãos do meu avô. Mas no dia que eu comecei a trabalhar e conheci a luta pela vida, me conscientizei que ele tinha razão, até então eu era praticamente inimigo do meu avô. “Antes dele morrer me desejar uma coisa dessas, como?” Eu que estava com inveja do meu primo que tilintava com as moedas no bolso. Outro quadro da nossa vida, se não tínhamos o que comer, não tínhamos para comprar doces, bombons, chocolate e nem balas, tudo para nós era um luxo inacessível. Crianças da nossa idade, ou mais velhas, comendo bombons, balas. E a gente, nada. Nós tínhamos uma vontade louca de também chupar umas balas. Como satisfazer a nossa vontade? Tinha uma loja que vendia balas, chocolates, resolvemos ir falar com o dono da loja e inventamos a seguinte mentira: “O fulano de tal pediu para o senhor mandar para ele duzentas e cinquenta gramas de balas.” Roubamos duzentas e cinquenta gramas de balas para satisfazer a nossa vontade de crianças, ao vermos as crianças comerem balas, comendo chocolate, comendo laranja, que luxo. O avô, quando estava paralítico, comia laranja por prescrição médica. Aí nós pegávamos a casca e comíamos a casca.
P/1 – E o senhor fez Bar Mitzvah?
R – Na Polônia. Fiz Bar Mitzvah em Rozniatow.
P/1 – Lá não era... Era geral isso? Lá não se fazia uma festa, filho de judeu rico, como era?
R – Voltaremos para a ida da minha irmã à Alemanha.
P/1 – Em que ano?
R – Isso foi em 1931, ela foi para a Alemanha. Foi para a Alemanha, começou a estudar e morar na casa de uma tia.
P/1 – Onde na Alemanha?
R – Na cidade de Essen. Nós tínhamos uma tia que morava em Essen e um tio em Bochum, um tio em Wattenscheid, esse tio que tinha coração maior do que o mundo, ajudava todo mundo, não somente a gente, mas todo mundo que viesse pedir alguma coisa. E tinha uma tia na Holanda, em Maastricht. Veio Hitler, tomou o poder e nós continuávamos sem saber onde vivia papai e se estava vivo.
P/1 – E não soube mais nada?
R – Nada, o maior problema era isso. E os primos da minha mãe, o Jaime Horowitz, ou o Moisés Fassberg, respondiam que não sabiam.
P/1 – Que estavam aqui.
R – Que estavam aqui, em Natal. E eu tenho certeza que eles sabiam, mas sempre respondiam que não sabiam por motivos outros que, naturalmente, em outra entrevista nós vamos chegar a falar.
P/1 – E a família do seu pai, não tinha ninguém que pudesse dar uma informação?
R – Meu pai, pelo lado, não tinha parentes no Brasil e não sabiam de nada. Meu pai não mantinha correspondência nem com os pais dele, meus avós, nem com os irmãos. Meu pai tinha dois irmãos vivos, o terceiro irmão morreu na guerra. Um irmão que ficou em Spass, o Shlomo Edelstein, ele comprou a parte da serraria que era do meu pai, eles eram sócios. Outro irmão, Nuta Edelstein, morava em Rozlucz, uma vila de veraneio e esporte perto de Turka, nos Cárpatos. Era muito rico, não tinha filhos. O tio Shlomo ficou em Spass, tinha onze filhos ou doze filhos, todos morreram na guerra fuzilados pelos nazistas, com exceção do mais velho, Jakob, que escapou e morreu agora há pouco em Israel. Foi também levado para ser fuzilado, juntamente com o pai, a mãe, a mulher dele, os filhos e irmãos e foi o único que se jogou antes da bala o atingir, no chão, na neve. Esperou fingindo-se de morto a noite para fugir. Passou o resto da guerra como guerrilheiro, com Partizan, lutando contra os nazistas.
P/1 – Isso na Polônia?
R – Sim, na Polônia.
P/1 – Senhor Samuel, eu queria saber uma coisa. Por que toda a família da sua mãe estava na Alemanha? Se emigrava para a Alemanha como se emigrava para os Estados Unidos para ganhar mais dinheiro, ou eles tinham... Por que eles foram para a Alemanha? Era normal isso?
R – Era normal, porque todos aqueles judeus eram... Talvez um pouco de esnobe, talvez por ficar perto da Polônia, ou acreditarem que iam viver na mesma liberdade que viviam sob o Império Austro-Húngaro, para dizer a verdade, a realidade fica difícil. Talvez porque em casa se falava alemão. Os meus tios, por exemplo, como muitos outros judeus antes da Guerra Mundial, tinham emigrado para a Alemanha, outros se mudaram para Viena, é o caso de muitos parentes meus que foram morar, outros estudar, em Viena. Depois da guerra, quando o governo polonês decretou o "número clausus", limitando para os jovens judeus o ingresso nas universidades, num quantum muito reduzido, os jovens foram estudar nas universidades de Viena-Áustria, de Praga-Tchecoslováquia, de Roma-Itália, Bruxelas-Bélgica, Amsterdã-Holanda, etc.
P/1 – A Alemanha não vetava a entrada de...
R – Não, só começou a vetar depois que Hitler surgiu.
P/1 – Não havia problema?
R – Não havia problema. Até então, não havia. O judaísmo, o culto judaico e a literatura e a parte de Talmud, onde mais se estudou e mais se aprofundou foi na Alemanha, principalmente em Frankfurt. Frankfurt era chamada Jerusalém da Alemanha. Então a tendência era de ir para onde o judeu poderia viver cultuando seus princípios históricos e de fé. Até então, o judeu era considerado um nômade. O judeu sempre procurava viver onde pudesse sobreviver. A parte econômica e financeira era secundária, ao judeu interessava mais a parte espiritual, onde pudesse sobreviver espiritualmente. E sobreviver como judeu e não ter medo por ser judeu. Os judeus sempre procuraram países onde pudessem viver em liberdade como judeus, mas sempre ficaram com um pé atrás, sempre com a bengala e o saco nas costas para fugir caso a liberdade lhes fosse restringida. Vejamos a história do escritor e poeta Emil Ludwig. O sobrenome do pai não era Ludwig, era Cohen, chamava-se Moshe Cohen ou Jacob Cohen, não me recordo exatamente. Quando o filho nasceu e com receio de que talvez um dia pudesse sofrer perseguições antissemitas, deu-lhe um nome e sobrenome cem por cento alemão. Emil Ludwig. O pai morreu como judeu sem sofrer perseguições, e o filho, Emil Ludwig, com todo o seu nome cem por cento alemão, foi obrigado por Hitler a refugiar-se nos Estados Unidos. A máscara de um nome que não o caracterizasse como judeu não o escondeu. Mas assim mesmo, a tendência é procurar sempre onde pudesse sobreviver.
P/1 – Voltemos para sua irmã na Alemanha.
P/2 – Ela continuou estudando?
R – Ela não conseguiu prosseguir com os estudos. Os tios e as tias queriam mais que ela fosse uma ama seca dos filhos. E como Hitler assumiu o poder ameaçando os judeus, e principalmente os judeus que imigraram depois da guerra, de mandá-los de volta à terra de origem... E meu tio Herman conheceu um médico brasileiro que estagiava na Alemanha, cliente dele, que ia sempre fazer compras na loja, e sempre acompanhado pela sua esposa brasileira. Conversando, o meu tio lhe contou que tinha um cunhado no Brasil e a sobrinha vivia na Alemanha, que do cunhado não se sabe o que aconteceu com ele, não se sabe se está vivo, se está morto, e que gostaria que a sobrinha fosse até o Brasil para verificar o paradeiro do pai. Nisso, meu tio falou a respeito com a minha irmã e escreveu uma carta para nós a Rozniatow contando da possibilidade de mandar Lea para o Brasil com o casal, que irá comprar as passagens de navio de ida e volta. Nesse intervalo, aconteceu Die Krystal Nacht, quando os nazistas destruíram sinagogas, lojas e queimaram livros que não fossem escritos por nazistas. A mamãe consentiu e a Lea viajou com o casal, com o navio Siqueira Campos, que aportou na cidade de Natal para ver se descobria o papai. Ela veio e descobriu o papai.
P/1 – Descobriu onde?
R – Ele estava em Natal, tinha voltado para a cidade de Natal. Mas isso é outra história, um pouco trágico e triste. Após descobrir o papai, a minha irmã apressou a escrever cartas e papai voltou a escrever. Eu escrevi, em resposta ao meu pai, cartas muito duras, criticando o procedimento dele para conosco e a miséria que passamos. Me recordo da carta que escrevi, o começo era assim: “Pai, antes de começar a te falar, quero lhe dizer; se os céus e a terra se transformassem em papel, os mares em tinta, os galhos e as árvores em penas, não daria para descrever o que passamos quando você se esqueceu de nós.”
P/1 – A Lea ficou morando com ele?
R – Não, ficou na casa do Moisés Fassberg. Depois se mudaram de Natal, porque não convinha socialmente ficar em Natal, e foram morar na Bahia.
P/1 – Junto com ele?
R – Junto com ele, numa pensão ídiche que pertencia à família Gandelman. A Lea dominou totalmente o português, foi trabalhar na Bahia, no Instituto Nina Rodrigues, Instituto Médico Legal, como secretária do Professor Estácio de Lima, diretor do Instituto, e ele trabalhando na clientela. Após quase dois anos de trabalho, conseguiu juntar dinheiro para duas passagens: para minha mãe e para meu irmão. Para mim, não.
P/1 – Por que?
R – Não tinha dinheiro para mais, e meu irmão é menor.
P/1 – Tem que vir com a mãe.
R – O meu irmão, Elkune, é mais novo do que eu um ano e meio. Para deixar um, tinha que deixar o filho mais velho, não ia deixar o filho menor. Ele mandou essas duas passagens e quando elas chegaram na Polônia, mamãe disse que não viajaria me deixando na Polônia antissemita, com a guerra entre Itália e Abissínia. O Rosh Yeshiva, quer dizer, o reitor de Yeshiva, insistia com a mamãe que me deixasse e que ele e o rabino iriam tomar conta de mim. E a mamãe sempre insistindo que não me deixará em hipótese alguma, prefere não viajar a deixar o filho sozinho na Polônia. O reitor disse para mamãe: “Você vai cortar a carreira dele, porque ele, com dezoito anos, pode se tornar o rabino mais jovem da Polônia.” Ou me mandariam estudar em Jerusalém, na Yeshiva do rabino Rav Kook. Minha mãe sempre com a mesma resposta: sem mim, ela não viaja. Se é assim, então como é que vai se arranjar uma passagem? Meu tio Josef, muito rico, foi levado para o campo de concentração em Dachau, bateram muito nele, sofreu muito e conseguiu fugir para a Polônia e veio parar na casa da minha avó.
P/1 – Foi em que ano?
R – Já isso era em 35, 35 para 36. Eu me recordo que ele chegou lá com as costas com as marcas roxas, ainda sangrando, depois que já tinha passado muito tempo no campo de concentração. Ele apanhava tanto, até sangrar, e depois os alemães jogavam pimenta e sal em cima. Então minha mãe e todo mundo fazia massagens, passando pomadas e fazendo tudo para ele melhorar. Ele era rico e saiu também muito rico, porque ele tinha transferido muito dinheiro antes, da Alemanha. Mas comprar passagem pra mim, não. “Deixa ele ir para Israel”, aconselhava à minha mãe às custas da Yeshiva, e minha mãe: “Não.” Sem mim, ela não viaja, e acabou. Aí a mamãe escreveu uma carta para o tio Herman da Alemanha contando tudo. Nós sabíamos que os nazistas lhe tomaram tudo, a mamãe não esperava ajuda dele, mas sim do outro tio, Berel. O tio Herman respondeu que não tinha condições de comprar uma passagem inteira, mas ele ia mandar meia passagem, porque só tinha dinheiro para meia passagem, faltava a outra metade. Aí nós escrevemos para o Brasil que a mamãe não viajaria com o meu irmão sem mim e que já tinha dinheiro para meia passagem, mas faltava a outra metade. A Sociedade Emigranten Schultz Relief aqui no Brasil tinha defesa dos imigrantes. A minha irmã se dirigiu a eles da Bahia contando a história toda e o Relief pagou a outra metade da passagem, assim vim para o Brasil.
P/1 – E há quanto tempo vocês não viam seu pai?
R – É fácil, de 24 até 35, onze anos. Eu me recordava um homem jovem e forte, encontramos um homem envelhecido e muito acabado para a idade dele, de 39 anos.
P/1 – Mas o que tinha acontecido? Por que ele sumiu?
R – Bom, você quer saber já, eu ia deixar para contar na segunda parte, mas desde que insiste, eu posso contar. A história exata é essa: ele começou a ganhar muito dinheiro… Ganhando-se dinheiro, arranja-se muitos "amigos". Começou a se especializar em hotéis, comprando hotéis, tornou-se um dos maiores hoteleiros do Norte do Brasil. Bom, isso foi na fase de 28 a 31, sendo preciso. E cada vez mais rico e rico em "amigos". Os "amigos" o levaram aos cassinos, lhe arranjaram mulheres. Então, para que ele vai precisar lembrar-se da mulher e filhos que deixou na Polônia? Com dinheiro é tão fácil arranjar mulheres, jogo e bebida com os "amigos", quantas quisesse, foi isso que o levou a se esquecer da família. Esqueceu e esqueceu de tudo, porque convinha esquecer. Dinheiro é muito difícil de ganhar, perder é muito fácil e ele perdeu tudo. Quando perdeu tudo foi que ele viu que não tinha amigos, que não tinha mulheres, que não tinha nada. Sem ter mais nada, ele voltou a Natal e foi nessa época que a minha irmã chegou. Ai vocês vão ver porque eu disse que é trágico, muito triste... E juntamente com a família de brasileiros, o médico e a esposa que estiveram na Alemanha, começaram a procurar judeus e encontraram, o que levou a Lea a casa do primo, Fassberg, pretendendo achar papai, que já estava em Natal, na volta. A minha irmã e o médico e a esposa se despediram, porque o navio Siqueira Campos ia zarpar para o Rio de Janeiro, ele não era do Rio. No segundo dia, a minha irmã foi ao encontro de papai, levada por uma parenta. Encontrou papai deitado num banco de jardim, totalmente bêbado, como qualquer mendigo, roupa rasgada, amarrada com barbante, o sapato todo esburacado. O choque da minha irmã é indescritível. Por isso ele saiu de Natal e foi para o Sul, conseguindo chegar até a Bahia com o dinheiro conseguido com a venda da passagem de volta da Lea à Alemanha. O objetivo era conseguir um dia chegar ao Rio de Janeiro ou São Paulo. Como não deu, então, ficou na Bahia.
P/1 – E ele fazia esse trabalho com clientela em Natal?
R – Não, ele, lá, não trabalhava. Ele, como mendigo, não trabalhava. Depois que chegou a Bahia, começou a trabalhar clientela. Para hoje, chega, né?
P/1 – Quer parar?
R – Vamos parar um pouco e voltar à Polônia. Na cidade de Rozniatow, onde praticamente passei minha juventude até a idade de quinze anos, era por excelência uma cidade judaica. Oitenta por cento da população era composta de judeus e judeus religiosos. Basta dizer que, ao todo, de comunistas, por exemplo, haviam dois judeus e um católico. E, naturalmente, sempre nas vésperas de maio, para evitar manifestações, eram presos, e os pessoal ficava na janela para ouví-los cantar a noite inteira a Internacional. O Partido ainda não se podia chamar de Partido, mas de comunistas. Tinha várias organizações sionistas e uma organização radical religiosa, Agudat Israel. A predominância era dos sionistas. Toda juventude praticamente pertencia a entidades sionistas. E das entidades sionistas, por ser uma cidade de judeus religiosos, a Bnei Akiva predominava, bem como o Mizrachi e o Tzeirei Mizrach. O Bnei Akiva, composto de jovens de até dezoito anos de idade, era considerado uma versão escoteira dentro do movimento sionista religioso. Ao atingir dezoito anos, passava para o Tzeirei Mizrachi e ia para o Hachshará, onde era preparado para emigrar, naquela época, à Palestina, hoje Israel. Os velhos do Mizrachi eram os patrocinadores que financiavam, praticamente, os movimentos jovens. Eu também, como estudava numa Yeshiva e era religioso, na minha casa também toda a educação era religiosa, então eu me filiei a organização Bnei Akiva. Eu me recordo que quando começou, iniciou-se a formar o Beitar, jovens sionistas revisionistas. A razão de usar o nome Beitar era porque o líder revisionista, Yossef Trumpeldor, tombou na luta, em 1924, ao defender o povoado Beitar de Israel. Como homenagem aos defensores de Beitar, os jovens revisionistas que seguiam a orientação de Jabotinsky denominaram movimento de Beitar Shamir, que dirige os revisionistas, que substitui Menachem Begin, que, por sua vez, foi substituído por Zeev Jabotinsky. Por usarem camisas marrons iguais aos nazistas e por serem radicais, foram chamados de fascistas e não faziam parte da Organização Sionista Mundial até há pouco tempo. Como a ideologia dos revisionistas e da direita corroborou para serem classificados de reacionárias. Eu me recordo que quando começou a se organizar em Rozniatow o movimento revisionista jovem, foram pedir ao Bnei Akiva para me emprestarem, eu então com treze anos, para lhes dar orientação de organização e escotismo. Com isso, comecei a criar inveja entre os meus amigos, meus colegas e um dos mais invejosos daquela época e o meu irmão. Eu liderava também a Bnei Akiva. O Beitar, acabei liderando durante um ano. Na minha casa, como em todas as casas sionistas e principalmente na casa da minha avó, ela era rica, havia caixinhas: azul e branco do Keren Kayemet e a caixinha Rabi Meir Baal HaNes. O dinheiro que as mães depositavam nas caixinhas um pouco antes de acender as velas às sextas-feiras, o do Keren Kayemet se destinava a aquisição de terras de Eretz Israel, e o dinheiro da caixinha de Rabi Meir Baal HaNes se destinava para o sustento dos velhos e pobres e os que se dedicavam em Israel ao estudo da torá. Em Tveria, existe o centro do movimento de Rabi Meir Baal HaNes, o rabino Meir Baal HaNes morou e faleceu em Tveria. E existia a terceira caixinha, a caixinha da Yeshiva de Lublin, que era uma Yeshiva modelo para o mundo inteiro na época, sob todos os pontos de vista: de higiene, de ensino, de disciplina. O prédio da Yeshiva era moderno, cada estudante tinha o seu quarto separado. Durante dez anos, de 1929 a 39, era frequentado por estudantes do mundo inteiro que se tornaram grandes talmudistas. E todo o estudante sonhava em um dia entrar e estudar na Yeshiva Chacmat Lublin. Quando Rosh Yeshiva, o reitor da Yeshiva, quando Rav Meir Shapiro faleceu, e antes de falecer, ele pediu aos estudantes que não chorassem a morte dele e não usassem luto, que se fizesse uma grande festa, a tal ponto que, durante o enterro, todos os estudantes que acompanhavam ficaram cantando canções chassídicas e salmos, na volta do enterro fizeram uma grande festa na Yeshiva e uma grande recepção para os rabinos, que vieram do mundo inteiro para acompanhar o enterro e se despedir do grande mestre. A razão desse pedido do dirigente da Yeshiva é simples, porque ele se baseou numa frase talmúdica que as almas, quando são mandadas para a Terra para se encarnarem num ser, não querem. Com muito esforço, consegue vencer a alma para ir a Terra. Em hebraico, Baal Korcha, com muito esforço, com muita luta. A vida toda é uma continuação do nascimento e, naturalmente, a morte é o fim de uma luta. Foi a razão do reitor Meier Shapira exigir que se festejasse a morte dele: era o fim da luta para a alma na Terra e a volta para o céu. O sionismo, até a criação do Estado de Israel, era combatido pela Agudat Israel, movimento radical que admitia a volta a Israel, ou melhor, Eretz Israel, com a vinda do Messias. Combatiam todo e qualquer movimento sionista, até os sionistas religiosos, o Mizrachi. Hoje nós temos a Neturei Karta em Israel e no mundo, que também combate o movimento sionista. Combatem o Governo de Israel, são inimigos de Israel e amigos da OLP. A Agudat Israel, que começaram aceitar o movimento sionista à custa de seis milhões depois da guerra dos nosso irmãos, aceitam Israel, mas continuam esperando a vinda do Messias e fazem parte até do Knesset. Uma parte da antiga Agudat Israel, os mais radicais entre os radicais, formaram a Neturei Karta, são os verdadeiros terroristas e aplaudem qualquer ação terrorista dos palestinos, e não aceitam o governo israelense. Dirond, vou falar de outras sinagogas também, havia também a Gordonia, que hoje é um movimento Dror. Jovens do Mapai, Hashomer Hatzair, movimento jovem do Mapam, cada jovem dos movimentos juvenis, ao atingir dezoito anos, era obrigado a fazer Hachshará e se preparar para emigrar, isto é, esperar que o governo inglês lhe concedesse um certificado de emigração. De outra forma, era imigração ilegal para Israel. Os maiores grupos de elementos que saiam da Polônia para Israel eram do Mapai, socialistas Mizrachi religiosos e do Shomer Hatzair, Mapam esquerda. Dentro do movimento sionista, Shomer Hartzair era a extrema esquerda. E o Mizrachi é um pouquinho mais para a direita do que propriamente centro. E tinham sionistas gerais-centro. Porque havia também nas cidadezinhas da Polônia.
P/1 – Me diz uma coisa. Isso aqui é de ordem geral. Esses nomes continuam existindo. E aqui no Brasil não eram... Qual a origem da escolha desses nomes que havia? Porque era um partido em Israel, mas em um partido, partido em Israel, acabou escolhendo... Qual a origem e a história desses movimentos?
R – Bom, primeiro é o seguinte, por exemplo, eu falei Gordonia, era em homenagem a Itzhak Leib Gordon, um dos primeiros dos sionismo em Israel, porque emigrou para Israel, um grande filósofo, um grande escritor, que pertencia ao movimento, vamos chamar assim, da Segunda Internacional Socialista. Porque o Mapai pertence a Segunda Internacional Socialista. Então eles intitularam, em homenagem a Gordon, a chamar-se Gordonia. O Bnei Akiva, Bnei são filhos de Reb Akiva. Porque na nossa época, da destruição do segundo templo, Reb Akiva com seus discípulos enfrentaram os romanos... Com o apontador. Quando se lê a Torá, então, se usa uma mão que acompanha a leitura, apontador. Os estudantes de Talmud, para poderem acompanhar os estudos de Guemará, usavam um apontador. Os alunos do Rabi Akiva enfrentaram os romanos com os apontadores, única arma que tinham, e foram massacrados. O movimento juvenil sionista religioso Bnei Akiva é em homenagem ao Rabi Akiva. O Shomer Hatzair e o sentinela jovem, quer dizer, o nome que não faz homenagens especiais a algo histórico ou ao passado, mas faz homenagem aqueles jovens que enfrentaram os árabes defendendo kibutzim em Israel e passaram noites tomando conta, em hebraico, shomer, quer dizer, sentinela, guarda, faziam a guarda para evitar que os árabes atacassem ou invadissem e destruíssem os kibutzim, as suas instalações e plantações, e Beitar, já falei, sionistas gerais são sionistas apartidários, consideravam-se a elite sionista, constituindo a burguesia sionista. Existem suas razões, porque se formaram tantos partidos dentro do sionismo, vocês gostam de sociologia, vão aceitá-las. A primeira razão foi porque só progride e só há progresso quando existe concorrência, se não houver concorrência, não há progresso. Então, para poder atrair a juventude, só poderia atrair os jovens dando-lhe a possibilidade de identificação, relativo ao seu caráter, educação e, principalmente, a filosofia espiritual herdada dos pais. E a segunda razão é dar oportunidades aos jovens de liderança. Os partidos são verdadeiras escolas de formação de líderes. A filosofia sionista deu permissão a criação de partidos e os abrigou para educar os futuros governantes do Estado Judeu. Contudo, o elemento homem se filiou a partidos e lutando para ser, muitas vezes foi por vaidade, mas na maioria das vezes foi por fé política, mas jamais visando proveito econômico para si. No Brasil, em todos os partidos, os líderes são voluntários, podem ser acusados alguns de vaidosos, mas sem interesse econômico, contudo pode haver uma exceção: quando, dentro do movimento sionista, começaram a se criar um grande número de partidos, e principalmente juvenis, no Terceiro Congresso Sionista, realizado em Basel-Suíça, houve protestos Ahad Haam, o filósofo inglês, líder sionista, que logo se ligou a Hertzel, disse: “O jovem é igual a um carneiro e deve lhe ser dado toda a liberdade, tal qual um carneiro que vai de um pasto em pasto, de campo em campo, mas depois, quando se torna maduro, seguirá uma ideologia que se identificará com o seu ego…” Os ortodoxos não permitem a um jovem com menos de trinta anos de idade que estude o Zohar. O Zohar discute a existência de Deus, e como toda e qualquer discussão, analisa os prós e os contras. Um jovem com a cabeça ainda em formação poderá sofrer um desvio. Aos trinta anos de idade, o homem já está com a cabeça feita, convicto em seus princípios, consciente de seus ideais. E sua fé religiosa não corre perigo de desvio. Foram essas que levaram Ahad Haam a dizer: ''Vamos deixar os judeus livres, e quando ficarem maduros e forem verdadeiros sionistas, conscientes, então, escolherão o partido de ideologia certa, definitiva.” Em Rozniatow, a grande sinagoga era considerada liberal, pois os frequentadores usavam chapéus e nao quipá. Os ortodoxos usavam chapéus ou stramel, mas por baixo do chapéu ou stramel usavam quipá e quando entravam na sinagoga, tiravam o chapéu ou stramel e ficavam com o quipá, e por cima do quipá cobriram a cabeça com o talit durante as rezas. O frequentador da grande sinagoga não usava quipá, usava chapéu e tirava o chapéu na rua quando fazia muito calor e ficava com a cabeça descoberta. Aliás, falando em cobrir a cabeça, vocês sabem qual é a razão que judeus cobrem a cabeça?
P/1 – Eu não sei.
R – Não sabe, mas é interessante saber a razão.
P/1 – É interessante. Gravar, mais interessante.
R – Por exemplo, os rabinos usam capotes. De onde que eles tiraram o uso dos capotes? Copiaram dos dirigentes religiosos do Egito. Os dirigentes religiosos egípcios usavam capota. Para distinguí-los do povo, os judeus dirigentes religiosos também começaram a usar capota. Por que usam quipá? Aqui fizeram ao contrário, quando os egípcios entravam nas mesquitas, tiravam o que lhes cobria a cabeça. Então os judeus, para distinguir uma sinagoga de uma mesquita, quando chegavam na porta da sinagoga, para ver logo que era uma sinagoga, cobriam a cabeça, esta é a razão de judeu cobrir a cabeça.
P/1 – Eu pensei que não podiam aparecer descobertos perante Deus, quais as crenças mais antigas?
R – As pagãs, elas são muito mais antigas que nossa religião. Porque pela história, pela Torá, Abraão escolheu Deus, único Deus, Jeová, e abandonou todas as crenças, tornando-se o primeiro monoteísta conhecido na história do universo. Foi o patriarca Abraão que deu origem do povo judeu. Todos os povos anteriores, até os pais de Abraão, eram pagãos. Daí a influência que a religião monoteísta dos descendentes de Abraão recebeu das outras religiões, principalmente das religiões do Oriente Médio e, principalmente, Egito, e mais ainda quando o patriarca Jacob foi com os filhos para o Egito. Quando se libertaram da diáspora egípcia, levaram como herança costumes egípcios para Israel. Eu frequentava as sinagogas ortodoxas, depois que comecei mentalmente a progredir eu achei que deveria frequentar a sinagoga dos profissionais, e, com isso, prestar uma homenagem aos trabalhadores e aos simples e ainda mais quando comecei a me orientar no sentido socialista, ao movimento Malvtziano. Mais uma razão que eu teria que frequentar essa sinagoga. Mentalidade de jovem ainda imaturo, mas que valia. Bom, a vida judaica em Rozniatow girava em torno da religião. Por que girava em torno da religião?
P/1 – Quantas, ao todo, eram as sinagogas?
R – Eram muitas, as principais, como citei, eram três. Mas tinha mais de uma dúzia de sinagogas e tinha também descendentes netos de rabinos chassidicos que formavam seu fã clube. Os descendentes de rabinos construíram suas sinagogas em memória de seus antepassados que, em ídiche, chamava-se Stiblech. Quer dizer, casinhas. Então eles formavam, dentro desse espírito, sinagogas e seguiram o ritual e as melodias deixados pelos seus avós ou bisavós. Também os chassidim de rebes vivos formavam os seus stiblech e rezavam e cantavam como os rebes. Se reuniram nos stiblech para estudar o Talmude ou para contar os milagres realizados pelo rebe. Era um verdadeiro fã clube. A briga entre os chassidim dos vários stiblech muitas vezes chegava a agressão física.
P/1 – Os rituais variavam muito?
R – Variavam. O que variava mais eram as melodias ou a história dos milagres.
P/1 – Então era mais ou menos com quinze sinagogas?
R – Sim, tinha. Tinha também locais de reza, salões de reza, sem o cabecel de um rabino ou rebe. Agora, na parte de educação, havia escolas, havia muitos chedarim, a escola primária, o Tarbut, onde o jovem religioso aprendia hebraico sefardita, ler, escrever e principalmente traduzir o hebraico. Quando o jovem saía do cheder, já sabia ler o hebraico perfeitamente, então ele passava para cheder superior, onde começava a estudar a tradução do Pentateuco, dos Profetas, iniciava-se em Talmude. Quando chegava ao Talmude, então, tinha já as escolas especiais que chamava as escolas de Pré Yeshiva ou Yeshiva Ktana, pequeno seminário, onde se preparava para ir frequentar a Yeshiva. Isso, naturalmente, na parte religiosa. Na parte de estudos gerais, então, havia escolas polonesas. Tinha duas escolas judaicas nos dois extremos da cidade. Essas duas escolas seguiam uma orientação única, a orientação dada pelo movimento sionista. Os estudos de física, matemática, gramática e línguas seguiam a orientação dada pelo governo polonês. Mas o hebraico e a filosofia judaica era estudado sob orientação total dada pelo movimento sionista, pela entidade geral sionista. Além das escolas e sinagogas, havia muita miséria. Para você, leitor, sentir a miséria e a vida miserável que os judeus levaram, vamos ver Rozniatow, a vida dos judeus além daqueles que tinham lojas, os outros viviam em função de um dia da semana. Da quarta-feira, dia da feira, onde os goim que vinham do interior para vender suas mercadorias ou comprar, para ganhar um zloty para preparar o seu sábado. Durante a semana, noventa por cento da população judaica vivia na maior miséria, não tinham o que praticamente comer, ou comiam um pedaço de pão seco e muitas vezes um pedaço de hering, carne era um luxo. Amostra de carne da sexta-feira à noite e sábado. Amostra, porque famílias de cinco a seis pessoas por muito custo conseguiam comprar, em função dos seus ganhos, 250 gramas para toda a família e para as duas refeições. Na sexta-feira e sábado, todos aqueles miseráveis que se viam com as roupas remendadas ou rasgadas, sem sapato, sapato sem sola, nesses dias isso se modificava completamente. Tomavam seus banhos, vestiam roupas remendadas, mas limpas, em casa a mesa tosca era coberta com uma toalha, a casa iluminada pelas velas de Shabat acesas, nada de tristeza, só alegria. Viver em companhia do Shabat, Malka, só alegria. E por isso que o Talmude classifica esse tipo de vida que na sexta-feira os judeus seguiam Neshama Haietera, recebiam uma alma, a mais, os judeus se transformavam, cantava zmirot, bebiam um cálice de vinho no kidush, os mais afortunados. De manhã ia à sinagoga rezar, depois do almoço descansava, e tinha tempo para tirar uma pestaninha, depois ia para a sinagoga ouvir os rabinos falarem, ouvir explicações talmúdicas, comer um pedaço de pão com sal como shalosh seudat, terceira refeição, cantar esta vida espiritual, ele vivia de sexta à noite até sábado à noite. Durante a semana, com muito custo, tinha tempo de botar talit e tefilin, rezar e se mandar e procurar ganhar os níqueis para o sábado vindouro, ia nas aldeias comprar objetos. Um pouco de linho, tecido de linho que os goim faziam, comprava também produtos agrícolas, comprava um pouco de aves, um pouco de ovos para poder vender na cidade, defendendo a sexta e sábado, não o pão da semana inteira, pão de sexta e sábado. E tinha muitos judeus que saíam domingo de manhã e só voltavam na quinta feira à noite. Viviam andando, em hebraico chama-se navinat, como andarilhos, né, de um lugar para o outro para poder fazer algumas compras e ganhar a subsistência. Toda a vida judaica girava em torno de sábado e Yom Tov. A maior parte dos casais na Polônia ortodoxa, na hora de casar, os pais dos noivos faziam um trato e esse trato era respeitado. Qual era o trato? O pai da noiva era o porta voz, dizia para o noivo: “Olha, você vai se dedicar ao estudo do Talmude.” Dedicar-se ao estudo do Talmude era viver o dia inteiro estudando, rezar e estudar. “Então, naturalmente, a tua recompensa, você irá receber no outro mundo, Olam Haba, você irá direto ao paraíso, a tua mulher e os filhos também lutarão pela subsistência.” E o trato é o seguinte: como você ganhará o paraíso e a tua mulher terá que trabalhar, se dedicar à casa e educação dos filhos, então vocês pactuem agora a divisão do Gan Eden, o paraíso, que você receberá de Deus como recompensa. Ela vai te dar filhos, vai te manter no presente, mas no futuro você lhe dará a metade do que você vai receber no Olam Haba. Como isto ainda existe? Existe em Israel esses tratos, em Bnei Brak, em Mea Shearim, e também entre os radicais e fanáticos ortodoxos dos Estados Unidos, Bélgica, Inglaterra e França.
P/1 – Sério? O que ele daria para ela?
R – O que Deus lhe pagará pela sua dedicação a Torá, ao Talmude e a religião. Não pecando e obedecendo todos os preceitos da religião, ele irá direto ao paraíso. Como recompensa, a mulher, pela sua dedicação à casa, educação e sustento da família, ele lhe dará a metade do Gan Eden. Esse é o trato, comunhão de bens.
P/1 – E a mulher lutava pela sobrevivência como?
R – Essa vida de comprar uma coisa e revender nas feiras ou na rua, vender frutas, revender ovos, galinhas, etc. Fazer um bolo, vender em pedacinhos, como fazem aqui as baianas. Com esse trabalho, ela trazia a subsistência pra casa, com que sustentava a família. Os estudantes de Yeshiva, a maioria vivia de Kest, iam cada dia comer em casa de uma família, como qualquer pedinte. Eu também fazia parte desse grupo, mas o que nos ofereciam foi kasher, com leite no almoço e no jantar.
P/1 – Porque o pessoal era pobre?
R – O pessoal era pobre, assim mesmo dividiam o que tinham com os estudantes da Yeshiva. Noventa por cento dos talmidim da Yeshiva, como o próprio povo, kasher cozido em leite em quantidade que dava para sobreviver e não viver. Quer dizer, não satisfazia. Comer kasher não enchia o estômago, porque o que se dava e recebia não dava para encher. Mas, também, quem dava não tinha condições de dar coisas melhores ou quantidade maior. Com isso, ele fazia uma mitzvá e essa mitzvá também tinha uma recompensa no Olam Haba. Com esta doação de comida, a mulher também fazia suas mitzvá, mas não fazia parte do trato.
P/1 – Muitas vezes, para casar, davam dote ao noivo?
R – Bom, isso é outro caso, dote era uma tradição geral e necessária entre os judeus. Dote era na maioria das vezes sine qua non, tinha que ter dote, porque sem dote não havia casamento. E quem dava o dote? A noiva dava o dote para o noivo. E o dote é o seguinte: quando os pais da noiva eram pobres, o dote era uma temporada de sustento do casal até o noivo conseguir ganhar o sustento. O ano era dividido em dois períodos, como hoje ainda em Israel, os períodos iam de Pessach a Rosh Hashaná, e de Rosh Hashaná a Pessach. O aluguel não era pago mensalmente, era pago por período, zman em hebraico. As escolas, os cheder, eram pagos por período. Então recebia um dote. Os dotes eram o sustento por um período, dois períodos, uma moradia ou dinheiro para os noivos começarem um negócio ou negociar.
P/1 – Quando era mais rico recebia o...
R – Recebia dote em dinheiro para comprar uma casa para iniciar um negócio. Porque todo sonho de qualquer judeu e de todos esses judeus que vieram para cá também, era ter o que dar para o futuro marido da filha. O judeu vinha para o Brasil e começava a trabalhar em tudo. Vendendo a prestações, juntando cada tostão, mas a primeira coisa, para quê? Para comprar um telhado que eles chamavam uma casa, uma cobertura, para cobrir a cabeça. Então os dotes, normalmente, na maior parte eram para comprar uma casa, uma moradia. Uma casa caindo aos pedaços, não importava, mas pelo menos tinha uma moradia, tinha onde morar. Isso que era o sonho e a tendência de cada um. Muitas vezes dotes mais ricos davam dotes que davam para se estabelecer, como uma loja, um comércio. Os maiores, mais ricos, uma indústria. Daí pode se deduzir que uma filha constituía-se num problema.
P/1 – Por exemplo, se eles davam um dote, se ele era rico, davam um dote para fazer uma loja. Quem cuidava da loja era a mulher?
R – Era a mulher, se fazia esse tal trato. Se eram mais liberais, era o marido que cuidava do negócio e o suprimento da casa, a mulher lançava a primeira-dama. E a empregada, que era quase sempre uma mulher ídiche, cuidava dos filhos.
P/1 – É a modernidade, uma troca de papel.
R – Invariavelmente era.
P/1 – Quem define isso? Só para ver melhor isso, se ele ia se dedicar, o marido... Quem define se ele ia dedicar a estudar?
R – Bom, normalmente eram os pais. Eles, os pais, procuraram um shadchan, noventa por cento dos casamentos se realizaram por intermédio de um shadchan, um arranjador, ou melhor, um corretor de casamentos.
P/1 – Era se você não falasse da figura do corretor de casamento.
R – Então, era corretor de casamento. E esse corretor, vamos supor, o Samuel... Vamos dizer, eu, religioso, tenho uma filha e quero casar minha filha. Então me dirigia ao shadchan corretor. “Fulano, vê se você arranja um noivo para minha filha.” Aí o pai dava as características do noivo desejado e as condições econômicas que oferece, a filha não apitava em nada. O pai: "Bom, eu quero um noivo, quero um genro que seja Yeshiva Bachur, um estudante de Yeshiva." Ai o shadchan conhecido, que vivia de arranjar casamentos, respondia: "Bem, você está me dando uma mercadoria, mas eu quero que você me explique, além da mercadoria, o que você vai dar, o que vai acompanhar essa mercadoria, a sua filha?" Então ele fazia as ofertas: "Eu quero um noivo de um grande ihus, de família prestigiosa, eu vou mantê-lo, eu quero que ele só estude, só se dedique a Torá, só se dedique aos estudos, mais nada. Eu vou mantê-lo.” O shadchan sai a procura de um noivo, um noivo com as características, um talmudista, um yeshiva bachur, de família no meio ortodoxo, de grande prestigio, crente, de fé religiosa, que também aceitava se submeter para passar o resto da vida dedicado aos estudos. Mas muitas vezes acontecia que o camarada, o shadchan, com o seu calendário cheio de noivos e de noivas... Então o que que acontecia? Muitas vezes fazia encontros entre os pais de dois rapazes, onde duas moças… Isso também acontecia.
P/1 – Não acontecia de casarem, não, né?
R – Não, isso acontecia, até o encontro dos pais acompanhados dos filhos. Eu vou contar uma história para vocês. Nao sei se vocês sabem, se sabem, então me desculpem.
P/1 – Mas é importante para a gravação, tem que contar tudo.
R – É uma historiazinha tipo anedótica, intitulada Tzen Iohr Kest, dez anos de sustento, contada por Malba Tahan, num de seus livros.
P/1 – Não tem problema, conte.
R – Dez anos kest. Então começou numa cidadezinha na Polônia, era um pai muito pobre, um melamed, um professor primário, e pouco antes de morrer, chamou o filho e disse: “Escute, meu filho, eu não tenho nada para te deixar, a única coisa que eu posso te deixar como herança é um conselho que um dia lhe poderia ser muito útil, e esse é o meu testamento. Um conselho. Fora disso, não tenho nada.” Qual é o conselho? "Evite judeus ruivos. Mas se por acaso o destino te ligar a um judeu ruivo e você quiser se livrar da situação, procure outro judeu ruivo para te aconselhar, mais nada." O garoto cresceu até chegar a idade propícia de casar, aí começaram a aparecer os shadchan, corretores, com as ofertas: "Eu tenho uma noiva para você, fabulosa, etc. e tal, muito rica, e você é um rapaz pobre, você vai ver que coisa que eu estou lhe oferecendo. O pai é um homem de grande prestígio, muito rico, e oferece dez anos de kest, mora na cidade tal e tal, vamos lá conhecer e você, com teus próprios olhos, veja o tesouro que eu estou te oferecendo.” E levou o rapaz para conhecer o que era o grande tesouro. Chegaram, o rapaz ficou deslumbrado com a riqueza da casa e a beleza da moça. Já avisados que o shadchan vinha com o rapaz, prepararam uma mesa de tudo, com as coisas mais belas e mais ricas. E apresentaram a candidata. Quando apresentaram a candidata, ele viu a moça, achou-a muito bonita, gostou do estilo, toda alegre, encantou-se pela moça. Aí o shadchan disse: “O que que você acha?” “É bonita mesmo, interessante. Está certo, está me agradando muito. Mas é preciso saber se eu agrado a moça.” O shadchan não foi perguntar a moça a respeito do rapaz, ia falar com o pai da moça. Convidaram os visitantes para ocuparem os lugares à mesa, uma mesa bem posta e muito rica, com tudo que há de bom. E todo mundo sentou-se à mesa, só o pai da moça ainda não tinha entrado. Quando o pai entrou, um ruivo, barba ruiva, cabelo ruivo, o rapaz estremeceu e se lembrou do conselho do pai. Mas o pai da moça, todo extrovertido, estendeu a mão para ele, dizendo em voz alta: “Meu futuro genro!” E deu-lhe um abraço. Ofereceu-lhe um relógio de ouro com uma corrente de ouro. O rapaz nunca tinha tido um relógio dos mais baratos, quando viu aquilo se encantou. Se encantou e começou a pensar: “Será que meu pai, que já estava no fim da vida, não estava caduco e não sabia o que dizia?” Recebeu o relógio com corrente de ouro e correspondeu ao abraço. E voltou com os pensamentos anteriores: “Papai já estava no fim da vida, já devia estar meio caduco para me dar um tal conselho.” Na casa da família se desmanchou no melhor tratamento e o sogro, dirigindo-se novamente ao rapaz, dizia: “O relógio de ouro que estou lhe oferecendo é o começo, se você casar com minha filha. E o que você acha dela? Bonita?” “Ah, sim.” “Eu vou sustentar vocês durante dez anos, tzen iohr kest. Se não quiser trabalhar, não precisa fazer nada, durante dez anos eu te mantenho, a você e a minha filha. E você vai morar aqui na minha casa.” Esta oferta levou mais uma vez o rapaz a pensar que o pai estava caduco. Marcaram o casamento, fizeram uma festança de casamento e deram para o rapaz roupa nova, tudo novo, que reforçou mais aquele pensamento que o pai não estava bom da cabeça. Passou o décimo dia, à noite o sogro chamou o genro: “Que tal? Como é que você passou os dez dias?” Durante os dez dias comia galinhas, pato e ganso no almoço, no jantar, e bebendo muito vinho e das melhores sobremesas. O rapaz, que nunca tinha bebido vinho, nem comia ganso, nem pato, nem sobremesas... O sogro continuou: “Tem alguma queixa?” “Não, está tudo formidável, tudo bem, tudo fabuloso. Não tenho queixa alguma.” Aí o sogro começou a cantarolar na melodia dos estudos do Talmude e o Talmude nos ensina: o homem que vive um dia bem, é como se vivesse um ano bem. “Acabou de completar dez anos da minha promessa de kest, trate de procurar uma casa, trate de procurar trabalho e trate de arranjar lugar para você levar sua mulher, porque de agora em diante ela é tua mulher, você trate de fazer sua vida própria." O cara desesperou-se. Aí lembrou-se do pai, que o pai devia ter razão. Lembrou-se do que o pai disse a ele: arruma outro ruivo para te dar um conselho e tirar da situação. Então ele saiu a procura de um ruivo e encontrou outro. Encontrou o ruivo e contou a história toda chorando, etc. e tal. Só não contou o conselho do pai, contou o que aconteceu com ele. Aí o ruivo disse: ''Se você me obedecer estará salvo. Siga o meu conselho, siga as minhas instruções, te sairá bem.” Bom, ele seguiu as instruções do ruivo, pegou também um livro de Talmude que o ruivo lhe deu e foi enfrentar o sogro no dia seguinte, o décimo primeiro dia, dirigindo-se ao sogro com um amplo: "Bom dia, meu sogro." Aí o sogro: “Como vai? Como é? Já arrumou sua vida? Já arrumou uma casa, já arrumou trabalho?” O genro respondeu: “Tenho um grande problema.” “Qual é o problema?” “Vou me divorciar da sua filha.” “Divorciar da minha filha, como? Depois de dez dias de casado vai divorciar da minha filha?” “Mas não são dez dias de casado, são dez anos. E a Torá nos ensina que quando a mulher não tem filhos durante dez anos, nós temos um divórcio". Todo mundo conhece muito bem o que era o antissemitismo e o holocausto para os judeus. Numa cidadezinha pequena na Polônia, tinha um padre, e o padre conhecia muito do Talmude, e era um grande antissemita num meio antissemita. Um dia, o prefeito da cidade deu uma festa. E convidou, naturalmente, o padre. Como homenagem especial, o prefeito mandou o padre sentar-se ao lado dele. Depois de beberem muito, o prefeito vira para o padre: "Padre, tudo que você pedir eu faço.” Aí o padre virou-se e disse: “Eu não vou pedir muito. O que eu vou pedir a você é o seguinte: eu quero que você convoque a comunidade judaica para mandar um representante e, em praça pública, discutir comigo o Talmude, quero que você coloque dois policiais teus com espadas afiadas, se eu perder, então, corte a minha cabeça. Mas se o judeu perder, todas as cabeças dos judeus serão cortadas. E esse meu pedido terá que ser comunicado a comunidade judaica por meio de cartazes, e marcar o dia da prova.” O prefeito deu prazo de trinta dias. Os judeus, quando viram os cartazes de desafio, ficaram apavorados, porque todo mundo sabia que o padre conhecia muito Talmude. Os judeus se reuniram e apelaram para o rabino da cidade. “Mais do que o senhor, não existe quem possa discutir com o padre.” E o rabino começou a se negar também: “Vocês querem me matar, querem que eu me suicide? Eu vou perder na certa, eu vou perder discutindo com o padre.” E começaram a apelar para aqueles que sabiam bastante Talmude, mas todos se negaram. E reuniram na sinagoga, rezando e jejuando. E cada dia que passava estava se aproximando mais do dia fatal, vestiam-se de luto, sentaram-se no chão, chorando, todos chorando. Porque no aviso o padre pediu também para evitar que se judeus não apresentarem candidato para discutir com ele, então, toda comunidade vai ser destruída. Todos estavam apavorados. No vigésimo nono dia... Antigamente, nas cidades da Europa não tinha água encanada, tinha um carregador de água. Wasserträger, carregador de água, normalmente era um homem pobre, ignorante, analfabeto. Mas tinha força para carregar dois baldes de água e vivia de carregar água para os outros, então cada um pagava um ‘xis’, ou dava um pedaço de pão, comida e trapos para vestir. No vigésimo nono dia, o wasserträger entrou na sinagoga, vendo todo mundo chorando e rezando. Então ele perguntou o que estava acontecendo. “Você não viu lá os cartazes?” O homem não sabia ler, e a única coisa que ele sabia ler um pouco era o hebraico e o ídiche, mais ele não sabia. “Então você não sabe o desafio do padre de alguém ir discutir com ele Talmude? Ninguém quer se candidatar.” Aí o wasserträger respondeu: “Eu vou.” Todos sabiam que ele era um ignorante. E perguntaram. “Mas você vai discutir?” “Eu vou discutir com o padre, eu não tenho medo.” “Mas como?” “Eu vou discutir com ele.” Toda a comunidade concordou, não tinha outro. E no trigésimo dia, todos reunidos na praça, fizeram um palanque especial. O padre estava lá esperando, o prefeito com os policiais com espadas prontos para cortar a cabeça de quem perder. Estavam esperando que toda a comunidade judaica viesse assistir ao verem se aproximando o carregador de água que todo mundo conhecia. O padre dirigiu-se ao prefeito: “Os judeus mandaram esse miserável para eu discutir com esse cara? Isso é um escárnio para mim.” O prefeito respondeu: “Se os judeus escolheram ele, você vai ter que discutir.” Aí o prefeito perguntou: “Quem fará a primeira pergunta?” O padre respondeu: “Deixa-o fazer a primeira pergunta.” O wasserträger: “Está bom, vou fazer a primeira pergunta.” “Então faz.” “O que é einenu iodea?” O padre respondeu: "Não sei.” Aí o wasserträger disse para o prefeito: “Está vendo, senhor prefeito? Ele respondeu que não sabe.” Cortaram a cabeça do padre. A tradução de einenu iodea é ‘não sei’. As pessoas na sinagoga rezando e chorando, de repente o wasserträger entrou, todo mundo abriu os olhos e o rabino o chamou. “Escuta, já acabou? E como foi que acabou?” “Ah, cortaram a cabeça do padre.” “Mas por quê?” “Ah, eu fiz uma pergunta ao padre, o padre não respondeu, não sabe. Então cortaram a cabeça dele.” “Mas o que é que você perguntou?” “Perguntei o que significa einenu iodea. E ele respondeu que ‘não sei’, cortaram-lhe a cabeça.” Aí o rabino perguntou: "Como lhe veio esta pergunta na cabeça?” O wasserträger respondeu: “Ora, rabino, eu estou lendo a tradução da Torá para ídiche, quem traduziu a Torá, traduziu todas as palavras, mas quando chegou a palavra einenu iodea, ele confessou que não sabe. Se o tradutor confessou que não sabe, como que o padre vai saber?”
P/1 – Em relação ao corretor, quem pagava o corretor? Como era fixada a tarifa? Como era a transação toda do casamento? Quem pagava, o pai da noiva, do noivo?
R – O pai da noiva.
P/1 – Recebia dos dois lados?
R – Às vezes recebia dos dois lados. Às vezes recebia pancada também. Quando juntava dois rapazes ou duas moças, recebia pancada.
P/1 – Havia muitos casos de recusa ou naturalmente ele até aceitava? Podia se recusar?
R – Sim. Não tinha voz de resolução, quem resolvia, aceitava ou não as condições, eram os pais dos noivos. Só quando um dos noivos era órfão de pai e mãe, aí shadchan falava por eles. Mas normalmente eram os pais que falavam.
P/1 – Uns pais com outros pais?
R – É, a quem que tinha que agradar. Eram as famílias que tinham que agradar e concordar. Não é aceitável, naquela época o que pesava muito, além do noivo ser um talmudista, era o ihus mishpacha da família.
P/1 – Eram as duas coisas que valiam?
R – Sim, era o peso.
P/1 – Pedigree?
R – Pedigree da família, isso era muito importante.
P/1 – E era qualificado em termos de...
R – Era qualificado em termos de honestidade, de cultura, se descendiam de rabinos, se tinham rabinos talmudistas, se eram pessoas que praticavam boas ações. Esses eram os pesos de qualificação. Por quê? O Talmude tem uma expressão que diz o seguinte: essa descendência, esse pedigree, chama-se ihus. Então dizia: ihus atzmi yesh mishpaha, a pessoa, sozinha, tem ihus quando existe ihus de família, ihus de origem. E como nós falamos, maçã não cai longe do pé, da macieira. Normalmente, geralmente, os filhos seguiam o caminho orientado pelos pais. Recebiam a educação que os pais tinham a dar, então, por isso se dizia que o ihus dele, o valor dele, dependia do pedigree, da origem dele. Então isso pesava muito. E o shadchan tinha que conhecer os ihus das famílias, se não sabia, se informava. Daí ele já sabia o que que tem que juntar, mais ou menos que tipos de famílias tem que juntar. E, naturalmente, se o pai chegava para o shadchan e pedia para arranjar uma noiva para o seu filho, então, ele já sabia o que deve procurar. E trabalhar como um verdadeiro corretor para convencer os pretendentes da mercadoria.
P/1 – E o que se avaliava para a mulher? Para a noiva, quais eram os critérios de avaliação de um...
R – Jamais se avaliava a cultura ou a beleza da noiva.
P/1 – Não?
R – Os pais não olhavam para beleza. Para quê interessava ao pai do noivo a beleza da noiva, da futura nora? Não interessava. O corpo perfeito ou não pesava muito menos, porque também usava-se vestidos compridos, usava mangas compridas e vestidos largos. Quer dizer, não se conseguia nem avaliar fisicamente a noiva, o rosto não se avaliava.
P/1 – Não se avaliava?
R – Não tinha valor.
P/1 – Não era critério.
R – Não era critério. Então o que era critério era isso que já citei.
P/1 – Era a família dela?
R – Era a família no primeiro lugar. E segundo, o que os pais da noiva podem oferecer.
P/1 – O dote?
R – O dote e depois o resto, ou outras possibilidades. Então, para o noivo, poderia interessar a noiva, mas o noivo não apitava, quem apitava era o pai do noivo.
P/1 – O noivo nunca podia recusar? Na hora de dizer: “ah, eu não quero”?
R – A própria Torá, o Pentateuco, ensina o seguinte: o filho que não obedece aos pais, que se rebela contra os pais, então, esse filho desaparecerá do mundo, ou seja, o pai pode até expulsá-lo e a comunidade pode isolá-lo, jogá-lo fora, não permitir a entrada dele na comunidade, casar, etc. Desaparecer, não é que ele vai morrer. Vou dar um exemplo: você, filha de fulano, que desrespeitou os pais, bateu nos pais, etc. e tal. Você vai ser afastado do nosso meio, você vai ser colocado no herem, isolamento. Desaparece porque todo mundo o isola. Não vai ter descendência, ninguém vai querer casar com ele, porque já sabem que tipo é, e amanhã, se ele morrer, ninguém vai chorar a morte dele. Quer dizer, enterra-se junto a cerca, desaparece porque ninguém quer recordar nem o nome. Então isso é uma das características. Quando os pais entre si concordarem no casamento, qual é o filho dizer para o pai: “Eu não quero, não aceito”? A educação que ele recebia, educação dentro da religião, não dava a ele oportunidade de recusar. E também a moça, muito menos porque se o rapaz não podia recusar, imagine uma moça recusar as ordens do pai.
P/1 – E o divórcio havia por quê? Havia divórcio?
R – Havia. O primeiro caso de divórcio, já contei, pelo fato de não terem filhos. Pela lei do divórcio, quem dá divórcio é o marido. Existem casos onde a mulher pode exigir divórcio, quer dizer, exigir que seja divorciada. Vamos dar um exemplo: mulher casada com um homossexual, então, ela pode exigir o divórcio.
P/1 – O divórcio se chama guet?
R – Guet, é. Mas tem outros casos, se ele maltrata ela, se bate nela, desrespeita ela, ele quer pô-la na prostituição, tem muitos casos desse tipo, então a mulher pode chegar a pedir divórcio.
P/1 – Agora, o homem não?
R – Como?
P/1 – Se ele não quer ela mais?
R – Mas tem que ter uma justificativa, quem vai pedir o divórcio ao rabino. O próprio rabino, ele não pode chegar a aceitar imediatamente as queixas para dar o divórcio. Pela lei canônica judaica, durante um mês o rabino tem que trabalhar a cabeça, o homem, a não se divorciar. Naturalmente, depende das causas alegadas pelo homem porque queira se divorciar da mulher. Depois, ele chama a mulher e trabalha a mulher também durante trinta dias. Depois tem que pegar o casal e trabalhar durante trinta dias. Se continuar, após noventa dias, a desejar o divórcio, aí o rabino concede o divórcio em nome de Deus.
P/1 – São noventa dias?
R – Noventa dias. Existem muitos casos de arrependimento. As estatísticas mostram que no final dos noventa dias se dá mais casos de arrependimento do que divórcio. Também se conta a história que um dia uma mulher entrou de repente no rabinato e começou a chorar e gritar: “Rabino, eu quero um guet, eu quero divórcio, eu quero me divorciar do meu marido.” “Mas por quê?” “Ele briga comigo, me massacra, me bate, etc. e tal.” “E você? Qual é a tua atitude?” E começou a sondar a mulher e sentiu logo que quem provoca mais vezes o marido é a mulher.
P/1 – Machismo, não é?
R – Não é, neste caso. O rabino disse: “Olha, você sabe que eu não posso dar o divórcio de imediato, eu tenho que passar essas três fases, durante três meses. Então eu vou chamar teu marido, começar a conversar com teu marido antes e durante trinta dias. Depois eu vou chamar você para falar contigo durante trinta dias, e depois o casal juntos, também trinta dias. Se durante esses noventa dias vocês verem que não têm condições de morar juntos, então, naturalmente, vou os divorciar.” Muito bem. E a mulher: “Mas rabino, trinta dias, ele vai me matar durante esses trinta dias.” “Bom, eu vou te dar uma simpatia, mas você tem que obedecer, se não obedecer eu não me responsabilizo em nada. Siga a simpatia, você vai ver que ele não vai te castigar durante esses noventa dias.” “Qual é a simpatia?” “Você sabe qual é a hora que seu marido chega em casa?” “Sim.” “E a hora que ele sai?” “Sim.” “Então você vai fazer o seguinte: quando chegar a hora do teu marido voltar para casa, um pouco antes, toma banho, se vista, embeleza-se e fique na janela esperando. Ao ver que seu marido está se aproximando de casa, corra para a cozinha, encha a boca com água e mantenha essa água na boca até ele dormir. Antes de ele acordar, encha a boca com água, mantenha a água até ele sair.” Aí a mulher: “E durante a noite?” “Quando ele adormecer, você pode engolir a água. Mas quando ele acordar, corre logo e enche a boca com água.” No primeiro dia, o marido chegou, começou logo a reclamar, gritando, gritando. Nada de ela responder. No segundo dia, a mesma coisa. Terceiro dia, começou a arrefecer, e uma semana depois, o marido chegava em casa, não havia mais brigas e nem reclamações, depois de duas semanas ele chegava em casa na maior calma, não dizia nada, não falava nada. Aí, ela foi correndo ao rabinato: “Rabino, essa simpatia que o senhor me deu valeu mesmo, eu não quero mais divórcio. Estamos vivendo numa paz que não poderia ser melhor.”
P/1 – Simpatia, né?
R – Ela não podia responder as reclamações do marido estando com a boca cheia d'água. É o adágio popular, dois não brigam quando um não quer.
P/1 – Quando um não quer, dois não brigam, exatamente.
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