Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Vanuza Kaimbé
Entrevistada por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Guarulhos), 21/10/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV015
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 - Bom dia, parente Vanuza! Seja bem-vinda! Eu gostaria de agradecer pela presença aqui no nosso projeto, a sua história vai aparecer no Museu da Pessoa. Então eu gostaria que você falasse o seu nome, seu nome indígena, por gentileza?
R - Bom dia Tiago, parente! Obrigada pelo convite. Meu nome de batismo é Vanuzia Costa Santos. Agora meu nome indígena é Vanuza Kaimbé. Eu raramente falo do meu nome de batismo, porque foi nome dado pelos colonizadores. Os colonizadores, quando chegaram no Brasil, achavam que a gente não era gente, que nós éramos selvagens e para nós nos tornarmos pessoas, precisava ter nome de santo, nome. Então foi dado nome de santo, foi dado nome de fazendeiro, nome de famílias tradicionais e por isso que eu tenho esse sobrenome, Costa Santos. Eu não gosto de nenhum deles, meu nome mesmo é Vanuza Kaimbé, sou da etnia Kaimbé, sou mulher nascida na Aldeia Massacará, município de Euclides da Cunha. Tenho 52 anos e vim da Bahia para cá há 34 anos. Em busca de estudar. Eu queria ser uma mulher ‘de branco’, eu queria ter cuidados, porque quando eu era criança eu fui no médico e vi aquelas mulheres de branco, aquelas mulheres que escreviam rápido, quando eu ia ser atendida. Como que uma pessoa pode escrever… na época em que eu nasci não tinha computador. Eu falei para minha mãe: “Mãe, um dia eu vou ser uma mulher dessas ‘de branco’. Minha mãe começou: “Minha filha, deixe disso, a gente mora numa aldeia, é difícil a gente conseguir carro para vir aqui passar no médico, e você fica com esse sonho, esquece disso!” E eu disse: “Vou ser sim!” E fiquei com aquilo na minha cabeça. Quando eu entrei na escola, tinha nove anos, e eu já entrei com...
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Entrevista de Vanuza Kaimbé
Entrevistada por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Guarulhos), 21/10/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV015
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 - Bom dia, parente Vanuza! Seja bem-vinda! Eu gostaria de agradecer pela presença aqui no nosso projeto, a sua história vai aparecer no Museu da Pessoa. Então eu gostaria que você falasse o seu nome, seu nome indígena, por gentileza?
R - Bom dia Tiago, parente! Obrigada pelo convite. Meu nome de batismo é Vanuzia Costa Santos. Agora meu nome indígena é Vanuza Kaimbé. Eu raramente falo do meu nome de batismo, porque foi nome dado pelos colonizadores. Os colonizadores, quando chegaram no Brasil, achavam que a gente não era gente, que nós éramos selvagens e para nós nos tornarmos pessoas, precisava ter nome de santo, nome. Então foi dado nome de santo, foi dado nome de fazendeiro, nome de famílias tradicionais e por isso que eu tenho esse sobrenome, Costa Santos. Eu não gosto de nenhum deles, meu nome mesmo é Vanuza Kaimbé, sou da etnia Kaimbé, sou mulher nascida na Aldeia Massacará, município de Euclides da Cunha. Tenho 52 anos e vim da Bahia para cá há 34 anos. Em busca de estudar. Eu queria ser uma mulher ‘de branco’, eu queria ter cuidados, porque quando eu era criança eu fui no médico e vi aquelas mulheres de branco, aquelas mulheres que escreviam rápido, quando eu ia ser atendida. Como que uma pessoa pode escrever… na época em que eu nasci não tinha computador. Eu falei para minha mãe: “Mãe, um dia eu vou ser uma mulher dessas ‘de branco’. Minha mãe começou: “Minha filha, deixe disso, a gente mora numa aldeia, é difícil a gente conseguir carro para vir aqui passar no médico, e você fica com esse sonho, esquece disso!” E eu disse: “Vou ser sim!” E fiquei com aquilo na minha cabeça. Quando eu entrei na escola, tinha nove anos, e eu já entrei com aquilo na mente. Foi aí que eu descobri o meu nome, que era Vanuzia e não Vanuzia, e foi um susto, porque a professora começou a me chamar Vanuzia, eu falei: “Eu não sou Vanuzia, eu sou Vanuza.” Aí já começou os conflitos comigo, do meu nome. E eu falava: “Um dia eu vou mudar o meu nome”. Minha mãe falava que não podia. E porque minha mãe colocou esse nome de Vanuza? Eu nasci no ano 1970, eu nasci no dia 12 de fevereiro de 1970, eu nasci em plena ditadura militar. E era o auge da cantora Vanusa, e minha mãe para homenagear ela, colocou. Minha mãe já tinha homenageado um filho homem, com marido da Vanusa, que era Antônio Marcos. Só que como a gente não se registrava tão cedo, meu irmão foi batizado na Igreja Católica, com o nome de Antônio Marcos, quando ele cresceu, que ele foi registrado, ele falou: “É difícil saber escrever dois nomes, eu quero o nome só!” Ela falou: “Qual que você quer, Antônio ou Marcos?” Aí ele quis Marcos, então meu irmão, que nasceu três anos antes de mim, tem o nome de Marcos. E era uma gozação tão grande na adolescência, porque falava, assim: “A dupla, vocês cantam?” Era Vanusa e Marcos, Antônio Marcos. Ele falou: “Eu não sou o Antônio Marcos, eu sou só Marcos”. A minha mãe fez essa homenagem a esses artistas. Nasci na ditadura e acho que, por isso, eu me tornei essa pessoa resistente, essa pessoa lutadora, porque já nasci na época da ditadura. Eu com os meus sete anos de idade, eu ouvia muito rádio, radionovela, as notícias, eu já sabia da Avenida Paulista, do Mercadão Municipal, da 25 de março, então eu já conhecia esses lugares históricos. Porque eu ouvia muito rádio, e eu falei para minha mãe: “Mãe, um dia eu vou para esse lugar”. E minha mãe: “Esquece disso, vamos trabalhar, plantar a nossa mandioca, a nossa banana, você vai crescer, saber fazer seu nome, que é importante, saber ler e escrever, não ser analfabeto que nem eu, que não sei nem ler nem escrever, e formar sua família, esqueça esse mundo de viver ouvindo rádio, de querer sair”. E eu me incomodava muito, que eu ouvia algumas músicas, e dizia: “Essa música vai ser…” não pode! Quando eu cantava algumas músicas, que eu não lembro direito quem era, dizia assim: “Você não pode cantar isso porque senão os militares vão te pegar”. Eu lembro que falava muito de Figueiredo. “Figueiredo vai mandar te prender! ” E eu não entendia, na minha cabeça, prender era quem matou pai e mãe, quem matava outro, quem roubava. Eu falava: “Oxe, porque vão me prender se eu não fiz nada?” “Você não pode sair falando dessas coisas porque o governo vai te prender, os militares vão te prender”. E eu não entendi isso! Mas eu não entendia, mas eu não gostava disso, isso me incomodava demais, incomodava demais. Eu falava assim: “Um dia ainda vou sair daqui para estudar, para trabalhar e para voltar, para eu entender essas coisas todas que eu não entendia”. E eu conversava isso com as minhas colegas e os meus irmãos, e eles não entendiam porquê, era como se eu fosse uma pessoa fora da casinha, era como se eu não pertencesse àquele mundo. Eu me via fora daquele lugar, eu fazia viagens comigo mesma, eu era uma pessoa diferente. Mas assim, o amor que eu tinha pela terra, o amor que eu tinha pelo lugar onde eu morava, o cuidado com a terra, isso eu sempre tive. Mas eu pensava que um dia eu ia estar longe dali para buscar… Não sabia o que era política pública, para buscar melhorias. Eu era uma pessoa que eu cuidava, sabe? Os meus irmãos ficavam doentes, eu corria, teve uma vez que meu irmão teve uma hemorragia e eu era pequenininha, e eu ajudei a socorrer o meu irmão, eu fui no posto de saúde, cheguei lá… corri tanto que eu cheguei sem falar no postinho que atendia, que era o posto que era atendido pela FUNAI. E eu peguei na mão da enfermeira, porque eu não conseguia falar, porque eu estava muito cansada, e ela falou assim: “Acho que deve ser muito grave, porque essa menina veio aqui dessa forma”. E eu corri, corri, quando eu cheguei lá o meu irmão já tinha perdido quase todo sangue, ele já estava com hemorragia, se eu demoro mais um pouquinho, ele tinha morrido. Aí aquilo ficou na minha cabeça, eu falei, eu preciso estudar para eu ser uma dessa daqui, para eu saber o que fazer na hora. E todo mundo disse como eu consegui salvar a vida dele. Aí eu vim para São Paulo, e aqui eu fui trabalhar de empregada doméstica, de babá. Aí quando entrou o Collor de Mello, confiscou todas as poupanças, aí eu falei: “Agora é minha hora de entrar num emprego melhor”. Eu saí de onde eu trabalhava, da casa de família, e fui procurar emprego em loja. Aí o meu primeiro emprego, registro na carteira, foi de auxiliar de crédito. Dois meses depois, eu fui promovida a Analista de Crédito, mesmo na experiência, porque não tinham pessoas que tinham o desenvolvimento que eu tinha de escrever rápido como eu queria sempre, de atender bem as pessoas, no cuidado que eu tinha. Aí passou um pouquinho tempo, eu fui promovida a Coordenadora, eu coordenava uma equipe de crédito em uma grande loja, que eu não vou citar o nome. Eu coordenava uma equipe e lá tinham pessoas que já tinham terminado… eu, na época, estava no fundamental, na oitava série. Muitas pessoas diziam assim: “Como? Ela está na oitava série, eu já sou formado e não consegui esse cargo!” “Ah, não sei, se eles me deram é porque eu mereço!” Então se eles me deram é porque eu mereço. E eu cobrava, e eu reprovava quando a pessoa não tinha capacidade. Aí muitos diziam assim: “Por que você não a transfere de loja?” “Porque o que não serve para mim, não serve para o próximo, eu não posso transferir um problema que eu posso resolver para outro”. Então eu mandava muita gente embora, e eu aprovava. Mas antes eu dizia: “Vamos, vamos!” Então a minha vida foi uma luta. Aí depois eu vi que crediário pagava um pouco demais, mudei, fui trabalhar em loja de móveis, fui vendedora. Aí chegaram os trinta anos, eu falei: “Agora não tem jeito, ou eu vou ser aquela mulher de branco, ou não tem jeito”. Pedi demissão do Crediário e fui fazer Técnico de Enfermagem. Fui trabalhar na Saúde Indígena, trabalhei lá durante quinze anos. Ali foi onde eu tive os melhores momentos e os piores momentos da minha vida. Porque eu cheguei lá… com toda essa história, com toda essa bagagem do cuidado, de cuidar das pessoas, do amor à vida, da proteção, do carinho. Eu fui trabalhar na CASAI em São Paulo, o CASAI é uma Casa de Apoio à Saúde Indígena. E lá eu tinha um cuidado especial, porque eu sabia como era sair da aldeia, sair do seu território, sair do seu habitat natural, e vir para uma cidade grande, e vir para o desconhecido. Doente, com medo de que doença que é, porque muitas vezes o diagnóstico não está fechado, porque quando você vem para São Paulo é porque não encontrou um tratamento no local, nem na saúde básica, na saúde média, então vem para cá média e alta complexidade, ou diagnóstico não fechados. Então a pessoa vem com muito medo, e ali eu acolhia com muito amor, muito carinho, dizendo quem eu era, de onde eu tinha vindo, contava a minha história de vida, dizia: “Eu entendo você!” E, muitas vezes, eu ficava contra a chefia, a favor do indígena, para ter uma saúde qualificada. E assim, a gente estava numa casa insalubre, faltava tudo, e chuveiro queimava, a casa era precária, tinha ratos, tinha barata. E eu fui fazendo denúncias no Ministério Público, o MP fez um PAC, um ajustamento de conduta para que isso mudasse, aquela casa insalubre. Mudou, mas mudou para uma outra que funcionasse adequadamente. Mas nessa casa também chegou entrar ratos dentro da caixa d'água, pessoas chegaram a pegar diarreia, doença de pele. E nisso eu fui tirando fotos, fazendo um dossiê. E vendo, porque a gente tinha condições, como funcionários, condições de comprar a nossa água, e os pacientes não tinham. E os chuveiros queimavam, e a gente para medicar os pacientes, quem trabalhava no noturno, tinha que ir com a luz do celular, porque nos quartos não tinha lâmpada, a gente tinha que medicar no escuro. E eu fui fazendo esse dossiê e mandando para o Ministério Público. E mandei para Brasília, para a SESAI. E nisso, foram fazer uma investigação, e disse assim: “Quem pode, uma pessoa que tem o conhecimento tanto da área da saúde, como do funcionário, quem é que tem o perfil, que defende tanto os profissionais, como defende os usuários”. E foram fazer essa investigação, aponta esse, aponta aquele. E teve um episódio que foi definitivo, teve um parente que veio da minha aldeia fugido, ele tem problemas e transtornos de personalidade. E ele sabia, ele me conhecia de infância, por saber desses meus cuidados, que falava, na comunidade se falava: “A Vanuza trabalha na saúde indígena, a Vanuza”. Aí quando falaram o meu nome, que acolheram ele na rua, falaram que tinha uma Vanuza que trabalhava na saúde, então ele falou que queria me ver. E eu fui fazer o resgate dele. E a FUNAI falou que não era obrigação da CASAI receber, que foi irresponsabilidade da aldeia, que ele não tinha vindo com contrarreferência, não sei o quê, que eles não iam aceitar. Eu falei: “Bom, ou vocês aceitam, ou eu vou no Ministério Público, vou chamar a imprensa, vou fazer um escarcéu e vou dizer que vocês estão negando atendimento ao indígena, uma pessoa que é incapaz, que está fugindo, não importa de quem seja responsabilidade, quem deixou ele sair, o importante é não deixar essa pessoa morrer. Se ele morrer, com certeza eu vou abrir um processo por negligência da FUNAI e todos vocês vão ser culpados, todos vocês vão ser citados”. Aí falou: “Então, o seguinte: vai lá e acolhe ele”. Internei ele, paciente no hospital, fiquei lá responsável, quando ele teve alta eu levei ele lá para a Casa de Apoio ao Indígena. Falou: “Se ele tentar com a vida de qualquer pessoa aqui, a responsabilidade é sua”. E eu conversava com ele, já estava calmo, deixava eu medicar ele. E saiu o dilema para mandar ele de volta para aldeia. Ninguém de lá, da aldeia, quis vim buscar ele, com medo dele cometer alguma violência, porque ele não queria ir. Aí eu falei: “Se eu te levar de avião?” “Eu vou!” Aí eu peguei esse paciente que era agressivo, que deram diagnóstico de esquizofrênico e levei. E no caminho ele disse assim: “E se eu não quiser entrar no avião? Eu sou forte, eu tenho força, eu posso te render.” “Eu falei: “Não, você não pode me render, você tem a força física, eu tenho a inteligência e eu tenho conhecimento técnico, qualquer coisa eu te mobilizo, eu posso até te matar em legítima defesa”. Ele falou assim: “Você é capaz de me matar?” “Sou! Para garantir a minha vida, eu mato!” Aí ele pegou e disse assim: “Então você é boazinha, mas você não é tão boazinha assim!” Falei: “Não, para defender a minha vida não sou boazinha, não. Então fica quietinho, se comporte que você vai chegar lá em Salvador sã e salvo.” E ele falou: “Como é um avião?” “No avião você se senta como se você tivesse numa sala, como se você tivesse no cinema assistindo um filme, de vez em quando dá uma balançadinha, as outras não, mas é tranquilo, você vai está sentado num lugar, mais seguro do que você andar de carro”. Aí eu sentei do lado dele e nisso veio o pessoal do avião e ele fez essa mesma pergunta, falou assim: “Moça, como é tá sentado aqui? Como funciona? A gente vira de cabeça para baixo?” Falou assim: “Não, é a mesma coisa de você estar sentado na sala da sua casa, é tranquilo, de vez em quando mexe um pouquinho, mas não tem problema nenhum não, quando você vê você já chegou lá.” Aí ele virou e falou assim: “Você conhece, sabe quem é ela aqui, você conhece ela? Ela é sua amiga?” Falei: “Não, não sei quem é, nunca vi essa senhora, não”. Aí ele falou assim: “Você é confiável, porque ele falou as mesmas coisas que você falou.” Então fizemos uma viagem tranquila, devolvi ele lá em Salvador. Quando eu cheguei… Me deram um dia de folga, porque eu fui para Salvador de manhã e voltei a noite. Eu falei: “Eu volto no mesmo dia, não precisa de hotel, nem nada, tranquilo, eu vou de manhã, eu só preciso a tarde ficar lá para ver o mar, comer um acarajé, comer um peixe e à noite eu volto”. Então eu cheguei a noite. “Você vai direto para sua casa e no outro dia você fica de folga, tá bom?” Eu falei: “Tá!” No outro dia quando eu voltei, quando terminou a minha folga que eu voltei, a minha demissão estava pronta. E falaram que eu fui demitida porque eu não sabia o meu lugar, eu não sabia cumprir hierarquia, eu era uma pessoa totalmente perigosa para o serviço público, porque eu não sabia o meu lugar. E com certeza foi porque eu que fiz a denúncia no Ministério Público, fui eu que mandei os relatórios para o SESAI, para Brasília, que o ministro na época vem na CASAI, que ele nunca tinha vindo, mas ele achou aquilo ali muito grave, aquela denúncia, se aquilo chegasse até imprensa. Então ele veio, e ele veio no meu plantão, porque eu vi as escalas do plantão que eu tava, se ele quisesse vir me conhecer, ele não precisava falar o meu nome, mas quando a pessoa tivesse apresentando a casa para ele tudo, mostrando, ele ia saber quem foi. Então isso eu disse, ele respondeu que eu não seria identificada e que, por ele, eu não seria demitida de forma nenhuma. Mas eu fui demitida e na hora mesmo da raiva, eu falei. Eu falei: “Eu não nego, eu fiz e faço, se cumprir a hierarquia e ser desumana, atentar com a vida de um ser humano, eu deixo de ser profissional da saúde, eu vou vender alho na feira, vou vender mandioca, vou voltar para o mato, mas eu jamais vou ganhar dinheiro em detrimento da vida humana e principalmente dos meus parentes. Quando eu me formei na enfermagem, eu fiz um juramento de defender vidas, ainda mais eu trabalhando com os meus parentes”. E nisso eu fui demitida. E eu tive reunião depois com o coordenador da CASAI, do Litoral Sul. E ele me disse que, enquanto ele estiver na CASAI, enquanto ele for vivo, enquanto ele for funcionário da CESAI, eu nunca mais trabalho na CESAI. Aí eu falei para ele: “Bom, eu posso não trabalhar na CESAI, mas você vai ter que me aturar enquanto você trabalhar na CESAI, conviver comigo, me respeitar e me chamar de Dona Vanuza, porque eu sou indígena, eu sou uma liderança, você é obrigada a me chamar para as reuniões, a conviver comigo. E você vai conviver comigo, você vai me respeitar. E todas as vezes que eu entrar em contato com o senhor, com o sistema, se vai ter que me desligar. E com certeza você vai passar e o meu povo, eu e a minha história vai permanecer, gostando de mim ou não. E onde eu for eu vou contar essa história que eu sofri”. E depois eles voltaram atrás, disseram que não foi isso, que não foi porque eu cumpri hierarquia, é porque eu não sabia escrever. Eu ainda fui chamada de analfabeta. Disse que eu não conseguia escrever, que eu não tinha o raciocínio lógico. Eu falei: “Engraçado, eu estou na universidade, já comecei um curso de Enfermagem”, que eu parei, eu passei no vestibular… eu já estava fazendo Serviço Social pela PUC-SP. Eu passei em sexto lugar nos indígenas, sexta melhor nota, e eu sou ignorante, sou analfabeta. Eu nunca tirei uma nota vermelha na faculdade, eu não entendo, então se eu não tenho capacidade técnica, eu vou processar quem disse que eu era capaz, eu vou processar o curso que eu fiz, o curso de enfermagem, eu vou processar as professoras que me deram as melhores notas, tanto na teórica, quanto nos estágios, porque eu era um exemplo sempre, de atendimento, de serviço. Eu vou processar essas pessoas que me enganaram, é isso! Vocês precisam fazer um relatório e me dar, dizendo que eu sou incapaz de exercer a profissão, que eu não tenho capacidade intelectual, tem que ser vocês e uma junta, vamos chamar o Conselho de Enfermagem e vamos chamar aqueles professores que me ensinaram, que eles me enganaram, que eles disseram que eu era capaz. Aí eles falaram que não era nada disso, que eu tinha sido mandado embora pela minha ousadia. E era isso. E lá eu nunca mais ia entrar como funcionária, enquanto eles estivessem lá. Então era para eu me conformar, que eu tirasse isso da minha cabeça, que eu era capaz, eu só não servia para trabalhar na saúde indígena, porque eu não sabia o meu lugar. Aí depois disso eu encerrei essa parte, e comecei a minha inquietação, nunca defendi só a causa indígena, a causa das minorias, participei também do fechamento de uma grande empresa na Zona Leste, Ermelino Matarazzo, que era a Bann Química, que ela fabricava veneno que dá câncer de pele. Eu não sei o nome do veneno, vai para bateria de carro, vai para matar inseto, para acetona. Então é um produto bem nocivo para a vida humana, que não pode ser feito no meio urbano. E essa fábrica era na cidade, no bairro, na periferia da Zona Leste, no Ermelino Matarazzo. E nisso, eu era conselheira de saúde, e pessoas começaram a aparecer com câncer de pele, e pessoas a nascer com má formação no cérebro, com microcefalia, começaram muitas pessoas com problemas renais. E a gente foi fazer o mapeamento. Eu como conselheira chamei a gerente da UBS, falei: “Vamos fazer um trabalho!” “Vanuza, nós somos duas!” “Vamos chamar mais alguém!” E a gente chamou mais um presidente da associação. Falei: “Vamos chamar a imprensa!” E nisso a gente chamou a imprensa, chamamos o Ministério Público, chamamos alguns deputados. E lá construiu a USP Leste. E eu fui lá, passei na porta da USP para que a gente fizesse um fórum, um fórum para se discutir. Eu falei com a USP, já que a USP não tem nenhuma serventia para nós, nunca abriu as portas para a gente fazer o vestibular, vamos pelo menos ocupar os espaços, que a USP abra as portas para a gente fazer essas reuniões. Então essas reuniões eram trimestrais. Eu pensei que ia ser um tempo muito longo, mas em dois anos a gente conseguiu fechar essa fábrica, ela mudou para Paulina, para região de Cubatão, porque lá já tem muita poluição, então foi para lá. E precisa ficar vinte anos sendo monitorado esse local que está contaminado, que não pode construir outras casas, é arriscado explodir o gás que tem lá dentro, não pode plantar. Está vazio, tem lá um monitoramento para que realmente se veja o que vai fazer com esse terreno. E eu fiz parte dessa luta, então a minha luta é pela vida sempre, seja ela das pessoas indígenas, seja da periferia. E assim sou eu, a minha vida inteira eu fui dessa maneira. E hoje eu entendo porque eu nasci dessa forma, nasci num ano de muita violência, nasci na ditadura militar. E eu acredito que eu tive uma preparação ancestral: essa daí vai nascer para defender as lutas, para defender as causas, e é isso que eu fiz. Muitas vezes, eu fugi. Quando eu cheguei aqui em São Paulo, eu não disse logo que eu era indígena, eu me identificava como nordestina. E quando as pessoas falavam assim: “Você tem um jeito, você tem um olho, pode ser indígena”. “Eu não pareço indígena, eu sou indígena, nasci numa aldeia”. Aí que eu contava, me encorajava, eu nunca neguei que era indígena, mas eu não chegava nos lugares dizendo que era indígena, porque uma mulher de 1,78m… As pessoas têm o fenótipo de dizer que indígena e tudo cabelo de cuia, da pele vermelha, baixinho, todos parecidos, que só tem indígena no Xingu, só tem indígena na Amazônia, que na Bahia não tem indígena, eu ficava na minha. Mas quando eu era provocada, eu respondia que eu era indígena sim, aí eu contava um pouco da minha história. E foi assim que eu nunca desisti da luta. Quando tinha uma luta, quando me chamavam lá no bairro eu ajudava as pessoas, mesmo sem ter terminado o Serviço Social, eu já fazia trabalhos, ajudava as pessoas a procurar o BPC, aposentar, auxílio saúde, a ir no Conselho Tutelar para vagas de escola, aí na Defensoria Pública para ver moradia, tudo, tudo, tudo que eu podia fazer, eu fazia. Foi aí que eu decidi ser Assistente. Foi dessa forma, que eu falei, para melhorar, pelo salário, não, foi pensando na vida. E há uns dez anos atrás, eu tive um sonho com os meus antepassados, com meu bisavô Selmo, meu bisavô por parte do meu avô Norberto por parte da minha vó. Eu me vi criança passando, correndo, brincando, eu passava, passava e eles lá, sentadinhos num banco e um estava de roupa branca, outro estava com uma roupa preta, e um estava com um bastão daquelas pessoas que usam no candomblé, ele tava assim. Eu não entendi porque um estava vestido daquele jeito, que não eram roupas indígenas, mas eu reconheci eles. E eu tomei a benção, aí eles falaram assim para mim: “Até que enfim você veio até mim, até a gente!” Eu falei assim: “Como assim? Se todo dia eu tô aqui, se eu brinco aqui, se aqui é o meu lugar de brincar, por que vocês não falavam comigo? Assim como eu vim, parei de brincar e vim tomar bença, vocês podiam também ter falado comigo.” Ele falou assim: “Não, a gente sempre chamou você e você que dava as costas para gente! Só que a nossa missão terminou, agora é com você! E não faça as coisas pela metade!” Aí eu falei: “Mas o que que eu faço pela metade?” “Você faz pela metade! Você tem uma missão e você vai ter que fazer ela e fazer direito, fazer ela por completo.” E nisso eu fiquei muito angustiada. E nisso a minha mãe já estava doente, já era acamada, já era cadeirante. E eu perguntei para ela: “Mãe, o que ele quis dizer com isso?” Minha mãe: “Não sei!” Minha mãe sempre foi uma mulher que criou oito filhos, trabalhando, lavando para fora, costurando. E ela trabalhava com os fazendeiros lá na Bahia, ela trabalhava no matadouro, matava gado, ela tratava os pastos. Ela mexia muito com água quente e com água fria, ela atrofiou as mãos. E ela me dizendo: “Eu não sei, você vai ter que entender”. Quando eu fui para Aldeia Multiétnica, que eu sou uma das co-fundadora, que eu participei. Lá no meio da mata, eu pedi para que viesse alguma forma, contestamento que esclarecesse o que eu tinha que fazer, qual era minha missão. E nisso eu escutei uma voz falando no meu ouvido que a minha missão… era por isso que um estava de branco, parecendo que ele era de matriz africana e o outro de preto, que era para eu nunca separar o indígena dos povos de matriz africana, de outras culturas, e também para eu concientizar os negros, que eles sobreviveram por causa dos indígenas, que todo Quilombo que foi formado nesse país, teve a participação dos indígenas, que os indígenas que sabiam onde tinha água, eles não conheciam a mata, eles conheciam as fazendas, eles não conheciam as matas, quem conhecia as matas eram os indígenas. E foi aí onde eles falaram assim… então por isso que os indígenas do Nordeste tem o tamanho, tem cabelo cacheado, tem a pele preta, porque a mistura dos indígenas, que foi formado nos Quilombos e do povo negro. Então a resistência, o Brasil, foi por causa dos nordestinos que foram solidários com o povo negro e ajudou a formar os quilombos. E, por isso, que a gente tem essa mistura desse tamanho, às vezes, o cabelo cacheado, a pele mais escura, mas o sangue que predomina, que a ancestralidade chama, é quando a pessoa mesmo tem uma pele negra e se identifica como indígena, é porque aquela ancestralidade ele herdou e foi determinado pelos ancestrais, que ele tem que defender a bandeira indígena. Mas ele tem que ser solidário e falar também da importância dos negros, porque que se a gente nos unir, os negros e os indígenas desse país, nós somos 60%. A gente elege Presidente da República, a gente elege tudo, a gente constrói universidade, a gente faz uma verdadeira revolução. O que falta entre a gente é a união. E, às vezes, me assusta, essa missão que os meus ancestrais me deixaram. Depois eu fui estudar a história dos meus ancestrais, do meu bisavô Norberto, foi um grande… que no meu povo não é pajé, ele era um grande curador, muitos chamam de feiticeiro. Ele curava muitas pessoas e ele trabalhava com ervas medicinais, ele era o curador, ele era a pessoa forte da aldeia. E o meu bisavô Anselmo era o guerreiro, era a pessoa que enfrentava os poderosos, os fazendeiros, ele fazia reuniões de madrugada, por dentro das matas para que não fosse visto, para que a ditadura não pegasse, para que os fazendeiros no pegassem, então ele andava sempre com a flecha, ele andava sempre com facão. Ele era um guerreiro mesmo. Às vezes, me assusta ele ter deixado essa missão para mim. Eu fui a única da minha família, que tenho… Eu tenho oito irmãos, nenhum diz que éindígena, mas é indígena para ir para o médico, é indígena para participar dos festejos, tem um deles que nem usa cocar, dança. Os filhos desses meus irmãos que realmente vivem a cultura. Eu tenho uma sobrinha, ela nasceu aqui em São Paulo, ela foi para a Bahia e ela anda de cocar na cabeça, lá nossa aldeia mãe, enquanto outras não andam. Ela aprendeu as culturas sagradas, ela faz pinturas, ela se pinta, usa as vestes. E o povo lá não entende porque ela faz isso. E ela perguntou: “Tia, será que eu sigo você?” Eu falei: “Não, você está seguindo a espiritualidade, o que os anciões deixaram para você seguir, cada um tem sua missão”. E assim, a minha avó também me deixou uma missão, a minha avó fazia panelas, pratos, ela fazia. Ela falou: “Olha minha filha, você é a única que tem os dedinhos finos, compridos, delicados, você é a única que eu vou ensinar, para que você realmente faça, para que você não deixe a nossa tradição morrer, porque se você deixar eu morrer, você não fizer, vai morrer comigo.” E eu me distanciei, tem 34 anos que moro em São Paulo, não fiz, não sei fazer mais, mas eu sabia fazer forno, eu com oito anos de idade, eu fazia forno para queimar panela, e as minhas mãos queimavam, eu lembro que eu fazia tudo, produzia. Na minha casa, eu tinha meu copo, meu prato, tudo feito por mim, a panela que eu gostava, cuscuzeira eu fazia, eu fazia uma produção, eu vendia junto com a minha avó, nas feiras. E assim, eu tenho essa inquietação comigo, se eu vou ser capaz de fazer essas coisas todas que foi deixada pra mim, às vezes, eu acho que eu não vou dar conta, que eu não sou capaz de fazer tudo, de seguir essa missão, que é muito forte, é muito forte, a minha vida sempre foi muito… Assim, eu sempre tive muita pressa, eu sempre tive muita urgência e, às vezes, a vida me dá uns tombos que eu não entendo, agora mesmo estou aqui com o pé, o tornozelo quebrado. Eu fui descansar uns dias em Ubatuba, depois do primeiro turno para recarregar minhas baterias. Que eu falei, todos os lugares onde Lula e Haddad estivessem, eu ia, para lutar, para tirar o genocida do poder. Porque a gente estava doente, nós vivemos num tempo muito difícil. Nós vivemos dificuldades… a invasão dos europeus, quando chegaram aqui no país. E entra governo, sai governo, a gente sofre, todos os governos a gente sofre, mas esse, a permissão que eu sinto, que nosso sangue, é um sangue barato, que pode matar que está liberado, que não vai ter punição, pode matar, pode tirar nossas terras, pode tirar nossa cultura, que está permitido, que tudo é permitido para dar um fim na nossas vidas. Que nós vemos agora muito forte, a bancada do cocar vem muito forte, dizendo não a tudo isso e ocupando os espaços. E eu lembro que, no meu primeiro encontro com Lula, eu disse para ele, põe uma mulher… ou deixa os indígenas governarem, não governe sem os indígenas. Porque é impossível governar sem saber a necessidade da aldeia, é impossível o pessoal de fora, os ministros do Supremo, que é a lei maior deste país, governador, dizer o que é certo e errado para gente se eles não forem lá. Falei: “Todo ministro, antes dele ser declarado ministro, eles tinham que ter uma vivência numa periferia, numa favela, numa aldeia. Eles tinham que conhecer todos os brasileiros, porque ninguém defende o desconhecido. Então falei isso para o Lula: “É impossível você ser governador de Brasília sem você ir na aldeia, sem você ir na periferia, sem você nos ouvir, então ponha… de cargo nós temos advogados indígenas, temos professores, nós temos médicos, nós temos todos, todas as áreas nós temos a capacidade de ocupar um cargo com importância. E no dia que esse país for governado pelos indígenas vocês vão saber o que é governar para tudo, governar para distribuição de riqueza, proteção à água, aos rios, a vidas. Esse país vai ser um país independente, nós não vamos depender de país nenhum para nossa existência, nossa subsistência, vamos ser autossuficientes”. Eu falei essas coisas para o Lula, e depois quando ele foi lá no ATL em Brasília, eu ouvi dele, ele dizer que ele ia criar o Mistério dos Povos Indígenas, governado pelos povos indígenas, ia ser indicação dos indígenas. Então com certeza, não é querer ser pretensiosa, eu acho que ele me ouviu, porque eu vi o olhinho dele brilhando, e ele me deu três abraços e a lágrima dele desceu, então ele ficou emocionado com a minha fala. Eu já fiz uma carta, já entreguei para ele, falando tudo isso, dá importância, que a gente não aguenta mais, que a gente não quer mais morrer, que a gente não quer mais derramamento de sangue, a gente não quer invasão das nossas terras. E a gente também não quer que ninguém desse país, desse território, vá embora, a gente só quer que eles nos respeitem. Assim como nós acolhemos eles, e deixamos eles estarem aqui, porque a Terra é a nossa mãe, e uma mãe cabe todos os filhos, então todos que estão aqui são filhos dessa Terra. Uns são filhos porque vieram para cá, outros são filhos porque pertencem a esse território, são nativos desta terra, todos têm que viver aqui, mas cada um respeitando o outro, eles não precisam nos matar porque nós temos um modo de vida diferente. E o que a gente quer é a proteção à vida, no dia que destruir os povos indígenas, com certeza acaba a vida humana na Terra, nós vamos ser uns dinossauros, eu penso isso, que no dia que acabar com os rios, com as florestas, com as nascentes, acaba com a vida humana, tanto acaba com a nossa, que somos os guardiões, como a deles que são os distribuidores. Então está na hora deles nos ouvirem, não é que nós não queremos que o Brasil progrida, que tenha riqueza, que tenha um comércio. Só que a gente quer que tenha um comércio, um capitalismo, que não queira matar, que para eles ficarem ricos, não precisa ter milhões de miseráveis. Não, eles podem ganhar dinheiro e deixar que o filho da empregada doméstica, que os filhos dos indígenas, que quiserem ir para universidade, seja universidade. Porque nós precisamos acabar com essa supremacia branca, colonizadora, imperialista. Eu digo que no Brasil nunca acabou a escravidão, nunca acabou a invasão, todos os dias se produz escravo, todos os dias se produz invasão nesse país, nós vivemos ainda, nós precisamos quebrar as correntes que nos aprisionam. E agora não é mais a corrente no pé que colocava na senzala, é a corrente pelos pensamentos, quando um pobre, um trabalhador, defende a direita, defende o capitalismo, eu comparo como aquele frango da Sadia, que aparece todo bonitinho, todo feliz e que no Natal ele vai para a panela, ele vai morrer. É como também, se o trabalhador hoje em dia fosse o Capitão do Mato, que açoita seu irmão negro, e ele achando que ele pegando o chicote, açoitando o negro, ele deixa de ser negro. Ele acha que sendo contra os projetos sociais, assistência, o assistencialismo, ele vai deixar de ser pobre, e vai ser um rico, entre um oprimido e um opressor, ele vai deixar de ser oprimido. E não vai! O favelado não é elite. Quem tem um mercadinho que vende para o favelado, ele não é um grande empresário, ele é um trabalhador que tem o seu comércio, ele só decide a hora que ele vai abrir e a hora que ele vai fechar, mas ele não deixou de ser pobre, ele não é um grande produtor, ele não é um grande empresário, ele precisa entender isso. Mas como não se entende isso? Você acredita nas Fake News, você acredita nas mentiras. E as pessoas que já tem um pensamento elevado, que entende os seus direitos, entende o que é opressor, o que é oprimido, qual é o lugar de cada um, adoece. Eu sou uma pessoa em constante conflitos, eu tenho insônia, eu não consigo dormir, eu, às vezes, não consigo me alimentar, eu adoeço e quem paga é o meu corpo. Como agora, meu pé quebrou, eu não entendo, foi do nada, porque esse pé quebrou dessa forma em dois lugares, eu não entendo o porquê. Mas é porque é uma carga que eu ponho no meu corpo, muita pesada, que vem da minha mente, da minha inquietação, da minha vontade de colocar coisas na cabeça das pessoas, em defesa da vida delas. Não é em defesa da minha vida, não é, eu não vivo defendendo a minha vida, eu defendo a vida de todos. Eu nunca penso nas coisas no individual: “Eu quero, eu mereço”. Todos os projetos da minha vida foram pensando em todos, pensando nos meus irmãos, pensando na comunidade. E a vida é muito injusta comigo. Ontem eu não fui ao médico, porque eu não achei um acompanhante para ir comigo, eu não encontrei ninguém que tivesse disponibilidade para correr hospital, para ver em que hospital eu poderia fazer um pedido de internação, para fazer a minha cirurgia. As pessoas que eu contatei: “Ah, eu não posso, eu vou trabalhar, eu vou ao médico, eu não posso, não dá, deixa para semana que vem, eu to fazendo isso, fazendo aquilo”. As pessoas me veem como se fosse uma rocha, como se eu tivesse super poderes e pudesse fazer tudo sozinha, como se eu não fosse um ser humano. Eu fui quarta-feira ao médico sozinha, eu fui lá, ele falou assim: “Vanuza, você não pode vir ao médico sozinha”. A enfermeira foi comigo tirar Raio-x. Eu não encontrei alguém que viesse comigo. Então assim, eu cuido de tantos, na hora que eu preciso de cuidado…. O meu povo também é ingrato comigo, eles não me veem, porque também, não sei, eu acho que isso é um defeito meu, eu nunca pedi ajuda para ninguém. “Eu preciso que você faça isso para mim, vem fazer isso comigo”. Não, eu vou lá e faço! Então é uma reflexão que eu faço a todo momento. Às vezes, eu não sei se eu estou num estado de depressão porque, às vezes, eu acho que a minha missão terminou, que eu preciso parar por aqui e deixar que os outros continuem. E, às vezes, eu fico pensando, mas isso não é o pensamento de um covarde, de uma pessoa incapaz, que está se acovardando, que está deixando uma batalha num momento crucial das nossas vidas, que é o momento político, que é o momento de ir votar, que é o momento de engajar no voto e explicar. Essa sou eu, um milhão de conflitos, de necessidades e de urgências, como todos, acho que todos os brasileiros. Às vezes, eu digo assim, eu queria ser duas, três para me juntar comigo mesma. Eu digo: “Se eu tivesse uma máquina de fazer um clone, fazer uma cópia, eu ia me fazer”, sabe? Para eu lutar, porque eu sinto necessidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo, quando eu não estou, isso me adoece. E eu vou deixar de procurar médico esse final de semana para segunda-feira estar com Lula lá no TUCA, com a comissão de pessoas, para a gente fazer um boré, para a gente fazer uma reza, para a gente pedir proteção ancestral para ele. Aí depois de segunda-feira, eu vou me recolher, aí procurar médico para poder fazer a cirurgia do meu pé, para ver se tem chance ainda de recuperar, de colocar pino, se eu vou encontrar um hospital para fazer essa cirurgia. Também se eu não encontrar, eu vou cuidar com ervas medicinais, eu vou ver com os meus ancestrais, se eu posso fazer algum remédio medicinal, mesmo que eu fique… Que o médico disse que se eu não operar logo, se eu não colocar os pinos, eu vou ficar com uma deficiência, mobilidade reduzida. E eu estou me preparando mentalmente para usar bengala, se for necessário, uma cadeira de rodas, se for necessário. Porque só existe um jeito de me parar, é tirarem a minha voz. Se tirar a minha voz, aí eu não tenho como continuar. Mas enquanto for uma perna, enquanto for um braço, eu vou continuar resistência, pela minha existência, e não só pela minha existência, pela existência do outro, do próximo, do nosso povo. E é isso! E se quiser abrir para alguma pergunta, eu transfiro a palavra para você.
P/1 - Então, parente Vanuza, falando de toda essa luta, dessa resistência, você trouxe muitas questões relacionadas à saúde. Então gostaria de perguntar também, como foi a questão do Covid, como vocês fizeram para se proteger, se alguém da tua família chegou a falecer, se isso impactou a família, a comunidade, os parentes que estão em Massacará? Você pode contar um pouco desse momento do coronavírus?
R - Então, assim, morreram familiares meus, mas não tão próximos, morreram primos, mas assim, não tão próximos, que eu tinha uma convivência. Quando surgiu a pandemia, que eu vi que a pandemia estava lá, que isso acompanhava na TV, que estava lá na China, eu falei: “Vai vir para o Brasil, vai vir para o povo, vai nos matar com muita força mesmo. E vai matar primeiro a periferia, os indígenas, nós somos mais sensíveis a doenças respiratórias, vai nos matar”. Eu me lembro que no dia 18 de janeiro, eu sou conselheira do município de Guarulhos, eu tive uma reunião com a Secretaria de Saúde do município de Guarulhos. E eu falei, no dia 18 de janeiro de 2020: “Olha, a gente precisa fazer uma ação forte para a gente se prevenir, para a gente não morrer com esse vírus”. As pessoas que estavam lá, os médicos, a secretária, falaram assim: “Você está viajando, essa doença não é uma doença do verão, nós somos um país tropical, se preocupe com a Chikungunya, se preocupe com a Dengue, não fica arrumando problema onde não existe”. Eu falei: “Vai chegar, vai chegar no Carnaval agora, e vai chegar aqui pelo aeroporto de Guarulhos, porque vai vir com essa globalização, com essas viagens, e eu não tenho condições de viajar, mas eu posso morrer pegando o trem daqui do aeroporto de Guarulhos para me locomover, que eu uso muito, eu posso morrer e muitas pessoas podem morrer, empregadas domésticas, porteiros, somos nós que vamos morrer”. Aí falaram: “Não, não é assim”. E eu mandava e-mail: “Olha, vamos fazer, quem está indo ao aeroporto que não está usando máscara, vamos prevenir”. Eu ia lá no aeroporto, dizia: “A gente não tá tendo nenhuma orientação, nós vamos morrer, eu não quero morrer, eu não quero que meus familiares morram”. E eu fazia isso, quando foi no dia 12 de março, eu fui numa reunião que era do Conselho Estadual de Saúde, acho que era a terceira reunião, já tinha acontecido outras, foi… eu esqueci o nome da cidade, sei que foi numa universidade em Mauá, isso, Mauá. E lá eu falei dessa minha preocupação, que a gente ia morrer, que o trabalho tava ineficiente, que a gente já tinha que está usando máscara, que tinha que fazer um trabalho de proteção, fazer primeiro a prevenção, que não adiantava a gente sair enxugando gelo. E falei essas coisas, alguns concordaram comigo e outros discordaram. E quando eu estava falando isso, eu já tinha falado tudo isso na aldeia multiétnica Dessas Terra e, nisso, a equipe de saúde da UBS foi lá e distorceu tudo que eu disse, disse que era para se preocupar com a Chikungunya, com a Gripe, que iam antecipar a vacina da gripe, que eu não tinha juízo, que eu estava delirando, que eu estava fantasiando e destruíram tudo que eu falei. Eu peguei e fiz uma reunião com todos, com as lideranças, falei: “Gente, vamos fechar a nossa aldeia, vamos fechar a nossa aldeia, vamos sair daqui só quem trabalha em serviço essencial, vamos fazer só o que tem necessidade, vamos fazer nossa prevenção, eu não quero morrer, vocês não querem morrer, aqui não vem o resgate, aqui só tem os bombeiros, aqui é floresta, nós vamos morrer e vamos morrer à míngua, ninguém vai vir aqui socorrer, se ficarmos doente, isso é muito sério.” Aí o pessoal disse assim: “Se a gente não morrer de Covid, vamos todos morrer de fome! Como você vai fazer para alimentar a gente?” Aí a minha prima, Silvia Kaimbé, falou assim: “Eu estou com você Vanuza, se você está com essa preocupação toda, você é Assistente Social, você a Técnica de Enfermagem, você é uma pessoa que se preocupa com coletivo, eu estou com você, nós não vamos mais sair de casa.” “O que vocês vão fazer?” “Nós vamos para as redes sociais, nós vamos pedir para quem puder doar material de limpeza, máscara, comida para nós, porque nós estamos aqui fechados, nós vivemos artesanato, de fazer palestra, a gente não pode sair.” E aí começou, nós fomos a primeira aldeia do Brasil a fechar. A fechar, dizer que só vai entrar lá os serviços essenciais. Nós fechamos, a saúde lá de Guarulhos foi contra. E quando aconteceu a primeira morte, eu disse: “Eu avisei!” E no dia 04 de abril morreu o primeiro Kaimbé, que foi um primo meu, que eu avisei, ele era hipertenso, ele trabalhava de segurança, e ele estava indo de trem daqui, Calmon Viana, a linha que tem mais aglomeração. Eu falei: “Não vá, vá de carro, não vai trabalhar, você vai morrer, você vai morrer”, eu falei para ele: “Você vai morrer”. Quando ele foi internado, a primeira pessoa que ele lembrou foi de mim, e ele ficou internado, ficou em coma, e ele teve um período de memoria e ele pediu o celular dele que estava lá desligado, pediu para enfermeira ligar e dizer que ele queria falar com duas pessoas, primeiro ele falou comigo, ele falou: “Minha amiga, tô indo embora, mas você tentou me avisar, você tentou me salvar, mas eu não te ouvi, eu estou morrendo, porque eu não consegui ouvir você, me perdoe por algumas coisas, gratidão, é a última vez que eu vou falar com você”. Aí ele gravou em áudio, falou: “Vou deixar gravado para você ouvir até o dia que você quiser, quando você achar que não é mais necessário, você apague.” Ele, em seguida, ligou para a esposa e falou para esposa que também não ia ver mais ela, que tinha chegado o fim, mas que ele tinha tido a oportunidade de fazer diferente, mas ele escolheu fazer do jeito dele, ele estava pagando o preço, e faleceu. Aí isso foi quando começou, aí depois logo passou um tempo, eu peguei por imprudência também, de uma liderança que saía, que chegava pegando na mão da gente, que não lava a mão. E uma vez essa liderança foi na minha casa, aí eu fui displicente, sabe? Eu dei café para ele e peguei na xícara e passei a mão no rosto, e logo ele adoeceu, e a gente foi socorrer ele, aí eu já fui equipada, de máscara, eu fiz tudo isso, só que já tava, eu já tinha sido contaminado. Logo em seguida, eu e todas as pessoas que tiveram contato com ele, adoeceram. Aí nisso eu comecei a não me preocupar só comigo, mas me preocupar com os demais, sai pedindo em campanha para que a gente fosse testado rápido, que testasse todo mundo. Porque a gente pedia para a UBS, a UBS dizia ‘não sei o quê’, “não dá para fazer teste rápido”. Aí comecei a ligar para tudo, Rede Globo, liguei na Secretaria de Segurança, liguei para todos os estados, fiz uma corrente, chamei a mídia, chamei todas aquelas pessoas que poderiam nos ajudar, usando o caso dessa liderança que precisou sair da aldeia. Aí, isso que a gente fez, repercutiu, a Globo me ligou, saiu em todas as mídias, foi quando o Instituto Butantan estava desenvolvendo a vacina, e me ligaram, que viram a minha história no jornal e eles queriam contemplar aldeia com testes rápidos. Aí eles falaram: “Mas a gente não sabe, a gente não tem estrutura toda para fazer”. Eu falei: “Contata a Secretaria do Município”. Taquei-lhe o telefone lá da Secretária do Município de Guarulhos, falei: “Entre em contato com ela, vocês trazem a tecnologia, vocês trazem os testes e eles trazem os profissionais, faz uma rede de proteção e testa todo mundo”. E nisso foi testado, lá foram testadas cinquenta pessoas, onde sete deram positivo. E eu fui uma delas, tinha dado positivo, mas eu já sabia, pelos sintomas, eu sentia falta de ar, eu sentia todos os sintomas e se eu tivesse ido para o hospital, com certeza, seria entubada, porque eu não dormia de noite, tinha medo de morrer sem respirar, eu sentia muita falta de ar, eu não dormia, ficava sentada. E tinha um grupo… eu falava para as outras pessoas: “Eu estou bem, eu vou ficar bem”. E eu falei: “Eu não posso esmorecer, porque se eu for para o hospital, esmorecer, vai um atrás do outro, não é isso que eu quero”. E eu não fiquei satisfeita, eu falei: “Vocês tem que fazer o teste rápido nos indígenas de Guarulhos, porque aqui nós somos uma aldeia pequena, a gente tem quase dois mil indígenas e tem uma outra aldeia que referência, que é no Soberana, que tem que levar esses testes rápidos para o Soberana. E aí foram lá, testaram também, mais de vinte testaram positivo, mas ninguém precisou ficar internado. Enfim, Guarulhos, na aldeia, eu acredito que ninguém morreu pela prevenção, pelo trabalho que partiu de mim, mas eu não fiz nada sozinha, se as outras lideranças, as pessoas, a população, não tivessem aceitado, acreditado realmente, não teria tido sucesso, porque ninguém faz nada sozinho. Depois dessa intervenção que eu fiz, eu fiz uma entrevista, o Butantan publicou no site a minha história. Um estudante da USP fez um texto e eu assinei junto com ele, foi publicado. Devido a essa publicação, quando foi para escolher as pessoas que iam ser as primeiras a serem vacinadas, me escolheram, eu como a primeira indígena do Brasil a ser vacinada contra o Covid. Eu estava na Bahia, eu tinha ido na Bahia lá, com todos os cuidados, com máscara e tudo, de carro, toda proteção. Eu tava lá, eu ia ficar lá dias, e eu voltei, quando eu cheguei, na quinta-feira, quando foi na sexta-feira, eu recebi o convite para que no domingo eu fosse… eu tinha sido contemplada, primeira indígena a ser vacinada no Brasil, seria eu. Eu ia ser a segunda pessoa, a Mônica que era uma enfermeira negra, ia ser a primeira e eu ia ser a segunda a ser vacinada, íamos ser nós duas. E era para tirar uma foto comigo, ela e o governador João Dória, e eu apesar de ter tido toda gratidão, porque ele ajudou a salvar vidas, ele fez o papel que tinha que ter sido do Governo Federal, ele fez, ele salvou muitas vidas, travou uma luta pela saúde. Mas não é só a saúde, ele deixou a desejar na educação, ele deixou a desejar com os idosos, ele cortou o passe da prioridade dos idosos. Então ele fez uma série de políticas públicas, que eu não votaria para presidente, ele poderia ter feito bem melhor do que ele fez, mas realmente a minha gratidão, não posso ser ingrata a ele pelo bem que ele desenvolveu no apoio à saúde, um guerreiro. Mas, mesmo assim, eu não me senti confortável de sair na foto com ele, eu não saí, só saiu a Mônica, eu não saí, eu os distraí um pouquinho, disse que eu precisava sair, que eu estava em pânico, que veio aquela repercussão. Mas não foi não, é porque eu não queria, foi pensado isso aí. Eu me sentia muito culpada por ser Técnica de Enfermagem, ser Assistente Social e não ter ido trabalhar, ido para linha de frente, para estar nos hospitais, trabalhando, levando a minha experiência, meu amor. Eu me senti um pouco egoísta, mas eu vi que eu, o que eu fiz também, foi de grande valia, que eu também trabalhei do meu jeito, eu fui buscar recursos, proteção para as pessoas que estavam próximas de mim. E muita gente não ia ser vacinado, porque as pessoas diziam assim: “Por que nós somos indígenas e vamos ser os primeiros a serem vacinados? Querem nos matar! Já nos matam! Por que não foram os deputados a serem vacinados? Por que não foi o presidente? Porque não foi aquilo? Eu não vou me vacinar!” Por eu ter trabalhado na saúde indígena, por eu ser conhecida no Brasil inteiro pelos indígenas, de norte a sul, de leste a oeste do Brasil inteiro, porque a CASAI São Paulo atendia os indígenas do Brasil inteiro. Então as pessoas quando me viram, eu ali defendendo, me vacinei, depois eu dei entrevista, que eu estava bem, aí a maioria dos indígenas, da população das periferias se vacinaram porque viram em mim, que eu me vacinei, que eu não senti nada, então por isso se vacinaram. Então, eu acredito que foi nosso ancestral que disse, assim: “Você fica, que a sua hora vai chegar, que o seu trabalho vai ser importante, você só precisa ter paciência e esperar, vai fazer o seu trabalho da forma que você tá fazendo”. Eu não me sinto mais culpada por ter voltado para o mercado de trabalho, por não ser uma linha de frente lá nos hospitais onde precisava.
P/1 - Que atuação importante, né, parente? Para combater o Covid, as perdas são irreparáveis, mas, no final, eu acho que você foi pelo caminho certo, batalhando, lutando para ajudar as outras pessoas. E aí você falou bastante, agora passando para um tema que você trouxe, a questão do território de Guarulhos, dessa luta por um espaço, por um território. Eu gostaria que você contasse um pouco disso, como foi sua luta por esse território, como está sendo agora? Se você pudesse falar dessa Aldeia Multiétnica.
R - Eu fui uma das fundadoras, eu entrei lá com outras famílias, com cinco famílias Kaimbé, com o Pajé Alex, com a minha prima Silvia, mais outras famílias. E assim, por ser uma Aldeia Multiétnica, uma aldeia de vários povos, a gente tem o discernimento de que um indígena de uma etnia não pode mandar na outra. Então tinha essa liderança, que só era de um povo e, esse que não tinha povo, queria liderar as outras etnias. E nós, Kaimbé, nós éramos os que tinha mais famílias, nós tínhamos cinco famílias, e cada família tinha três, quatro, então nós éramos a população maior que entrou lá. E a gente não aceitava ser liderado por uma pessoa, que só tinha um representante, a gente achava que ele tinha que trazer o povo dele para ele liderar o povo dele. Então a gente decidia tudo em assembleia, e isso gerou muito conflito, no início, o Cacique Alex foi embora. O Cacique Alex, foi feito uma reunião para que ele fosse impedido de entrar na aldeia e, depois, houve a perseguição a Silvia, que se tornou a liderança depois dele. Aí quando a Silvia foi embora ficou eu, e a perseguição ficou na minha pessoa, de ser mulher, de ter as falas interrompidas, ter um machismo muito grande. Eu fui até… quiseram até me agredir fisicamente lá em algumas reuniões, por eu discordar, por eu ter um pensamento crítico, porque eu não queria as imposições que muitos deles queriam. E isso aconteceu, a gente teve vários conflitos, mas não teve nenhuma agressão física comigo, nem nada que eu sentisse que eu tinha que sair de lá. Mas isso foi passado, porque eu fazia um trabalho, eu busquei recursos, construí uma cozinha comunitária, eu trabalhava no serviço dos homens, cavando barro com enxada, eu e as outras mulheres. Nós, mulheres, a gente trabalhava mais no pesado do que os homens, a única coisa que a gente não fazia era subir nos telhados para consertar, porque a gente tinha um certo medo de cair, de receio. Também, a maioria das mulheres tem mais de quarenta anos, problemas no joelho, outras com problema de quadril. Enfim, uma série de problemas de saúde, que não era prudente subir no telhado para construir alguma coisa, de telhado, então essa parte a gente não fazia, mas o pesado, carregar telha, madeira, cavar buraco, porque lá é íngreme, tudo tem que ser na pá, no carrinho, cavei muito barro. Quando eu arrumei o recurso, porque partiu de mim, porque partiu de uma mulher, partiu de uma Kaimbé. E depois, quando eu entreguei a cozinha pronta, consegui essa cozinha com muita resistência, com apoio de muitos, ainda teve aqueles que apoiaram, eu não fiz sozinha, nunca ninguém faz nada sozinho. Isso foi me desgostando um pouquinho da aldeia. E quando eu fazia alguma coisa, sempre não gostavam, mesmo que a ideia fosse boa, mas se partisse de mim, não servia, boicotavam. Então eu estava me sentindo perseguida, e foi me dando uma impaciência, e eu vendo que o movimento Kaimbé, que nós temos uma trajetória, eu sou conselheira do movimento Kaimbé, a gente fez o cadastro de 180 famílias, e vacinamos essas pessoas e precisava de um trabalho grande fora, aí a gente abriu a casa de resistência do povo Kaimbé no Estado de São Paulo, Itaquaquecetuba, corremos atrás de alimentação, de cesta básica, a gente distribuiu através da FUNAI, que a gente fez o requerimento mais de novecentas cestas básicas nesta pandemia. E eu falei: “Não, eu não preciso estar na aldeia, a aldeia está andando por si, a minha missão lá terminou”. Eu fui uma das co-fundadoras, eu ajudei também a formar para ter aulas de reforço, já tem as aulas de reforço aos domingos, deixei a cozinha equipada, funcionando, deixei a Oca Kaimbé lá pronta. Enfim, uma aldeia estruturada, que eu senti que ali não precisava mais da minha presença, que outros lugares estavam precisando de mim. E foi assim que eu resolvi me afastar da aldeia, agora no finalzinho de agosto. Mas eu não parei de lutar pelas políticas públicas para lá, é tanto que nós vamos estar com o Lula em maio, uma comissão de lá da aldeia, que eu convidei, que eu chamei. Teve o 5º Agosto Indígena, eu não fui, mas eu corri atrás de cobertores, foi numa época de frio, para as pessoas. Então eu faço ação social até lá, tudo que eu consigo dentro das minhas limitações de políticas públicas, eu abraço, porque lá é um lugar… e onde tiver um indígena que queira minha presença, que queira minha colaboração, mesmo que a gente não seja amigos, para passar um final de semana na casa, eu respeito as lideranças e quero que todos vivam bem. O que eu não entendo é essa competição de ficar no nosso movimento indígena, que se um desenvolveu uma política, não serve daquele, então essa separação, essa divisão, eu não concordo, eu acho que a gente tem que se unir e não importa de quem foi a ideia, o projeto, o importante é a gente abraçar e seguir junto. Porque todas as vezes que a gente discorda, isso nos enfraquece, isso nos prejudica.
P/1 - Realmente, nós convivemos com essas ideias diferentes e temos que seguir respeitando a opinião do outro para que a gente possa chegar num objetivo final, que é a luta pelos nossos direitos e principalmente pelo nosso território. Bom, mas você falou de tantas coisas e uma parte que acho que você precisa nos contar é a respeito, hoje, do seu casamento, dos teus filhos. Como está isso hoje?
R - Olha, eu nunca me casei, você acredita? Eu tenho 52 anos, eu nunca me casei. Eu tenho um filho, Felipe, tem 26 anos, eu não quis o pai dele, fui eu que fugi, o pai dele ficou cinco anos sem me ver. Porque eu descobri que ele era jogador compulsivo, ele jogava baralho, ele jogava apostado, ele não é indígena, o dinheiro que ele pegava, ele ia para a banca de jogo, ele voltava sem nenhum real. Aí eu descobri que ele perdeu casa em banca de jogo, perdeu, ele tinha uma pizzaria, ele perdeu tudo por causa de jogo. Então eu pensei comigo: “Oxi, se eu ficar com esse ‘cabra’, eu vou me lascar”. Eu, além de sustentar o meu filho, sustentar ele, quando eu tiver dinheiro para pagar uma conta, ele vai embolsar o dinheiro, não vai pagar a conta, eu vou ficar sem água, sem luz, sem comida dentro de casa, ele vai pegar dinheiro na minha carteira, e a minha vida vai ser um inferno, eu vou é correr, vou levar o meu filho dele, porque se for pagar pensão para o meu filho, ele vai levar o meu filho de final de semana e vai ensinar meu filho, ele vai levar meu filho para boca de jogo e eu não quero nenhum contato com esse homem. E eu fugi, e ele me achou depois de cinco anos e eu falei: “Eu não quero nada com você, mas se você quiser ver o meu filho, eu vou pedir para minha irmã levar você para encontrar com meu filho”. Aí ele foi, deu umas coisas para o meu filho, tinha cinco anos de idade, deu um monte de coisas para o meu filho. Aí eu não sei o que ele falou que o meu filho não gostou: “Você é ruim! Você é ruim igual a sua mãe! Você é ruim, você saiu a sua mãe, sua mãe é muito ruim!” E eu nunca tinha falado para o meu filho que ele era ruim, eu só disse que ele tava viajando, que o Brasil era muito grande, que muita gente se perde, fica desaparecido, mas se ele tivesse vivo um dia ele ia voltar e ia procurar ele, e era isso que eu dizia para o meu filho. Aí ele falou que era ruim, o meu filho foi e deu um chute na canela dele, e falou: “Eu não quero ter pai!” E chegou em casa e falou: “Mãe, eu posso não ter pai?” Eu falei: “Pode! Se você não quiser ter pai, porque você nunca teve mesmo pai, fique sem pai!” Aí ele ligou para o meu filho, meu filho falou assim: “Olha, eu não quero ter pai, não! Eu decidi que eu quero continuar só com a minha mãe, com os meus tios, e você pode ficar sumido para sempre, eu não quero ter pai não, que você não é um bom pai não. Minha mãe está certa de não querer contato com você, porque ruim é você, não é minha mãe, não.” Aí ele quis falar comigo, falou que fui eu pus o meu filho para falar isso. Mas eu nunca falei isso para o meu filho, foi meu filho que não quis. E, hoje, o meu filho fala que não tem o nome dele no documento, porque ele morreu antes dele nascer, e eu não quis correr atrás para colocar o nome dele. Então é essa história que o meu filho conta e é essa história que eu conto. E depois, eu disse assim: Eu não vou arrumar um relacionamento para alguém bater no meu filho, agredir, e eu não quero. E eu dizia para os meus irmãos: “Olha, o meu filho tem mãe, qualquer coisa você pode educar, vocês podem reclamar, mas vocês não puxam a orelha, vocês não batam nele, porque o meu filho vai ser criado na conversa, no cuidado, na educação, mostrando, não na violência física”. Porque se eu bato no meu filho hoje, amanhã ele vai sair batendo nos filhos dele, quando ele discordar de alguém ele vai tacar-lhe a porrada em alguém, vai morrer, vai ser preso e eu não quero que meu filho nunca levante a mão para ninguém, a não ser que seja em última e legítima defesa. Aí os meus irmãos nunca fizeram isso. E eu nunca tive coragem de me casar, nunca me casei. Agora, estava num relacionamento, de cinco anos de relacionamento, esse meu companheiro, nós fomos, resolvemos viajar, após a eleição, ele não concordava muito com essa minha vida tão agitada, ele não é indígena, mas ele é um professor, ele defende as causas indígenas, ele gosta das mesmas coisas que eu, da natureza, quando a gente viaja a gente viaja de barraca, a gente só arruma um lugar de apoio para tomar banho, uma estrutura próxima, alguma pousada, algum restaurante que a gente possa ter um pouquinho de conforto, mas a gente fica mais na mata, sempre com barraca. Agora que eu quebrei o meu pé lá em Ubatuba, ele tinha ido comprar um peixe e eu fiquei para fazer uma salada, um arroz e organizar as coisas. Quando ele chegou com o peixe, eu estava com o pé quebrado. Chegou com peixe, com camarão, eu não disse, falei: “Já fiz minha parte, faça você o peixe, o camarão.” Aí depois que ele fez, a gente almoçou: “Faz o prato pra mim que eu tô cansado!” Aí eu falei para ele que eu tinha sofrido um acidente, que eu estava com pé, provavelmente com uma fratura, que eu ia precisar dos bombeiros para sair de lá, que eu não ia conseguir sair de lá nem andando, nem pulando, nem de forma nenhuma. Ele fez todos os trâmites, me ajudou. Fui eu que chamei os bombeiros, os bombeiros disseram que não iam, chamamos o resgate, o resgate foi, uma série de pessoas foi ajudar a me socorrer. Ele foi, me acompanhou no hospital, o hospital achou prudente que eu viesse para São Paulo, ele me trouxe e disse para mim que era injusto eu interromper o passeio dele, que ele já tinha, que ele estava com uns problemas psicológicos, que ele tinha que render a nossa relação, porque o meu modo de vida era muito diferente do dele e que ele precisava de um tempo para pensar. Como a minhas coisas tinha ficado lá em Ubatuba, trouxe as minhas coisas, trouxe para cá e veio aqui, passou um dia e disse: “Olha, eu preciso de um tempo, eu vou viajar, eu vou para o Rio de Janeiro, porque você é muito exigente, eu não sei empurrar cadeira de rodas, eu não consigo te acompanhar e eu preciso de um tempo para mim, porque apesar da gente ter muita coisa em comum, a gente tem muitas diferenças e o seu modo de vida me assusta”. E foi-se embora, na hora que eu mais precisei dele, para me ajudar, para me levar ao médico. Aí por isso que eu estou nesse conflito, eu não fui ao médico porque eu não tive quem me levasse. Todo mundo fica perguntando: “Cadê o seu filho?” O meu filho está no último ano da faculdade, na PUC, ele está enrolado com tudo, com TCC, com matéria que ele está devendo e ele está fazendo estágio, e se ele faltar na faculdade, faltar no estágio, aí não recebe, é pouco, vive uma vida que não é as tradições indígenas, ele vive numa outra vida, nasceu aqui em São Paulo. Eu também tenho culpa, porque eu criei ele com muito mimo, muita regalia. E hoje ele paga aluguel, ele vive uma vida totalmente desregrada financeiramente e não pode me levar. Aí vem aquela pergunta: “E cadê o Fulano?” Eu falo: “O Fulano foi-se embora, Fulano foi-se embora!” E me deixou no momento que eu mais precisava e foi refletir no Rio de Janeiro, nas praias. E ele acha que ainda fez muito, porque quando ele me deixou, fez um pix para mim com o dinheiro do Uber, para eu pagar para ir para o hospital lá, e falou que eu podia me virar sozinha. E realmente eu fui sozinha, paguei o Uber daqui para o hospital São Paulo, é longe, ida e volta, e foi e foi isso que ele fez. E ele acha que ele fez muito, porque ele voltou de Ubatuba comigo, foi buscar as minhas coisas, trouxe de volta, gasto com gasolina, com pedágio, com uma série de coisas. E é como se eu tivesse pagando o preço, quem mandou eu quebrar a minha perna, quem mandou eu interromper os dias que eu falei que ia sair fora da política, que eu ia deixar o celular de fora, que eu ia só voltar na última semana para os trabalhos de campanha? Então é isso a minha vida. Eu acho que eu tenho o dedo meio podre para escolher relacionamentos. E também, eu acho que eu sou um pouquinho covarde, porque eu nunca tive coragem de me casar, nunca tive coragem de dividir o mesmo teto com homem nenhum, única pessoa que eu dividi o teto foi com meu filho, ele saiu porque ele quis, porque ele quis morar com a namorada, eu ainda disse para ele que ele estava despreparado, não estava preparado, ele ouviu, e foi isso. Essa sou eu, cheia de contradições.
P/1 - Nossa, mas vai dar certo. Eu acredito. Ainda há tempo! Bom, eu acho que tem uma parte da sua história que eu gostaria de ouvir um pouquinho mais, por mais que a gente tenha que voltar um pouquinho no tempo. Como foi o teu momento de criança, das brincadeiras, histórias que você ouvia? Se você puder contar um pouquinho desse momento da sua vida também? Com mais detalhes.
R - Olha, as minhas brincadeiras de criança não eram muito comuns para uma menina, eu dificilmente brincava de boneca, não que não tivesse bonecas. As minhas brincadeiras eram de bola, aquelas bolas de meia, de jogar para o lado, quem tá no meio para acertar a bola, a gente chamava de baleou. As minhas brincadeiras eram subir em árvore, jogar bola com os meninos, eu andava mais com os meninos do que com as meninas, era ir tomar banho nos lagos, no Rio. E, às vezes, as pessoas questionavam minha mãe: “Sua filha não pode andar junto com esse monte de meninos, que não sei o quê…” “Mas ela tem os irmãos.” Eu sou a quarta mais velha, os três mais velhos eram os meus irmãos homens, então eu tinha que andar com os meus irmãos, quando não era com os meus irmãos, era com os meus primos. As minhas primas eram mais na escola, e elas falavam que quando crescesse, [queriam] se casar e ter casa, ia casar com o filho do Fulano e isso me tirava muita a paciência. Porque eu não pensava realmente em casar com ninguém, em ter casa com ninguém, em ser dona de casa. Era realmente sair, era conhecer a Avenida Paulista, eu escutava em rádio novela, essas coisas. Eu não pensava nessas coisas, então a minha infância era só isso, era ir tomar banho nas cachoeiras. Eu trabalhava na roça, eu plantava e não era minha mãe que mandava não, era eu mesma que gostava, eu ficava muito feliz quando eu plantava o milho, a mandioca e depois eu colhia e eu dizia assim: “Isso aqui é meu, isso aqui é meu, fui eu que plantei”. Eu parei mais de ir para roça, quando um cara passou e falou assim: “Eu vou casar com essa menina porque ela é muito trabalhadeira.” Ele falou bem assim, trabalhadeira. Aquilo me deu uma raiva, eu não vou mais na roça, eu não vou mais trabalhar, que eu não quero casar com esse bicho feio, imagina, quer casar comigo, eu não vou, não vou mais trabalhar. Mas eu acho que eu tive uma infância feliz, nasci numa casa de taipa, nasci numa cama de colchão palha de banana, chão sem cimento, terra, sem luz, sem água encanada, a água era buscada numa cacimba, ou numa cachoeira, num riozinho, era longe, a gente trazia na cabeça, ou a gente tinha um jumento, trazia nos barris. E foi isso! Mas eu não tenho nenhum pensamento ruim da minha infância, é tanto que eu gosto. Na minha velhice, eu pretendo ir morar no mato, onde tenha um rio, numa casa sem energia elétrica, se tiver água encanada, mas água encanada da nascente do rio, chuveiro frio, cozinhar no fogo a lenha, sem conta de água, sem conta de luz. E se eu tiver condições, de vez em quando, de descer na cidade para comprar alguma coisa que eu não consiga plantar. Meu sonho é morrer igual aquele parente que morreu, que não foi enterrado ainda, que era o homem, o índio do buraco. Ele foi achado numa rede morto. Então é essa velhice que eu quero para mim, é dessa forma. Então não é ruim, porque se fosse ruim eu não queria voltar às minhas origens, não queria voltar a morrer, a terminar os meus dias do jeito que eu vivi. Então é esse o meu ideal de vida, e isso que eu quero para mim na minha velhice. E já tá chegando! Porque já estou com 52 anos, já já tá esse tempo de eu me recolher no mato.
P/1 - Bom, imagina, ainda tem tempo. Eu acho que essa conexão que a gente nunca perde com a natureza, sempre nos puxa, por mais que a gente esteja num contexto urbano, eu hoje estou também, mas sempre tem alguma coisa que nos leva a pensar nesse caminho de volta. Mas falando em futuro, eu gostaria também de te perguntar quais são as coisas mais importantes para você hoje, quais seus sonhos? E também o legado que você quer deixar para as futuras gerações?
R - Olha, eu quero deixar na minha história de vida, o meu TCC, a minha monografia que foi falando das mulheres indígenas em contexto urbano, uma luta pública. E virou e capítulo de um livro, e saiu numa revista também, social, da faculdade lá da cidade de Euclides da Cunha. Eu pretendo agora escrever, agora estou escrevendo um texto, que é o primeiro agosto indígena Kaimbé, para falar da importância do agosto indígena, a importância das nossas ações, fechar o nosso evento da organização do movimento Kaimbé… 270 famílias cadastradas, com endereço onde moram, que tem um cadastro para se vacinar, para buscar políticas públicas. Nós somos o único povo que teve agora na Sexta Conferência de Brasília, primeiro Cacique indígena do contexto Urbano, que é o cacique Alex, que está indo lá participar, representando os indígenas urbanos. Então, o meu legado é deixar que as pessoas não deixem de ser indígenas porque nós estamos no contexto urbano, não deixem de ser indígena porque está numa universidade, não deixem de ser indígenas porque ela tem um modo diferente, porque ela não é o indígena de 1500, porque também o europeu de 1500 não é o mesmo, eles também mudaram, o modo de vida deles mudou, a ganância, o imperialismo, a colonização, só essas coisas que não mudaram, mas o modo de vida mudou. Esse legado que eu quero deixar. E escrever e deixar esses escritos para, quando eu partir, servir de exemplo para os indígenas, para outras mulheres, para elas dizerem assim: “Eu consigo!” Uma mulher indígena, nordestina, mãe solo, chegou em São Paulo, trabalhou como empregada doméstica, fez Técnica de Enfermagem, fez Serviço Social. Só não fui atuar no município… no momento, porque eu acho que a minha posição é outra… é possível, eu tenho uma outra… Para realmente voltar e batalhar para quem entre mais indígenas na política, para nós fazermos a nossa lei, porque eu entendi que não adianta ir para Brasília igual nós fomos fazer nossas manifestações, levar spray de pimenta. A gente precisa ter coragem de entrar na política e se eleger vereador, prefeito, governador, presidente da república, que a gente mesmo precisa, a gente não pode mais, eu não aguento mais ouvir… Eu disse a última vez na PUC, que teve o Manifesto pela Democracia, que foi para falar sobre o ato da invasão da PUC pelos militares. E eu disse, eu vendo as pessoas falarem, eu fui a penúltima a falar e as pessoas falando: “Em defesa dos povos originários, em defesa da periferia, em defesa ao negro”. Mas era um discurso vazio, a teoria sem a prática. E realmente, quem for falar em nosso nome, fale, não só da boca para fora, não fale muito, faça mais do que fale. Então, eu já não aguento mais as pessoas dizerem que são defensores das causas dos povos indígenas, dos povos originários e quando tem uma manifestação não aparece, quando mata um indígena eles não vão para redes sociais: Quem matou Fulano, quem matou aquele, quem foi? Investigue! Nós fizemos esse ano, eu não me lembro a data, foi o Dia Mundial em Defesa da Água, tinha meia dúzia de “gato pingado” lá na Paulista, a gente ia fechar a Paulista, nem fechamos, ficamos no vão do MASP, meia dúzia de “gatos pingados”. Aqueles defensores, aqueles políticos, aqueles vereadores, deputados, que falam que são amigos dos índios, que quando vê a gente abraça, tira o cocar da nossa cabeça e põe na cabeça deles. Eu não vi nenhum deles lá, tinha meia dúzia de “gatos pingados”, tinham os ativistas mesmo, aqueles que estão nas redes sociais todos os dias, que estão na luta do nosso lado. E não tinha ninguém, a gente ficou no vão do MASP, porque a gente não podia fechar a Paulista com meia dúzia de “gatos pingados". Então essas coisas me incomodam… E o legado que eu quero deixar… Pare de usar o nosso nome só para aparecer. Não faz o dever de casa e não põe a teoria com a prática, um sem o outro não funciona.
P/1 - Muito bem! Acho que é um legado que vai fazer muita diferença para todos nós. E que se concretize. Ele está se concretizado, né parente? Bom, nós estamos chegando ao fim… tem muitas coisas que a gente poderia passar o dia, dois dias, vários dias conversando. Mas tem alguma coisa que você não falou durante a entrevista e que você gostaria de acrescentar, parente?
R - O que eu queria falar, para que a gente realmente cuide um dos outros, para gente cuidar do adoecimento que a gente está, da saúde mental, para a gente procurar ajuda, psicólogo, psiquiatra, terapeuta, para a gente falar sobre isso, é muito forte isso. A nossa alma, as nossas mentes estão doentes, a gente precisa se cuidar e tratar, porque o suicídio está aí batendo na porta de muitos indígenas. Nós somos a população que mais comete suicídio no Brasil e não é divulgado, principalmente, os nossos jovens. A gente precisa tratar, porque é isso, um cuidado especial mesmo com a saúde mental.
P/1 - Realmente é um problema que está chegando cada vez mais na nossa comunidade, eu também tenho percebido isso, dessa doença mental, além das outras que não eram nossas, mais essa ainda. Mas agora, depois de você dar todo esse histórico, esse currículo, gostaria de te perguntar também, como foi contar a sua história?
R - Foi um pouco de emoção, sabe? Umas lágrimas vieram, a gente volta, faz uma viagem no tempo, passa por problemas que adoece, às vezes, eu acho que me torno repetitiva quando eu falo do que eu sofri na Saúde Indígena, de ser demitida, de ter sido agredida, ter sido chamada de incapaz. Foi uma superação e todas as vezes que eu toco nesse assunto, dói, dói, não é uma ferida que já fechou, ela ainda está aberta, e isso é muito difícil, mas eu sei que eu tenho que falar para aquilo que aconteceu comigo não acontecer com os outros profissionais. E saber quanto é difícil, a gente estuda, a gente se capacita, a gente se prepara e a gente não é aceito nos locais de trabalho. Então, para que todos se fortaleçam, para eles se prepararem, que mesmo tendo um curso superior, um mestrado, um doutorado, pós-doutorado, para nós, é sempre mais difícil. A gente tem que resistir todos os dias para existir. E eu queria só realmente existir, eu não queria ter que resistir todos os dias não, não gosto! Então, todas as vezes que eu toco nessas feridas, as lágrimas vem, mas eu sei que é necessário que eu fale, para deixar registrado e para que quando alguém passar pelo que eu passei, dizer: “Ela sobreviveu, ela superou, ela não desistiu”. Que o outro também diga: “Se ela conseguiu, eu também vou conseguir”.
[Fim da Entrevista]
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