IDENTIFICAÇÃO Paulo Pederneiras Barbosa, Belo Horizonte. Eu nasci no dia 21 de julho de 1951. PAIS Acho que meu pai tem 84 anos e minha mãe deve ter uns 81, 82 anos. O meu pai se chama Manuel de Carvalho Barbosa e minha mãe, Isabel Pederneiras Barbosa. Meu pai tem a formação de engenheiro, foi ferroviário a vida toda. Logo que se formou, ele trabalhou em algumas cidades do interior. Eu vivi em algumas dessas cidades também, mas não tenho muita lembrança delas porque eu era muito novo. Até que ele voltou para Belo Horizonte. Na verdade, ele teve a sua infância nessa cidade, estudou lá. Aí ele voltou para Belo Horizonte para trabalhar na Rede. RELIGIÃO É uma família muito religiosa a do meu pai, muito católica. Eu tive muito desse ambiente religioso em casa. Até os 14 anos, o ambiente era muito rígido. A partir dessa época, por causa de uma conversa que eu tive com meu pai, as coisas, então, se abriram e a gente teve toda a liberdade. Lá em casa, somos seis comigo, eu sou o segundo. São quatro homens e duas mulheres. No final, ninguém teve um casamento formal. E hoje, o meu pai, mesmo a partir dessa rigidez religiosa – que ele ainda conserva –, ele já tem uma outra maneira de olhar, pelo menos para os filhos. Hoje, ele é fã do que a gente faz, do Grupo Corpo, do trabalho que a minha irmã faz, a Miriam, que, além do Grupo Corpo, faz um trabalho também nessa outra ONG que o Corpo tem, o Corpo Cidadão, que é voltado para essa área social. FAMILIA O relacionamento familiar, na verdade, sempre foi muito tranqüilo. Acho que eu tinha um pouco mais de embate com meu pai, mais que todos os outros irmãos. Mas, hoje em dia, a gente tem um relacionamento muito tranqüilo. Eu viajo muito, passo a maior parte do tempo fora de Belo Horizonte. Mas sempre que eu estou lá, eu almoço cada dia com meu pai e minha mãe. Minha mãe é tudo de bom, sempre foi muito liberal, sempre foi a favor dos filhos....
Continuar leituraIDENTIFICAÇÃO Paulo Pederneiras Barbosa, Belo Horizonte. Eu nasci no dia 21 de julho de 1951. PAIS Acho que meu pai tem 84 anos e minha mãe deve ter uns 81, 82 anos. O meu pai se chama Manuel de Carvalho Barbosa e minha mãe, Isabel Pederneiras Barbosa. Meu pai tem a formação de engenheiro, foi ferroviário a vida toda. Logo que se formou, ele trabalhou em algumas cidades do interior. Eu vivi em algumas dessas cidades também, mas não tenho muita lembrança delas porque eu era muito novo. Até que ele voltou para Belo Horizonte. Na verdade, ele teve a sua infância nessa cidade, estudou lá. Aí ele voltou para Belo Horizonte para trabalhar na Rede. RELIGIÃO É uma família muito religiosa a do meu pai, muito católica. Eu tive muito desse ambiente religioso em casa. Até os 14 anos, o ambiente era muito rígido. A partir dessa época, por causa de uma conversa que eu tive com meu pai, as coisas, então, se abriram e a gente teve toda a liberdade. Lá em casa, somos seis comigo, eu sou o segundo. São quatro homens e duas mulheres. No final, ninguém teve um casamento formal. E hoje, o meu pai, mesmo a partir dessa rigidez religiosa – que ele ainda conserva –, ele já tem uma outra maneira de olhar, pelo menos para os filhos. Hoje, ele é fã do que a gente faz, do Grupo Corpo, do trabalho que a minha irmã faz, a Miriam, que, além do Grupo Corpo, faz um trabalho também nessa outra ONG que o Corpo tem, o Corpo Cidadão, que é voltado para essa área social. FAMILIA O relacionamento familiar, na verdade, sempre foi muito tranqüilo. Acho que eu tinha um pouco mais de embate com meu pai, mais que todos os outros irmãos. Mas, hoje em dia, a gente tem um relacionamento muito tranqüilo. Eu viajo muito, passo a maior parte do tempo fora de Belo Horizonte. Mas sempre que eu estou lá, eu almoço cada dia com meu pai e minha mãe. Minha mãe é tudo de bom, sempre foi muito liberal, sempre foi a favor dos filhos. Você imagina: dentro desse esquema todo que eu te mostrei, de uma família bastante rígida, a gente fez um grupo de dança. Eu fiz arquitetura, não cheguei a terminar o curso. Meu outro irmão fez engenharia, o outro fez medicina, mas, na verdade, ninguém trabalha com isso. O que fez medicina, na verdade, é fotógrafo, fotografa as coisas do Corpo. O outro que fez engenharia, hoje é diretor técnico do Grupo. O outro, o Rodrigo, que é o coreógrafo do Grupo Corpo, começou a fazer dança. Você imagina isso tudo para um tipo de família assim? INFÂNCIA Ambiente rígido... Até depois dos 10 anos, praticamente, eu nunca tinha saído de casa para ir em casa de amigos. A gente brincava muito na rua. A minha casa sempre foi uma casa muito cheia. Todo mundo ia para lá, todo mundo ficava lá. Os amigos todos. Você tinha a mesa do café e só tirava depois do jantar, era direto. Isso era muito conhecido, sempre. Mesmo muito tempo depois, quando a gente veio fazer o Grupo Corpo. Logo no começo do Grupo também, as pessoas que vieram de fora, como o Oscar Araiz – que era um coreógrafo –, um cenógrafo que era da Espanha, o figurinista que veio da Argentina, essas pessoas, praticamente, ficavam na casa dos meus pais também. Então, foi uma mudança muito grande na vida deles. De maneira que, até hoje, uma dificuldade que eu tenho é a de dormir na casa de alguém. Porque era sempre na minha casa. Então, se eu for viajar para qualquer lugar e alguém diz: “ah, fica lá em casa”, realmente eu prefiro ficar no hotel, é sempre a opção, porque eu tenho esse tipo de dificuldade. Porque sempre era lá em casa onde aconteciam as coisas. FAMÍLIA / IRMÃOS O José Luiz, que é o irmão mais velho, é um ano mais velho do que eu. O que vem logo abaixo é o Pedro, que é 11 meses mais novo do que eu. Então, na verdade, a diferença era pouca. Com o Rodrigo que a diferença é maior, não sei bem, ele é uns quatro anos, cinco anos mais novo que eu. Mas era quase como uma cidade do interior. Belo Horizonte é uma cidade que tem 100 anos. A gente está falando de mais de 40 anos atrás, então era uma cidade muito nova. Nós morávamos numa rua que era um quarteirão só. Então, a infância toda foi aí nessa rua. A minha mãe, na verdade, sempre protegia muito a gente e a mim, em particular, até hoje. Só que agora ela está mais velha, então hoje essas coisas estão mais exacerbadas. É a maior bandeira, você morre de rir Lá não tem nada disso de ciúme. Não entre os irmãos, nada, nada. Até hoje, um procura sempre ajudar o outro, se tem mais dificuldade. O que não significa que a gente se freqüente, não, sabe? A gente não sai muito para jantar, essas coisas entre os irmãos são muito raras. Apesar de, praticamente, todos trabalharem no Corpo. GRUPO CORPO / IRMÃOS Porque quando eu fundei o Corpo, alguns irmãos faziam outras coisas. Quer dizer, o Rodrigo fazia dança, a Miriam fazia dança, o Zé Luis estava fazendo sei lá o quê, entrou para o Teatro comigo - porque eu fazia teatro antes. E a primeira produção do Corpo tinha praticamente todos os irmãos. Ou melhor, no “Maria, Maria” – que foi a primeira produção que a gente fez – estavam todos os irmãos. Na verdade, todos dançando, menos eu, que dirigia o grupo. Alguns, como o Zé Luis, que não tinha a menor intenção de seguir uma carreira de bailarino, o Pedro, tampouco. Mas eles estavam lá por escolha do Oscar Araiz e porque, enfim, era mais ou menos a mesma turma. Mas no começo, era um horror o programa, só tinha Pederneiras, Pederneiras, Pederneiras, Pederneiras. O grupo era pequeno, eram dez ou doze pessoas e tinha seis Pederneiras. Então, era uma coisa E isso, a imprensa, de um jeito ou de outro, sempre quis explorar um pouquinho, porque é uma coisa não muito comum. Porque virou quase como um Grupo Pederneiras, o que não é bem verdade. Tinha tantas pessoas que foram ou são tão importantes no grupo até hoje... BRINCADEIRAS DE INFÂNCIA A gente jogava futebol, que era o esporte que todo mundo fazia. Era a tal da pelada, que era a paixão de todos nós, e vôlei também. Para você ter uma idéia, a gente colocava uma rede de uma árvore à outra, fechava a rua e jogava vôlei. Para você ver que era um lugar muito tranqüilo. Era a turma desse quarteirão, porque a rua era, realmente, um quarteirão só. Todo mundo era conhecido. BAIRRO SERRA Bairro Serra. É um bairro um pouco mais alto, que tem em Belo Horizonte. Um lugar, vamos dizer, mais fresco. É um bairro bem simpático. Por exemplo, essa questão do vôlei: começamos a jogar vôlei na rua desse jeito e não era uma rua plana, era uma rua íngreme. E um dia, alguém viu a gente jogando e nos convidou para ir para um clube. A gente até freqüentava um clube, chamava-se Olímpico, um clube lá na Serra também. Mas eu acho que eu sempre tive um pouco de dificuldade de turma, sabe? Eu sempre fui muito tímido. Não que eu não sentisse falta, porque sentia, mas nunca fui muito entrosado. Aí, nos chamaram para jogar nesse Clube e depois me convidaram para a Seleção Mineira de Vôlei Juvenil. Mas eu – como a disciplina sempre foi a coisa mais difícil para mim na vida –, quando começou aquele negócio de ter que treinar todos os dias, com hora marcada e tudo, eu pulei fora. E acabou a minha carreira esportista. Eu tinha uma disciplina horrorosa. ENSINO FUNDAMENTAL Eu estudei, antes do primário, num colégio que se chamava São Tomás de Aquino. Lembro muito pouco, só lembro que tinha uma grade, uma tela grossa e todo dia eu queria fugir para voltar para casa, porque eu morria de medo de ficar lá na escola. Essa é a lembrança que eu tenho. Depois fiz o primeiro ano primário, onde aprendi a ler, no - acho que se chamava - Instituto Ariel. Eu tenho poucas lembranças disso também, só lembro que tinha muita grama e tinha árvores altas. Disso eu lembro, mas não lembro de nenhuma professora, não lembro de nenhum colega. Depois, meu pai, com esse jeito “caxias”, achava que a gente não deveria ir para escola pública porque, assim, a gente estaria tirando o lugar de alguma pessoa que não podia pagar. Então, a gente sempre teve essa coisa de estudar em escola particular. Mas, no segundo e no terceiro ano, eu estudei numa casa onde moravam duas senhoras velhas, que eram as professoras, e um padre, que era de uma paróquia ali perto. Era um lugar bastante triste, você pode imaginar, uma casa velha. Então, no segundo e no terceiro primário eu estudei aí. Acho que o Zé Luis também, com certeza. O Pedro, não tenho muita certeza. Porque teve uma fase – eu faço um pouco de confusão com essas coisas – que o Zé Luis ficou no mesmo ano que eu. Não sei porque ele ficou estudando junto comigo. Mas, eu fiquei dois anos estudando nessa escola esquisita, que eu falei, e que não era bem uma escola. Era particular. Era só eu e o Zé Luis, não tinha mais ninguém que eu me lembre. Era escuro, sabe essa coisa um pouco do Bergman? Daquele barulho de relógio, tém, tém...? Eu tenho esse negócio assim na minha cabeça. Acho que por ter sido protegido dessa forma, talvez eu tenha ficado muito tímido. Mas acho também que não dá para pôr a culpa nisso. A partir daí, eu fui para um outro colégio que só tinha o quarto ano primário e que diziam que era dificílimo. E, na verdade, não era fácil. Eu lembro que você tinha que se confessar todo sábado. Não era colégio de padre, mas ia um padre lá confessar. E era uma coisa horrorosa. Depois, fui para um colégio de irmão marista, o Colégio Marista, que existe até hoje. Naquela época não tinha colégio misto, era um colégio só de homem. Era um colégio médio, também não tenho muitas lembranças. Mas aí aconteceu uma mudança que eu acho importante. Existia um colega meu, que era uma pessoa que tirava primeiro lugar em tudo, menos em matemática, porque aí era eu quem tirava. Era a única coisa em que eu era bom: era matemática. Eu não era de estudar, mas nunca tive problema de passar de ano, recuperação, não. Isso nunca aconteceu. E eu sempre ganhava medalha de matemática – aquelas coisas caretas que tinha naquela época. Era o que eu ganhava sempre. E o Zé Luis ganhava de português. O Zé Luis estudava em outra sala porque ele ia fazer outro curso. E o Rodrigo, que é mais novo, nunca ganhava medalha. Então, minha mãe conversou com os padres: “ele fica tão chateado” Então, deram uma medalha de religião. Até hoje, ele conta isso, que a mãe foi lá e “passou o bico” nos padres para dar uma medalha para ele, nem que fosse de religião. AMIZADES DE INFÂNCIA Tinha um cara que se chamava Edgar Coelho de Andrade, que eu nunca mais vi. Quer dizer, faz milhões de anos. Eu sei, inclusive, que ele mora no Rio de Janeiro. E era uma cara todo arrumadinho. Todo “caxias”. E era esse que tirava as melhores notas. E ele era muito menos sociável que eu. Eu já me virava, jogava pelada e tudo, mas ele não. Ele era péssimo em qualquer esporte, era uma pessoa completamente desengonçada. E era uma pessoa, para idade dele, bastante informada, lia muito, ia a cinema e essa coisa toda. E eu era um vagabundo, feito qualquer moleque. Eu lembro que um dia ele falou que queria passar na escola um tal filme de arte. Disso eu lembro mesmo: o tal do filme de arte. Eu o ajudei, porque eu era amigo dele. Dos poucos amigos que ele tinha, eu realmente era amigo dele. E ele era uma pessoa muito pessimista. Falava em suicídio e eu, menino ainda, achava aquilo tudo muito louco. Ele sempre queria morrer. Um dia aconteceu algum problema – não sei se foi algum perigo que ele correu – e ele realmente se segurou em alguma coisa para não morrer. Ele depois veio me contar isso: “eu não entendo. Eu sempre quis morrer e, na hora que eu podia morrer, eu dei para trás”. Eu lembro até que eu comentei isso com o meu pai, era a época em que estava começando essa discussão, pelo menos dentro de mim, sobre religião e essa coisa toda. “Cacilda Como é que o cara quer morrer o tempo inteiro e nessa hora não morre?” Eu sei que essa foi uma conversa. FILME MARCANTE Ele levou um filme e eu acho que isso fez diferença. Lá [na escola] não tinha lugar para passar filme, mas conseguiram uma sala e foi quase todo mundo da sala ver o diabo do filme de arte. O filme era preto e branco e eu vi e falei: “gente, mas esse povo que mexe com arte é tudo deprimido, é um povo chato para caramba” Achei horroroso o filme Me lembro muito bem dele. Eu lembro que eu não entendi nada, não tinha uma cena bonita. Eu achava tudo uma baixaria, triste. Queria sair, jogar futebol, nadar. Eu falei com o Edgar: “olha, esse tal de filme de arte você pode cortar...” E todo mundo detestou, não fui só eu, a sala inteira detestou. LAZER Em Belo Horizonte, nessa época – isso é importante – todos os cinemas eram de um único dono, um tal de Luciano, e eram de quinta categoria. Um gangster desses. E ele tinha todas as salas de cinema. Então passavam os piores filmes, não tinha nenhum razoável. Eram muito, muito ruins. E você não tinha opção. A opção, naquela época, era o cineclube. Acho que isso aconteceu um pouco no Brasil, mas em Belo Horizonte foi de uma maneira mais radical, porque não tinha opção mesmo. E eu lembro que o cineclube era num banco, no último andar do banco, e o Edgar me arranjou uma carteira para ver um filme. Eu já estava reconsiderando: “quem sabe, vamos ver outro filme. Esse não deu certo, mas quem sabe...” No primeiro dia que eu fui freqüentar, vi que era no último andar do prédio – nessa época, eu tinha muito medo de tudo: medo de elevador, medo de escada rolante, medo de injeção, de qualquer coisa. Então aquilo, para mim, já era um suplício: ter que entrar no elevador e ir até o último andar. Eu entrei e lembro que o cara que comentava o filme era um padre. Eu falei: “putz grila, caí numa cilada de novo” Pois o filme era o mesmo filme Era o mesmo filme, que hoje, para mim, é o mais maravilhoso que existe – Noites de Cabíria, do Fellini. E isso, na verdade, foi o que começou a mudar na minha vida, porque eu ficava muito impressionado como, um ano depois, uma coisa que não tinha feito o menor sentido para mim, o menor efeito – eu não entendi o filme –, um ano depois eu não tive nenhuma dificuldade de entender. O filme tem começo, meio e fim, é narrado, acontece tudo. Não é um filme para quem já tem conhecimento, para quem freqüenta, com flashback e tal. Não tinha absolutamente nada disso. A coisa era toda arrumada. E eu fiquei completamente encantado com o filme. Até o padre que falou sobre o filme falou muito legal também. A partir desse momento, eu comecei a freqüentar cineclube. E foi também por causa desse cara, do tal Edgar, que me apresentou ao pessoal de teatro. Mas ele mesmo não estava envolvido nessa coisa. Ele era absolutamente desajeitado, uma pessoa estranha. Mas eu não sei se ele circulava mesmo [pelo ambiente de teatro]. Porque, na sala de aula mesmo, ele era uma pessoa com quem as pessoas mexiam: “que cara esquisito” E não era esquisito de ser “viado” ou homossexual, nem nada disso, porque, na verdade, não era. Naquela época de menino isso poderia ser uma coisa esquisita para a gente. Mas ele era uma pessoa, vamos dizer, atormentada de alguma forma. E isso para mim foi muito importante. TEATRO EM BELO HORIZONTE Eu entrei para o teatro com 16 anos e fiz teatro até os 22, quase 23 anos. Nada que eu tenha vontade de relembrar. Eu fiz teatro infantil, depois fui para outro grupo, que era um grupo mais importante que tinha lá. Era época do Jonas Bloch e J. D’Ângelo, que escreviam as peças. Quando eu entrei para esse grupo, o Jonas estava saindo, se mudando de Belo Horizonte. Eu fiz teatro durante esse tempo e trabalhei com um diretor que eu gostava muito – aí, realmente, foi a hora em que eu senti que eu tinha mais a ver com aquilo que eu estava fazendo – que se chamava José Antonio de Souza. Ele depois virou escritor, escreveu algumas peças. Eu tenho impressão que fizemos dois trabalhos com ele ou algum trabalho experimental, não lembro bem. Eu, nessa época, me envolvia mais com a parte de tentar organizar, tentar batalhar lugares para a gente ensaiar. Então, comecei fazendo uma espécie de assistente de direção, também me interessava um pouco por iluminação. Mas tudo porque não tinha muito quem fizesse. Eu tomava um pouco a frente em algumas questões que eu achava que faltavam. DITADURA MILITAR O Zé Antonio tinha alguns problemas com a polícia, porque ele era do Sindicato dos Bancários. Já estávamos na ditadura. Em 1968, era a primeira peça que eu estava fazendo. Era uma peça infantil e eu lembro perfeitamente dessa data porque [os censores] chegaram no teatro – e era uma peça infantil bastante engajada na época, falava um pouco de política – e cortaram muito da peça. A gente tinha que saber os cortes todos e foi tudo muito em cima da hora. Eu sei que deu uma tensão, mas nada de grande importância. Era só uma peça infantil, mas qualquer coisa parecia que era grande, que era importante. Aí o Zé Antonio se mudou para São Paulo. Eu tentei ainda fazer teatro por mais um ano, mas já não gostava mais das outras propostas. Elas vinham mais para o lado da vaidade, não tinham muito fundamento. DANÇA / GRUPO TRANSFORMA Foi nessa época, então, que existia um grupo de dança do qual a Mirinha, minha irmã, fazia parte. Chamava-se Transforma e fazia – para mim e para aquela época – uma coisa muito nova, que eu achava muito mais ampla, com uma linguagem que não era tão engajada – o engajado que eu quero dizer é panfletário. Não que a gente não tivesse posições políticas, porque realmente todo mundo tinha nessa época. Mas que não tinha essa mistura, às vezes até promíscua, um pouco no sentido se apoiar em alguma coisa. Era a época em que eu começava a questionar um pouco mais a liberdade da arte, de realmente não se ter nenhum vínculo. Hoje é o que eu vejo cada vez mais claro: o ponto de partida – se é mais nobre ou menos nobre – não vai te dar um resultado melhor ou pior. Não tem absolutamente nada a ver. E, muitas vezes, a escolha de um ponto de partida mais nobre é muito mais uma apelação e o resultado artístico fica mascarado. Então foi uma época em que eu começava um pouco esse questionamento e me interessei por esse grupo. E aí eu comecei a trabalhar com esse grupo, outra vez, nessas brechas que eu encontrava. Não tinha iluminador, então eu fazia a iluminação. Eu conseguia organizar um pouco mais, de ter um professor melhor aqui e ali. CONTATO COM OSCAR ARAIZ Isso culmina em 1973, na época do Festival de Inverno de Ouro Preto, que foi um festival de teatro muito importante na época. Vinha Julian Beck para dar cursos em Ouro Preto. Teve uma época em que, realmente, a vanguarda acontecia aí nesse festival. E, numa época, veio a companhia do argentino Oscar Araiz. O grupo que foi fazer o festival, na parte de dança, era esse grupo que eu, de alguma forma, já organizava. Não eram mais só pessoas do Grupo Transforma, mas pessoas de outras escolas e que começaram a ter, digamos, uma outra necessidade de ver de forma diferente a dança. Fomos nos separando, assim, desse grupo inicial da minha irmã, que era um grupo que teve uma importância, para mim, fundamental. Mas agora, eu queria mais do que isso. Eu queria uma coisa mais ousada - se é que o termo funciona - e a gente sentia que ali isso ficava um pouco restrito, porque a gente provavelmente correria mais riscos e eles, na época, não estavam dispostos a isso. A partir desse contato, então, com o Oscar Araiz, com esse curso, que era um curso de um mês, se não me engano, é que eu comecei realmente a organizar mais esse grupo, para a gente ter uma profissionalização mesmo. GRUPO CORPO - SURGIMENTO DA IDÉIA Foi daí que eu pensei em fazer o Grupo Corpo. A gente juntava dinheiro para trazer um professor da Argentina, para passar dois meses aqui, juntava dinheiro vendendo coisinhas, bijuterias, coisas de hippie, ou o que fosse, para arrumar dinheiro para esse grupo ir estudar em Buenos Aires. Nessa época, o Rodrigo também já tinha se decidido por seguir mesmo a carreira de bailarino, era uma coisa que ele realmente gostava. O Pedro, meu outro irmão, também já estava inserido nesse grupo. Eu fazia aula, às vezes. Eu lembro que quando eu fiz o Corpo, eu falei: “agora, aqui em casa, vou fazer aula todo dia”. Nunca mais fiz aula na minha vida. PROCURA POR UMA SEDE Mas eu comecei, então, a procurar uma sede para a gente. Ainda com um pensamento meio hippie, eu queria que fosse num lugar um pouco afastado, porque em Belo Horizonte você sai da cidade dando três passos. Não é como o Rio ou como São Paulo – quer dizer, dependendo do lado que você sai em Belo Horizonte. Tem um outro lado que você anda quilômetros e não sai da cidade, passa pelo subúrbio, como em toda cidade grande. Mas aí, como era tudo área de mineradoras, se você pega da Savassi – que é um bairro em Belo Horizonte como seria, em São Paulo, o Jardins –, para você sair basta dar dois passos e você já está na montanha, com mato. Então, era uma região que eu gostava e queria fazer a sede do Corpo ali. Cheguei a procurar várias terras, de um jeito maluco também, porque não tinha dinheiro para isso. Mas para ver se comprávamos alguma casinha para a sede do Corpo. Óbvio que era um sonho tão alucinante que não se concretizou. E foi chegando a época do começo do ano e a gente realmente precisava ter uma sede. Nesse momento, no projeto também estava uma escola, da qual esse grupo ia sobreviver, pelo menos no começo. Então, o que aconteceu foi que, nessa época, meu pai estava trabalhando aqui no Rio de Janeiro – ele só voltava para casa no fim de semana. E, lá pelas tantas, eu imaginei: “gente, aqui em casa dava para fazer o Corpo e a escola”. Mas meu pai era uma pessoa absolutamente... não é responsável, não, era muito mais do que isso. Era uma pessoa que tinha muito medo de arriscar qualquer coisa, sempre. Ele só tinha medo. Até hoje, se você perguntar, ele tem medo. Puseram ele como diretor da Rede e ele morria de medo de ser diretor. Trouxeram ele pra cá e ele foi ser diretor da Refer. Tudo ele achava que não era capaz, ele sempre foi pessimista. Continua pessimista e foi pessimista a vida toda. Eu lembro do primeiro patrocínio que a gente recebeu, só para dar um exemplo: era um patrocínio que, no Brasil, não havia nada parecido. A gente tinha sido convidado por esse patrocinador; o que era uma coisa que nunca tinha existido. Então eu disse para ele que tinha saído o patrocínio – o grupo estava em dificuldades há muitos anos, não existia essa coisa de patrocínio. E era um dinheiro com o qual, por três anos, a gente podia esquecer das dificuldades, a gente pagava as dívidas e vivia por mais três anos. Era um patrocínio maravilhoso. Quando eu contei para o meu pai, ele ficou apavorado: “mas como assim? E agora, como é que vocês vão fazer com esse dinheiro?” Eu falei: “ai não, putz grila” Em tudo ele sempre conseguia ver o lado mais pessimista, sempre. O OTIMISMO DA MÃE E minha mãe é o contrário, é totalmente otimista. Para você ter uma idéia, meu pai nunca teve muito dinheiro, mas nunca teve problema financeiro. Eles tinham uma casa muito boa – essa que depois virou o Grupo Corpo. Numa época ele tinha um apartamento no Rio, porque ele teve que trabalhar aqui e, lá pelas tantas, minha mãe veio morar com ele aqui também, ficava entre lá e cá. No final, eles venderam o apartamento do Rio, para ajudar uma das filhas, e compraram um outro apartamento, que era bastante grande, amplo também. Depois, venderam esse apartamento para ajudar o outro irmão que estava precisando. E foram assim, diminuindo. Mas eu lembro da minha mãe sempre achando que tudo tinha melhorado. Até que o novo apartamento era realmente pequenininho, não tinha garagem, era bastante mais barato. Mas ela dizia: “ah, isso é que é bom, né? Porque agora não tem problema, é muito mais fácil um apartamento desse tamanho...” Sempre para ela estava tudo melhor. Até que depois as coisas mudaram um pouco. Meu pai ficou doente e a gente achou melhor tirá-lo desse apartamento. No final, junto com ele, nós compramos um apartamento legal, onde eles moram hoje em dia. Mas ela não faz questão de absolutamente nada e acha que está tudo ótimo. E o meu pai sempre pessimista. Não só por esse lado de dinheiro, ele também sempre acha que vai morrer. Já quis fazer reunião para dizer onde estão as coisas dele. Eu disse: “ah, meu pai, eu não vou nessa reunião nem morto. Você quer morrer, você morre tranqüilo, mas eu não vou nessa reunião”. E ele falou: “ah, não, você tem que vir porque senão eu não morro em paz”. “Está bom, então vamos para a reunião.” E ele tem cara de mais novo que eu, muito mais CONQUISTA DA SEDE DO GRUPO CORPO Eu já fazia arquitetura e pensei na casa e falei: “diabo, não é que essa casa aqui dá para gente fazer a escola?” Porque ela tinha dois andares e tinha salas grandes. E eu falei: “gente, dá mesmo, não é?” E fiz um rabisco de como podia ser a reforma da casa e mostrei para a minha mãe. Ela falou muito animada: “ficou ótima a casa desse jeito. Ah, vai ficar muito bom.” E eu falei: “pois é, agora falta o meu pai. Para ele sair dessa casa vai ser o fim do mundo”, porque ele é muito arraigado. Aí, meu pai voltou do Rio. Ele chegou no sábado e foi à missa, porque ele ia à missa sábado e domingo. Eu falei: “Isabel” – Isabel é minha mãe, eu chamo ela assim – “Agora a gente tem que pegar o velho, né?” E ela: “Então, vamos lá, depois da missa”. E então ela falou [para o marido]: “ah, o Paulo quer falar com você...” E eu já vim com o projeto todo bonitinho, desenhado e tudo. “A gente pensou que o Corpo podia ser feito aqui na sua casa.” [resposta:] “Você ficou louco? Você está louco. O que é isso?” E eu falei: “Mas você tem que olhar o projeto, pelo menos” “Você está louco Você está pirado de fazer o Corpo aqui dentro” Foi isso. Eu falei: “está bom”. E saí muito emburrado mas confiando na minha mãe, obviamente. Desculpa, eles foram à missa depois disso. Era de manhã e eu lembro que ele foi à missa com a minha mãe. Quando voltaram da missa é que ele falou assim: “deixa eu ver o projeto”. Eu falei: “ah, ganhei” E foi assim mesmo. Ele já veio para o Rio, minha mãe veio com ele para ficar no apartamento e eu já mandei derrubar as paredes todas e o Corpo foi feito ali, na casa deles. Então, meu pai voltou do Rio, eles alugaram uma casa, que a gente chamava de museu. Na época do “Maria, Maria”, as pessoas que vinham ficavam ali na casa. Foi tudo muito divertido A minha mãe sempre lembra disso tudo com o maior prazer. Hoje, meu pai também tem essa lembrança, mas como uma coisa boa. Isso tudo era uma loucura. Porque, meu pai careta do jeito que ele era A gente já era tudo meio hippie mesmo, cabelo grande, barba. RESPEITO E AJUDA DO PAI Ele reclamava, mas ele também respeitava muito a gente. Já tinha passado essa fase de imposição religiosa. Então, realmente, ele tinha o maior respeito. Tinha mesmo. E, de qualquer forma, tinha a minha mãe, para quem o que eu falasse era lei e ponto final. Sempre quando tinha algum problema – porque o Corpo, obviamente, passou por situações muito difíceis financeiramente –, quando meu pai perguntava como estava a situação [do Grupo] na hora do almoço, a minha mãe dizia para ele: “hora do almoço não é hora de tocar nesse assunto”. Como era a única hora que a gente se encontrava, não tinha outra hora para a gente tocar nesse assunto e as coisas passavam. Mas ele ajudou demais: desde a casa que ele nos cedeu, até financiamentos que a gente teve que tirar e tirou em nome dele. Ele pôs a cara em tudo, mesmo com todo o pessimismo dele. Eu acho que, inclusive, para ele isso tudo foi muito mais difícil do que para minha mãe. Porque com a maneira da minha mãe ser, tudo estava bom, tudo era maravilhoso. Mas pela maneira do meu pai, eu sei que a ele custou muito mais, custou muito. E eu tenho certeza: se não fossem eles, não existiria O Corpo. E em todas as questões financeiras pelas quais a gente passou, muitas vezes eu apelei também para ele. E ele ajudou, sempre preocupado, sempre achando que tudo ia ser um grande problema, que ia acabar mal. Mas, hoje, ele vai aos espetáculos e chora. Nesse outro espetáculo ele foi e chorou. Mas, enfim, eles são super bonitinhos. Mas ele tem muito medo, nunca vai na estréia. Ele morre de medo da estréia igual ao Rodrigo, meu irmão. MEDOS E ANGÚSTIAS Eu, depois dos 30 anos, realmente parei de ter medo, esse medo todo de que eu falava. Eu lembro de um dia ter chegado no museu – que era essa casa que a gente chamava assim – vindo da escola de arquitetura, que era muito perto da casa, e ter falado com a minha mãe: “gente, até hoje, eu nunca consegui um dia de paz comigo”. Eu era muito angustiado, muito mesmo, e tinha todas essas outras inseguranças, medo de tudo. Por qualquer coisa eu achava que ia desmaiar – e desmaiava mesmo, já desmaiei para caramba. Não podia ver sangue. Mas depois dos 30 anos, não. Não tenho mais medo de avião, não tive mais medo de nada. Hoje adoro estar sempre no gerúndio, de estar em lugar nenhum, de estar andando, viajando, fazendo, indo. O Corpo viaja demais e antes eu tinha medo. Agora, essa última viagem foi para o Alasca – eu adoro – teve não sei quantas horas de vôo. E o Corpo viaja assim, o tempo todo, faz turnê na Europa direto, nos Estados Unidos direto. E isso para mim era muito difícil. Hoje, eu acho ótimo. Se eu estou andando, eu fico super feliz e esse medo eu não tenho mais. Tem coisas que hoje me surpreendem: eu comecei a montar a cavalo e a saltar, não faz nem um ano. Eu tenho 53 anos e sei que eu não tenho mais idade para cair do cavalo porque o negócio vai ficar ruim... Mas mesmo sabendo que todo mundo cai, eu estou lá saltando, achando tudo bom. Esse medo eu não tive mais. No Corpo, normalmente não dou nenhuma entrevista, para mim custava muito. Eu ficava sempre adiando. Põe o Rodrigo para falar. Se o Rodrigo não está, chama cá o Pedro ou o Fernando, qualquer um para falar. Primeiro porque eu não sou articulado, segundo porque eu sou tenso e uma série de coisas. Depois eu me vejo falando e penso: “que estúpido, que idiota, querendo ser inteligente, falar coisas inteligentes...” e acho tudo uma merda. TRABALHO EM FAMÍLIA Nessa época, quando encontramos um local para a sede, quase todos os irmãos já estavam envolvidos no Grupo, com exceção do Zé Luis, que era mais velho, e da Marisa, que a gente chama de Zoca e que era a mais nova. Mas a Marisa fazia aula de dança e o Zé Luis também, como um esporte, um hobby. Ele estudava medicina nessa época. O Rodrigo até hoje é o coreógrafo, ele que cria os espetáculos, eu faço outras coisas lá, mas a parte de coreografia é dele. E ele não assiste ao espetáculo até hoje. Ele é igual ao meu pai. Nem na estréia nem em dia nenhum. Ele fica lá no camarim. Não sai para ver o espetáculo nem que você o mate. Eu falo: “você tem que ver, Rodrigo” E ele: “não, eu vou sim, vou sim...” Eu estou sempre na cabine e o Rodrigo nunca vê, é igual ao meu pai. É pessimista o tempo inteiro. Eu tenho um pouco desse lado da minha mãe, de achar que tudo vai dar certo. Aquela coisa de “soltar o touro e depois correr atrás”. PRIMEIRO ESPETÁCULO DO CORPO Quando a gente fez o Corpo, eu já estava pensando numa produção, num espetáculo, e eu comecei a planejá-lo. Chamei primeiro o Fernando Brandt, que era uma pessoa que eu conhecia muito superficialmente. Conversei com ele. Falamos em chamar Milton Nascimento. Eu era bastante presunçoso, muito mesmo. Eu devia ser uma pessoa chatíssima nessa época, porque eu achava que eu podia absolutamente tudo – chamar o Milton Nascimento, na época em que era o auge dele, do Clube da Esquina, do Milagre dos Peixes. Chamar Milton para fazer a música de um grupo que nem existia Mas foi assim mesmo. Eu e o Fernando viemos ao Rio, conversamos com o Milton, ele se entusiasmou e foi assim que começou. O Oscar Araiz, que também era um cara do qual nós tivemos todas as influências – foi a partir dele que a gente pensou em fazer um grupo –, depois se ofereceu para fazer a coreografia. E isso tudo foi feito sem ninguém cobrar nada. Olha que loucura Eu lembro do Milton tocando “Maria, Maria” – você conhece a música – pela primeira vez. A gente veio aqui e ele tocou no piano “Maria, Maria”. Claro, não existia a letra, era para a gente discutir. Foi a primeira música que ele fez para o espetáculo. E, depois, um monte de músicas que ficaram super conhecidas foram feitas. E todos se entregaram nesse espetáculo de um jeito impressionante Essa foi uma produção que demorou muito tempo. Araiz vinha passar algumas temporadas no Brasil, depois voltava. Milton fazia música, às vezes atrasava, não entregava a música e o Oscar Araiz ficava danado e voltava para Argentina, eu tinha que pegar ele de novo. Enfim, foi uma tourada para fazer isso tudo. ESCOLHA DE BAILARINOS O Araiz escolheu o Zé Luís para esse trabalho porque ele tinha um cabelo muito grande, era um cara bonito, tinha uma barba e parecia Cristo. E tinha uma cena que tinha Cristo, uma coisa meio candomblé. Então ele catou o Zé Luis para Cristo. E aí pegou a Zoca, a mais nova, também porque era uma menina muito bonita, alta, magrela e muito engraçada, divertida e o Araiz gostava muito dela. Então, pegou a Zoca para ser uma santa, eu acho. E, afinal, eles fizeram parte do “Maria, Maria” que foi um sucesso maravilhoso. O espetáculo foi um sucesso de bilheteria. Aí sim: “quanto é o seu cachê?”, “Quanto é o seu?” Antes ninguém tinha falado em cachê. Mas eu tinha tanta certeza de que ia dar certo Tinha certeza absoluta Eu era muito presunçoso mesmo. Eu dizia: “gente, se eu estou 24 horas por dia só por conta disso, não tem como dar errado. A não ser que eu seja um estúpido” A gente viajou, na época, para 14 países. Ficamos 45 dias em cartaz em Paris. Era uma loucura, toda aquela meninada. Mas foi ótimo porque aí, baixou a bola, você vê o tamanho que é, como as coisas são difíceis. ADMINISTRAÇÃO Meus irmãos sempre tiveram um jeito muito legal comigo. Acho que sempre tiveram muita confiança. E se hoje você for ver o Corpo, se você entrar lá dentro, vai ver que a administração do Corpo é uma coisa muito estranha. Numa época, um dos patrocinadores que a gente tinha mudou de vice-presidência e eu não me sentia muito bem, comecei a brigar e achei que essa questão do patrocínio fosse acabar. Fiquei muito chateado e cheguei num ponto em que falei para o sujeito: “sabe de uma coisa? Convida as pessoas da sua Empresa – que patrocinava o Grupo – para vir passar uns dias no Corpo. Entra nos computadores, vê tudo, como e porquê...” Isso porque achavam que o Corpo era muito caro, era o maior patrocínio que eles tinham. Então foram duas pessoas da área administrativa dessa empresa e ficaram por uma semana. Não era bem uma auditoria. Era mais para entender a empresa. Voltaram. Depois eu tive acesso ao relatório deles. Para resumir, eles chamaram a gente e eu tive que fazer palestra para todos os gerentes da empresa, explicando como uma companhia podia funcionar daquele jeito. Sério Eu falei: “o tiro saiu pela culatra porque agora eu tenho que começar com essas coisas de palestra.” Até hoje, é um jeito muito particular, não necessariamente familiar. Hoje, da família tem Rodrigo, Pedro, Miriam e eu. Ainda tem um bocado, mas são quase 60 funcionários. Começou com 12 pessoas. Hoje são 60, contando com os professores. Mas o grupo tem 20 bailarinos. Já no grupo que viaja são 30 pessoas. E o grupo mesmo deve ter por volta de uns 45 – eu não sei bem porque tem horas que eu não posso diferenciar muito a escola. Por exemplo, o vigia do grupo é da escola, o faxineiro também. Mas é tudo muito aberto. A minha porta, por exemplo, nunca fica fechada. Se fica fechada é porque tem algum pepino, é alguém que vem chorar. Se alguém entra e fecha a porta, eu falo: “vai chorar”. Eu tenho certeza absoluta e não dá outra. Aí, está bem, acaba de chorar, sai e deixa a porta aberta. Não existem escritórios. Tanto que no nosso projeto novo, de uma sede nova, tinha essa divisão: sala do Paulo, sala do Pedro, sala da Macau, sala da Mirinha. Estava tudo lá no projeto. E eu falei: “gente, mas são uns arquitetos tão novos e tão caretas, sala disso, sala daquilo...” No final, eu propus a eles e eles toparam: toda a parte de escritórios, até a administração, é uma mesa que tem 30 metros de comprimento. Só. Cada um vai lá e pega: “um metro e meio para mim, um metro e oitenta para você, dois metros para outro...” Cada um vai pegando um pedaço da mesa. O Corpo funciona assim. É tudo aberto, você circula em tudo, o tempo inteiro, dá palpites. Vou dizer uma coisa que pode parecer estúpida, mas o Corpo vai fazer 30 anos e lembro de ter dispensado uma única pessoa até hoje. Sério. Em 30 anos Pessoas já saíram? Já saíram. Saíram porque não se deram bem lá. Claro, isso também já aconteceu. Mas eu nunca mandei ninguém embora. Não existe isso. É um processo que alguém tem que vivenciar para saber como acontece. Não tem nada de mais. Acho que é por isso é que funciona, sabe? Não tem nada, nada demais. ENSAIOS Uma das coisas que eu fiz questão: lá na sede tem um auditório, um palco mesmo, é um teatro de 200 lugares. Mas é um teatro que foi feito só para o grupo ensaiar, porque eu queria que eles ensaiassem no palco todos os dias. Eu não queria que tivesse esse movimento de sair da sala e ir para o palco. Eles fazem aula e ensaiam no mesmo lugar. Se você chegar hoje no Corpo, você pode sentar lá e assistir ao espetáculo, assim como qualquer pessoa pode assistir ao ensaio. É só subir e dizer: “vou lá assistir ao ensaio” e sentar, não tem nenhum problema porque eles estão no palco e você fica na platéia. Então, é essa maneira de estar sempre aberto, de não ter nada o que esconder, não ter nada o que fechar. Nem na parte de administração, nem na parte de criação. Quando o espetáculo vai ficando pronto, a platéia vai ficando mais cheia. O gozado é que sempre vai gente amiga ver e, às vezes, você convida também: “não quer ver o espetáculo do Corpo?” “Que horas é?” “Todo dia, a partir das 11h tem os ensaios.” Agora está sendo criado um espetáculo novo e quem fez a música foi o Caetano Veloso e o José Miguel Wisnik. Toda hora tem gente lá. Não é cheio, mas você vai lá e tem umas dez pessoas assistindo a fazer o espetáculo, a criar o espetáculo, ainda está começando. CRIAÇÃO DOS ESPETÁCULOS No caso do Grupo Corpo – cada companhia tem a sua maneira – normalmente a gente primeiro opta por um compositor e faz o convite. Isso nos últimos dez anos, com exceção do último espetáculo. Então, você tem João Bosco, Arnaldo Antunes, Zé Miguel Wisnik, Tom Zé, Caetano, o Guimarães do Uakti e o Phillipe Glass, que também fez músicas para a gente. Então, no Corpo é isso: primeiro a música, que sempre é encomendada. O compositor tem toda a liberdade. Por isso quase sempre a primeira pergunta acaba sendo: “mas sobre o quê?” E dizemos: “sobre nada” Porque, na verdade, a gente não trabalha com um roteiro. Normalmente, então, vem essa composição. Algumas têm um pouco mais de participação nossa e outras, praticamente, nenhuma. Mas a participação quase que se resume a Rodrigo e eu escutarmos, às vezes algum tema está um pouco comprido demais e pedimos para reverter um pouco: “quem sabe isso aqui mais para cá, aquilo para lá...” uma coisa ou outra assim. Na verdade, todas as pessoas que compuseram para o Corpo sempre foram muito abertas, muito tranqüilas a esse respeito. E a gente também teve muita sorte com os resultados dessas trilhas. Essa é outra coisa que a gente faz: produzir o disco. É uma maneira diferente dessas pessoas fazerem música também, porque muitos deles têm costume de fazer a música naquele formato padrão – porque antigamente a gravadora queria – ou de canções. E, de repente, na proposta para o Corpo, eles podem tudo. Então, o resultado é muito legal. É um desafio para o compositor: ele pensar que a música, às vezes, não se fecha, não termina nela mesma, tem um outro componente que vai entrar, muitos outros componentes que vão fazer parte. A música é um deles, é fundamental mas é um desses componentes. CRIAÇÃO DA COREOGRAFIA Então, o Rodrigo trabalha em cima disso: da música. E ele faz o movimento mesmo em cima da música, não parte de nada pré-concebido. Disso também eu gosto, dessa coisa de não saber mesmo por onde anda. O processo é que vai te mostrar por onde vão as coisas. Sempre quando existe algum tipo de armadilha e eu a percebo, talvez a minha função seja tentar desfazer essa armadilha, para que a gente não fique com compromisso com absolutamente nada. Isso era uma exigência que eu sempre tive. No começo, durante muito tempo, o Fernando Veloso fez a cenografia – hoje, às vezes ele faz comigo, mas eu tenho feito mais. Com ele e com todas as pessoas que participavam – Freusa ou Rodrigo – a cobrança era: “o que me interessa é o que vocês não sabem fazer. O que vocês sabem fazer não me interessa absolutamente nada, vocês já fizeram, já mostraram, agora eu quero o que vocês não sabem”. Tem que partir de outro lugar, de outro ponto de partida e, mesmo assim, você vai vendo que isso tudo forma uma linguagem, porque as pessoas são o que são, criam o que criam. Não é outra pessoa. E isso é legal. IDENTIDADE DO CORPO O Grupo Corpo tem uma identidade por isso. E hoje ele é reconhecido no mundo todo porque ele tem uma identidade. Eu acho que isso foi muito importante no processo do Corpo e, obviamente, isso não se faz de um dia para a noite. É um processo que exige um monte de coisas, que exige uma humildade por parte das pessoas que estão fazendo, porque tudo é em função de uma unidade, em função do resultado. Não é em função do trabalho de um profissional em si, de querer mostrar serviço. Eu detesto isso e acho que não acontece no Corpo, essa coisa de mostrar serviço, de jogar para a platéia. Eu detesto isso e acho que é o maior desrespeito com a platéia. E com relação a essas coisas todas de efeito, eu tenho total aversão, em todos os sentidos, da luz, de tudo. Isso eu acho horrível, esse caminho fácil. Por exemplo, quando a gente estava falando dessa arte engajada, é um tipo de caminho fácil. E eu estou falando de toda linguagem. CONCEPÇÃO, ILUMINAÇÃO E CENOGRAFIA Eu trabalho com iluminação e com cenografia particularmente – com esses dois lados, apesar do meu trabalho ser de direção artística, porque eu olho desde o programa do Corpo. Eu é que vou dizer como é que vai ser o programa, a foto que o Zé Luis vai fazer, eu que armo o Grupo de acordo com o que eu acho que vai ser legal para a fotografia. “Como é que a gente vai fazer a foto desse espetáculo?” Eu falo: “desse espetáculo, a gente vai fazer a foto assim: só as pessoas em movimento. Você vai ter que fotografar desse jeito”. No outro espetáculo, não, é absolutamente o contrário. Aí eu já crio, às vezes, alguns agrupamentos com algum tipo de movimento, porque eu acho que no lugar desse espetáculo fica melhor assim. Eu penso como o Grupo deve ser visto, porque na verdade ele não é só visto pela pessoa que está no teatro, mas é visto também pela pessoa que vê o anúncio no jornal, pela pessoa que vê uma foto na internet, vê um cartaz. Então, todas essas coisas, para mim, são muito importantes também. Eu gosto que o Corpo tenha essa unidade, essa identidade. Eu cuido disso com o maior prazer. Eu fico muito chateado quando eu vejo uma imagem do Grupo que não condiz com o que ele é. Isso é uma vantagem que o Corpo tem porque, mesmo em companhias grandes – companhias que eu adoro –, às vezes você vê uma peça publicitária ou mesmo um programa, quando você está dentro do teatro, e você fala: “gente, que coisa horrorosa” E eu sei que acontece isso. O cara que é diretor artístico da companhia não é o cara que faz a parte visual nem nada. Então, no Corpo a gente consegue essa unidade. Não estou dizendo que eu faço isso, não. Eu coordeno isso. Tem lá a pessoa que faz a parte gráfica e eu estou sempre pegando opinião do Fernando Veloso, por exemplo, que é um artista plástico e que trabalha com a gente na parte de cenografia também. Pergunto a Freusa, sobre cor, sobre tudo. Todo mundo está sempre dando opinião. ESCOLHA DO NOME: CORPO O nome Corpo tem a ver com isso. Eu que inventei o nome. Às vezes eu acho ruim, às vezes eu acho bom. Como idéia, eu gosto. Como nome, eu acho que eu não gosto tanto. Mas já está ficando velho, não tem mais jeito. Não sei porque não gosto. Eu gosto do Grupo não ter o nome de uma pessoa. Você vê: todas as companhias, a maioria delas, têm o nome da pessoa, do coreógrafo. Quando o Corpo começou, o Rodrigo não era o coreógrafo, não tinha um coreógrafo da companhia. Isso foi um investimento de quatro, cinco anos mais tarde. Então, era melhor dessa forma e eu acho que o Corpo funciona um pouco desse jeito, de todo mundo interferir um pouco, dar palpite, não ter reunião. Eu não tenho reunião com o grupo. Reunião é uma coisa que eu nem sei o que é. Às vezes, nem sou eu, a Macau vai e fala com o Grupo, talvez por alguma questão específica da viagem e fala: “oh, nesse lugar vai ter tal coisa assim, a gente vai fazer isso ou aquilo...” AGENDA DO GRUPO O Grupo trabalha para caramba. Ano que vem [2005], vão ser 87 espetáculos, é muito, muito, muito. Essas agendas são montadas com dois anos, três anos de antecedência. Ano que vem, por exemplo, a gente já sabe de absolutamente tudo: chega em Paris tal dia, tal dia tem montagem, tal hora tem fotografia para a imprensa, tal hora é a estréia, tal hora tem coquetel, depois vai para Londres... E ao mesmo tempo, hoje, por exemplo, tem convite para a Grécia, tem convite para a China. Não temos tempo para nada disso. Nós sabemos que precisamos, mais ou menos, de quatro meses para a produção de um espetáculo, já com a música pronta. E, também, a gente não pode avançar mais do que um número de apresentações, porque a companhia sai muito machucada, o espetáculo é bastante puxado. Ano que vem é recorde, de 86, 87 espetáculos, se não me engano. Teve até um pedido da Petrobras para fazermos em Buenos Aires. Eu adoraria também fazer Buenos Aires, mas teríamos que cancelar alguma outra cidade. Não tem mais jeito de colocar mais nada. Tem uma insistência, por exemplo, da Grécia. Eles insistem, insistem. Eu adoraria ir à Grécia. Eu não conheço a Grécia, mas a gente também não aceita. Tem para a China, que era tudo de bom também. Sou louco para ir para a China. Ainda não fomos. Teve uma loucura do Governo, esse ano, que queria que a gente fosse junto com o Presidente. Mas, como eles fazem tudo de última hora, dois meses antes, ficou completamente sem chance. Não apenas nós estamos com a agenda fechada. A gente e o resto das pessoas que trabalham sério no mundo, inclusive os teatros na China. Teatro na China você marca com um ano de antecedência, não é com dois meses. TEMPORADAS Então, a gente marca assim: tem sempre a temporada no Brasil, que é a nossa prioridade, que é nos meses de agosto, setembro e, às vezes, entra um pouco em outubro. Às vezes, a gente faz alguma coisa no primeiro semestre, que é fora do circuito que a gente faz normalmente. Depois tem as reservas que são feitas. Nós temos um representante nos Estados Unidos – um escritório nos Estados Unidos que trabalha com a gente – temos um no Reino Unido, temos um na Alemanha e temos um na França – no Brasil, a gente mesmo é que marca tudo. Eles fazem a reserva com antecedência. Então, por exemplo, os Estados Unidos têm uma reserva, eram duas vezes por ano, mas a gente cortou também, porque eram duas temporadas por ano, de normalmente 40, 45 dias. O máximo que a gente sai são 45 dias, nunca ficamos fora mais tempo do que isso porque as pessoas começam a não ficar felizes. Aí, cada um faz a reserva da temporada deles. A China tem uma reserva no segundo semestre de 2007, já está reservado para eles. Tem que ser assim. Acontece que no Brasil tem esse costume de fazer a coisa muito em cima da hora. Eu estava aqui com esse problema, porque nós temos o ano todo marcado e não temos o Rio de Janeiro. Conseguimos Rio de Janeiro na semana passada, para 2005. Já tem tudo marcado para 2006 também. Aqui, nem pensar. Você não tem resposta, porque não reuniram, não fecharam a pauta. Não é assim que funciona. É tudo um imediatismo. E não tem nada melhor quando você trabalha com médio prazo porque o desgaste é muito menor. Assim você já sabe tudo, as coisas são tão mais tranqüilas. E não tem porquê ser na última hora. Porque é muito mais energia que você gasta. Não ganha nada com isso, só perde. Então, eu acho que o Corpo, nesse ponto, conseguiu. Claro que é super importante nisso a questão do patrocínio também, que tem que ser sempre a médio e longo prazo. O patrocínio anual é super perigoso, para qualquer pessoa, para quem está começando e para quem não está começando. FALTA DE PATROCÍNIO No início, “no Maria, Maria”, o Grupo era desse tamanhozinho, eram 12 pessoas e fazia um sucesso pelo mundo. Era uma estrutura muito menor. Hoje, o Grupo é muito maior, com compromissos muito maiores do que nessa época, a estrutura é outra coisa. Na época do “Maria, Maria”, a gente construiu a sede do Corpo, que era um prédio de três andares, tudo com o dinheiro desse espetáculo – o dinheiro todo que a gente ganhava era assim, ninguém recebia nada. E sempre gastávamos investindo em coisas, tudo para melhorar. A gente usava tule da Rosco, quando nem existia isso no Brasil. Usávamos tapete para dança, que também não existia. Tudo do Corpo era do melhor que podia ser, o som... O dinheiro era sempre para isso, era investido nesse sentido. Como até hoje, de uma certa forma. CORPO CIDADÃO – PROJETO SAMBALELÊ Hoje, eu não trabalho na escola do Grupo. Na escola trabalham duas pessoas do Corpo, a Macau e a Mirinha, que estão desde a época da fundação. São elas que dirigem a escola e também essa outra ONG, o Corpo Cidadão, que tem o Projeto Sambalelê, que hoje trabalha com quase 500 crianças em três favelas diferentes. Hoje o projeto está crescendo muito e, para o ano que vem, a pedido da Petrobras, isso passa para 750 crianças em outros pontos do Brasil. É um projeto seríssimo, maravilhoso. Tenho a impressão de que o projeto já tem seis anos. E tem a ONG, que não tem tanto tempo, mas o projeto já. A ONG eu não sei quanto tempo tem – eu sou péssimo nisso – e se chama O Corpo Cidadão. O trabalho deles é maravilhoso. E hoje, com essa proposta da sede nova, ela vai ficar mais em função da escola e do Corpo Cidadão. O Sambalelê é um projeto de dança, de música, tem uma série de coisas, de atividades. E eles se apresentam, viajam também. Viajar é uma parte do projeto, não acho que isso seja o importante. Isso dá visibilidade, é diferente. Eu acho que é importante para os patrocinadores, é quase como uma prestação de contas: “olha, a gente também faz isso e aquilo”, mas o trabalho mesmo, o que importa é esse que está lá trás, não é de apresentação. E uma série de outras coisas que hoje são lugar-comum falar e eu também não quero repetir aqui. EQUIPE TÉCNICA O Grupo hoje é bastante estruturado, mesmo do lado técnico, da mão-de-obra. Acho que os técnicos do Corpo têm o mesmo nível, hoje, dos bailarinos. Acho que o Corpo tem hoje um nível que poucas companhias no mundo têm. A gente não pode ficar comparando porque isso é uma coisa estúpida. Mas, realmente, hoje, quando o Corpo faz uma audição, é uma loucura. Se você colocar no jornal que vai ter uma audição, são mais de 400 pessoas para uma vaga. É uma coisa Eu sou o maior tiete. Sou mesmo. Eu sou o maior tiete dos bailarinos, de tudo. Porque eles têm uma responsabilidade que é muito legal. Isso é que eu acho diferente, às vezes, de outras companhias. TRAJETÓRIA PROFISSIONAL ILUMINAÇÃO PARA ÓPERAS E TEATRO Eu trabalho fora do Corpo, às vezes, faço coisas para outras companhias – já fiz muito, hoje faço menos. Comecei a fazer trabalho de iluminação para teatro. Trabalhei com Bia Lessa várias vezes, fiz muita ópera – que é uma coisa que eu gosto muito – aqui no Municipal do Rio, no Municipal de São Paulo. Depois, fiz cenografia junto com Freusa e iluminação para uma ópera lá na Itália, que também estava aqui no Municipal do Rio, com a Renata Scotto, que é uma grande diva da ópera mundial hoje. Foram convites que foram aparecendo. Isso para mim foi super importante. Também começou com uma fase. Eu posso estar enganado, mas acho que a primeira vez que me chamaram foi para fazer uma luz para o Teatro Guaíra. O Rodrigo fazia a coreografia. Ele hoje faz coreografia para algumas companhias também, no Canadá. Eu não viajo mais para fazer esse trabalho com ele, quem viaja é o Pedro, que faz a parte de iluminação. Hoje não é mais uma coisa que mexe comigo. Mas, das primeiras vezes, eu fiz no Guaíra. HISTÓRIAS / CAUSOS / LEMBRANÇAS Eu lembro que era uma época em que eu ainda tinha aqueles medos que eu contei no começo e eu parei de fumar. Inclusive, falei: “acho que eu tenho que fazer alguma coisa porque, se não, não vou dar conta”. Eu era bastante tenso. Fui fazer essa luz num ensaio pré-geral ou alguma coisa assim. Eu já tinha feito o esquema, testei algumas luzes, fiz um pouco do que seria a iluminação durante o ensaio mesmo. E eu lembro que estava a Dina Sfat. Ela tinha alguma coisa a ver com isso, não sei o que era, não sei porque ela estava lá. E acabou o ensaio. Eu cheguei no procênico com o Rodrigo, estávamos conversando e chegou a Dina Sfat que falou assim comigo: “é, o espetáculo é maravilhoso. Agora, realmente, você acabou com o espetáculo com a sua luz”. Eu falei: “o quê? Acabei com o espetáculo?” Nunca vi alguém falar uma coisa tão horrorosa com alguém, feito ela. Eu falei: “jura?” Ela disse: “totalmente equivocado” Eu falei “Xiii” É claro que isso me tocou muito. Eu fiquei assim e falei: “diabo, será que eu errei tudo?” Eu já tinha um pouco de preconceito com o pessoal de teatro – que só aumentou com o tempo. Não, isso é brincadeira Mas, enfim, porque eu acho muito careta. Eu sei que eu fiquei com aquele negócio a noite toda na cabeça, falei: “diabo” E o Rodrigo: “que é isso, Paulo? Deixa de frescura, é isso mesmo. Está maravilhoso”. Claro que ela não viu a luz toda porque não estava pronta, mas qualquer pessoa que viu já sabe como é a luz, né? E decidi: “não vou mexer droga nenhuma. Dina Sfat é que vá catar coquinho...” E fiz a luz. No outro dia, ela chegou e me deu um beijo na boca – não esqueço disso – dizendo: “que luz mais maravilhosa” Eu falei: “gente de teatro é um povo difícil demais” TRAJETÓRIA PROFISSIONAL Eu recebia vários convites para teatro e fiz muito poucos. Às vezes eu ia nos ensaios e ficava super apertado, não era nada que ia me envolver. Mas a Bia Lessa é uma pessoa de quem eu sempre fui muito amigo, fiz muita coisa junto com ela. Comecei a fazer exposições. Bia fazia algumas exposições e ela sempre me chamava para estar junto e fazer as coisas. Primeiro na época da Expo 2000, lá em Hannover. E aí, no Brasil 500 Anos, me chamaram, pela primeira vez, para eu fazer o projeto todo de duas exposições. Um era o prédio da Oca – aquele do Niemeyer – que era um prédio dificílimo. Eu tinha que fazer a parte de artes indígenas e arqueologia. Eram 10 mil metros. Aquilo para mim foi uma coisa. Eu fiquei morando em São Paulo quatro meses, sofri muito, fiquei muito deprimido, chorava muito. Mas fiquei bastante feliz com o resultado. Para mim foi super importante, recebi umas críticas super bonitas. Pretensiosamente, acho que foi importante por isso também. Fiz aqui no MAM {Museu de Arte Moderna], no Rio de Janeiro. Depois fiz outras exposições do acervo do MAM, quando foi para São Paulo também. Fiz do acervo do Banco Santos, o acervo de cartografia, feito em São Paulo, e depois aqui no Rio, no Museu Nacional de Belas Artes. Isso foi uma coisa que me deu muito prazer em fazer. No começo, me deu muita angústia mas, depois de um certo tempo, essa angústia passou para puro prazer. E hoje, me chamam para fazer o diabo que for que eu vou. Adoro fazer esses trabalhos fora do grupo. Gostei muito de ter feito. Foram coisas que eu nunca tinha feito na minha vida. Sempre ficava pensando como é que uma pessoa chega numa exposição. Por exemplo, a exposição de mapas. Eu fui ver uma exposição de mapa em Milão. Os mapas eram os mais bonitos do mundo, estavam ali todos os mais valiosos, mais fantásticos, mais antigos, mais tudo. Mas eu achava que a exposição te cansava, porque você via tudo em pé. E eu saí de lá – eu lembro que eu fui com umas pessoas que eram assistentes – e aí sentamos para comer. E eu, na hora, comendo, falei: “já sei Mapa não foi feito para pendurar na parede. Por isso que essa exposição me cansa”. Mapa foi feito para você debruçar sobre ele. Aí eu mudei tudo. A exposição é quase toda feita em bandeja. Para fazer o projeto daquela vitrine – porque é uma vitrine para cada mapa – eu fiquei uns dois meses e meio. Fazia o protótipo e dizia: “como é que o cara apóia o braço? Como é o maior conforto para o cara apoiar o braço, para ficar em cima do mapa?” Aí a luz tem a ver, porque o mapa, na verdade, tem aquela coisa de você se orientar, de se localizar – tem aquela coisa do oriente, que é da terra santa, o leste em relação à Europa... Também não tinha luz na exposição. A luz era só dos mapas, então você tinha que andar um pouco porque o mapa iluminava alguma coisa, o resto era todo preto. Você andava até chegar na descoberta do Brasil. Na verdade, a descoberta do Brasil – ou então os mapas das regiões brasileiras – era tudo branco, não tinha nada de diferente, só que saía do preto para o branco. A idéia era tentar sempre reduzir ao mínimo, para não ficar conversando fiado feito eu estou agora. Sabe aquela idéia de só o essencial? Isso é uma das coisas que me deixa mais encantado. E, quando eu consigo, eu fico super feliz comigo mesmo. CENOGRAFIA E ILUMINAÇÃO Eu nunca consegui separar uma coisa da outra. Porque, no Corpo, mesmo se eu não assino a cenografia, por exemplo, eu discuto sobre ela o tempo inteiro. “Não, não é assim, é assim...” Eu lembro que um dia o Nando falou: “eu já fiz 16 cenários e você não gostou de nenhum”. Às vezes, eu olhava e dizia: “tem alguma coisa que eu não estou gostando”. Aí, no dia seguinte, ele já sabia, e vinha outro cenário novo. Ele já desistiu várias vezes de fazer cenografia por conta disso. Mas eu nunca consegui ver só a iluminação. Então, eu podia ser chamado para fazer a iluminação de um espetáculo, mas eu achava o figurino de quinta categoria, de um mau gosto desgraçado. Mas aí eu não me meto, porque me chamaram para fazer a luz. Sabe aquela coisa, aquela criação em grupo, quando chamam o fulano de tal para fazer o figurino, o outro para fazer o cenário, outro para fazer a luz, outro para fazer a direção? São cabeças que não têm nada a ver, não convivem. Aí sai aquele projeto conjunto que é igual a um camelo, todo esquisito, parece que cada um botou um troço e falta unidade. Então, eu me sentia muito assim. Isso sempre me incomodou demais. Acho que eu era meio metido, queria que fosse do meu jeito, achava que eu não estava combinando com aquilo tudo. Fiz muito trabalho para o Ivaldo Bertazzo, de São Paulo, que é uma pessoa de quem eu gosto muito. Ele é um cara que faz um trabalho muito legal. É quase como um irmão meu. LEIS DE INCENTIVO À CULTURA Eu acho que a questão da Lei de Incentivo promoveu um boom. Para o cinema, por exemplo. Acho que isso foi uma decisão muito importante, mesmo ainda com alguns problemas dentro da lei. Muita gente diz que os bancos ou grandes empresas fazem os seus próprios institutos culturais, que investem dentro dele mesmo. Existe uma relação pouco sadia às vezes nesse sentido, mas eu sou bastante otimista em relação a isso. Eu acho que esse foi um começo muito importante. Depois, eu acho que o próprio mercado e as pessoas vão arrumando e regularizando. No cinema, teve muito desacerto, teve muita coisa feia de gente que não tinha nada a ver com o mercado. Mas isso, eu acho que, aos poucos, vai se corrigindo também. Então, eu vejo que ainda é um processo, mas, sem dúvida nenhuma, tem avanços impressionantes. Outras dificuldades que eu vejo: o teatro. Eu falei aqui que eu tenho preconceito contra o teatro. Claro que tem brincadeira nisso, mas tem muito de verdade também. O teatro no Brasil teve épocas – não porque eu era mais novo e achava que tudo era legal. Mas você sempre tem um avanço de linguagem quando você desenvolve aquilo durante um tempo. E quando existiam grupos mesmo de teatro, como o Grupo Oficina, o Teatro de Arena, até o Asdrúbal aqui no Rio, você tinha uma linguagem que você percebia que era uma inovação, parecia que dava um passo à frente. Porque era um grupo de pessoas que estava ali criando alguma coisa. O Teatro Oficina era maravilhoso. Eu acho que depois, optou-se muito mais pela produção do que pela criação. E essas leis também incentivam isso. Nesse sentido, fico muito feliz do Grupo Corpo, por exemplo, poder usufruir dessa lei, não de uma forma de produção, mas de uma forma de manutenção. Eu achava que isso devia existir mais: a manutenção de grupos de criação muito mais que de produção. Porque com o investimento só em produção, acontecem esses “camelos” de que eu te falei. No caso do Rio de Janeiro, acontece muito mais pela proximidade com a Rede Globo, porque tem mais influência direta. Em São Paulo também, obviamente, no Brasil todo tem. Não estou dizendo se a influência é boa, não estou discutindo isso. Só estou dizendo que existe essa influência. Quando você vai fazer uma produção, você pega um ator da Globo que está fazendo sucesso, uma menina bonita, um cara legal e faz uma produção pegando essas pessoas. Eu não acho que o teatro avança nesse sentido. Comercialmente, sim. Mas o que a gente está falando é outro assunto. Nós não estamos falando da parte comercial, não é essa a questão. Nós estamos falando da parte artística. Eu acho que quando existiam grupos – e existe ainda, como tem em São Paulo o Teatro da Vertigem – que faziam trabalhos que inovavam de alguma forma, dava-se um passo à frente, com consistência e você via o desenvolvimento disso. Do contrário, enfim, é peça para você ir...O teatro é chato para mim nesse sentido, com esse teatro que é muito comercial na maioria das vezes. DANÇA A dança já não tem esse vínculo muito direto. Quando se tem a palavra, eu acho que já é um pouco mais complicado. Eu acho que dança talvez seja hoje um pouco mais universal, porque o Corpo pode dançar na China, não é verdade? Um grupo chinês está no Brasil agora, dançando. A gente não tem problema de entendimento. O que está ali é entendido. É entendido, é assimilado. Então, o Corpo hoje faz pelo menos 40 espetáculos por ano em outros países. As pessoas aplaudem porque conseguem entender, porque têm um ponto de contato. O teatro tem essa dificuldade, a dificuldade da língua. Eu adoro teatro, Peter Brook eu adoro, mas eu fico muito decepcionado. No Brasil não tem muitas coisas que me fazem sair de casa para ver em matéria de teatro. Já na dança, eu acho que tem movimentos da dança contemporânea, de grupos menores, que eu acho simpáticos. Acho que é uma tendência talvez, essa de ter grupos menores mesmo. Muita coisa equivocada, também importada demais, mas tem muita coisa legal, muita gente fazendo um trabalho muito bom. DANÇA NO BRASIL O movimento de dança cresceu muito no Brasil. Nossa Acho que a dança deu um pulo. No começo – estou falando da minha época, porque eu já sou velho – você tinha o Balé Estágio, em São Paulo, que fazia uma coisa pertinente e você não tinha mais nada. Você só tinha companhias de repertório. Era uma coisa muito pouco pop. E hoje, não. Hoje, a dança se comunica muito mais com outras áreas, com artes plásticas, performances, com vídeo. Com isso tudo, a dança consegue se comunicar muito mais. Acho que no mundo todo também. É um tipo de arte bastante contemporânea. E eu acho que o teatro tem mais dificuldade nesse sentido. Acho. Mas eu só estou achando, não é para levar a sério. PATROCÍNIO PETROBRAS O Grupo Corpo tinha um outro patrocínio e estávamos num momento em que se ficou sabendo que a relação do Corpo com o patrocinador não tinha projetos futuros. Tinham ocorrido muitas mudanças na empresa, ela mudou bastante o foco. E aí, o pessoal da Petrobras que ficou sabendo procurou a gente para dizer: “olha, seria muito bom se a gente pudesse patrocinar o Corpo. Porque tem tudo a ver, a Petrobras é uma multinacional, está no mundo inteiro, está se expandido cada vez mais, tem uma imagem do Brasil que deu certo e acho que isso tem a ver com o Corpo. Tem uma modernidade de excelência que tem a ver também com o Grupo Corpo.” E como a Petrobras também estava começando a ter uma política mais formada a respeito de patrocínio – não mais aquela coisa toda diversificada e sim mais focada – achavam que o Corpo seria um bom exemplo disso tudo. Acho que foi há uns cinco anos atrás. Ou quatro anos, não sei. Assim, a gente conversou na outra empresa sobre desfazer o patrocínio. Desfizemos. Nada verdade existia uma outra empresa também. Olha, que engraçado Nós fomos a Brasília numa empresa que já estava patrocinando o Grupo – eram duas patrocinadoras. E eles fizeram um jantar para gente, porque acharam que a gente fosse lá para dizer: “vamos fazer ano que vem de novo”. E na verdade a gente foi para dizer que não ia continuar. Foi a coisa mais horrível do mundo A gente nunca tinha passado por essa situação. Parece chique, mas é trágico. Na verdade, a gente queria dizer: “não vai dar mais”, porque a Petrobras queria exclusividade. No primeiro ano, a gente ainda conseguiu manter outro patrocínio, mas já com o compromisso de exclusividade no próximo ano. E foi assim. PATROCÍNIO PETROBRAS - EXCLUSIVIDADE A exclusividade é boa. Às vezes é um pouco arriscada, no sentido de só se ter um e amanhã acontecer algum problema. Mas no caso da Petrobras, com o tamanho da empresa, com toda a sua estrutura, eu acho que para gente foi muito importante. Eu acho que o patrocínio, às vezes, é visto por parte do patrocinador de uma forma equivocada. Porque, é claro, a gente sabe que o dinheiro que está sendo usado nesse caso de patrocínio – dentro das artes cênicas, por exemplo – vem de um desconto de 100 por cento em impostos, quando você está dentro dessa Lei. Então, é um dinheiro do Governo. Logo você pode dizer que o Governo patrocina o Grupo Corpo. No caso da Petrobras ainda mais, porque a Petrobras também é estatal. Mas no caso de outras empresas não. E, muitas vezes, existia quase que uma exigência de retorno, de um retorno quase publicitário, quando na verdade essa verba não é uma verba publicitária. É uma verba de imposto de renda, é uma verba de que o Governo está abrindo mão. Então, usar esse dinheiro duplamente não é uma coisa muito saudável. E, muitas vezes, existe essa falta de entendimento nesse sentido. O que não é o caso da Petrobras. Mas a gente já passou por isso algumas vezes também. BANDEIRA BRASILEIRA No caso da Petrobras, tem também a questão de ser uma bandeira brasileira – sem nenhum ufanismo, porque eu detesto esse negócio. Eu sempre disse: no Grupo a gente não carrega nenhuma bandeira. Claro que a brasileira eu sempre adoro carregar. E fico muito feliz quando o Corpo está em um lugar – por exemplo, Baden-Baden – para se apresentar e estão todos os que eles chamam de cônsul – na verdade são quase como embaixadores – na Alemanha, em Frankfurt, que é uma cidade mais importante que Berlim para negócios. Então vão todos eles para Baden-Baden para assistir o Grupo Corpo. E tem aquelas coisas de político, discurso e tudo o mais, e você vê a bandeira do Brasil lá em cima. Eu adoro isso. Adoro. Pode ser uma visão terceiro-mundista ou o que for, mas eu adoro. Adoro saber disso. Mas isso foi uma coisa com a qual eu já tive muito problema na época do governo militar, quando a bandeira do Brasil era um símbolo que despertava os dois lados: você torcia para o Brasil ganhar a Copa do Mundo mas torcia para ele perder também. Era uma coisa horrorosa. Mas hoje eu sinto falta. Eu vejo também uma coisa que é excessiva nos Estados Unidos, principalmente depois do 11 de setembro: você vai principalmente no norte ou mais no centro dos Estados Unidos e vê que toda casa tem uma bandeira americana. A princípio, podia ser bonito, mas do jeito que está, a gente não está achando mais bonito. Mas no Brasil, por outro lado, eu acho que isso é pouco usado. Hino brasileiro podia tocar em todo jogo de futebol. Sabe essas coisas assim? Acho que seria simpático ter um pouco mais disso. PRESTÍGIO DO “CORPO” Eu fico feliz também de ver o sucesso do Corpo por esse lado. Porque, por exemplo, o Corpo vai a Lion em novembro, se não me engano. Com certeza – você pode me cobrar isso depois – em junho já não vai ter mais nenhum ingresso. Fica tudo, tudo, tudo completamente esgotado. É legal também quando tem um festival em que o Corpo é chamado a participar. Porque nos festivais, quando nos chamam, é sempre para abrir ou fechar o evento, sabe? Ter o Grupo Corpo, de alguma forma, já dá um upgrade para o festival que está convidando. Você vai perceber que normalmente a imagem do festival vem em cima da imagem do grupo. Isso acontece mesmo, não estou falando só como tiete do Corpo. Tem isso demais mesmo. Para a gente, o lugar em que nascemos é um troço. Eu pensava sempre comigo: para você saber se realmente estava completamente apaixonado por alguém, você se perguntava: “será que eu viveria com essa pessoa em Coronel Fabriciano, Ipatinga?” E depois eu vi que tem gente lá – eu conheço hoje muita gente que é de Ipatinga. E falei: “Meu Deus do céu Nasce gente lá e gosta, até adora Ipatinga”. Não é verdade? Esse negócio da gente nascer num lugar é um trem danado. A gente adora mesmo. E não tem jeito. Porque essas coisas emocionam a gente, não sei por quê. APRESENTAÇÕES FORA DO BRASIL Eu acho que temos uma responsabilidade ao representar o Brasil lá fora, mas acho que a nossa responsabilidade é no nível artístico, mais do que qualquer coisa. Isso é um outro lado. Patriotismo é coisa de cada um, mas a nossa responsabilidade é artística e é só dela que eu não abro mão. É que o lá fora hoje – mesmo que pareça presunçoso – atualmente não tem absolutamente nada demais, nada além do que aqui, de jeito nenhum. Para você ter uma idéia, tem um teatro em Nova York que sempre foi o meu sonho. É lá no Brooklin, chama-se BAM – Brooklin Academy of Music – e é o teatro que tem a programação que mais me diz respeito. É onde tem todas as coisas que eu acho que é a vanguarda hoje, em termos de dança, de teatro, de música. Eles têm três salas. E o Corpo, há dois anos atrás, pela primeira vez foi ao BAM. Putz Era o sonho da nossa vida E vai ano que vem de novo. Agora o BAM é um teatro que já faz parte da nossa vida. Começou a fazer realmente, a gente se identifica muito também com as pessoas que trabalham lá. Esse era o grande sonho. Mas eu lembro que no dia do BAM, eu nem afinei luz nem nada. Sabe, não tem mais aquele sentido para mim. Eu fico muito mais tenso, talvez, em fazer espetáculos em Ipatinga, porque eu acho que as pessoas, provavelmente, vão com mais expectativa, porque não têm tanta oportunidade. Eu fico muito mais tenso. Sinceramente. Porque a gente fala “lá fora” como se lá fora fosse um mundo, sei lá. O mundo não é mais tão grande assim. E no nosso caso, a gente trabalha mesmo, feito a gente trabalha em Belo Horizonte. Teve até uma reclamação em Belo Horizonte e eu até cedi nessa hora: “poxa, mas vocês são daqui e se apresentam só uma semana?” Falei: “a gente se apresenta uma semana aqui porque tem mais uma semana no Rio, tem mais uma semana não sei aonde”. Porque é assim que funciona. Não é porque a gente tem preferência ou não. Então, no mundo todo, é assim também. A gente se apresenta aqui e ali do mesmo jeito. É o dia a dia da Companhia. Na verdade, o dia a dia da Companhia é isso: viajar, apresentar e estar no teatro. E, fora do Brasil, em vários países, você tem às vezes uma condição mais fácil de trabalho. E, ao mesmo tempo, como a gente também percorre várias vezes alguns teatros – que acabam fazendo parte de um roteiro – você também já conhece os técnicos, já sai para comer, já tem a turma que você revê a cada dois anos. Porque normalmente é a cada dois anos que a gente vai. No caso da Alemanha, da França e dos Estados Unidos, vamos todos os anos, mas não na mesma cidade. Agora, por exemplo, no Alasca. Eu acho divertido também lá no Alasca. E a gente também fala Alasca “tão grande”, lá tem teatros maravilhosos com tudo o que tem direito. PROJETOS FUTUROS – NOVA SEDE Existe o projeto de uma nova sede, que está em andamento e que foi um concurso nacional que foi feito. Foram 136 projetos, 136 escritórios do Brasil todo que participaram. Foi feito um júri também internacional para não ter “problema de igrejinhas”. Ganhou então um projeto que está em desenvolvimento agora. Porque no concurso era menos do que um anteprojeto. A intenção é começar a construir no próximo ano. Basicamente, o que me atraiu nisso tudo foi pensar numa maior convivência hoje do trabalho que o Corpo está fazendo com outras áreas com as quais eu acho que poderíamos estar mais próximos. Mais próximo na convivência mesmo. A convivência que eu quero dizer é física, dentro do espaço, na área principalmente de artes plásticas, que é uma coisa que me interessa, de cinema, de vídeo e tudo isso. Então, tem espaços que são multimídia mesmo. Durante esse tempo que eu trabalhei com exposições, eu vi a dificuldade. Hoje, a arte contemporânea exige um espaço que está muito difícil conseguir. Você pega todos os museus, pega o MAM, por exemplo, que tem um projeto maravilhoso: para a arte contemporânea, no entanto, ele tem uma série de dificuldades, é todo de vidro, você não pode furar, não pode bater prego. Então, a nova sede tem uma proposta de ser um espaço que é quase uma fábrica, onde você pode absolutamente tudo. Você pode cavar buraco no chão, se quiser, você pode soldar na parede, como você pode pendurar, porque no projeto tem essas pontes rolantes. Você pode absolutamente tudo, para desfile, para vídeo, o que for, ou para isso tudo junto. Tem também apartamentos para artistas convidados que ficam um tempo ali. É um pouco afastado de Belo Horizonte porque é um projeto muito grande e nem existe mais esse espaço em Belo Horizonte. Tem um teatro no sentido mais tradicional, mas com algumas modificações que a gente acha importante, mesmo em relação à platéia, em relação a palco. É aquilo que a gente considera que seria bom para um teatro tipo italiano. Mesmo para o Grupo, tem tudo que eu acho que é importante, tem biblioteca, toda essa parte de computação gráfica, tudo junto. E tem um teatro menor que é só para coisas experimentais, para outros grupos. Tem uma coisa, sobre a qual a gente quase nunca fala, que é o seguinte: se você for lá no fim de semana, sempre tem pessoas fazendo trabalhos de dança. Tem também durante a semana, mas no fim de semana só tem isso. Normalmente são pessoas de Belo Horizonte, mas sobretudo pessoas que utilizam o espaço sempre para fazer alguma coisa. Por exemplo: uma mostra de dança não sei aonde. Estão sempre preparando a mostra lá dentro do Corpo. Na época em que eu fazia teatro, uma das maiores dificuldades que existia era o local para ensaio. Esse era um grande problema. Então, no Corpo, as salas são sempre utilizadas, as três salas, o tempo todo tem gente fazendo alguma coisa. E de lá já saíram alguns grupos que eu acho muito simpáticos. Só que eu queria que isso fosse ampliado de alguma forma, com mais condições técnicas também para isso, e mais tempo também. Porque, hoje, o Corpo também divide o espaço da sede com a escola. Você tem o horário do Corpo, que é sempre de nove às três da tarde. E depois, obviamente, é utilizado para a escola e para esse outro projeto também. Agora, o Grupo teria o espaço só dele. Tem espaço também só para experimentação técnica, para passar coisas. Acho que, sem pretensão, hoje que a gente tem um conhecimento técnico significativo. Porque a gente trabalha com todo tipo de técnicas que existem hoje no mundo. E eu acho que isso também era legal. Eu queria fazer um pouco disso para técnicos, ter esse tipo de movimento. Acho que isso não é uma obrigação, mas é muito bom de fazer. FILHOS Tenho três. Tem o Lucas, que tem 16 anos, a Maria, que tem 13. Será que ela fez 14? A gente está em dezembro? Não, ela fez 13. E a Isabel, que tem sete. Esse é o nome da minha mãe. É o nome da avó da Paula também – a mãe dos meninos – que foi quem marcou a vida dela toda. A Paula foi bailarina do Corpo durante muitos anos. Ela sempre se interessou por esse lado todo, por artes, sempre através da avó. Foi uma pessoa que marcou e também se chamava Isabel. Então, por isso, a Bebel. Eu não sei se eles têm interesse pelo Corpo. Hoje em dia, o Lucas está se mostrando mais interessado. O Lucas chegou a fazer aula um pouco, depois não quis mais. Maria também fez aula durante um tempo, depois largou. E a Bebel tem feito e gosta muito. Mas eles às vezes participam um pouco, ou viajam comigo um pouquinho, aqui dentro do Brasil. Uma vez, Maria foi comigo e viajou para fora. Mas, o Lucas hoje está começando a se interessar mais pelo Grupo, quer saber como funciona. Mas não sei, isso aí vai depender deles. Acho que eu sou mais influenciado do que influente. Como eu viajo muito, às vezes eu me sinto ausente. Um dos pontos de contato foi essa coisa de cavalo que eu estava falando antes. Eles gostam de cavalo e eu levava sempre. Fui levado, na verdade, e comecei a montar também. O que não é ruim. Eu comecei a montar depois de velho mesmo, mas, às vezes, eu estou montando e fazendo aula e passa uma menininha de seis, sete anos e fala: “ótima aula que você fez hoje” Eu falo: “obrigado” Porque, na verdade, eu sou um iniciante mesmo. E eu gosto de ser iniciante, acho bom. PROJETO MEMÓRIA PETROBRAS Eu adorei esse negócio. Acho que pela primeira vez eu falei mesmo. Eu li uma frase outro dia, do Gil, que gostei muito: “A pessoa que fala dez palavras ao invés de cinco fala com dez porque não consegue falar com cinco”. Então você imagina, que eu falei feito um doido...é porque realmente ainda tenho que aprender a falar mais. Pela primeira fez eu me senti falando assim.
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