Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Binho Marques
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo, dia 14 de abril de 2025
Código da entrevista PCSH_HV1449
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Binho, a primeira pergunta é bem difícil, que é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - É, é bem difícil mesmo. O meu nome eu tenho que pronunciar letra por letra. Até hoje eu não acostumei. Meu nome é Arnóbio. Arnóbio tem origem lá em Pernambuco, no Nordeste, e meu pai foi do Nordeste para o Acre. Então, eu tenho esse nome. Tem até uma rua, Arnóbio Marques, em Boa Viagem. É Arnóbio Marques de Almeida Júnior. Como meu pai também era Arnóbio e ele não teve a sensibilidade de ver que uma criança não combinava muito com esse nome, ele me batizou também como Arnóbio, mas como ele era Arnóbio, eu virei “Arnobinho” e virei Binho, graças a Deus. Eu nasci em São Paulo, nasci no Paraíso, no bairro Paraíso, na Beneficência Portuguesa em 1962, em outubro de 1962.
P - Quando você nasceu, a sua família, os seus pais já tinham outros filhos? Você teve irmãos ou como é que foi isso?
R - É, o filho caçula, o temporão, a mais nova que era a caçulinha da família. Eram quatro, e a mais nova tem seis anos de diferença para mim, então é alguém que não estava sendo esperado. Então, eu fui paparicado. Eu tive não só meu pai e minha mãe, mas tive várias irmãs, mães e um irmão que era também pai meu. Eu fui muito mimado a vida toda, foi muito bom. Curti muito a infância.
P - E fala um pouquinho do seu pai, então, do Arnóbio.
R - Arnóbio pai.
P - O Arnóbio pai, ele vem de onde?
R - O meu pai, ele é filho de uma família muito grande. O pai do meu pai, Antônio de Almeida, era filho de uma descendente, uma judia descendente de holandeses, Cristã Nova. Eu não sei exatamente o nome porque foi modificado. O nome que ela usava era Cordulina Gomes do Rego, mas esse nome foi alterado. Era Cristã...
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Entrevista de Binho Marques
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo, dia 14 de abril de 2025
Código da entrevista PCSH_HV1449
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Binho, a primeira pergunta é bem difícil, que é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - É, é bem difícil mesmo. O meu nome eu tenho que pronunciar letra por letra. Até hoje eu não acostumei. Meu nome é Arnóbio. Arnóbio tem origem lá em Pernambuco, no Nordeste, e meu pai foi do Nordeste para o Acre. Então, eu tenho esse nome. Tem até uma rua, Arnóbio Marques, em Boa Viagem. É Arnóbio Marques de Almeida Júnior. Como meu pai também era Arnóbio e ele não teve a sensibilidade de ver que uma criança não combinava muito com esse nome, ele me batizou também como Arnóbio, mas como ele era Arnóbio, eu virei “Arnobinho” e virei Binho, graças a Deus. Eu nasci em São Paulo, nasci no Paraíso, no bairro Paraíso, na Beneficência Portuguesa em 1962, em outubro de 1962.
P - Quando você nasceu, a sua família, os seus pais já tinham outros filhos? Você teve irmãos ou como é que foi isso?
R - É, o filho caçula, o temporão, a mais nova que era a caçulinha da família. Eram quatro, e a mais nova tem seis anos de diferença para mim, então é alguém que não estava sendo esperado. Então, eu fui paparicado. Eu tive não só meu pai e minha mãe, mas tive várias irmãs, mães e um irmão que era também pai meu. Eu fui muito mimado a vida toda, foi muito bom. Curti muito a infância.
P - E fala um pouquinho do seu pai, então, do Arnóbio.
R - Arnóbio pai.
P - O Arnóbio pai, ele vem de onde?
R - O meu pai, ele é filho de uma família muito grande. O pai do meu pai, Antônio de Almeida, era filho de uma descendente, uma judia descendente de holandeses, Cristã Nova. Eu não sei exatamente o nome porque foi modificado. O nome que ela usava era Cordulina Gomes do Rego, mas esse nome foi alterado. Era Cristã Nova, os pais morreram de alguma maneira misteriosa, não sei exatamente como, parece que no mesmo dia, e ela, com 14 anos, casou com um empregado do engenho, lá em Vitória de Santo Antônio, em Pernambuco, que era Elói Marques de Almeida, um português. Então, o pai dele se transformou num comerciante e era um comerciante de algodão, hora de café, enfim. Viveu em vários lugares da Paraíba e meu pai nasceu em Esperança, na Paraíba. E o meu pai, com 16 anos, fugiu de casa. Trabalhou como estivador, fez de tudo e sempre foi um cara muito estudioso por conta própria. E chegou a falsificar o documento porque ele queria entrar na escola agrotécnica, mas era muito novo. Então, ele falsificou o documento para entrar na escola agrotécnica de Areia, em Pernambuco. E o professor querido dele, tio-avô do Ciro e do Cid Gomes, Pimentel Gomes, resolveu fazer um projeto experimental no Acre e levou os seis melhores alunos para o Acre, no período da guerra. Então, eles queriam criar uma espécie de Embrapa de hoje, criar estações experimentais, produzir alimentos no Acre. Quando o Acre não produzia alimentos, ele produzia borracha e comprava até farinha e importava tudo. Então, ele foi ser chefe do departamento de produção no Acre e assim meu pai chegou no Acre. E lá ele trabalhou muito tempo, ele criou essas estações experimentais. Então, meu pai tinha esse amor pela natureza, gostava de plantar e tal, e adorou, amou o Acre e tal. E lá ele casou com uma filha de libaneses. Minha mãe nasceu em Belém, mas é filha de Nazle Zahluth e Abrahão Fecury. Fecury, na realidade, é Facury. Quando ele veio, não conseguiram fazer a grafia correta do nome. Seria Facury e Zahluth. Então, meu avô chegou no Acre em 1906, chegou no Brasil em 1903 e casou em Belém. Conheceu minha avó libanesa lá. Eles se conheceram no Líbano. Casaram em Belém. Minha mãe nasceu em Belém e eles foram para o Acre. Quando o Acre praticamente não existia. O Acre virou Brasil em 1903, e o meu avô chegou em 1906 no Acre. Então, quase não existia nada lá. Então, ele trabalhou como regatão, comprando borracha, e depois, por fim, montou uma lojinha, como todo “brimo”, montou uma lojinha lá. E, assim, eles se conheceram, meu pai casou com a minha mãe em 1946. A primeira filha nasceu no Acre e depois passou 20 anos fora. Aí nasceu um segundo filho na Paraíba, duas filhas em Pernambuco. E de lá ele veio para São Paulo e passou 9 anos aqui. Foi quando eu nasci e eu fui para o Acre com 6 anos de idade. Então, foi mais ou menos assim.
P - E qual é o nome da sua mãe, completo?
R - Minha mãe, Clélia Fecury, originalmente Clélia Zahluth Fecury, Clélia Abrahão Zahluth Fecury. E ficou Clélia Fecury Marques de Almeida. Meu pai, Arnóbio Marques de Almeida, que é o meu nome. É isso. Eles tiveram cinco filhos. Eu sou caçulinha.
P - E você sabe como é que eles se conheceram, seus pais, escutaram as histórias?
R - Sei, sei, sei. Ah, eles contavam muitas histórias e eu adorava escutar as histórias. Eles se conheceram no carnaval, num clube que existe até hoje de madeira, madeira de pinus, um clube muito lindo, vindo de Portugal, madeira. Esse clube, quando eu fui governador, eu fiz de tudo para reformar e resgatar a beleza desse clube, que se chama Tentame. Tentame porque tinha a ver com tentação. E os comerciantes que criaram esse clube, meu avô era comerciante, e lá que aconteciam os bailes, tinha muito baile de carnaval, e lá eles se conheceram no carnaval. E foi muito difícil pedir para namorar com a minha mãe. Meu avô era muito rígido. Ele entrou na loja do meu avô para falar, conversar com ele e tal. Ele ficou com tanto medo que ele pediu um quilo de feijão e saiu e foi embora. E assim, eles se conheceram, casaram. E tem muitas coisas lá em casa, porque ele escrevia um diário. Um dia ele escrevia, outro dia era ela que escrevia. Então, toda a história deles eu tenho muito bem registrada.
P - Mas ele escreveu no mesmo diário, isso?
R - No mesmo diário. Era um diário do relacionamento dos dois. Um dia ficava na mão de um, outro dia ficava na mão do outro. E passaram anos fazendo isso. Era bem interessante. Minha mãe escrevia muito bem. Ela era uma professora normalista, ela não teve curso superior, mas ser normalista naquela época era... As famílias tradicionais, as filhas faziam escola normal, né? E meu pai também não tinha curso superior, ele era um técnico agrícola, mas era considerado como se fosse um curso superior naquela época. Ele era chamado de doutor lá no Acre e tal, mas ele não tinha curso superior, ele era apenas um técnico agrícola.
P - E, antes de continuar, vamos fazer um parênteses. Me conta um pouquinho desse diário. Você leu ele? Como é que é essa relação?
R - Li, li, li. Li várias coisas, muitas cartas do meu pai pra minha mãe, li muitas coisas. O meu pai, antes de casar com a minha mãe, era um sujeito muito namorador, né? Ele era bem bonitinho e tal. Diferente de mim, ele era muito extrovertido. Eu sou muito introvertido, mas ele era super extrovertido. Gostava de falar em público e tudo mais. E ele era um conquistador. Ele namorava muitas e tal. Ele tinha um trauma de criança porque o meu avô casou com a minha avó. Meu avô participou do batizado da minha avó. É uma coisa estranha. Ele era amigo do pai da minha avó. E aí ele casou bem mais velho. Ela casou com 14 anos. E, claro, provavelmente ela não era uma pessoa muito feliz com ele. E aí ela passou a namorar o gerente dele, da loja dele. E meu pai tinha uma paranoia com ciúmes. Então, a relação do meu pai era uma relação muito difícil com a minha mãe, porque eles se amavam muito, mas ele tinha um ciúme doentio. Então, nessas cartas diárias, pedidos de desculpas dele, a gente vê a tensão e como foi difícil a vida da minha mãe. Porque a minha mãe foi criada por... tinha uma formação libanesa, árabe, então tudo era controlado, tudo era arregrado. Meu pai era um cara muito inteligente, muito criativo. Ele ficava rico rapidamente e perdia tudo também muito rapidamente, na mesma proporção. Eles tiveram uma vida de altos e baixos. Essas cartas mostram um cara genial. Ele gostava de criar coisas, mas não tinha nenhuma vontade de entrar numa rotina de tocar as coisas que ele inventava. Meu pai fez de tudo na vida. Ele construiu 40 casas em Campina Grande, mas ele resolveu mudar o sistema construtivo, porque o _____ era deitado, ele fez em pé, ninguém queria comprar as casas. E a minha mãe sofria muito com tudo isso, mas especialmente com ciúmes. Então, a relação deles era uma relação difícil, brigavam muito por causa do ciúme.
P - Você herdou esse diário?
R - Eu tenho várias coisas, tenho. Está um pouco difícil achar agora porque eu me mudei, então está tudo encaixotado, mas uma parte ainda está acessível, outra parte está num porão. Eu e minha mulher somos diferentes, eu sou um acumulador e ela faz de tudo para eu me livrar das coisas, mas esses documentos antigos eu guardo todos. Muitas fotografias, cartas escritas em árabe. Esses dias eu estava no chat gpt, lendo as cartas em árabe, pedindo para traduzir e tal. Muita coisa eu guardo, tenho muitas fotografias antigas da minha família no Líbano. Eu gosto muito, fiz História, eu gosto disso.
P - Me conta como é que foi essa mudança para o Acre, você se lembra?
R - Ah, lembro, lembro muito bem. Eu tenho uma memória impressionante do passado, a memória atual não funciona, eu não sei o número de ninguém, eu esqueço tudo, esqueço as coisas onde eu deixei, mas a memória passada, antiga e das histórias, parece que eu vivi o passado. Meu pai contava muitas histórias e eu tenho tudo isso bem guardado. Eu morava em uma ilha de fantasia, aqui em São Paulo, no Bosque da Saúde. Era um sobradinho típico de São Paulo. Rua Guararema, 407, Bosque da Saúde. Você vê que eu não tenho a memória. Eu saí de lá com seis anos de idade, mas até hoje eu lembro do endereço. Era um sobradinho muito simpático e eu era uma criança sonhadora e achava que vivia no paraíso. Porque eu era mimado, paparicado pelos irmãos que eram bem mais velhos do que eu, pela minha mãe, pelo meu pai. Sempre fui muito... Talvez o problema é que eu tinha um excesso de amor, um mimado demais, mas era um mundo muito fechado. Eu vivia de sapato no pé, calçado todo arrumadinho, tinha épocas de frio e tinha pouco contato na rua, tinha poucos amigos. Aqui em São Paulo, a vida do meu pai não era fácil, ele fez de tudo. Então, ele fez uma fábrica de chupeta que faliu, vendeu vasos sanitários de porta em porta, tampa de vaso sanitário de porta em porta, fez de tudo, vendeu castanha-do-Pará na feira. Então, ele tinha momentos de muita dificuldade, mas eu não percebia a dificuldade, vivia na ilusão. Eu gostava de assistir filmes de Daniel Boone e tal. Então, quando meu pai, de repente, falou: “Nós vamos para o Acre”, e começou a fantasiar coisas para mim. Eu entrei na fantasia, vou morar em uma casa de madeira. Eu imaginava aquelas casas roliças, igual a do Daniel Boone. O nome dessa cidade é Rio Branco, então eu imaginava aquele rio com cascatas, aquela água transparente, aquela cristalina. Eu fiz todo um sonho a respeito disso. E aí, em meados de 1969... Eu nasci em 1962, meados de 1969, tinha seis anos. A gente foi para o Acre num DC-3, bimotor, motor Rolls-Royce. Eu lembro, olhando na janela, aquele RR no motor do avião e pingando, né? Pingando. Fui pingando daqui, Rio, Campo Grande, Cuiabá, blá-blá-blá, mas não dobrou à esquerda. Ele foi para Manaus, esse avião, e lá em Manaus, não sei por qual motivo, a gente ficou uma semana lá. E eu lembro muito bem, a gente ficava perto de um quartel e tinha tortura no quartel. E eu lembro do nome do hotel, o hotel se chamava Beira Rio, e atrás o exército, e eu escutava as pessoas sendo torturadas à noite. Então, eu ficava apavorado nesse período, ficava muito apavorado. Era 69, então certamente algumas pessoas morreram naquele período que eu tive lá, porque o choro, a gritaria, era uma coisa que ficou, marcou na minha cabeça isso. A tortura era uma coisa assustadora, assim, pessoas gritando “pelo amor de Deus”. Enfim, é uma coisa que me marcou muito. Eu lembro, eu na rede, botaram numa rede lá. Era um monte de filhos no quarto e eu dormia numa rede. E eu ficava vendo as pessoas, assim, como se fossem fantasmas na minha frente. Era tanto medo que eu via as pessoas que estavam sendo torturadas. Não sei que delírio era aquele que eu tinha quando criança. Aí, depois, chegamos no Acre.
P - Desculpa, eu só tinha que ter um... Os seus irmãos lembram disso também?
R - Lembram. Minha irmã... Os mais novos lembraram mais, os mais velhos não perceberam muito. O meu pai sempre teve uma posição mais à esquerda. Aqui em São Paulo, na época, ele teve uma Kombi, ele ajudou a esconder algumas pessoas. Então, meu pai sempre teve um viés mais à esquerda. Então, foi realmente muito traumático. Eu, adulto, fui duas vezes nesse hotel ainda. Eu acho que ele ainda funciona, assim, muito simplesinho. E entrei no hotel, revi o quarto que eu fiquei, vi a distância que ficava do hotel do quartel, eram colados, os fundos eram colados assim, aí que eu consegui entender os gritos que eu entendi. Na época eu não percebia que tinha esse quartel, eu só escutava esses gritos que me incomodavam muito, e eu fui tentar entender isso e a luta, eu voltei lá para conhecer de perto. E realmente foi algo marcante, assustador. Bom, aí chegamos no Acre. Chegamos no Acre, pousamos... O Acre não tem pedra, né? O Acre, ele foi um grande lago quando formou os Andes, né? O rio Amazonas corria ao contrário. Então, ele no lugar de ir pro... para o Atlântico, que ele ia na direção do Pacífico, porque descolou do continente africano, o continente sul americano descolou, tinha um rio ligado aos dois e ele continuou correndo no sentido do Pacífico. Mas aí, quando as placas tectônicas se encontraram, elevou os Andes e o Acre virou um grande lago, que o rio começou a acumular na medida que subia, até subir o suficiente para a água mudar o sentido. Então o Acre é uma área geologicamente muito recente, então não tem pedra. Então o avião pousou numa pista de tijolo, porque tudo lá era de tijolo, as ruas todas não tinham paralelopípedo, eram todas ruas de tijolo. Então aquilo ali já me encantou demais, achei lindo aquilo, aquele aeroporto que não tinha asfalto, era de tijolo maciço, super bem queimado para poder ter resistência, e a cidade toda pavimentada de tijolo, coisa muito linda. E aí pousamos num aeroportozinho muito lindo, era uma viagem no tempo, completamente. Era um aeroporto construído nos anos 30 ou 40, bem antiguinho, com a imagem do Santos Dumont, uma coisa mais fofa do mundo, ele ainda existe até hoje. Também ajudei a recuperar quando fui governador. E de lá fomos para a casa dos meus tios, numa rural. Quando eu era pequeno, eu tinha esse hiperfoco em carros. Então, com cinco anos de idade, meu pai se exibia para os amigos dele, perguntando, “Que carro é aquele?”. Eu, com cinco anos de idade, eu reconhecia todos os carros. Todos os carros que eu andei naquela época, eu lembro de todos. Então, fui numa rural marrom para a casa dos meus tios. Quando a gente chegou na cidade, o que eu imaginava que era uma cidade, praticamente não era uma cidade. A capital do Acre tinha 70 mil habitantes, no máximo. Isso. 70 mil habitantes foi quando começou a migração dos seringueiros para a cidade, aí chegou a 70 mil. Tinha menos de 70 mil habitantes quando eu cheguei lá. E aí eu vi o rio, não tinha ponte, a cidade era dividida dos dois lados do rio, mas não tinha ponte. E aí eu vi uns barquinhos, os caras remando. Aí eu... “Ah, papai, vamos andar de barquinho, vamos andar de barquinho”. E eu não entendia que aquele barquinho não era um barquinho para passear. Era catraia que ia passar anos indo de um lado para o outro do rio de catraia. Você pagava e atravessava o rio de catraia. Era a maneira como as pessoas iam de um lado para o outro. A cidade nasceu onde ficava a casa dos meus avós, a rua que nasceu a cidade, porque ele foi um dos primeiros a chegar lá. Uma das fotos que eu mandei tem um pouco isso. E aí eu comecei a perceber que aquele rio cristalino, cheio de pedra, não existia, era uma água barrenta, tudo era muito estranho. Então, tinha um cheiro, o Acre tinha um cheiro, um sabor completamente diferente. Então, cheguei na casa das minhas tias, ofereceram um Guaraná e eu fiquei super... Eu adorava aquele Guaraná champagne da Antarctica, que a gente não estava sem grana, era muito raro tomar um Guaraná aqui. Então, um dia muito raro, o meu pai e o meu irmão compravam um Guaraná para mim e falavam para eu tomar um Guaraná. Aí, quando eu tomei o Guaraná, tinha gosto de remédio, porque era Guaraná de verdade. Era um refrigerante feito de Guaraná de verdade. Era o Guaraná Libertador. Que depois a gente falava: “Guaraná Libertador, cada garrafa um sabor”. Era tão artesanal, o negócio era tão artesanal que não tinha padrão. Mas era de verdade, era Guaraná de Guaraná. E era muito forte. Nossa, quase que vomitei com aquele Guaraná. Antes, em Manaus, eu tinha experimentado o tacacá também. Achei a coisa mais horrorosa do mundo, aquela goma, aquele negócio que, para mim, era feio e horroroso. Hoje eu morro de saudade de tacacá. Naquela época, assim... Nossa! Eu fui para outro mundo. Eu cheguei em outro mundo, em outro lugar. Então, o cheiro, a sensibilidade, tudo era muito diferente. E as pessoas falavam outra língua. Outra língua, completamente diferente. Porque não tinha televisão, não tinha telefone, não tinha estrada e um lugar que foi abandonado, porque quando eu cheguei os seringais todos estavam decadentes, então era um lugar abandonado. Tinha virado estado em 1962, no ano que eu nasci, então deixou de ter a proteção do governo federal, não tinha renda, não tinha economia, era um lugar falido. O meu pai foi parar lá porque com o governo militar eles começaram a ter muitos incentivos para a industrialização, para isso, para aquilo outro, vários programas dos governos militares para ocupar a terra vazia, que eles diziam, repleta de indígenas, tinha nada de vazio, mas os governos militares queriam ocupar a floresta, achando que não tinha ninguém, e então despejaram dinheiros em financiamentos bem baratos, subsidiados. Então os meus tios resolveram montar uma cerâmica. Então eu lembro que eu andei aqui no interior de São Paulo com o meu pai, ele visitando fábricas de equipamentos para cerâmica e tudo, então ele foi para lá para isso. Por isso que ele voltou para o Acre, porque estava mal a vida aqui e os meus tios disseram: “Você não quer ser gerente de uma cerâmica? A gente consegue um financiamento”. Eles eram... Para mim, eles eram ricos, mas éramos os mais pobres dessa família. Então, os meus tios tinham vários negócios, lojas e tudo mais. Seria mais um negócio dos meus tios, mas para o meu pai era a redenção dele ser gerente dessa cerâmica. Então, chegamos lá no Acre, e tudo era muito estranho para mim, era outra língua mesmo, porque esse isolamento e abandono também, completamente abandonado. Então, para eu entender as coisas, por exemplo, bola de gude lá era peteca, peteca para mim era aquela que jogava assim, cabide era cruzeta, Vermelho, ele chamava de encarnado. Esmalte, ele chamava de cutex. Perfume, ele chamava de extrato. E aí por aí ia. O trailer do filme era complemento. E ele só assistia aos filmes em que o artista não morria no final. Então, Paixão de Cristo, jamais. O artista morre no final, certamente. Era um mundo completamente novo. Mas eu era novo para eles também. Eu era completamente novo para eles. Como eu morava no Bosque da Saúde há muito tempo atrás, ali só tinha gente do interior. Tinha muita gente, muito simples, que veio do interior para cá. Então eu falava porta, corda. Conhece o nome? Arnóbio… Amor, e lá eles falavam cantado, falavam como cearense, colonizado por cearense, uma fala nordestina, cantada, como eu falo hoje aqui, acho que vocês percebem, eu não percebo essa diferença, mas é uma fala mais cantada, um pouquinho diferente, não falo mais porta, corda. Até porque quando eu cheguei, eu fui recepcionado com as coisas de criança. Um amigo meu que disse que criança é bicho que não se quer em casa. Eles são completamente verdadeiros. E lá a coisa era muito selvagem mesmo. Eles gostavam de brigar, de ir para a porrada. Essa era a grande diversão deles. E chega um cara de São Paulo, “como é que esse cara briga?”. Então deixa o negócio de botar a mão assim, diz, cospe aqui na minha mão. Aí um do lado, outro do outro, aí tirava a mão, cuspia no outro e o pau comia. Ele tirou a mão e eu já levei o murro no nariz, o sangue escorreu. E eu tive que aprender a virar mais acreano do que os acreanos para ficar invisível. Então, eu rapidamente aprendi a falar o acreanês, mas eu era loiro, quando eu era criança eu era loiro e tal, muito branco, chamava muita atenção, mas eu falava o acreanês perfeito. Pelo menos ficava um pouco invisível, porque se eu falasse porta, corda, chamava atenção demais, então tinha que ficar na minha. Então, eu aprendi a invisibilidade, a arte da invisibilidade, muito cedo.
P - Você foi estudar logo de cara lá? Onde você estudou?
R - A minha irmã, que nasceu no Acre, ela fez escola normal aqui. Então, eu cheguei lá já quase alfabetizado. E eu entrei numa escola de educação infantil, que existe até hoje. É a Escola Pública de Educação Infantil Menino Jesus. Uma escola linda, linda, linda, maravilhosa, com piso de ladrilho hidráulico. Uma escola bem antiguinha. E como o Acre era ligado ao Rio de Janeiro, era um território federal, então o Acre teve ótimos professores. A educação era para poucos, era para a elite que morava ali na cidade. Muita gente fala que a educação do passado era boa, mas era para poucos. Então, tinha uma ótima educação para poucos. Então, das escolas do Acre saíram Adib Jatene, João Donato, Glória Pérez. Muita gente famosa saiu dessas escolas incríveis do Acre. E essa escola infantil, eu lembro até hoje, ela era muito pautada pela escola nova, porque tinha o Anísio Teixeira, chegou a ser secretário de Educação do Distrito Federal quando era no Rio de Janeiro. Ele influenciou muito as correntes da educação, do escolanovismo, do protagonismo. Era uma escola que a gente contava história, era uma escola que até hoje seria uma escola inovadora. Então, eu desenhava muito, a garotada sentava no chão, contava histórias, elas tinham que fazer as coisas assim... a prática manual era muito grande. Era incrível, essa escola é incrível. Eu não estudei o ano inteiro, porque cheguei no meio do ano, e no ano seguinte fui para uma outra escola pública, a Escola Presidente Dutra, que era outra escola lindíssima também, construída nos anos 1930, 1940, com ladrilho hidráulico, telhas francesas, uma arquitetura belíssima. Infelizmente, foi destruída essa escola. Então, eu estudei quase a vida toda em escola pública, mas no antigo ginasial eu estudei numa escola de padres, que na verdade virou uma escola marista, mas era conhecida como Colégio dos Padres, mas virou uma escola marista. Depois eu voltei para a escola pública. Aí no ensino médio eu voltei para a escola pública.
P - Nessa época, quando você estava na sua infância, adolescência, você e a sua família visitavam a floresta, o campo?
R - Não, absolutamente não. Então, eu morava numa cidade no meio da Amazônia, uma cidade pequena, e eu não tinha a menor noção do que era a floresta. Menor noção, não tinha a menor noção. O conhecimento que eu tinha da floresta era do vizinho, que era um grande caçador, e ele tinha vindo do Seringal. E a sogra dele, que morava com ele já bem velhinha, contava muitas histórias, e a gente adorava escutar as histórias de Mapinguari, de Caboclinho da Mata. Ela contava aquelas histórias, não como sendo uma fantasia, mas como sendo realidade. Que escutou isso, que viu uma visagem, não sei o quê. É impressionante isso, que os seringueiros contam essas histórias como de fato aconteceram. Parte disso, alguns justificam, pelo medo, os cearenses chegarem na floresta e saírem de um lugar completamente diferente, a floresta assustava, muitos barulhos, eles imaginavam coisas. E, além disso, como eu falei, o Acre foi um lugar de uma fauna muito diferente. Então tinha as preguiças gigantes, que até hoje tem fêmur desse tamanho. Então eles imaginam que era de um bicho enorme. Provavelmente o mapinguari veio dessas ossadas, de zilhões de anos aí, que foram tartarugas gigantes, jacaré gigante, lá tem um purussaurus. Então, quando falam que o Acre é o lugar dos dinossauros e não sei o quê, não é à toa, é porque lá tinha um jacaré de 15, 16 metros, que era um purussaurus, era um dos maiores carnívoros da América do Sul. Em função desse lago e dessas grandes mudanças geológicas que o Acre viveu quando os Andes subiram. Então, eles deparavam, os seringueiros deparavam, os nordestinos deparavam com esses ossos, essas preciosidades da paleontologia. Então, muitas coisas. Além disso, era densamente habitado por indígenas. Então, os geoglifos mostram círculos quadrados perfeitos, construídos com 200, até 3 metros de profundidade, em alguns casos, de 200 metros de largura, diâmetros perfeitos. Então, era uma civilização densa que morava na região do Acre, que tinha contato com os povos dos Andes. Eu li um artigo um dia desses que acharam nos Andes um cara mumificado que tinha uma bolsinha que tinha todo tipo de psicotrópico. Ele tinha cogumelo, várias coisas, e tinha também a folha e o cipó da ayahuasca junto com ele. Mais de mil anos atrás. Então, eles tinham muito contato. Uma terra muito rica. E, claro, essas coisas, o cara entra num lugar desse, vê, ele começa também a construir, bom, isso do lado mais materialista da história, mas tem outro lado também, que é a energia da floresta aqui. Aí eu só vou saber disso quando eu for dessa pra outra, que aí eu vou entender um pouquinho melhor essa parte. Mas os meus pais não tinham contato. Então, com esses vizinhos, eles que me levaram pra tomar banho no rio, eles que me levaram pra algumas colônias, como eles chamavam as chácaras lá, que chamam de colônias, né? E lá foi quando eu vi o primeiro gavião, gavião real, uma coisa impressionante. Parece que é uma divindade, um bicho maravilhoso. E aquilo tudo é muito encantador. Então, aquele rio que eu tive nojo no começo... Nossa, eu esperava a cidade de Rio Branco, mas imaginava que era um rio cristalino, mas tinha a ver com o Barão do Rio Branco, tinha nada a ver com um rio transparente, era um rio barrento. Aí passei a gostar de tomar banho no rio, aquelas praias lá de rio. A minha cabeça pirou com o lugar, pirou completamente. Aí eu amei, amei, amei, amei de paixão. Andar quase pelado pela rua. Eu, logo no começo, já pisei em prego. Eu não sabia andar descalço, tomar antitetânica. Minhas primeiras experiências foram apanhando, e aí esse cara que me deu o murro e escorreu sangue, o meu irmão queria, porque queria bater nele e tal, e eu não falei o nome dele em nenhum momento, aí ele virou meu melhor amigo, e aí já comecei a entrar nas tropas, aquelas gangues da molecada lá, que chamavam de tropa, aqueles grupinhos, aí quando um de um bairro encontrava com o outro, o pau comia, eu ficava de longe, não sabia brigar, mas fazia parte dos grupos, eu estava protegido por eles, eu tinha meus defensores, já sabiam que eu era molenga para brigar, então já me defendiam. Enfim, foi um mundo completamente novo. E a ausência de telefone e televisão, especialmente a ausência de televisão, me fez uma pessoa mais criativa. Brincar, eu brinquei muito. Então, tinha todo tipo de brincadeira que eu não conhecia, que os meninos inventavam brincadeiras. Inventavam brincadeiras de todo tipo. E não tinha brinquedo industrializado. Então, esse meu vizinho que caçava, ele também era um carpinteiro. Então, a gente construiu os brinquedos, espada, revólver, não sei o quê. A gente construiu umas casas no meio do... Atrás da minha casa era uma floresta. Tinha um igarapé atrás da minha casa, então a gente ia entrar nessa matinha, já não era uma mata selvagem, era uma capoeira, uma mata secundária, mas a gente entrava no mato, fazia casinha, que aí a gente ia descobrir a casinha do outro grupo, aí derrubava a casinha dos outros, eles derrubavam a nossa, enfim. Foi um aprendizado que... Tudo que faço hoje, tenho referência no que aprendi brincando. Aprendi a organizar, a classificar, a negociar para não apanhar. Foi um aprendizado que foi muito bom não ter mais a televisão. Não tinha saudade da televisão. Eu vivia em casa, em São Paulo, assistindo televisão, adorava os desenhos animados, adorava as corridas de carro, sempre fui apaixonado por carro, porque meu pai comprava e vendia carro velho. Então eu gostava muito de carro, e meu pai também gostava, então assistia as corridas interlagos e tal. Mas não senti falta. Cheguei lá e não senti absolutamente falta nenhuma.
P - Mas tinha rádio lá?
R - Rádio tinha. Rádio era a grande presença. Eu assistia todas as novelas de rádio, eu assistia. Rádio era o meio de comunicação. Então as pessoas na floresta sabiam das coisas através não só do rádio, das notícias, mas, principalmente, dos seus familiares. Então, depois do almoço, tinha uma hora, era o horário das mensagens. E era muito legal, porque as mensagens, as pessoas iam na rádio estatal, que é a rádio difusora, e elas mesmas relatavam, falavam, e alguém escrevia, muitas analfabetas, alguém na recepção ali escrevia a mensagem. Então o cara lia exatamente a mensagem que a pessoa mandava. E era muito engraçado, mas todo mundo ficava sabendo. Eram coisas assim... engraçadíssimas, porque eram coisas muito... Aqui em São Paulo, jamais eu ia tornar público uma...
P - Mas tipo o quê, assim?
R - Ah, todo tipo, assim, tipo... “Atenção, fulana de tal, no Seringal”, digamos assim, bagaço, que era o Seringal da Marinha, colocação “o cu do Mundo". “O cu do Mundo” já era risível e tem várias colocações. O Seringal é uma área de floresta e a colocação são as clareiras dentro dessa floresta e fica, no mínimo, meia hora à distância da outra casa, que você vai por uma picada chamada Varadouro. Então você não tem praticamente comunicação ali. A comunicação é quando as pessoas andam, vão de lá até a cidade fazer algum comércio, alguma coisa, um marreteiro vai vender coisas lá, então ele vai parando, aí o que ele escuta não conta pro outro e tal, e aí aquele telefone sem fio, aquilo ali acontece. Mas eles não tem como saber da notícia que alguém foi pra Rio Branco. Então eles falavam: “Atenção, fulano de tal, no Seringal Bagaço, Colocação o cu do mundo”, ou então “Colocação Vai Quem Quer” quando ela fica num lugar que ela não vai pra outro lugar. Eles chamam de manga. Você vai e tem que voltar. Então, só vai quem tem negócio. Então, Colocação Vai Quem Quer. Então, “na colocação vai quem quer, sua mãe está muito preocupada com você. Aqui estamos bem, mas ouvi dizer que você fez isso e aquilo…”, que era uma coisa muito íntima, né? Ele coloca na rádio, aquele negócio, né? Ou então: “olha, chegamos aqui no hospital, mas seu pai morreu, mas aqui passamos todos bem”. São as coisas que você não... Para mim, era uma coisa extraordinária, então... E eles tentavam falar de uma maneira mais... De uma maneira mais, sei lá, mais formal, né? Então, assim, não falava em dinheiro, falava em numerário. “Por favor, tô aqui passando fome, mande numerário”. Aí outro dizia, “a galinha que você deixou aqui, o fulano matou a galinha, roubou a galinha e matou e tal”. Eram essas coisas assim que eram muito legais. Eu adorava escutar essas mensagens de rádio.
P - Era no almoço, assim?
R - Era uma hora da tarde. Depois do almoço, aí naquele horário, todo mundo... nas colocações todas, ficavam no rádio para ouvir as mensagens. Aí todo mundo ficava sabendo a vida de todo mundo também, até as coisas mais... que aqui em São Paulo a gente jamais contaria para o vizinho. Ficava na rádio ali, aquela coisa toda. Então a rádio tinha tudo, mas era uma rádio isolada também. Então, só quem tinha rádios muito potentes, então pegava a BBC de Londres em português, que era o caso do Chico Mendes, ele escutava muito a rádio de Moscou em português, a BBC de Londres e tal, então precisava ter um radiozinho mais bacana, né? Senão ele pegava só o rádio local, que não tinha muita novidade, as notícias chegavam muito atrasadas.
P - Vocês ouviam música, futebol, essas coisas, né?
R - Eu me apaixonei por futebol, porque como era isolado, não tinha muito o que fazer, então os times locais eram o máximo. Então, os jogadores do futebol amador lá eram heróis. Eu imitava vários deles. Infelizmente, eu tinha que ser dono do campo de futebol, da bola e do jogo de camisa para poder jogar no gol. Nunca fui um bom jogador, mas eu era apaixonado por futebol. Então, lá tinha... Nossa relação sempre foi com o Rio de Janeiro, porque era um território federal. Lá tinha o Juventus, que era a cópia do Flamengo, tinha as cores do Flamengo. Os principais times eram o Juventus e o Independência, que era o meu time, que eram as cores do Fluminense, por isso sou Fluminense até hoje. O goleiro do Independência morava no meu bairro, era primo dos meus amigos, então o futebol era uma coisa que eu vivia no estádio. O estádio era atrás da minha casa, depois dessa matinha que eu falei. Então, a gente entrava nessa matinha para entrar no campo sem pagar. A turma toda ia lá e às vezes pegava a gente, dava um bronco e a gente saía correndo. Mas eu vivia no estádio com bandeira do meu Independência e tudo mais. Então, futebol… Eu escutei a Copa de 70 toda na rádio, toda na rádio, todos os jogos da Copa de 70 pela rádio. A gente acompanhou, então era uma grande alegria.
P - Me conta uma coisa, você ficou dos 6, 7 até quantos anos no Rio Branco, no Acre?
R - Eu fiquei praticamente a vida toda. Eu saí do Acre só depois da morte do Chico Mendes, em 88. Quando o Chico morreu, a gente tinha um financiamento de uma coordenadoria, um grupo ecumênico, progressista, que era a CNBB, e mais seis igrejas evangélicas tradicionais, luterana, anglicana, que faziam um fundo e financiavam o nosso trabalho com educação, que eu coordenava. Então, quando o Chico foi morto, eles me convidaram para trabalhar com eles. Então, eu fui trabalhar em Salvador, que era a sede. E aí, eu acompanhava a Amazônia e acompanhava os projetos indígenas e de sindicato rural. Eu também acompanhava o sindicato rural do Nordeste, porque eu trabalhava com sindicalismo rural, com o Chico Mendes. Então, eu acompanhava Norte e Nordeste especialmente na área de trabalhadores rurais e indígenas era comigo.
P - Agora, voltando a você, você fez ensino médio em Rio Branco e você teve alguma época em que você falou, “não, quero ser isso ou quero fazer isso para a vida”, como é que foi essa história para você?
R - Bom, eu sempre, desde pequeno, eu queria ser cientista. Então, pequenininho, aqui em São Paulo, aqueles monóculos, aqueles negócios de fotografia que a gente olhava, então eu tirava o fundo, pegava o mosquitinho, botava ali como se fosse um microscópio. Gostava de misturar tinta guache para ver se fazia uma coisa, uma química. Enfim, era isso que eu queria. Ou então ser engenheiro mecânico, porque eu gostava muito de carro, muito de máquina. Todo tipo de máquina eu gostava. Avião, carro, tudo eu gostava de inventar. Ganhava os brinquedos e destruía completamente, porque eu queria ver como é que funcionava. Enfim, então eu cheguei no Acre nessa vibe. O meu pai montou a primeira distribuidora de revistas no Acre. Ele também tinha muitas coisas. O Acre, quando a gente chegou, não tinha numeração nas casas, tinha que pegar a carta no correio. Então ele numerou as casas, ele montou a cerâmica, ele foi fazendeiro, ele fez de tudo. Mas o fato de ele ter uma distribuidora de revistas, a primeira do Acre, quando a revista encalhava, ele tirava só a capa para devolver para a Editora Abril e a revista ficava lá, porque era muito caro mandar de volta. Ele mandava a capa e eles não cobravam aquela revista que não foi vendida. E o meu pai, que era meio maluco, naquela época queria reciclar. Tinha quase um armazém aqui, tinha uma montanha mesmo de revistas, muito grande. Eu adorava subir aquela montanha, deitar naquela montanha e ficar vendo as revistas. Eu adorava “Casa e jardim”. Me apaixonei pela arquitetura, queria ser arquiteto. Mais tarde eu voltei a essa coisa de ser cientista e queria fazer, visitar uma tartaruga gigante que tem ainda lá na nascente do rio Acre e tal, queria fazer uma expedição. Então eu resolvi criar um jornal escolar de fofoca para a gente juntar grana para fazer essa expedição. Eu tinha uns 15 anos, eu e um amigo. Hoje eu seria nerd, não sei que nome teria para dar naquela época, mas eram aqueles rejeitados, que as meninas não querem saber, então a gente tinha que fazer alguma coisa. Então a gente criou um grupo de dimensões de estudos paranormais e ufológicos. Era o grupo de menções. Só que quando a gente foi fazer o jornal de fofoca, meu pai falou, por que que você não fala sobre reforma agrária? Eu nem sabia o que era reforma agrária. Aí ele me explicou, aí eu escrevi sobre reforma agrária. E a minha mãe disse, tava perto do Chico Buarque: “Por que você não põe o nome de jornal ‘A Gota’?” E aí, bom, enfim, saiu um jornal de esquerda, assim, um jornal. E aí, quando saiu esse jornal, claro, ninguém comprou, mas os militantes de esquerda foram procurar: “Quem são esses meninos, né?” Então eu fui bater numa reunião clandestina da Quarta Internacional e virei trotskista. Com 16 anos eu era trotskista, andava com a gente bastinado debaixo do braço. Então eu com 16 anos comecei minha militância. E foi nessa época que eu conheci a Marina também. Então, a gente estava na mesma escola já, só que eu estava já no primeiro ano do ensino médio e ela ainda estava no ensino fundamental. Ela era enorme, perto das criancinhas, ela era grande, ela se auto alfabetizou com a ajuda da avó, não sei o quê e tal. Ela se alfabetizou com 16 anos, com 16 anos estava no ensino médio, ela com 16 anos se alfabetizou. E a primeira vez que eu vi a Marina foi no pátio da escola, a gente não estudava na mesma sala, no Semec, com as irmãs. Não lembro qual a congregação. E aí a irmã deu o microfone para ela recitar uma poesia que ela tinha feito. Ela mal sabia escrever, mas ela já tinha feito uma poesia. E a irmã colocou ela para recitar a poesia na frente de todo mundo. Eu achei aquela voz gasguita, horrorosa. “Nossa, que voz horrorosa!” Eu já sei, aquela mulher estranha assim, nossa, que pessoa estranha! E aí, ela conheceu a teologia da libertação e a gente começou a se encontrar nos embates da esquerda lá, né? Eu trotskista e ela da comunidade de base. E eu tinha mau preconceito com a comunidade de base, aquela coisa. Ih, já vem esse pessoal aí, tá? E essa mulher gasguita, chata. Eu não gostava nem um pouco dela. Então, foi assim que a gente se conheceu. E, claro, toda a esquerda participava de um movimento cultural que era muito forte, o Teatro Amador. Eu era diretor de cineclube, uma vez a gente foi parar na Polícia Federal por causa de filmes que a gente passou sem certificado de censura. Então, participava desse movimento cultural e eu queria muito perder a timidez, fui muito tímido, entrei em um grupo de teatro, aí lá entra a Marina nesse grupo. “Pô, caramba, vou ter que conviver com essa figura chata”. E a Marina foi uma pessoa maravilhosa, assim. Sempre se relacionou bem com todo mundo, até com chatos como eu. E assim, ela me tratava super bem, mas eu não suportava a Marina. E assim foi, a gente foi convivendo e tal. Eu tinha uma relação bem distante com ela. E aí... A Marina fez supletivo de primeiro grau, supletivo de segundo grau e eu estudei de maneira regular, mas ela, veja só, se alfabetizou com 16 anos de idade, fez supletivo de primeiro grau, fez supletivo de segundo grau e passou no vestibular junto comigo para História. Aí fomos para a mesma turma e eu ainda não gostava dela. Fomos para a mesma turma. A gente já era do mesmo grupo de trabalho, mas não gostava dela. E aí, no primeiro dia de aula, o professor colocou no mesmo grupo de trabalho. Era um professor muito rígido, mas ele era idolatrado por nós, por mim e pela Marina. Na primeira aula dele, eu lembro, ele começou dizendo assim: “Se outros fossem os tempos, eu receberia vocês com rosas, mas os tempos não nos permitem isso, então vocês vão ter contato com a dura realidade comigo”. E é com ele que a gente aprendeu filosofia da história, umas leituras que eram super difíceis para a gente, Nicolás Cosic, era tudo em espanhol, a gente não tinha quase nada da literatura que ele trabalhava em português, então a gente teve que aprender. A gente tinha saído do ensino médio, aí já cai lendo autores bem complicados da filosofia da história e tal, mas a gente adorava, E aí, nessa altura, eu já tinha saído, já não era mais trotskista, eu era anarquista, eu já tinha virado grafiteiro no Movimento Cultural. Aí eu virei grafiteiro, fazia filme amador, fazia animação, não sei o quê. E a Marina, ótima atriz. A Marina se deu bem com o teatro, eu não me envolvia com ela, porque com o teatro não era o meu lugar. Eu até tentei, mas a peça que eu atuei, eu esquecia o texto toda vez. E o cara que atuava comigo tinha que improvisar para caramba e me dar dicas do texto para eu voltar a lembrar do texto, uma loucura. Mas a minha família na primeira fila batendo palma, que eu sempre fui mimado, e muito diferente da Marina, que estava casada, morando no... A casa da Marina não tinha parede. O governo fez um conjunto habitacional que lhe dava uma casa inacabada para as pessoas concluírem. Então, ela tinha telhado, tinha um banheiro de alvenaria, estrutura de madeira, as pessoas tinham que comprar madeira para fazer o piso, e as paredes. E a Marina não tinha dinheiro, e ela e o marido não tinham dinheiro para fazer isso. Então, eles compraram aquele plástico preto e fecharam a casa toda com o de plástico. Era barra pesada. E meia dúzia de tábuas que a gente ficava para pisar no chão. Ficava cheio de buracos, você ficava pulando assim. Ela engravidou do marido já no primeiro ano do curso de História e a gente ainda continuou lá no teatro. Já estava quase para ter filho e ela escorregou na lama, não tinha asfalto, tinha muita lama, atravessando a rua, escorregou e entrou em trabalho de parto. E só estava eu lá no teatro, eu tinha um gurgel. E aí eu que socorri, cuidei dela, fiz tudo, mas isso para mim era normal, natural. Aí ela supervalorizou isso. Ela supervalorizou, ela já era uma pessoa que tinha grande consideração por todo mundo, mas como eu levei para o hospital, fiz tudo para ela, socorri, não sei o quê, ela deu um valor para isso que não tinha, na realidade. Eu faria para qualquer pessoa, não era porque ela era. Mas enfim, aí ela... Ela quebrou um pouco esse gelo que eu tinha e tal.
P - A criança deu tudo certo?
R - Deu tudo certo. Foi uma confusão porque eu cheguei na maternidade e aí pensava que eu era o pai da criança, né? Então, fui tratado como pai da criança naquela correria. Eu nem fui esclarecer se era pai, se não era pai. Era hospital público, né? Aí, entrei lá e tal, e o grupo de chá todo queria ir lá, né? Aí, o Henrique Silvestre, que fazia a peça junto comigo, em seguida foi lá. Eu saí e ele foi lá visitar. Não queria deixar, ele dizia: “Mas eu sou o pai da criança”. Conseguiu entrar. Depois o Beto Rocha fez a mesma coisa. “Mas quem é o pai da criança?” Quando o pai quis entrar, não deixaram o pai entrar, porque eram tantos pais que acharam que era mais uma brincadeira, uma mentira. A Marina era muito querida mesmo, era uma grande atriz. Ela fez uma peça, a volta... Acho que era a revolta do carapanã atômico. Carapanã é mosquito, pernilongo, no Acre chama carapanã. Era outra língua. Escrito pelo Márcio Souza. A Marina fazia a chita do Tarzan. As pessoas caíam na risada. Além disso, ela era... Ela ainda é muito habilidosa manualmente, costura muito bem. Ela fazia todas as roupas do grupo de teatro, todo o figurino era ela que fazia. Também fazia minhas roupas, porque eu também queria ajudar, então pedia para fazer camisa, essas coisas, para ela ter uma graninha a mais também. E aí, nesse grupo que a gente ficou juntos, eu não era mais trotskista, ela também já não era mais da comunidade base, e viramos os melhores alunos da turma. E aí a gente falou: “Olha, não dá mais para ficar só na teoria, a gente tem que ir para a prática”. Então, a gente, lá, a movimentação tinha ou o PCdoB ou os trotskistas, né, a Libelu, que eu tinha sido liberuno, que não sei mais, eu não gostava do estalinismo, então a gente montou uma chapa independente, eu e ela. E aí na hora ela falou, não, você vai para a presidência porque você sabe falar bem, eu imagino. E eu não tenho essa habilidade para falar, Marina. E aí ganhamos a eleição, procurando história, e aí a gente começou a entrar na UNE, participar, e a gente teve uma tendência que a gente se identificou, chamada Caminhando, que por trás dela tinha o Partido Revolucionário Comunista, o PRC. Então eu e a Marina entramos no PRC. Em 1981, no primeiro ano do curso também, a gente se destacou, então a gente foi trabalhar em vários projetos de pesquisa, trabalhando nos projetos de pesquisa de história da Hanseníase, e também aí entramos num projeto chamado História da Ocupação da Terra no Acre, e aí fomos entrevistar o Chico Mendes, que a gente não conhecia. A Marina já tinha visto palestra do Chico Mendes na comunidade de base e tal, mas eu nunca tinha nem visto o Chico Mendes. E aí fui para Xapuri com máquina fotográfica profissional, gravador e tudo mais. E o Chico pensou que eu era da Polícia Federal, então não queria dar entrevista para mim. Então foi todo um jogo lá para falar com alguém que era politicamente ligado a ele e tal, para ele me receber e tudo. E aí depois a gente se conheceu. Depois da entrevista e tudo, fui para a boteco. O Chico estava assumindo a liderança naquele momento porque o grande líder do movimento Seringueiros era o Wilson Pinheiro, que tinha sido morto no ano anterior. Foi assassinado na Brasiléia e, em função disso, o Chico Mendes e o Lula foram indiciados pelo AI-5 e tiveram que responder no Tribunal Militar lá em Manaus. O Greenhalgh foi que defendeu o Lula e o Chico Mendes, porque quando mataram o Wilson Pinheiro, o Lula foi pra lá, E aí fizeram um comício, fizeram um grande movimento. E lá nesse comício, o Chico falou, o Lula falou. Só que o Lula falou assim: “Está na hora da onça beber água”. E logo em seguida, o movimento... Todos eles se juntaram e lincharam o cara que matou o Wilson Pinheiro. E aí, o Lula e o Chico Mendes foram responsabilizados por esse linchamento que matou o assassino do Wilson Pinheiro. Nessa época, quando o Wilson morreu, Lula passou a ser a grande liderança. E aí saiu de Brasileia para Xapuri, o centro do movimento dos seringueiros. Bom, ficamos super amigos do Chico Mendes. Ficamos muito amigos. A gente não sabia, mas o Chico também era do PRC. Porque o Chico ficou sabendo da construção do PT e tudo mais, se formou e fez contato com o Genuíno, e o Genuíno era do PRC e o Chico acabou entrando no PRC. O Chico saiu lá do Acre, ele já tinha sido vereador pela ala popular do MDB, e era um cara atuante, presidente do sindicato, já tinha sido vereador e tal, mas ficou sabendo do PT, então queria criar o PT no Acre. Então ele veio aqui encontrar o Lula, e aconteceu com ele parecido comigo também. O Lula: “Quem é esse cara que quer falar comigo?” Ficou com medo de conversar com o Chico Mendes. Até descobri que era um cara da Amazônia, presidente do sindicato, aí foram tomar cachaça juntos, e aí começou uma amizade que durou a vida toda. O Lula sempre estava lá com o Chico Mendes, sempre, sempre. E eu odiava isso, porque, para mim, o Lula era um reformista, era o atraso, eu queria fazer a Revolução Armada, e o Lula gostava muito do Chico, o Chico também gostava muito do Lula. Em todos os momentos que o Chico precisou, o Chico, candidato a prefeito de Xapuri, o Lula se tacou daqui e foi para lá. Nunca perdido lá, não tinha quase voto, foi lá para o comício, Todos os momentos de dificuldade que o Chico teve, ele estava lá. O Lula ficou muito abatido no velório, ele estava lá também, ficou muito, muito abatido. Não por causa de um militante, simplesmente por causa de um amigo. Do mesmo jeito que eu estava sofrendo ali, eu via que o Lula estava sofrendo. Foi realmente um momento muito difícil. Mas aí, então, ainda no curso de História, a Marina começou a participar mais dos movimentos sindicais e tudo mais, e ela e o Chico Mendes criaram a CUT no Acre. E o Chico Mendes me chamou para ajudar com o projeto de educação. O Chico sempre foi muito ligado à educação. Eu era um pirralho e ele me tratava com muita... muito respeito. Às vezes a gente não vê muito isso, uma pessoa mais velha tratar os jovens com respeito. Ele sempre foi uma pessoa muito carinhosa, uma pessoa que sempre agregou e uma pessoa que via as pessoas. O Chico, para conversar, era muito interessante, porque ele, primeiro, escutava muito antes de conversar. Ele gostava de ver as pessoas, ele via as pessoas, ele perguntava as coisas para as pessoas, as pessoas iam falando, e aí só depois ele começava a falar, interagindo com a pessoa. Ele, quando conversava com as pessoas – isso é raro também, porque eu conheço muita gente que só fala e não escuta –, o Chico, quando começava a conversar com a pessoa, já interagia diretamente com o eu daquela pessoa. Isso que fez o Chico uma grande liderança. Ele era um péssimo orador. Como candidato à prefeitura, ele ficou em rabagésimo lugar. Os seringueiros votavam nele, mas a cidade e tal... Eu não sei nem como ele foi eleito o vereador, mas, assim, eu trabalhei direto na campanha dele para prefeito, fiquei lá, consegui um jipe velho, arrumei, fiquei morando lá, mas não tinha voto. Ele era ruim de voto. Mas ele tinha uma capacidade, ele tinha uma inteligência para construir coisas e para juntar pessoas diferentes. Eu ficava puto com ele. Eu era um comunista, para mim existia o certo e o errado, quem estava no meio não valia nada, não tinha que fazer aliança. E o Chico fazia aliança com todo mundo, discutir, agregava o pessoal da igreja católica com os verdes, com todo mundo, reunia as pessoas mais diferentes. Eu ficava irritado, eu era um comunista chato. E a minha ida para a xapuri era muito no sentido de organizar a célula comunista lá, para fazer a luta armada. O Chico era do PRC, mas era e não era ao mesmo tempo, ele tinha maior... Ele olhava para o PV, ficava encantado com o PV, com a Lucélia Santos, com o Carlos Minc, com o Serkis, que ele gostava muito. Ele gostava daquela turma, gostava daquilo. Mas ele não se sentia um ambientalista. Ele não sabia o que era isso. Ele era, mas não sabia por que ele era. Ele era porque nasceu na floresta. E ele sabia… Então, quando os conflitos de terra ficaram muito difíceis, eles, de maneira muito criativa, desenvolveram o empate. Esse nome é muito interessante. O empate não é só impedir, mas é empatar o jogo mesmo. É um zero a zero, eles não conseguem expulsar os fazendeiros, os desmatadores, mas conseguem impedir que eles desmatem. Então, eles reuniam crianças, mulheres e ficavam na frente lá das motosserras, cantavam o hino nacional, com crianças, com mulheres, e constrangiam os desmatadores. E o Chico fazia aquele discurso de que, “ó, você é um cara como a gente, você está sendo explorado, não sei o quê e tal”. E ficava aquela situação de impedir o desmatamento. Mas por que eles impediam o desmatamento? Porque eles não queriam ser agricultores, porque eles não eram agricultores. Eles nasceram na floresta. Eles não conseguiam conceber a destruição da floresta. Então, ele era um ambientalista, mas não sabia disso. Para ele, ele era só um comunista. Mas ele, na sua essência, era um ambientalista. É, o Chico era um ambientalista sem saber, porque, como eu falei, quando eu cheguei no Acre, eu senti um cheiro, um gosto, isso para mim, que não tinha contato com a floresta, eu tive contato com aquele ambiente, aquele espírito da floresta que estava na cidade. Agora imagine quem nasceu e viveu a vida inteira dentro do mato, que sabia o que é cada flor, cada folha. Que conhecia os tempos, os cantos dos passarinhos, sabia identificar o que era, o que não era. E, junto com isso, toda uma mística, umas histórias. O Chico era filho dessa cultura, desse jeito de ser. Tanto que o meu primeiro encontro com o Chico foi muito esquisito. Eu estava falando com uma pessoa que eu não acreditava que ele era a principal liderança, porque ele falava de coisas que para mim eram absurdas, completamente absurdas, mas ele falava como quem acredita. Então, uma coisa que eu nunca esqueço foi ele contando sobre uma caçada que ele foi fazer. Depois que eu fiz a entrevista formal sobre a luta, sobre por que eles não queriam os projetos de colonização, queriam manter a floresta em pé e tudo mais, como tinha sido a morte do Wilson Pinheiro. Aí descontraiu, ficamos bebendo, num boteco lá em Xapuri, que, se eu não me engano, era chamado Pau no Meio, porque era um boteco que tinha uma árvore no meio, assim, então o nome do boteco era Pau no Meio. E a gente conversando, estava eu, ele, a Júlia, que fazia parte do... a Marina não estava, a Júlia, e a professora França, que estava acompanhando a gente nesse projeto. E aí ele começou a contar que foi caçar e foi para uma espera, eles ficam em cima de uma árvore lá, às vezes amarram uma rede, às vezes colocam um pau lá atravessado, eles ficam lá, normalmente perto de um barreiro, que é um lugar onde os bichos vão, não sei se é necessidade de sal, eu não entendo muito bem, mas é um lugar que à noite os bichos vão lá. Vai tudo, vai papagaio, vai veado, vai todo mundo lá para aquele barreiro para comer aquele negócio ali, alguma necessidade, sei lá o quê, que eles comem barro, não sei, não entendo direito. E aí ele estava lá na espera, num lugar que provavelmente iria aparecer algum bicho lá e tal, aí ele vê um veado, grande, bonito e tal, e ele fica todo animado. E aí quando ele vai atirar no veado, aparece o caboclinho da mata. Aí, quando ele falou isso, eu já fiquei assim, “gente do céu!”. Eu acabei de entrevistar uma liderança aqui e tal, e ele vem com essas histórias para mim. Mas não parou por aí. Se ele parasse por aí, até tudo bem. Mas aí ele disse que o caboclinho da mata fez qualquer coisa, um gesto lá, e aquele veado começou a crescer, crescer, crescer, foi ficando grande. E aí ele desceu correndo, foi embora correndo com medo, que o caboclinho da mata estava defendendo a floresta. Então, isso para mim era uma coisa inconcebível, ainda é hoje inconcebível para mim. Eu quero muito aprender, entender como é que é isso, porque ele falou com convicção, não contou assim uma... Aí eu fiquei pensando, será que ele falou isso para impressionar esses babacas que vêm aqui com ar de arrogância e não sei o quê? Não sei, nunca consegui entender essa história, mas enfim, ele é filho disso. Ele é filho disso. E aí ele juntou isso com uma formação política socialista, comunista. Porque um dos caras da coluna Prestes foi se esconder no mato, depois acabou indo para Bolívia, mas ficou um período lá no Acre, e foi o cara que alfabetizou o Chico não só, alfabetizou a ler, ajudou a ler e escrever, mas ficava escutando rádio com ele, rádio de Moscou, BBC de Londres, e ficava alfabetizando politicamente o Chico Mendes. Então, o Chico Mendes era essencialmente um socialista. O Chico Mendes morreu pobre, do mesmo jeito que sempre foi. E no auge, assim, premiado internacionalmente, ele teve mil propostas, assim. Ganhar bolsa para isso, aparecer, fazer mil coisas. Ganhava ajuda financeira, que se ele fosse uma pessoa corrupta teria melhorado sua vida. Mas ele colocava tudo no movimento. Tudo, tudo, tudo, tudo. Faltava leite na casa dele. A Júlia era a pessoa que mobilizava todo mundo quando uma criança adoecia, quando faltava leite em casa, ele era meio que ausente da própria família, porque ele era muito vinculado à luta dos seringueiros. Ele era uma pessoa essencialmente boa. Ao mesmo tempo, eu vejo muitos chicos por aí, quando as pessoas traduzem. Esse negócio de dizer que o Chico Mendes disse que... Como é que é? Que é luta de classe, o resto é jardinagem. Tem uma frase que deram... O Chico jamais falaria uma coisa dessa, jardinagem. Isso é coisa recente. O Chico não falaria isso. O Chico era uma pessoa... Ele era inteligente na simplicidade. Mas ele não fazia esse tipo de coisa, de usar a palavra... Isso é luta de classe, isso aqui é jardinar, tipo assim... É uma frase que eu não lembro exatamente como é, que é muito usada, parece ter até camisa, dando autoria ao Chico Mendes, né? Tipo assim... “Defender a natureza sem as pessoas, é jardinagem”, enfim... Então, “defender a natureza sem luta de classes é jardinagem”, uma coisa mais ou menos assim. O Chico jamais falaria uma coisa dessa, isso é inventado. Ele tinha uma outra habilidade, ele falava com simplicidade, mas ele era inovador. Então, a criação da reserva extrativista, claro que não foi uma criação só dele, porque ele dialogava com doutores, ia lá a gente fazer uma pesquisa de mestrado, como a Mary Alegretti, ele aprendia tudo com ela, ele tinha a capacidade de aprender. Então ele absorvia muito, por isso que ele perguntava, por que isso, por que aquilo? Como é que é isso, como é que é aquilo? Muito parecido com o Lula. O Lula é um cara muito inteligente, ele aprende tudo. Em alguns lugares, eu estava com o Lula, no meio da multidão, e ele dizia, “como é o nome daquela pessoa ali?” Eu lembro dela. Eu falei, é a Francisca Marinheiro. Aí, no discurso, ele falou, é a Francisca Marinheiro, porque ele lembrava de ser de onde, ele encontrou com ela e esqueceu rapidamente. Mas, normalmente, ele lembra do nome e tudo. Ele pergunta as coisas. Às vezes, quando eu conversei com o Lula, ele não só fala, ele escuta, ele quer saber. E o Chico era assim, um genial. Então, ele lidou com muita gente, ele gostava muito do movimento estudantil, conversava muito com os garotos, com os pesquisadores, e olhava também as experiências dos indígenas, com reserva indígena, e aí eles criaram essa ideia de uma reserva extrativista, porque eles sabiam, nós não somos agricultores, a gente não sabe fazer agricultura, nós somos extrativistas. E mais do que isso, o Chico não queria preservar o seringal tradicional, a floresta do jeito que está. Ele via além. Então ele queria uma floresta que tivesse tudo, que os serviços básicos acontecessem dentro da floresta. Então isso, em 81, ele, junto com a Mary Allegretti e outras pessoas, criaram o Projeto Seringueiro, que juntava educação, saúde e desenvolvimento econômico comunitário dentro da floresta, para os serviços básicos acontecerem dentro da floresta. Porque naquela época não chegava educação para ninguém na floresta, não tinha nada. Tinha que ir para a cidade, olha lá, tinha que ir para Rio Branco. E ele cria um projeto para ter educação. E aí, com a Mary Alegretti, começou os Núcleos Paulo Freire, de alfabetização de adultos, até para eles poderem ter a sua própria cooperativa, não ficar na dependência de ninguém. E, quando ele me chamou, eu acompanhava isso, participava da luta, ajudava na organização. Mas, no começo, e depois ele... Esse Projeto Seringueiro entrou em decadência porque aqueles núcleos de alfabetização de adultos só estavam aqui, já tinha criança. E ele queria transformar aquilo em escola. Por que as crianças não têm direito à escola? Então, o meu papel foi transformar aqueles núcleos de alfabetização de adultos no primeiro ciclo do ensino fundamental, que na época era da primeira à quarta série, para as crianças. E aí, quando eu recebi, eram oito núcleos de alfabetização, já bastante decadentes. As cartilhas foram muito bem feitas pelo CDI, que hoje é a Ação Educativa, com Sérgio Haddad, Maria Clara de Perro, Regina Rara, várias pessoas fizeram um material muito bacana, mas aquilo ali não era mais para criança. Então, ele me chamou porque ele queria que tivesse escolas. E aí passou de oito para vinte escolas. As escolas a gente fazia mutirão e os professores eram voluntários. O seringueiro que sabia um pouquinho ler e escrever virava um professor. Era uma coisa maravilhosa. A gente montou um currículo, aprovamos no Conselho Estadual de Educação para pressionar que o poder público assumisse as escolas feitas para quem morava na floresta, escolas da floresta. E aí a gente montou uma escola que tinha dois ciclos, o ciclo alfabetização e pós-alfabetização, que a gente chamava. E o Chico ficou maravilhado. E ele saía por aí, eu não chegava prometia escola, eu tinha que sair atrás para construir escola, para formar um professor e tudo mais. Ao mesmo tempo, criando o posto de saúde também com voluntários, centros de saúde. E, ao mesmo tempo, criando cooperativa. Ou seja, ele imaginava um lugar e, pelo seu senso socialista, não era propriedade. Eles não queriam a propriedade da terra. Então, eles imaginaram a floresta sendo da União, e eles com usufruto de uso sem fronteiras, sem divisas entre um e outro. A não ser as divisas naturais de onde tem uma estrada de seringa e tal. Mas às vezes um entrava dentro do outro. Às vezes a propriedade de um se mesclava com o outro sem nenhum problema, nem briga, nada. Tudo muito coletivo. É sempre o pensamento socialista do Chico. E aí ao mesmo tempo ambiental, de preservar a natureza e viver da natureza. Mas ele queria um extrativismo moderno. Ele não queria só tirar a borracha, ele queria também, já viajando na biotecnologia, em pensar em aproveitar outras espécies, porque era só borracha e castanha, numa espécie de autogoverno, a reserva extrativista ser um autogoverno, autogerida. Cada reserva ativista tem um autogoverno. Uma ideia socialista e, ao mesmo tempo, ambientalista. Então, o Chico, para mim, é o fundador do socioambientalismo. Não tenho a menor dúvida. O Chico é o fundador do socioambientalismo. Porque a gente tinha um partido verde na Europa, muito preocupado com a natureza, mas uma natureza desprovida de gente. E o Chico era um socialista que não sabia que era ambientalista. Então, quando ele começa a fazer essas conexões com o Steve Horstman da EDF, nos Estados Unidos, Mary Alegretti, uma pesquisa, foi professora da Universidade do Acre, mas foi fazer o mestrado dela de Curitiba, foi fazer o mestrado lá no Acre e várias outras coisas, ele foi aprendendo e foi ficando esse gigante. Em 1985, Mary Alegretti estava numa entidade em Brasília, Inesc, que fazia lobby em defesa de algumas causas sociais. Então, ela ajudou a promover o Encontro Nacional dos Seringueiros em Brasília. E foi lá que eles criaram o Conselho Nacional de Seringueiros e foi lá que nasceu a ideia de reserva extrativista. Caíram nos debates, nas discussões, e eles foram construindo essa coisa de uma reserva extrativista. Então, eles queriam uma reforma... Eu fui redator do primeiro... o primeiro documento que a CUT nacional, o Encontro Nacional da CUT, aprovou uma reforma agrária diferenciada para a Amazônia, que o Chico defendeu lá. E aí ele pediu para eu fazer a redação do documento que foi aprovado. Então, aí o Chico começou. O Chico vem de um movimento sindical tradicional, Contag, não sei o que e tal. Nacionalmente, movimento sindical dominado pelo ABC paulista, então, Amazônia, essas coisas não existiam, ecologia não existia na cabeça deles. Na CUT, muito menos. Na esquerda, zero. E o Chico se manteve na esquerda, se manteve socialista e foi introduzindo nesse meio o debate do ambientalismo, e construiu um socioambientalismo que envolvia cristãos, evangélicos tradicionais que nos apoiavam, muitos luteranos. Enfim, o bispo Dom Bacci foi um grande parceiro, um amigo nosso, nos ajudou para caramba, enfrentava as autoridades para nos defender. Uma vez eu levei a surra do prefeito de Xapuri, fui preso como se eu tivesse agredido ele, e ele foi me defender, me tirou da prisão. Então, ele conseguiu reunir os diferentes num objetivo comum. E nessa história, a Marina está em todas elas, participando dos empates e tal. Então, eu fui eleito presidente do Centro Acadêmico duas vezes e ela estava nessa chapa, mas eu tinha medo de falar nas assembleias. E a Marina que falava por nós. Marina era a nossa porta-voz. E ela logo ficou conhecida como a melhor oradora da universidade. Então, ela foi nossa candidata ao Diretório Acadêmico, ao DCE. Perdeu a eleição porque a gente naquela época ainda era muito amador em eleição, mas eu virei o marqueteiro e, a partir daí, a gente passou a ganhar todas as eleições de DCE, eu gosto de desenhar, então eu peguei o jeito da coisa e escolhi as pessoas que eram mais populares para a Chapa, então eu virei o marqueteiro, o cartaz da Marina, candidata à vereadora, foi eu que tirei aquela foto da Marina, fiz o cartaz. Então, eu ficava muito na retaguarda, dando apoio para a Marina. Meu pai teve dois infartos em 1977, foi tratado pelo Adib Jatene aqui, que era acreano e tal, na Beneficência Portuguesa. Ele morreu em 2010, mas ele achou que ia morrer. Então ele fez uma carta enorme e vendeu tudo que tinha e distribuiu para os filhos. Vendeu tudo e foi morar na praia em Salvador. “Agora eu vou me aposentar, não vou mais. E aí eu vou distribuir tudo pra todo mundo e tal”. E aí eu fiquei com uma grana, com carro, com casa. A minha casa era o aparelho do PRC. E aí eu financiava as campanhas do PT, campanha do DCE, ajudava a Marina a comprar livro. Então... A gente era muito ligado ali naquela coisa. Minha casa era o lugar onde eu, Chico Mendes e a Marina fazíamos as reuniões do Comitê Regional do PRC, era lá em casa, era o aparelho. Eu era Ricardo, a Marina se chamava Sara, nossos codinomes, e o Chico era o Santos. Então, só Deus sabia, Deus e o mundo sabiam quem nós éramos, mas aí nas reuniões a gente tinha que fazer aquele esforço para chamar... É uma coisa completamente fora de moda, a ditadura já estava caindo de maduro, mas a gente ia fazer a luta armada e tal e conversava com codinomes, aquela coisa toda. E a gente, às vezes, se confundia. Saía dali e chamava pelo codinome do lado de fora. Chamava o Chico de Santos, a Marina me chamava de Ricardo. Uma confusão danada, porque a gente passava todo final de semana rindo, discutindo, e saía dali e continuava chamando pelo codinome. Era uma loucura absoluta.
P - Essa parte foi saindo de cena para outra forma de militância ou não? A militância do PRC?
R - Então, nós ficamos na universidade, na universidade a gente entrou independente e depois entramos no PRC, o Chico Mendes era do PRC, a gente não sabia, a gente ficou amigo dele, depois que tinham as células, então a gente não conhecia todo mundo. Aí quando nós viramos da direção regional, eu, Marina e o Chico, é porque a gente se encontrou, mas ele era na célula dele e eu era na célula estudantil, a Marina estava na célula sindical, que foi de sindicato de professores e tal. E a Marina, a gente se conhecia, entrou juntos no PRC. Mas o Chico Mendes, a gente foi saber depois que ele era do PRC. Não foi por nossa causa que ele entrou no PRC, acho que foi a relação com o Genuíno que levou ele pro PRC. Se eu não me engano, foi com o Genuíno. Quando ele vinha aqui em São Bernardo, o Chico Mendes tentava convencê-lo de sair do PRC, fazia crítica aos intelectuais que não eram com ele, que tinham conhecimento da prática e tudo mais. Tinha todo um galanteio do Lula para tirar ele do PRC, mas ele morreu ainda no PRC. Quando ele morreu, ele ainda estava no PRC. Eu é que saí antes. Eu saí no Natal de 87. Mas o Chico foi no PRC. Eu continuei com ele, lutando com ele. Mas eu saí do PRC por causa do Chico. Ele continuou lá, mas porque ele levava na boa. Ele se dava bem com todo mundo. Mas eu tinha que ser muito coerente. Então, quando eu estava no PRC, eu era aquele comunista chato, clássico. Ele não, ele nunca foi nada absoluto com ele. Tudo com ele era... É, “mas também pode ser o contrário”. Para mim, não. Eu tinha que ser coerente. Então, eu era ateu, comunista, chato, o mundo era bipolar e tal. Mas, quando eu conheci o Chico, ele começou a me mudar. Mas, para ele, estar no PRC, ser outra pessoa, não tinha... Agora, para mim, o PRC era uma coisa que eu levava muito a sério, ser democrático, tudo mais e tal. Mas ele começou a me influenciar, porque eu brigava muito com ele. Ele fazia aliança com todo mundo, eu não gostava da igreja católica, ele se dava bem com o bispo, sabe aquelas coisas assim? E um dos maiores choques foi quando eu entrei na floresta. Porque eu, quando comecei a trabalhar com o Chico, eu não conhecia a floresta. Nunca tinha entrado na floresta. Eu tinha entrado em alguma matinha secundária, capoeira, floresta densa mesmo, floresta natural, amazônica. Eu não conhecia. E a minha primeira entrada na floresta foi um negócio radical, porque eu tinha que ficar um mês dentro do mato, e eu ficava uma semana em cada escola, como os professores eram muito frágeis, eu ficava uma semana com ele, trabalhando, ensinando na frente dele, para ele ver como é que era, fazia um tipo receita de bolo de como ele deveria dar aula, porque ele não tinha formação nenhuma. Então, eu ficava uma semana. Então, eu ia para a escola mais distante e, a cada semana, eu vinha voltando para Xapuri. Então, a primeira, eu fui para a escola mais distante mesmo de todas. Ela ficava 19 horas de caminhada. E não dava nem pra ir de burro, de nada, porque era... Como o Seringal estava decadente, as picadas eram quase fechadas, assim, né? Aqueles espinhos, assim, que ela... E eu... Lá fui eu com uma mochila de, sei lá, 15, 20 quilos, não sei, levando aqueles gravadores desse tamanho, uma rede, um monte de coisa, não tinha noção que... Eu tinha que ir mais leve pra floresta, né? Então, andei 10 horas no dia e 9 horas no outro dia pra chegar nesse lugar. Cheguei acabado lá e tal. Mas o lance foi entrar na floresta, que para mim a floresta era verde. Eu conheci a floresta do DC-3 quando cheguei no Acre, olhando aquele tapete verde. Isso era a floresta para mim. Quando eu entro na floresta, é como se eu tivesse... a minha sensação é como se eu tivesse entrado dentro de um tubo de televisão. Um tubo verde, e quando você entra naquele tubo verde, você começa a ver cada pedacinho, cada gotinha daquela, que não sei o nome, cada pixel daquele ali, de cor diferente. Era tipo assim... Caralho, o verde não é verde. O verde é feito de um... Tem folhas secas, tem flores, tem frutos, tem bicho de todo jeito. A floresta é colorida, ela não é verde. Então é como se um tubo de televisão antigo, que é da minha infância, aqueles tubões assim, que a gente conseguia ver os pixels, que eram tão grotescos, que a imagem não era muito bem formada. Era como se, de longe, é verde, mas quando você chega perto, você começa a ver o vermelho, o amarelo, o verde, o azul, as cores primárias ali e tal. E foi assim que eu senti. E você caminhar 19 horas, eu fico imaginando fazer a viagem de Compostela, você meio que entra em transe também, você começa a pensar sobre a vida, você vai entrar na floresta. Aí eu comecei a entender um pouco também como é a cultura do seringueiro, a ligação dele com o espiritual. Quer dizer, mergulhar na floresta, mergulhar com o contato espiritual que você nunca tinha tido. Você que vive sempre na cidade, você meio que descolou da natureza. E essa natureza tem uma energia que você não domina. Quer dizer, eu não sou mais materialista, mas eu não consigo explicar isso. Os seringueiros explicam no seu modo, mas eu sentia. Eu não consigo explicar, mas eu sentia aquilo. Então eu sentia cada coisa, cada textura, cada cheiro, cada passarinho cantando. E aquela caminhada, né? Até chegar na colocação do Raimundão, na colocação Rio Branco, foram dez horas de caminhada de Xapuri até lá. Aí sou recebido pelo Raimundão, primo do Chico Mendes, aquela gentileza, aquela humanidade, aquela coisa. Eu estava completamente... Meus pais já tinham ido embora, não tinha ninguém mais meu no Acre, todo mundo tinha ido embora para a Bahia. Eu, solitário ali, eu sou um cara que parecia meu pai, aquele seringueiro, aquela sabedoria, aquele cara maravilhoso que é o Raimundão, que eu amo, de paixão. Eu acabado na rede, eu deito na rede, ele me dá de comer e tal. E eu fico viajando naquele... Parece que eu tinha tomado algumas coisas, né? Parece que eu tinha me drogado ali naquele troço. Fiquei tudo, atravessei o igarapé, não sei o quê. E eu me perdi também algumas vezes, porque eu fui só. Então, eles falaram, não é muito fácil. Eu falei, mas gente, eu vou sozinho. Não é muito fácil, é só seguir o varadouro. O varador é a trilha principal, ela é mais larga, mas como os seringais estavam em decadência, esses varadores não eram tão largos, nem tão limpos assim. E aí você vai no varadouro e de vez em quando tem uma estrada de seringa, que tem o nome de estrada, mas ele é menor que o varadouro. É a estrada onde o seringueiro, sozinho, recolhe a seringueira, o leite do látex, diariamente, quer dizer, diariamente não, ele tem normalmente três estradas e aí ele vai uma estrada cada dia, depois no terceiro dia ele volta para a primeira. Ela é mais estreita, mas chegava um momento que o Varadouro parecia estrada e eu me perdia. E uma hora eu fiquei perdido, aí tinha um galho quebrado assim, um cara quebrou um galho que fazia assim, apontando para cá, que era parecido com estrada de seringa. É o que chama de varação. É uma picada que vai de um varadouro para outro. É para cortar caminho. E é muito mais tosco ainda o negócio. Mas como eu tinha encontrado um cara que ele foi na minha frente, eu falei, “ah, o fulano achou que eu ia me perder e botou esse negócio para eu entrar aqui”. Aí eu entrei. Aí eu rodei, rodei, rodei, rodei, rodei, rodei, me perdi. Depois eu voltei para o mesmo lugar. Talvez tenha sido uma estrada de seringa, que ela vai e volta. Aí fui e andei até... a cada meia hora, uma hora, você acha uma casa. Essa caminhada você para numa casa, toma água e tal. Aí cheguei lá, aí eu contei essa história, pô, achei... Aí eu falei, “nossa, aquilo ali é para não entrar, porque é onde tem uma armadilha, o cara armou uma espingarda lá para não entrar. Aí vem os símbolos, né?” Quer dizer, é outro mundo. O símbolo, o que para mim era “vai”, era “não vai”. Enfim, essas coisas. Então, essa coisa foi entrando dentro de mim. Então, com isso, eu comecei a contestar o centralismo democrático. Eu comecei a entender que as coisas não eram tão absolutas. E aí, no Natal de 87, eu fiquei sabendo que o Toinho, que foi o cara que criou o conceito de florestania, que foi do nosso governo da floresta e tal, foi o secretário de cultura nosso, mas era bem antes da gente ganhar o governo. O Toinho era o trotskista, o líder trotskista, que fazia história no Rio de Janeiro e nas férias ia lá para aqueles grupos de estudo. Então, o cara que fez a minha cabeça quando eu tinha 16 anos de idade, o meu comunista amor, estava lá dizendo, “salve a rainha da floresta, salve nosso senhor Jesus Cristo”, lá no Santo Daime. Ah, eu vou lá sacanear com esse cara, não é possível. Aí eu fui lá no Daime, tinha terminado o noivado, minha família tinha ido embora, estava puto com o Chico Mendes, ele com essas coisas de ser legal com todo mundo e tal. Aí fui lá só para sacanear, tomei o Daime e tive uma miração que tinha tudo a ver com aquela entrada na floresta. Não vou contar toda a história, que é longa, mas tentando resumir aqui, eu fiquei vendo coisas. “Ah, isso é feio, isso é bonito, isso é certo, isso é errado”. Era uma casinha de madeira bonitinha, mas tinha um lustre dourado. Nossa, que coisa brega. Eu tinha terminado o namoro, ficava tentando olhar os meninos do outro lado, ficava homem de um lado, mulher do outro. “Nossa, só tem gente feia”. Não é aquela coisa de gente chata, gente horrorosa. Era eu. E aí o cara chega e pergunta, quem te convidou? Eu falei, é o Toinho, mentira. Aquele cara ali, o Toinho me convidou. Aí, pô, o Toninho me convidou.” Ah, você vai tomar o Daime?” “Vou”. ‘Você fez a dieta? Você está preparado?” Estou”. Eu nem sabia o que era. Tinha que ficar três dias sem beber, três dias sem transar, tinha todo um ritual lá. Não, estou preparado. E aí tomei aquele troço. E achei que não ia dar nada. De repente, uma pressão no meio da testa. Aí eu fecho o olho, aquela mandala, aquela coisa. Abro o olho, para, fecho. Fiquei naquela coisa e, de repente, comecei a ficar bem pequenininho. Fiquei ficando pequenininho, pequenininho. E aqueles conceitos foram ficando letras de concreto enormes. Feio. F, E, I, O, letras de concreto. Bonito, do lado de bonito, né? B, O, I. E elas estavam coladinhas, as letras todas coladinhas. E o feio colado no bonito. Eu fui ficando pequenininho, pequenininho, comecei a voar e entrei entre o feio e o bonito. Onde não tinha como passar, porque era completamente colado. Mas eu descobri que nada toca em nada. Sempre existe um espaço vazio e ali eu entrei. Minúsculo, eu entrei naquelas letras de concreto. Aí lá tinha mais ou menos feio, mais ou menos bonito, meio feio, meio bonito. Aí já não existia mais feio, não existia mais bonito. E assim foi a noite toda. A noite toda. Aí foi entrando todo tipo de conceito. Entre o certo e o errado. O certo é errado? Não. O certo é errado? Não. Não é possível. E aí, eu sentadinho aqui. Você não fica doidão. Você fica conversando com você mesmo. Sentado aqui e fica conversando. E eu falava comigo mesmo. “Não, não pode. Isso não pode. Não pode ter... O certo ser errado, o errado ser certo”. Não tem meio certo, não tem meio errado. Tem. Aí vinha um monte de lição. Tem, tem. E aí teve de tudo. Fazia operações matemáticas quilométricas. Aí dividia 500 mil vezes e nunca acabava. Ia chegando na fração, na fração, na fração. Uma hora comecei a entrar dentro de um bonequinho russa, aquelas matrioskas, acho que é o nome, e aí entrava dentro do vermelho da bonequinha, e o vermelho era feito de vários pigmentos, às vezes “não pode, o vermelho é uma cor primária, como é que ele é feito de outros pigmentos?” E cada pigmento era uma nova bonequinha, e eu entrava dentro da nova bonequinha do vermelho. Enfim, faz a noite toda. No dia seguinte, amanheci o dia mirando, No dia seguinte, a minha casa, que era o aparelho do PRC, eu peguei todo o material do PRC, as teses do partido, tinha uns caderninhos vermelhos do PRC, um monte de coisa. Peguei tudo, assim, lá para o quintal e toquei fogo. Troquei a fechadura da minha casa, toda a minha chave da minha casa e fui num dentista cuidar dos dentes, porque eu só cuidava da revolução e eu estava me acabando lá, eu nunca tinha ido num dentista. Enfim, aí o Chico Mendes e a Marina ficaram chocados porque eu saí do PRC. “Não, isso não é pra mim”. Eu continuo na luta, mas minha forma de lutar vai ser outra agora. E continuei com ele, e a Marina é minha comadre, minha irmã, amo a Marina. Mas aí a gente teve uma separação ideológica. E depois a Marina acabou saindo até do PT, e eu continuo no PT até hoje. Mas eu sou um petista muito atípico, assim, não tô ligado a nenhuma corrente. Eu tô no PT ainda porque eu tenho uma relação afetiva com os militantes que sonham com um mundo melhor, aqueles caras mais fodidos do PT, que são apaixonados. Eu não sou assim, mas eu amo essas pessoas. Então, é por isso que eu ainda tô no PT.
P - O PT foi formado em 84, é isso?
R - 81. Eu entrei em 85, porque a gente quis lançar um candidato a prefeito e precisava de um partido. Então, eu e a Marina entramos no PT em 1985. O Chico foi candidato em Xapuri. O Chico já estava no PT, ele foi fundador do PT, mas era do PRC de maneira clandestina, todo mundo sabia. Ele era do PRC dentro do PT. E eu e a Marina, não, a gente relutava em entrar no PT, mas como a gente teve um candidato a prefeito que era do PRC, a gente entrou no PT para apoiar a candidatura dele.
Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Binho Marques
Entrevistado por Lucas Torigoe
Águas da Prata, 24 de maio de 2025
Entrevista do PCSH_HV1449, parte 2
R - Antes do Chico morrer, a situação ficou muito difícil. Ele ficou muito abalado psicologicamente porque ele estava recebendo ameaças de morte e ele denunciava. A imprensa começou a achar que era exagero dele, mas ele realmente estava sendo ameaçado. Ele acabou tendo proteção policial, mas os policiais completamente despreparados, muito despreparados, o armamento velho, munição vencida, enfim, era uma situação muito triste. Além disso, ele ficou muito incomodado de perder completamente a liberdade, onde ele ia, ele tinha dois policiais e ele tinha que ir também. Ele era uma pessoa pobre. Tudo que ele conseguia, ele doava para o movimento. Ele morreu do mesmo jeito que ele estava quando começou a militância. Aí, ele alimentava os policiais. Os policiais viviam dentro de uma casa que já era muito pequena. Uma casa pequenininha, super pequena, lá em Xapuri. E ninguém acreditando mais nele. Ele estava virando motivo de piada nas redações dos jornais. Houve um conflito com o delegado da Polícia Federal, que não sei se de maneira orquestrada ou não, mas ele começou a minar a reputação do Chico. Começou a inventar histórias, dizer que o Chico era informante da Polícia Federal, uma série de coisas bem ruins. Nesse período também a gente teve um incidente de que um militante cristão novo, o cara era Rosa Cruz, foi fazer o mestrado em Campina Grande, e voltou comunista. E ele encontrou com um uruguaio que dizia ser dos Tupamaro e começaram a organizar uma guerrilha. Comprar armas e tudo isso. Como o Chico não aderiu, no começo ficou simpatizante dele, mas depois viu que era total maluquice. Como o Chico não aderiu, esse cara também começou a escrever cartas, criticando o Chico, dando apoio à tese da Polícia Federal, enfim. Então, o Chico estava muito mal, muito, muito mal. Psicologicamente, ele estava muito mal. Era um momento que, nesse momento então, ele já era uma personalidade mundial e as pessoas realmente tinham um certo temor de mexer com ele, achando que, e com certeza isso aconteceria, que se o Chico fosse morto, o latifúndio ia ter mais dificuldade de concretizar o seu projeto. Então, o pessoal mais qualificado, dos fazendeiros e tal, sabia que não era bom mexer com o Chico, mas quanto mais eles desestabilizassem o Chico, melhor, para tentar evitar que o Chico prosseguisse na luta. Então, eles começaram a realizar atentados. E foram muito mais agressivos. Esse evento que eu apanhei do prefeito foi nada perto do que aconteceu. Teve o acampamento que o Chico promoveu na sede do IBDF, que depois virou Ibama. Acho que ficaram cerca de 40 pessoas acampadas lá. Era uma noite fria no Acre, ninguém sabe, mas faz frio também, a gente chama de friagem. Então, estavam todos no corredor, todos juntinhos no corredor, dormindo. E entraram os filhos do Darly, os dois armados, uma com uma 38 e a outra com uma pistola automática. E deram muitos tiros. E esses tiros afetaram de maneira... Excepcional, assim, dois garotos. Ficaram com muitos tiros. Sobreviveram por milagre. Eu fiquei acompanhando esses garotos no hospital em Rio Branco. Eles nunca tinham ido em Rio Branco. Não sabiam o que era um sinal de trânsito, um semáforo. Eles não sabiam. Tinham saído do seringal, foram para o acampamento e dali foram para o hospital em Rio Branco. Rio Branco já era uma coisa, para eles, completamente diferente. Eles nunca tinham visto um semáforo. Para você ter uma ideia. Isso foi a bala do Chico. E depois eles mataram um cara que na época tinha a minha idade, isso me chocou muito, que foi o Ivair Higino. Então era uma época muito difícil. Nesse período também foi quando eu coordenava o Projeto Seringueiro de Educação, que o Chico com a Mary Alegretti criaram. E quando eu peguei eram oito escolas, depois eu expandi para vinte. Eu não, o Chico, que ele saía na frente prometendo escola, a gente tinha uma menor condição, fazendo mutirão e tal. E a gente não tinha como bancar alimentação escolar. Eu consegui com o governo, embora não fossem escolas da rede estadual, municipal, fossem escolas do movimento, do sindicato de Xapuri, eu consegui com o governo que eles doassem alimentação escolar. Mas ele tinha que vir pela prefeitura, vinha do governo, naquela época era centralizado, o governo federal comprava tudo, mas o governo do estado distribuía e as prefeituras recebiam para repassar para as escolas. Só que o prefeito começou a roubar a alimentação escolar. E aí eu fui lá para ele levar a alimentação escolar, ele tinha me prometido já no dia anterior, eu fui lá para ele autorizar o carro para levar a alimentação escolar. E ele disse simplesmente que não ia dar. Não ia dar porque ele não queria, porque não gostava da gente. Era inimigo mesmo. E aí eu falei na frente de todo mundo que ele estava roubando a alimentação. Todo mundo sabia, mas ninguém falava. Eu falei na frente dele, tinha uma multidão em frente da prefeitura, tinha alguma coisa acontecendo. Na mesma hora ele partiu para cima de mim com pulseira de ouro, relógio. Então, essa pulseira de ouro, relógio, fiquei todo arranhado. E eu era uma magricela, pesava quarenta e tantos quilos. Era muito magro, dava para ver as costelas. Agora eu sou obeso, perto do que eu era. Então, ele não só me bateu, mas os capangas dele me seguraram e a polícia, que também era aliada deles, a polícia se viu, o delegado me prendeu, como se eu tivesse agredido o prefeito. Eu apenas falei a verdade, mas ele não discutiu comigo, ele partiu para a agressão física. E aí eu fiquei lá, preso e tal, até o bispo Dom Moacyr, que era o nosso aliado, ligar para o governador. Aí teve um movimento nacional mandando telegramas para o governador, para me soltar e tal. E de lá eu fui direto a fazer corpo de delito, quando eu saí. E o governador prometeu um delegado especial para tratar do caso, mas foi um engodo, isso nunca tratou nada, nunca aconteceu nada. Mas eu fiquei também muito abalado. Era um clima de total insegurança, era um clima em que todo mundo estava psicologicamente muito sem rumo, muito abalado. E eu já andava armado, porque era um lugar realmente muito tenso. Eu também era do PRC, eu era de um partido que defendia a luta armada naquele momento, então andava armado. Não, nesse dia em que ele me bateu, eu não estava armado. Graças a Deus! Mas no dia seguinte eu peguei a arma e fui matar o prefeito. Eu estava completamente fora do controle, completamente enlouquecido, pela fúria. Por isso que é bom ninguém andar armado, porque ninguém se controla quando está com uma arma e perde a cabeça. Eu perdi a cabeça, no dia seguinte eu procurei o prefeito e ia matá-lo. Pela sorte do destino também, ele viajou. E isso evitou que ele fosse morto e evitou acabar com a minha vida também. Então, para mim, foi uma grande alegria esse elemento de arte que tirou ele da minha frente. Então, realmente foi... Até hoje, eu penso... Quando eu lembro dessa cena, eu fico muito abalado, muito abalado, e fico imaginando o que seria da minha vida se eu tivesse feito essa loucura. Mas era um ambiente, a gente estava tão pressionado, que a tendência era fazer loucura mesmo. E eu era muito jovem também, eu tinha vinte e poucos anos, era muito jovem, cabeça quente, era militante comunista, acreditava na luta armada, mesmo com a ditadura já caindo de madura, eu ainda achava que deveria fazer luta armada e tal. Enfim, foi um período triste.
P - E como é que foram os meses que antecederam o assassinato do Chico?
R - Olha, por um lado, o Chico estava cada vez mais bem recebido em qualquer lugar que ele fosse fora do Acre, especialmente no Rio, São Paulo e outros países, especialmente nos Estados Unidos. Até porque ele estava correndo risco de vida, então as pessoas acharam que, se ele fosse reconhecido internacionalmente, isso seria uma grande proteção. E, de certa forma, foi. Porque um setor pecuarista viu que não era um bom caminho, politicamente, para eles matarem o Chico Mendes. Então, ele recebeu o prêmio Global 500 da ONU, ele recebeu o prêmio da Sociedade para o Mundo Melhor, ele recebeu a chave da cidade do Rio de Janeiro, ele dava palestras aqui em São Paulo, onde ele era muito valorizado, mas no Acre ele não era valorizado, ele não conseguiu ser prefeito de Xapuri. Ficou em rabagésimo lugar na sua própria cidade. Quer dizer, os seringueiros votavam nele, mas a cidade conservadora não. Então, de um lado, ele estava super bem, estava feliz pelo reconhecimento e as pessoas ficaram curiosas, queriam entender o que ele estava criando. Realmente, o Chico foi um fundador do socioambientalismo. Quer dizer, a gente tinha um ambientalismo europeu, que defendia a natureza esquecendo das pessoas. E o Chico fez com que eles compreendessem que, para defender a natureza, tem um personagem muito especial, que são as pessoas, os povos tradicionais, que sempre viveram em harmonia com a natureza, e que seriam mais capazes de proteger a natureza do que cercar a natureza. Quer dizer, o planeta deveria ser preservado. Então, as pessoas... não tem como preservar sem as pessoas. E o mundo estava muito na onda de reservas florestais intocáveis e tudo mais. E o Chico sabia que era possível, no caso da Amazônia, que tinha os antigos seringais, avançar por uma proposta de reserva extrativista. E a floresta extrativista não era simplesmente manter a floresta como está, com as pessoas vivendo com dificuldade, mas seria uma relação harmoniosa, inteligente com a natureza, em que as reservas extrativistas, como Chico era socialista, elas não teriam propriedade privada, elas seriam da União com o usufruto dos habitantes tradicionais, à semelhança de como ele via os povos indígenas, com as suas terras indígenas. A Reserva Extrativista seria algo semelhante, não pertence a ninguém individualmente. Quer dizer, o grupo tem direito de utilizar dentro de certas normas, mas pertence à União, pertence à população brasileira. Então, isso estava andando muito bem. No Acre, no entanto, as coisas estavam assim, porque eles começaram a atacar quem estava em volta do Chico, e isso o movimento começou a ficar com muito medo, porque eles antes tinham o Chico como uma muralha de proteção. De repente, eles viraram alvo, então o Chico ficou muito, muito abalado com isso. Ficou muito sentido com a morte do Ivair Higino. Para ter uma ideia, os filhos do Darly (Alves), depois que mataram o Ivair Higino, eles entraram no salão paroquial onde a gente estava velando o Ivair Higino. Entraram... olharam para o corpo, riram do corpo do Ivair Higino. Estava lá com a mulher dele, super novo também, era a minha idade, vinte e poucos anos. A mulher dele com o filhinho pequeno, os pais chorando. Eles entraram, riram da nossa cara, riram mesmo, literalmente. Riram da nossa cara e foram embora. E foram exatamente para ameaçar. Então, ele vivia essas duas situações. Então, antes de morrer, ele tinha acabado de chegar do Rio de Janeiro, onde foi super bem acolhido, o Partido Verde estava sendo criado, ficou todo mundo paparicando o Chico Nunes para que ele fosse para o Partido Verde, fez uma caminhada lá no Dia do Meio Ambiente, recebeu a chave da cidade. Então, ele chegou feliz e também coincidiu, ele recebeu um caminhão do BNDES. O projeto foi aprovado pelo BNDES. Tinha conseguido uma Toyota da embaixada canadense. Então, ele estava feliz por um lado, mas estava encurralado, vivendo aquele drama com os policiais. Então, ele começou a escrever coisas assim, meio que se despedindo. Tem vários escritos do Chico que você vê que é uma coisa de despedir e tal. Ele falando que não queria morrer para virar herói, ele queria realizar os sonhos. Ele disse que virar herói não ia ajudar em nada. E aí ele estava, no dia da morte dele, foi um dia comum, ele tinha acabado de chegar com o caminhão, que eles tinham ganhado a doação, e estava jogando baralho com os dois policiais, tinha acabado de almoçar lá com os filhos, aí ficou jogando dominó - baralho não, dominó - e aí foi tomar banho. O banheiro dele no fundo do quintal, muito, muito simples. Foi depois do aniversário dele, ele pegou uma toalha que ganhou de presente de aniversário, novinha e tal, botou aqui nas costas, só de bermuda, e quando abriu a porta para ir para o... os policiais não foram olhar se tinha gente, nada, porque o fundo das casas do Chico fica para o rio. Então é um quintal comprido, com uma capoeira, uma mata secundária atrás, e com uma certa distância da casa para o banheiro. E os policiais ficaram lá, jogando. Quando ele abriu a porta, ele foi alvejado com um chumbo, com uma escopeta. Uma escopeta ou uma espingarda. Ele não teve chance, porque não foi um tiro de revólver, foi um cartucho. Então ele ficou completamente cheio de chumbo. Completamente, completamente. Então não tinha como escapar. Ele ficou completamente sangrando. O cara atirou, desceu o barranco do rio, pegou o barco e fugiu. Mas ele, atrás do banheiro, o cara já estava lá há um ou dois dias, acampado, esperando o momento certo. Então ele ficou lá, foi com tudo, ou seja, os policiais nunca o verificaram. Ele estava lá, dormindo lá na casa do Chico, atrás do banheiro dele. Ele foi alvejado, os policiais fugiram, saíram pela porta da frente, o Chico estava no fundo, eles nem sequer foram ver se o Chico ainda estava vivo, se podia prestar assistência, nada, eles simplesmente fugiram. Eles não tinham armamento, não tinham nada, o governo não... Foi uma formalidade colocar aqueles policiais, isso que só deu prejuízo para o Chico. E ele foi se arrastando até o quarto de chão, na frente dos filhos, dos dois, do Sandino e da Elenira, e a mulher dele estava lá também, e ele ficou uma poça de sangue, ele se arrastou até lá e morreu ali mesmo, antes de chegar a socorro. Acho que um dos primeiros, ou o primeiro que chegou foi o Gomercindo, que trabalha na minha organização, no CTA. Aí ele imediatamente ligou para mim e disse: “Ó, levaram o Chico para o hospital, mas acho que ele não sobreviveu”. Aí eu eu já sabia que ele não ia sobreviver mesmo, pela maneira como aconteceu, ele me detalhou. E aí eu procurei o Jorge Viana e imediatamente fomos para Xapuri. E no caminho, o carro do IML já o levou para o Rio Branco para fazer a biópsia. E quando a gente chegou em Xapuri, ele não estava lá, mas cruzamos o carro. E aí, a partir daí, a gente começou a montar as estratégias, o que fazer e tudo, ligar para todo mundo, ver como reagir. Foi muito chocante, muito, muito, muito chocante. E eu... O Chico não era só uma pessoa que trabalhava comigo, não era um colega de trabalho. Ele tinha praticamente o dobro da minha idade. Eu era um garoto. E ele era meio que pai, protetor, professor. Então, minha relação era de muita amizade, muita, muita, muita amizade. Uma vez eu briguei com esse cara que queria fazer o que se dizia da Aliança Nacional de Libertação, com esse Tupamaro, que depois a gente descobriu com a direção nacional do PT, que era um Tupamaro que, quando ele realmente foi pro Tupamaro, quando foi preso, ele dedurou todo mundo e aí teve muitas regalias na prisão, no Uruguai. E aí, esse cara fazia parte da organização que eu estava. E ele criou uma situação tão complicada que eu saí da organização. Aí o Chico tomou a iniciativa de colocar ele pra fora, me chamar de volta. A gente tinha uma relação muito próxima. Bom, daí pra frente, foi muito desespero inicial. No começo fiquei ali segurando o choro, cuidando das coisas, ligando pra todo mundo, marcando reuniões lá e tal. Mas, quando o corpo dele chegou na Catedral de Rio Branco, do IML, aí foi o momento mais difícil. Aí eu desabei. Aí eu não conseguia parar de chorar. Desespero. O desespero era, de um lado, porque eu amava muito ele. E, por outro, eu imaginei que poderia ser o fim do movimento dos seringueiros, porque o Chico era absolutamente diferente de qualquer outra liderança pela sua simplicidade, a sua humildade, como eu falei, ele morreu pobre, como sempre foi. Ele não era um cara que tinha um discurso carismático, nada disso, mas era muito inteligente e tinha um pragmatismo. Ele tinha uma maneira de luta de maneira pragmática. Ele gostava de fazer as coisas. Nós, da esquerda, temos mania de ser contra tudo e contra todos. E, de um modo geral, a gente tem uma certa dificuldade de realizar algumas coisas. Eu me incluo nesse movimento. Mas o Chico tinha uma visão absurdamente inovadora, disruptiva mesmo. E ele ouvia muito os cientistas: Mauro Almeida, Mary Alegretti, pessoas do movimento ambiental mundial, como Steve Schwartzman. E, por outro lado, ele tinha um conhecimento ancestral. Tinha uma relação forte com os indígenas. Ele e o Ailton Krenak criaram a Aliança dos Povos da Floresta. Então, as pessoas, o movimento amava o Chico, não era só eu que amava, o movimento todo amava o Chico porque confiava nele, porque era um cara completamente genuíno, leal, comprometido com a causa, acreditava no socialismo. Essa crença dele no socialismo e a compreensão dele do papel dos ambientalistas é que fez o socioambientalismo. Então, eu achei que as coisas iam acabar sem ele, porque eu via as lideranças abaixo dele sem a mesma característica, de modo algum. Tinha muita vaidade em jogo, teve uma certa disputa de quem ia assumir o lugar dele. Eu lembro que, quando ele morreu, o Júlio Barbosa, que era vice-presidente do Sindicato de Xapuri, ia assumir o lugar dele e ele chorava aos prantos porque não se sentia capaz, de uma maneira bonita, ele reconhecendo para todos nós que ele não tinha capacidade de assumir o lugar do Chico. Por outro lado, tinha outros com imensa vaidade que queriam, a qualquer custo, assumir o lugar do Chico. Aí começaram a participar de programas nacionais, programas pouco interessantes, para dizer o mínimo, do SBT, coisas ridículas. E, depois da morte do Chico, começou a ter muita grana para financiar os projetos. Eu era assessor do Conselho Nacional de Seringueiros. E aí o Júlio assumiu o Conselho Nacional dos Seringueiros. Teve um certo afastamento do Osmar Nino, que era outra liderança. Tinha o Raimundão de Barros, que sempre foi uma figura incrível, mas nunca disputou ser o líder do movimento, embora pra mim seja uma das pessoas mais especiais e ainda está vivo. Até hoje ele faz coisas incríveis na floresta, onde ele mora, na colocação Rio Branco, no Seringal Boa Vista. E o que aconteceu é que todo mundo queria colocar sua marca no movimento. Então, foram muitos problemas. A Embaixada do Canadá foi o motivo da minha saída da consultoria, do papel de assessoria que eu dava para o Conselho Nacional de Seringueiros, porque era um projeto absurdamente volumoso em termos de dinheiro, mas que não fazia o menor sentido. E aí, no lugar de ter um pensamento, um projeto de desenvolvimento local, vinculado à natureza, com justiça social, com uma economia comunitária, o projeto não tinha nada disso. O projeto tinha, na realidade, interesses de pesquisadores, cada um com o seu projeto. E o que o Conselho ficava era ganhar carro, caminhão, uma série de coisas que nem tinha como manter depois. Construir sede, fazer uma série de coisas de importância zero. Então, ele só criou uma inviabilidade financeira para se sustentar, porque tudo era insustentável, esse projeto da CIDA, da Cooperação Canadense, através da Embaixada do Canadá. E aí eu tentei mudar a proposta deles e eles não aceitaram, então resolvi sair. Mas esse é um perigo que existe até hoje. Projetos que não têm sustentação, projetos completamente de fora para dentro. Essa coisa de fazer para e não fazer com é muito característica não só de uma visão gringa, mas mesmo dentro do Brasil tem muitas organizações assim. A situação continua muito violenta, super violenta. Mas o movimento conseguiu reagir e sobreviver, mas eu fiquei muito desanimado, porque não era mais a mesma coisa. E aí fui convidado para ir para Salvador, para a agência que financiava a gente, o nosso projeto de educação, o Chico, que ainda existe, a Coordenadoria Ecumênica de Serviços, que é a CNBB, a Igreja Católica através do CNBB, e seis igrejas evangélicas tradicionais, luteranos, enfim, não são os neopentecostais que hoje mandam em tudo, mas igrejas comprometidas, progressistas, com uma presença forte na Europa, que arrecadavam fundos para ajudar a educação popular, movimentos ambientais, direitos humanos. Então, eles sempre nos ajudaram, desde 81, quando o Chico... Antes de eu estar lá, eles financiaram o Chico Mendes. E depois que eu entrei, eles continuaram financiando e, quando o Chico... Quando eu fiquei muito desanimado lá, eles me chamaram para ir para Salvador. Aí fiquei lá dois anos. Fiquei dois anos e... Era uma experiência super agradável porque visitava projetos incríveis. Eu acompanhava projetos de povos indígenas, sindicatos rurais, no Brasil todo, especialmente no Norte e no Nordeste. Morava em Salvador. Aquela delícia de morar em Salvador, na praia, tinha um salário razoável, era contratado, carteira assinada, mas aí o Jorge Viana, que tinha sido nosso candidato... Eu, de certa forma, pulei uma parte, porque depois que o Chico morreu, a gente fez de tudo para manter um movimento amplo, progressista, unido, com sindicatos de professores, movimento estudantil, comunidades de base com o Dom Moacyr, todo o movimento de seringueiros, sindicatos de bancários, meio que organizou muito esse movimento. Primeiro a gente organizou, já tinha mobilizado muito pelas Diretas Já, então tinha já uma coisa organizada. E aí participava Marina, Jorge Viana, eu, o Toinho, que veio a ser secretário de Cultura do Jorge, e muitas pessoas. E eu ainda estava no Centro dos Trabalhadores da Amazônia, que assessorava o Chico Mendes, presidindo esse centro. E lá, nesse centro, a gente viu que provavelmente ganharia a eleição, em 1990, um pecuarista dessa turma aí, que eram os nossos inimigos. Aí ele estava com 40% nas pesquisas, já dava como ganha a eleição. E a gente bolou um plano, eram seis pessoas: Marina, eu, o atual esposo da Marina, Toinho, Elcio Martins, que era um correspondente da Folha de São Paulo, Estadão, lá no Estado. E aí a gente achou que a gente tinha que entrar nessa eleição pra derrotar esse cara. A gente achava: “Bom, a gente não tem a menor chance de ir pro segundo turno, mas pelo menos a gente vai entrar pra bater nesse cara.” Só que a estratégia foi tão bem montada... A gente filiou o Jorge Viana no PT, ele não era filiado no PT. Eu conheci ele de longa data, desde a juventude, mas depois militamos no movimento infantil. Era presidente do Centro Acadêmico de História, ele era presidente do Centro Acadêmico de Engenharia Florestal na UNB, e o irmão dele, Tião Viana, era presidente do Diretório Acadêmico de Medicina em Belém, e a gente se encontrava nos encontros de reconstrução da UNE e tudo mais. E aí, quando ele se formou, ele voltou para o Acre, ele nos ajudou a coordenar esse movimento das Diretas Já, e logo em seguida, a gente achou que ele era um bom nome para concorrer ao governo, para ser essa pessoa que ia derrotar o Branquinho, que era o secretário do governo do MDB e pecuarista. Era um secretário de Obras, Estrada e Rodagem, alguma coisa assim. Bom, mas a coisa foi tão bem-sucedida assim... Nós éramos os marqueteiros, mas quem liderava o grupo era o Toinho. O Toinho, que foi meu guru quando eu era adolescente, com 16 anos de idade, que eu entrei na OSI, a Organização Socialista Internacionalista. Eu era Libelu, trotskista. E o Toinho saiu do trotskismo, ele se vinculou à comunidade do Alto Santo, do Santo Daime, onde nasceu o Daime. E o Toinho era o nosso grande mentor disso. Então, ele, a Marina, eu, a minha ex-esposa Simoni, o Aníbal Diniz, essa turma que depois formou a equipe do governo do Jorge Viana, eram os marqueteiros. Então, a gente fazia, eu grafitava muro, o Toninho, a Simoninha e o Aníbal faziam os programas de televisão, o Jorge Viana nem sabia falar direito e ele treinou bastante o Jorge Viana. O Jorge Viana não era Jorge Viana, ele era Jorge Ney Macedo das Neves, mas o pai dele tinha sido vereador, deputado estadual, deputado federal, muito conhecido, um deputado da antiga Arena, que depois virou PDS, né? E ele era muito conhecido, querido. O Acre é muito conservador, muito conservador. E então a gente mudou o nome do Jorge Ney pra Jorge Viana. Ele nem tinha Viana no nome, mas pra saber que ele era filho do Seu Dico, pra gente começar a quebrar a bolha daquele conservadorismo do Acre. O Acre é muito conservador até hoje. Tanto que o Lula nunca ganhou no Acre, nem a Dilma. Ninguém ganhou. Mas aí a estratégia, como a que foi país duas vezes, tem todo um apelo nacionalista, tem um hino lindo, um hino muito lindo feito pelo Mangabeira Unger, o tio-avô do Mangabeira Unger. E a gente não usou bandeira do PT, a gente não usou nenhuma música parecida com a Internacional Comunista, a gente usou o hino acreano, a bandeira do Acre, como símbolos. O Toinho e o Elcio Martins, que eram jornalistas, tiveram a ideia de fazer uma versão pop do hino, que foi a coisa mais linda do mundo, muito bonita. E as imagens da televisão eram incríveis, mostravam um Acre que ninguém conhecia, porque as pessoas que moram nas cidades do Acre não conhecem a floresta. É impressionante, conhecem o Central Park em Nova Iorque, mas não conhecem a floresta da Amazônia, porque elas assistem à televisão, é tudo que vê. Eu, por exemplo, só fui morando no Acre desde criança, só conheci a floresta adulto, quando entrei, fui trabalhar com o Chico Mendes, mas eu não conhecia, vivi aquelas cidades caricatas de um modelo completamente exótico, fora do nosso contexto. Então, a gente começou, o PV também estava inventando várias coisas, cicleata, abraço a alguns monumentos, então a gente fez tudo isso. Criamos umas camisas coloridas, interessantes, fizemos abraço ao palácio, e o programa de TV era muito lindo, mostrava os indígenas, mostrava os seringais, e as pessoas mais antigas começaram a lembrar das suas memórias e tudo mais, e os jovens também adoraram esses movimentos de camisa super alegre, tudo colorido. Enfim, por incrível que pareça, o Jorge foi para o segundo turno. Foi o primeiro candidato a governador do PT que foi para o segundo turno no Brasil. E chegou empatado no segundo turno. Ganhou, foi empatado. Mas aí, no segundo turno, todas as forças reacionárias se uniram contra a nossa campanha. E ele perdeu, ainda bem que perdeu, porque a gente não estava pronto para governar. O Jorge nem tinha 30 anos, pra você ter uma ideia. Mas ele foi eleito prefeito de Rio Branco, no recall, nem precisou fazer muita campanha. Só que eu já tava em Salvador, e aí ele me chamou pra voltar para ser secretário de Educação, porque eu coordenei todo o trabalho de educação no Chico Mendes. Ele não queria que a secretaria fosse dirigida por alguém do sindicato, porque tinha muita coisa para enfrentar do corporativismo, era uma prefeitura muito pobre, precisava que todo mundo trabalhasse e tal, e seria muito difícil uma pessoa que não fosse de fora fazer tudo isso. Então, ele me chamou, eu não topei, eu já tinha sido sindicato de professores, sabia, sabia a dificuldade que é isso. E ele me chamou, e também estava bem em Salvador, estava tranquilo. E ele me chamou: “Vem aqui para a gente conversar”. Eu falei: “Não, eu só vou se for secretário de Cultura”. “Então tá bom, vem aqui”. E quando eu cheguei, ele anunciou o primeiro secretário da equipe dele, que era o secretário da Educação, que era eu. Me deu um golpe e eu fiquei sem saída, fiquei constrangido, acabei aceitando. Isso foi uma grande virada na minha vida, então foi quando eu comecei a trabalhar com o poder público. Então eu fiquei de 93 a 2016 na gestão pública. Foram muitos anos de gestão pública. E aí a marca da gestão dele na prefeitura foi a educação. Até hoje, Rio Branco é uma das capitais com o melhor resultado educacional do país. E aí depois ele foi eleito governador e eu fui secretário de Educação dele em dois mandatos. Em 99, o Acre tinha o pior resultado educacional do país e, quando eu saí do governo, em 2010, o Acre ficou entre os dez melhores na educação. Então, assim, eu já gostava de política pública e acabei ficando de vez na educação, embora eu atue em várias áreas da política pública. Mas no segundo mandato do Jorge, o primeiro foi super bem avaliado. Quando a gente entrou na prefeitura, ninguém acreditava na gente, porque o Jorge não ganhou no primeiro turno. Ele só foi mais votado, porque não tinha segundo turno. Ele não foi eleito porque ganhou no primeiro turno, e nem tinha no segundo turno. Ele foi mais votado de três candidatos fortes, então ele teve um pouco mais de 33%. Foram quase todos praticamente empatados. Então, a gente entrou sem nenhum crédito, chamavam a gente de “os meninos do PT”, porque era uma pirralhada só, todo mundo novinho, eu usava brinco e tal. Mas o Lula, em 1990, quando viu o potencial do Jorge Viana, colocou o Jorge para fazer cursos fora do Brasil, botou em contato com a Fundação Friedrich Herbart, da social-democracia alemã. Ele fez curso com o Carlos Matos, que foi ministro do Allende, entre a saída da prefeitura e... Não, entre a eleição para governador, que ele perdeu, e a entrada na prefeitura. Então, quando a gente entrou na prefeitura, o Jorge já estava com muita qualidade de gestor, tinha aprendido muito. E a Fundação Friedrich Herbart continuou nos apoiando. Então, eu estava com muito medo de ser secretário de Educação, muito novo. Mas aí eu aprendi técnicas de planejamento estratégico, como cuidar da agenda, uma série de coisas, e me senti fortalecido. E, de fato, foi realmente um grande sucesso. Um lugar pobre, quer dizer, o que dá para mostrar, a gente demonstrou que é possível fazer muito com pouco, mas, para isso, precisa muito rigor, clientelismo zero, demitir quem não trabalha. Também teve toda uma dificuldade. A marca do governo dele foi a educação, mas também foi a marca que ele chamava de perseguição política, porque eu demitia quem não trabalhava, eu colocava para trabalhar mais quem estava trabalhando pouco e eu acabei com uma série de contratos temporários. Com isso, sobrou dinheiro para melhorar salários, sobrou dinheiro para reformar as escolas, deu outro caráter para as escolas: escolas alegres, coloridas, sem muros, enfim. E aí, depois, quando ele foi governador, no primeiro mandato eu fui secretário, e no segundo mandato ele me chamou pra conversar e pediu que eu fosse vice dele. E eu fui muito claro com ele, disse: “Você sabe que nem minha família vota em mim, né?”. E, de fato, minha família não votava em mim porque eu não atendia nem pedidos de ninguém dentro da família. E ele me apoiou muito na prefeitura, me blindou, não teve loteamento de cargo, nada disso. Eu fiz medidas duras no primeiro ano, porque eu sabia que no primeiro ano você tem governabilidade, mas não tem ainda capacidade de gestão. No final do governo, você tem capacidade de gestão, mas não tem governabilidade. Então, você tem que fazer as medidas duras no primeiro ano e colher os frutos depois. Isso aumenta a governabilidade depois disso. Eu também fiz curso com o Carlos Matos, aprendi essas coisas com ele. Fiz curso na Colômbia com ele, pago pela OAI. Enfim... Ele chamou para o serviço e eu estava morrendo de medo. Eu sou uma pessoa que detesta o microfone. Praticamente entro em pânico com o microfone. Estou aqui com esse aparato repressivo aqui na minha frente, essa luz, essas coisas aqui. Só Deus sabe como eu estou por dentro. Mas eu falei: “Olha, eu gosto...”. Ele falou: “Não, volta comigo. Eu preciso que você me ajude a governar”. Aí eu falei: “Não, gestão pública. Eu amo de paixão, mas odeio o microfone. Eu até topo”, eu falei vários nomes que ele poderia ter como candidato, que tinha voto e tudo. Ele disse: “Não, eu quero que você me ajude a governar”. Eu falei: “Bom, eu ajudo a governar, mas eu não quero pisar em nenhum comício”. Ele: “Ah, tranquilo, pode deixar, a vota é comigo”. Então, fiz esse acordo com ele. E o outro acordo é que: “Bom, não quero ser Rainha da Inglaterra, quero continuar secretário de Educação”. Então, eu fiquei oito anos como secretário de Educação. E aí, o sucesso na educação estadual foi ainda maior do que na rede municipal. E, no final... No final do... Já no final do governo, eu estava me preparando para fazer o doutorado. Durante as gestões dele, a duras penas, eu fiz o mestrado na UFRJ. E aí eu queria, no final do governo dele, ir para Brasília fazer doutorado. Minha candidata à sucessão era Marina, que é minha irmã. Eu gosto demais da Marina, a gente se conheceu super novos, eu estava no ensino médio, ela estava no ensino fundamental, ela fez supletivo de primeiro grau, supletivo de segundo grau, entrou no vestibular e fomos para a mesma turma, fizemos teatro juntos, fizemos todo tipo de maluquice juntos, trabalhamos com o Chico Mendes juntos, e até hoje a gente é muito amigo, madrinha do meu filho. E eu achava que ela seria, de fato, uma experiência... e seria, de fato, uma experiência incrível, uma governadora... assim... para ninguém esquecer, para ficar na história. Só que ela estava no Ministério do Meio Ambiente, estava tendo muitos problemas, ela e a Dilma não se entendiam. Ela sabia que, se ela saísse do Ministério, muita coisa que ela tinha feito ia deixar de ser destruída mesmo. O PT avançou muito na compreensão das lutas ambientais, mas, naquele momento, tudo era muito novo. O PT tem uma raiz muito forte aqui em São Paulo, no movimento metalúrgico, no sindicalismo. O Chico... O Lula sempre foi um grande amigo do Chico, sempre esteve com ele, ia pra Xapuri. O Chico foi candidato a prefeito lá em Xapuri. O Lula se mandou daqui, foi lá pra Xapuri participar de um comício lá, um negócio que não ia dar voto nenhum, até porque o Xapuri não gostava de ninguém de esquerda. Mas o Lula foi lá para apoiar o Chico, esteve sempre presente com o Chico, esteve presente quando o Wilson Pinheiro morreu, esteve presente também quando o Jorge foi candidato e visitou todos os municípios do Acre. Ele sempre foi muito ligado ao Acre. Mas a compreensão profunda do ambientalismo ainda era um pouco estranha para ele e para o PT como um todo. Acreditava, gostava da causa, mas essa ideia do desenvolvimento, do progresso, de gerar emprego, gerar renda e tal, ele achava que o meio ambiente era, de alguma forma, um entrave para isso. Então, a Marina era muito solitária dentro do governo Lula. Embora o Lula gostasse muito da Marina e ela dele, havia uma leitura legítima, fruto da história de cada um. O Chico teve uma trajetória, a Marina teve outra. Marina, uma seringueira; o Chico, um metalúrgico. A gente não pode querer que as pessoas também... que o Espírito Santo venha e resolva a crise. Então, ela não saiu. Não saiu, não quis ser candidata a governo, ganharia com certeza. O irmão do Jorge queria muito ser governador. E ele nos convenceu de que um impedimento legal dele suceder o irmão seria resolvido pelo Supremo. E a gente esqueceu, ele já era senador e seria eleito com muita facilidade ao governo, então ele virou nosso candidato. Só que, quando chegou em cima da hora já das convenções, o Supremo disse que não, não poderia. E como era uma frente de muitos partidos, que elegeram Jorge e que apoiavam o Governo da Floresta, e como o Governo da Floresta estava muito bem avaliado, todo mundo quis ser candidato. E começou a rachar. Eu não sei se eu já contei essa história, acho que talvez sim. Já? Eu estava em Brasília, no encontro dos secretários estaduais de Educação, no CONCED. Quando tocou o telefone, era o Jorge, dizendo: “Olha, o que o Tião acreditava que ia acontecer, não aconteceu. Tá uma confusão aqui, todo mundo, cada partido tá querendo lançar um candidato. A única solução é você ser o candidato ao governo”. Eu falei: “Jorge, eu vou fazer o doutorado, você sabe que isso não é meu perfil, sabe que eu não gosto de comício. Eu sou militante desde os 16 anos de idade, faço de tudo”. Fui presidente do Centro Acadêmico de História duas vezes, mas eu fazia um trabalho de bastidor. Nas assembleias gerais da universidade, eu não abria a boca. Eu organizava tudo. Eu reunia com todo mundo, a gente organizava o discurso. Eu era uma espécie de organizador do movimento, e marqueteiro também, fazia os desenhos, fazia tudo, os slogans. Eu era um marqueteiro da turma, mas eu nunca gostei de me expor. Então, nunca falei numa assembleia na universidade, para você ter uma ideia. Eu entrava nas salas, falava nas salas, mas na assembleia geral eu não tinha coragem. É uma coisa que só Freud explica. Mas, enfim, eu falei: “Jorge, você me conhece, eu não tenho a menor condição de ser candidato. Eu gosto de governar.” Quando tiver concurso para governador, eu faço, mas dessa maneira eu não vou ser candidato ao governo. Ele insistiu, eu insisti, eu disse: 'Não, eu tenho o direito de dizer não.' Aí, desliguei o telefone, fiquei muito mal, muito mal. Aí a Marina me ligou. Em seguida, eu fiquei insistindo para ela ser candidata. Teve um mal-entendido. Ela entendeu que eu estava achando que o trabalho dela no município não era importante. E era, eu sabia disso. Mas eu julgava que ela, governadora, seria uma coisa fenomenal. E a gente acabou brigando pela primeira e única vez que a gente brigou na nossa vida. A gente brigou e tal. Desliguei o telefone dizendo que não. E eu tive uma crise de pânico, eu entrava debaixo do cobertor e tremia completamente, ficava tendo aquele frio, tremia, tive uma crise horrível de pânico. E aí eu pensei: não vou voltar para o Acre agora, vou inventar uma desculpa, digo que tem um encontro importante de educação em São Paulo, vou para São Paulo para ver se baixa a poeira. Então, eu vim para São Paulo, encontrar uns amigos que eu confio para trocar ideias. Eles me ajudaram a sair dessa arapuca. E aí toca o telefone, era o Dom Moacyr, bispo do Acre, companheirão, pessoa maravilhosa, enfrentou os latifundiários, defendeu sempre o Chico Mendes, apesar de saber que o Chico era comunista e saber que o Chico não gostava de igreja, nem nada disso, enfim. Mas ele sempre nos apoiou, me apoiou a conseguir dinheiro para construir a sede da ONG que ajudava o Chico Mendes, foi ele que conseguiu a grana, sabendo que eu era comunista, do PRC. Ele me apoiou, fez uma carta de recomendação e ele me ligou como quem não sabe de nada, mas era tudo tramado já. 'Oi, Binho, tudo bem? Como é que está?' Disse: 'Ah, Dom Moacyr, não está nada bem. Estão querendo que eu seja candidato a governador. O senhor me conhece, sabe que isso não é para mim, eu não gosto disso.' Ele falou: 'É mesmo? Mentira!' Ele sabia! 'É mesmo? Que coisa! Eu vou te contar uma história. Quando eu era padre, eu falei para o...' Ele falou assim: 'Você sabia que eu falei para o meu bispo quando eu era padre?' Eu disse: 'O quê, Dom Moacyr?' 'Eu falei que o problema da Igreja Católica eram os bispos.' Eu disse: 'Nossa, Dom Moacyr, o senhor falou isso?' Ele é uma pessoa delicada, ele é duro, mas ele é delicado. Ele falar para o bispo dele que o problema da Igreja Católica eram os bispos... Eu disse: 'Nossa, Dom Moacyr, o senhor fez isso?' 'É, falei. Sabe o que me aconteceu?' Eu pensei que ele tinha sido punido. 'Eu virei bispo.' Ou seja, ele estava achando que o meu problema era com a política. Até hoje, no Acre, as pessoas pensam que eu sou técnico, mas eu sempre fui político, mais do que técnico. Acontece que a minha coerência com o projeto é tão grande que as pessoas acham que eu não cedo para o populismo, para o clientelismo, para eu não ter uma visão eleitoreira das coisas. Então, eles acham que eu sou técnico, porque eu barro, eu impeço a minha gestão, seja como secretário, como governador, seja como secretário do Ministério da Educação. Sempre foi muito republicana. Eu recebo todo mundo de qualquer partido, dialogo com todo mundo e discuto o projeto. E isso faz com que as pessoas pensem que eu não sou político. Mas eu acho, acredito, que eu sou muito mais político do que técnico, porque eu tento manter minha coerência, sempre. Mas o Dom Moacyr, acho que ele fez uma pequena confusão. Aí achou que o meu problema era um certo 'ojerismo', nojo, sei lá o quê, dos políticos. Não tinha necessariamente nada disso. É que eu sabia das minhas limitações a um patamar que ele não sabia. Enfim, voltei para o Acre e não teve como fugir. Não consegui fugir. Assim como eu virei secretário sem querer, eu também acabei virando candidato ao governo sem querer. Foi o pior momento da minha vida. Foi, de longe, o pior momento da minha vida. Acho que nunca vou ver um momento tão terrível como esse. Uma agressão pessoal muito forte. Eu tive que vestir uma persona, virar macho alfa, que eu não sou, subir no trem elétrico, falar para 10 mil pessoas... coisas que não são do meu perfil. Porque tinha uma militância que eu respeito demais, uma militância romântica, uma militância que acredita no futuro, esperança, e ele estava podendo, de repente, perder aquilo ali. Então, eu tinha que encorajá-los, mostrar para eles que eu era um candidato viável. Ninguém me conhecia, eu era traço nas pesquisas. Porque eu não aparecia, simplesmente. Eu faltava à inauguração de escola, sendo secretário da Educação. Porque ia falar e eu dava um jeito de adoecer. Então, virei candidato. Foi uma campanha muito bonita. Mas de muitos sacrifícios. Fazer três comícios por dia, sendo que eu seria incapaz de fazer um comício em um ano. Fazer uma fala em um ano e eu fazer três por dia. Me tremendo todo, não conseguia comer, perdi sete quilos. Fiquei um fiapo, já era magro, fiquei um fiapo. Eu era muito mais magro do que sou hoje, bem mais magro. Hoje eu sou gordo. E ainda emagreci sete quilos. Tinha que furar o cinto várias vezes para a calça não cair. Ficava com uma garrafa d'água porque a boca secava completamente, secava, secava, secava. Não comia nada antes do comício, não conseguia. Só depois do comício eu comia alguma coisa, depois eu passava o pesadelo. Mas aí ganhei o primeiro turno. Ganhei no primeiro turno. Foi uma campanha muito bacana, muito bacana. Mas foi um tormento para mim. Bom, ao ganhar o governo, era o terceiro governo nosso. Os governos do Jorge... Eu, como marqueteiro amador, eu criei o slogan de Governo da Floresta. E o Toinho, que era meu parça na marquetagem amadora, ele fez o desenho, um desenho lindo. Eu queria que fosse Governo dos Povos da Floresta, mas era muito grande para um slogan. Aí eu reduzi para 'Governo da Floresta', sugeri para o Jorge, achando que ele não ia topar, e ele topou na hora, porque era um lugar conservador, que pensa que progresso é desmatar. Entra um governo dizendo que é governo da floresta, e eu que moro na cidade... Mas a ideia era de todo mundo morar na floresta, na cidade ou não, na Amazônia. São cidades da Amazônia, da floresta, dos rios e tudo. Ele topou na hora, boa parte da equipe foi contra, mas ele bancou a proposta. E o Toinho fez o logo, que é uma arvorezinha, como se fosse um desenho de criança. Então, ficou uma coisa singela, que deu leveza ao impacto de Governo da Floresta. Ele fez uma arvorezinha bem bonitinha, com um jeito de desenho de criança, e pegou muito isso. E aí o meu governo foi a sequência de um mesmo governo, mesmo propósito. Eu, como vice do Jorge, nunca tivemos nenhum problema, zero de problema. A gente sempre se deu muito bem, até hoje a gente se dá super bem. Temos nossas diferenças, claro, mas o Jorge quebrou, quebrou a pedreira, ele pegou a coisa pesada, ele enfrentou o Esquadrão da Morte, ele sucedeu um governador com quatro CPFs, um governo bastante corrupto, a máquina completamente desmantelada, tudo quebrado, tudo feio, os funcionários mal acostumados. Então, Jorge organizou tudo, fez uma gestão impecável. No segundo governo dele, ele me chamou para serviço porque ele queria fazer outro governo, ele não queria continuar o governo, ele queria fazer um governo novo, melhor ainda do que o primeiro dele. E o meu também tinha que ser, é claro, outro governo dentro do mesmo projeto. Então, foi um só governo do ponto de vista do projeto, mas cada governo teve muita evolução. Então, para mim, foi fácil, em grande sentido, pegar o bruto arrumado e eu fui lapidar. Então, meu papel foi de lapidar. Na campanha, como eu não queria encarar outro palanque, outros comícios, eu falei que não seria candidato à reeleição já na campanha. De maneira super modesta, eu disse assim: 'Gente, eu vou fazer oito anos em quatro. Fiquem tranquilos. Pode deixar que em quatro anos eu faço um governo de oito. É suficiente para mim.' De fato foi. Foi um governo que, se pensar em realizações, foi muito mais do que os oito anos do Jorge. Não que o Jorge não tenha sido muito bom, porque o Jorge teve que gastar uma energia com o Esquadrão da Morte, andar com o carro blindado, botar toda a máquina para funcionar que não funcionava, voltar a arrecadar recursos. Então, a parte mais difícil foi o Jorge que encarou. Quando eu peguei, o caminho estava... era um caminho para correr. Mas, ao assumir, eu não quis correr, pelo contrário, porque botei o pé no freio. Porque o Jorge estava fazendo tanta coisa, tanta coisa, que se eu fosse seguir o fôlego dele, eu ia morrer no segundo ano. Então, a primeira coisa que eu fiz foi descer do palanque, baixar as expectativas, dizer 'eu não sou Jorge, eu não vou fazer um monte de coisa agora' e tal, deixar as pessoas pensando... foi um exercício de paciência histórica. Eu sabia onde eu ia chegar, eu tinha um projeto. Então, eu fiz com que as pessoas acreditassem menos em mim depois da eleição. Na eleição era aquela coisa de todo mundo acreditar, depois da eleição eu desci do palanque e... assim, como se eu não tivesse capacidade de governar, mas eu conhecia muito bem o governo. Eu era um vice-governador que o Jorge me entregava para governar. Eu cuidava de todos os secretários da área social. Eu, além de secretário de Educação e vice-governador, eu era secretário de Desenvolvimento Humano e Inclusão Social. Então, toda área social eu já cuidava. Eu cuidava até da licitação, arrumar a licitação e tudo. Então, eu dominava muito bem o governo. Eu ficava em casa. Eu passei para a população que as coisas não seriam fáceis, pra baixar a expectativa. E nesse momento eu falei: 'Olha, tá difícil de grana e tal', comecei a não recontratar cargos comissionados que eram nossos eleitores, que tinham trabalhado com o Jorge, diminuir a marca e tudo mais, e gastei seis meses planejando. Seis meses fazendo planejamento sem fazer nada, só mantendo o feijão com arroz. E criei uma lógica de governo diferente da do Jorge. O Jorge era muito centralizador, é até hoje, de total descentralização, mas eu tinha reuniões regulares com todos os secretários e, na primeira reunião, a gente definiu os princípios básicos do governo que eram normas de ouro, ninguém podia mexer. Então, eu fiz com que todos eles tivessem autonomia com o seu orçamento. Fiz com que todos assinassem uma carta dizendo que não seriam candidatos. Nenhum secretário meu podia ser candidato. Eles assinaram uma carta no primeiro dia de gestão e foi publicado, porque eles ficariam desmoralizados se fossem candidatos. E isso me criou uma situação favorável com a Assembleia, porque normalmente os secretários concorrem com os deputados eleitos, com a máquina e tudo, só que eles saem da pauta do governo e cada um fica com a sua própria pauta. E escolhi uma equipe, claro, comprometida politicamente, mas com muita qualidade técnica. E aí ficamos planejando. Depois que nós planejamos, aí todo mundo saiu fazendo as coisas com a faca nos dentes. E aí foi um governo de muita coisa, muita, muita coisa. Assim, o Orlei, que era o antecessor do Jorge, foi o governo das estradas, eu fiz mais estradas do que ele. O Jorge era o governador das pontes, eu fiz mais pontes do que ele. O Flaviano Melo, que era outro governador, que a marca dele eram casas conjuntivas, eu fiz mais casas do que ele. Tudo isso em quatro anos. Então, assim, nenhum governo teve tantas realizações como o meu. Eu articulei Banco Mundial, BID. Com o Banco Mundial, a gente quebrou o recorde mundial aprovando um mega projeto em oito meses. Não existe isso no Banco Mundial. Mas nós fizemos um projeto integrado: educação, saúde, desenvolvimento econômico comunitário. Com o BID, o Jorge já tinha um projeto com o BID, a gente reforçou, deu continuidade com o BNDES, mas o Jorge já tinha um trabalho com o BNDES, eu avancei ainda mais. Construí todas as pontes de ponto a ponto do Acre, da BR, enfim, foram muitas coisas. E a educação, claro, foi a grande marca. Mas mexi muito na saúde, que eu não conseguia mexer no governo do Jorge porque o irmão dele, médico, era quem tocava lá, o que ele fazia não tinha nada a ver com a concepção do SUS. Então, eu fiz de uma maneira muito rigorosa a atuação do SUS no Acre e fiz pactos com todos os prefeitos, independentemente de partido, para educação. Então, eu passava dinheiro para eles. A descentralização foi uma marca, mas eu tinha de todo mundo, tanto dos meus secretários como dos prefeitos, responsabilidades e responsabilização. Então, tinha metas a serem alcançadas e tudo. Então, foi o período que o Acre mais cresceu no PIB, mas foi também o período ambiental de consolidação dos grandes passos que o Jorge deu. O Jorge concebeu os alinhamentos socioeconômico, ecológico-econômico, os EE, que foi concebido pelo Jorge. Com o Jorge, o zoneamento foi uma espécie de pacto com o setor produtivo. Então, os pecuaristas terão todo o meu apoio para não desmatar mais. Então o Jorge chegou ao ponto de financiar a própria Embrapa para ter laboratórios de melhoramento genético, para aumentar a produtividade, para evitar o avanço sobre as florestas. Então o Jorge foi fundamental para consolidar as terras indígenas, melhorar os assentamentos agrícolas, a pequena produção e, de outro lado, apoiar os fazendeiros de verdade, porque o que a gente tinha muito na época do Chico era grileiro e jagunço. Então, aqueles que de fato eram produtores rurais, a gente teve que penar para quebrar o nosso preconceito, que era muito grande, e saber diferenciar o joio do trigo, mesmo que eles sejam conservadores ou estão declaradamente bolsonaristas, mas a gente sempre tratou com muito respeito, desde que as regras do jogo fossem realizadas. Então, ele fez um pacto social, digamos assim, um pacto social, um pacto socioambiental, digamos assim. Então, o zoneamento, ele teve 40, foi muito bem feito, até hoje é um dos melhores, talvez o melhor do Brasil, são 40 plantas que vai desde o estudo do solo e vai subindo floresta, áreas que, a aptidão de cada área e chega até o mapa cultural. Então, ele é o único, acho que, do Brasil que tem cruzamento com identidade cultural e tudo mais. Então quando eu peguei... Eu estava com a faca e o queijo na mão, Jorge deixou um caminho super pavimentado para eu ir além. Então, quando eu digo que o meu governo fez mais coisas do que o do Jorge, do ponto de vista material, é porque do ponto de vista simbólico, político, mais difícil, Jorge resolveu a parada. Então, me deixou com uma governabilidade muito boa, muito boa mesmo. Nenhum projeto meu foi rejeitado na Assembleia, aprovei todos os meus projetos. E aí eu caí na bobagem de dizer que o Acre, em 2010, no tal do meu governo, seria o melhor lugar para um pobre viver na Amazônia. De fato, foi. Se você pegar os indicadores do Acre, tinha maior renda, a saúde era melhor, a educação era melhor. Logo de começo, a educação do Acre era muito melhor. Era pior do Brasil, ficou melhor do que a região Amazônica, melhor do que o Nordeste e foi caminhando até ficar entre os 10 melhores do Brasil. Mas eu melhorei profundamente a educação, a segurança pública, montei um plano territorializado. Todas as políticas do Acre tinham a mesma marca: territorialização, autonomia, protagonismo da comunidade. Então, com as comunidades isoladas, eu passava dinheiro para elas fazerem o seu próprio projeto. Era Plano de Desenvolvimento Comunitário, PDC. Então, elas faziam... qual é a solução para o problema de uma comunidade? Só elas sabem. Eu, como governador lá distante, não vou saber, não vou ter uma solução padronizada para todas as comunidades. Então, cada uma resolveu o que tinha que resolver e eu botava a grana na mão deles. Eles tinham que fazer um plano. E a gente olhava o plano, se fosse um plano razoável, coerente, tecnicamente adequado, mas esse tecnicamente adequado não significa que seja uma coisa acadêmica, mas que tenha sustentabilidade, viabilidade. Então a gente financiava, botava dinheiro nas comunidades indígenas, botava dinheiro nas comunidades seringueiras, ribeirinhos, a gente botava dinheiro. As coisas não precisavam de mim mais para acontecer, elas aconteciam sozinhas, com autogoverno, autogestão comunitária. E isso foi algo excepcional. Então, quando chegou no meu governo, do ponto de vista ambiental, eu tornei o zoneamento, que era um pacto, tornei em lei. E criei também um sistema de incentivos socioambientais, o CISA. E, com isso, as pessoas passaram a ter pagamento por serviços ambientais. Então, de um lado, eu passava dinheiro para o serviço ambiental e, de outro, eu equipei o Instituto do Meio Ambiente e a Secretaria do Meio Ambiente, para contratar avião no período das queimadas, fazer uma fiscalização rigorosa. Comprei helicóptero, o helicóptero ia, mutava todo mundo, prendia se fosse necessário. Então o desmatamento também desabou. O PIB cresceu e o desmatamento caiu, o que normalmente é o contrário. Quando o PIB sobe, aumenta o desmatamento, mas a gente conseguiu o sentido inverso, aumentar a economia e cair o desmatamento. Articulei com o mundo todo, com a WWF, com o governo da Inglaterra, e nessa época estavam os fóruns de governadores do Brasil começando, o do Nordeste já era mais avançado, mas o da Amazônia começou a funcionar bem, então eu tinha uma atuação muito intensa nesse fórum. E coincidiu do Arnold Schwarzenegger, que era governador da Califórnia, fazer um movimento global de governadores em defesa do meio ambiente. E aí foi realizar um evento na Califórnia, todos os governadores da Amazônia foram, menos eu. Porque olhei um cara que é uma estrela de Hollywood, republicano. Eu falei: 'Isso não vai dar em nada.' Como diz um jornalista amigo meu, ele chama essas coisas de hands flyer, aquela coisa, me engana que eu gosto. Eu falei: 'Isso é hands flyer, eu não vou num negócio desse. Não é agenda midiática, eu não vou num troço desse.' Não fui. Mas um ano depois eu vi que o trabalho dele era sério, aí eu fui. Quando eu vi que realmente era sério, eu me empenhei fortemente. Eu acho que ele mobilizou uns 40 governadores, mais do mundo todo, mais de 20 assinaram termos de compromisso nesse segundo encontro que eu fui, e esse termo de compromisso dava start a uma cooperação entre a Califórnia, que é um estado extremamente poluidor, então eles queriam fazer um acordo de compensação com o sequestro de carbono, com os outros governos e tal. Mas, desses mais de 20 governos que assinaram o acordo, só dois sobreviveram, chegaram até o final que assinaram o acordo, que foi Chiapas, no México, e o Acre, no Brasil. Está até ali o documento que a gente assinou juntos, me deu a caneta. Eu devia ter dado a caneta para ele também, a minha, depois que eu assinei. Ele me deu a caneta dele, depois que eu assinei o documento, sentiu o aperto da minha mão também, eu estava empolgado, eu estava até empolgado, porque eu apertei mais forte do que o 'Exterminador do Futuro'. E de lá para cá a gente começou a avançar muito, muito mesmo. E aí eu saí do governo, fiz meu sucessor, que é o irmão do Jorge, mas fez um governo terrível. Ele é do meu partido, mas ele quis romper com os nossos governos. O meu, do Jorge, os governos do Jorge e o meu. Então o slogan era 'Novo Acre'. O populismo, o clientelismo, entrou pela porta da frente. E aí, claro, um estado pobre. Quando a gente entrou, os funcionários estavam com três ou quatro meses de salários atrasados, ganhavam muito pouco. A gente fez plano de carreira pra todo mundo, pagou o salário em dia. E ele começou a contratar gente muito mais do que necessitava, loteou o governo com política partidária e eleitoreira. E aí, com uma equipe muito fraca de secretários, chegou ao ponto que ele não conseguiu melhorar o salário e não conseguiu nem mesmo pagar o salário. Então, a gente que colocou o salário em dia, melhorou o salário, motivou o pessoal, deu um espírito profissional, fizemos concursos para agentes de gestão, gestores públicos, para ter um trabalho mais profissional, ele destruiu tudo. Ele não conseguiu destruir aquilo que eu tinha conseguido enraizar muito. Por exemplo, a educação nunca mais voltou para os últimos lugares. Hoje é mediana. É mediana, mas não está mais entre os últimos. Mas a gente ia colocar dentro dos dez primeiros. A saúde, que eu tinha acabado com fura-fila, de político, não sei o quê e tal, voltou aquela situação horrorosa, assim, de político fura-fila, quebrar com um sistema único de saúde, que tem toda uma hierarquia de hospitais de referência, construir onde tem base eleitoral coisas que não são para serem feitas, enfim. Aí ele ficou dois governos, no último governo dele ele ganhou com muita dificuldade, não foi eleito no primeiro turno, ganhou no segundo turno usando a máquina de governo. Depois veio o sobrinho do antecessor do Jorge, que era um corrupto, e o sobrinho mais ainda. Está super complicado na justiça.
P - Você saiu em 2010?
R - Eu saí em 2010. Na madrugada de 1º de janeiro de 2011, eu peguei o voo e saí do Acre. Fui fazer o doutorado. Mas aí comecei o doutorado. E aí me chamaram. Comecei como ouvinte e ainda ia fazer a prova. Estava fazendo três disciplinas e ia fazer a prova quando o Mercadante me chamou para o Ministério da Educação. Aí fiquei lá. Passei por cinco ministros. Foi um período difícil também, porque trocavam ministro toda hora, tinha que começar tudo do zero. No Ministério da Educação, eu fui secretário de articulação com o sistema de ensino. Eu fui responsável por desenhar o Sistema Nacional de Educação, coordenei a elaboração dos planos de educação de todos os estados e municípios. Foi a primeira vez no Brasil que todos fizeram seus planos e aprovaram em lei. Eu já tinha passado por vários planos de educação que ninguém fazia. O primeiro foi o plano do ministro Hingel, que foi em 94. Depois teve o plano do Fernando Henrique. O Hingel, que era ministro do vice do Collor de Minas, Itamar Franco. Depois teve o plano do Paulo Renato, ministro do FHC, que foi em 2001. Aí, quando eu estava no MEC, veio o primeiro plano previsto pela Constituição. Então, eu tinha participado, eu fiz plano de educação como secretário municipal, secretário estadual, acompanhava o MEC desde 1993, entendia muito o Ministério da Educação. Então, quando eu fui chamado, eu fui cuidar dessas coisas. Eu cuidava também da elaboração de planos de carreira, que são muito ruins no Brasil. Então eu, com a minha equipe, criamos um sistema informatizado, porque tem muito picareta vendendo plano de carreira, recorta e cola. A gente criou um sistema informatizado, tipo um Lego, que você constrói o plano de carreira e já vê o impacto que ele dá na sua folha em 10 anos. Avalia quem vai se aposentar, quem não vai, com a ideia de ter um plano de carreira como eu fiz lá no Acre, enxuto, com um bom salário inicial. O Acre, quando eu era secretário, no dia dos professores, o Acre, não, São Paulo, no dia dos professores, quando eu era secretário, teve na capa a publicação dizendo que o Acre tinha um salário três vezes maior do que o de São Paulo e era o maior do Brasil. Na Folha, na capa da Folha de São Paulo, no dia dos professores, foi um prêmio pra gente essa matéria. Era um estado pobre, mas não teve milagre. O que a gente fez foi que todo mundo tem que trabalhar, não tem contratação temporária, não tem sessão para político, não tem contratação temporária para cabo eleitoral, não tem nada disso. Então, todo mundo trabalhar, trabalhar com o tempo certo, isso sobra dinheiro. Eu demiti em janeiro de 99, quando assumi o Conselho da Educação, eu demiti 7,5% da folha de pagamento, que eram contratos temporários desnecessários. Não que eles não trabalhassem, mas eles cobriam o espaço de pessoas efetivas que não trabalhavam à disposição de políticos, morando em outros estados. Tinha gente morando até na Inglaterra. Tinha gente até na Inglaterra que recebia como secretário. E muita gente no Ceará, Rio de Janeiro, nos estados que o Acre tem relação, já morava fora do Acre, mas recebia, porque os políticos seguravam a onda. Essa experiência como secretário de Educação eu trabalho com ela até hoje. Eu estou trabalhando com as maiores secretarias do Brasil, São Paulo, Rio de Janeiro, numa formação de uma organização da sociedade civil. Estou fazendo formação para eles e eles me contrataram para participar da formação das secretarias municipais maiores do Brasil. E quando eles veem a experiência do Acre, eles ficam impressionados. Realmente foi uma reforma que se chama de reforma ampla na literatura, porque mexe com tudo, mexe desde o modelo arquitetônico da escola, o currículo, a formação de professor, o plano de carreira, tudo ao mesmo tempo. É muito raro isso. Então, realmente foi algo que foi importante para mim. Então hoje eu trabalho muito ajudando municípios e tudo mais. Fui chamado para voltar para o Ministério da Educação, mas esse lugar que eu estou morando aqui é maravilhoso e eu não topei. Acho que é isso.
P - Binho, a gente tem uma série de perguntas então que são mais temáticas da programação, sobre essa ideia de vidas, vozes, saberes e mundos em chamas. Eu queria que você, à luz do que você falou já, desde a primeira parte que você contou da sua infância também, você pudesse recapitular como é que foi mudando a sua relação com a natureza, né? Porque eu acho que tem algumas mudanças que você teve desde criança, né? Como é que foi mudando a sua visão, a sua relação?
R - A ida para o Acre foi algo que mudou muito a minha vida. Porque o meu pai queria motivar os filhos para ir para o Acre, então ele fantasiou bastante a coisa. E aí ele dizia assim: 'Olha, a gente vai morar numa casa de madeira.' E aí eu imaginava uma casa igual à do Daniel Boone, que eu assistia na televisão com aquelas madeiras roliças. E dizia que a cidade era cortada por um rio, que o nome da cidade era Rio Branco. Aí eu imaginava um rio de água cristalina, cheio de pedras, igual ao do Daniel Boone também. E o que eu encontrei foi completamente diferente de tudo que ele tinha fantasiado. Mas, no lugar de eu ficar frustrado, eu fiquei mais apaixonado, muito mais apaixonado. Primeiro que ir para o Acre, naquela época, era uma aventura. Para ir de carro era praticamente impossível, porque a estrada de Rio Branco até Cuiabá era de terra, no inverno era intrafegável e no verão era muito ruim, levava muito tempo, esburacada, poeira, bem complicado mesmo. E a gente foi de avião, eu, meu pai e mais três irmãos. A única que nasceu no Acre, a Marta, ela... que nasceu... os meus pais se conheceram no Acre, né? Então eles... eles casaram, meu pai chegou lá no período da guerra e casou com a minha mãe em 47. Em 48 nasceu a minha irmã, a única acreana. E de lá os dois saíram, os três, na realidade, né? Com a minha irmã. E passaram 20 anos fora. Aí nasceu um irmão na Paraíba, duas em Pernambuco, e depois ele veio para São Paulo, ficou nove anos. Eu nasci e depois voltou para o Acre, depois desse período. Aí a acreana ficou em São Paulo, então fui eu mais três irmãos para o Acre. Mas, assim, não fiquei nem um pouco decepcionado, não fiquei frustrado em ver que o que ele tinha contado não era aquele, porque o que eu estava vendo já me agradava muito. Eu morava no Bosque da Saúde, em São Paulo, um sobradinho, andava calçado, ficava fechado, não vinha praticamente ninguém. Tinha uma vida solitária e queria ser cientista. Ficava olhando mosquitinho com aquele monóculo daquelas fotografias que tinha antigamente. Ficava naqueles sonhos muito solitários. E quando eu cheguei no Acre, aquele monte de moleque na rua, praticamente pelado, só de calção. Aquilo ali era uma coisa fantástica. E a gente foi de avião, aqueles DC-3, motor Rolls-Royce de hélice. E aí ia pingando, levou um tempão para chegar no Acre. No Rio de Janeiro, ia subindo, Campo Grande, Cuiabá, depois a gente foi para Manaus, foi de Manaus pra Porto Velho e Rio Branco. É uma aventura. E chegamos em Manaus, deu um problema que eu não sei o que foi. Ficamos uma semana ainda em Manaus. Manaus foi assustador, porque a gente ficou num hotel chamado Riomar, que eles torturavam os presos da ditadura, eram torturados lá. Então, no hotel, eu, criança, ficava escutando gritos, choro, todo tipo de coisa horrorosa. Isso me marcou até hoje. Mas já em Manaus eu comecei a me aproximar de uma coisa completamente diferente do que era São Paulo. Foi o primeiro tacacá da minha vida que eu tomei. Tive vontade de vomitar, uma coisa para mim esquisita, um troço muito estranho. Então, a Amazônia é muito diferente de todo o resto do Brasil. E são muitas Amazônias, porque a Amazônia do Acre é uma, do Amazonas é outra, do Amapá, e assim por diante. Cada lugar tem uma característica diferente, tem pontos incomuns, mas tem muita diferença também. Mas em Manaus eu comecei a entrar naquilo que existe de comum na Amazônia, com cheiros... eu fui muito sensível para cheiro, um cheiro... de todas as coisas têm a umidade da Amazônia, então o cheiro fica diferente, o ar fica pesado, a umidade e os sabores também muito marcantes. Eu tenho um amigo que é chefe, que ele fala que a comida efetivamente brasileira é do Pará e do Espírito Santo, que realmente a culinária indígena está marcada. E a culinária do Pará, então, é a coisa mais absurdamente deliciosa. Mas era muito diferente pra mim, então eu levei um tempo pra acostumar. E aí, primeiro que o avião, aí fui me acostumando com o tacacá, com aquelas coisas da semana que a gente ficou em Manaus, fomos pro Acre. E aí chegar no Acre foi impressionante, porque o Acre não tem pedra. Para construir no Acre tem que pegar pedra no estado vizinho, em Rondônia. Porque o Acre era um grande lago, quando o rio Amazonas corria ao contrário. O rio Amazonas... Então, a chegada no Acre foi algo impressionante. Você chegar com aquele avião bimotor e tal, e pousar numa pista que não era asfalto, não tinha pedra, era de tijolo, uma pista toda de tijolo. O Acre era um grande lago, então não tem pedra. Quando o rio Amazonas corria ao contrário, ele seguia o fluxo que tinha quando os dois continentes se apartaram, o africano e o sul-americano. Então, isso tudo faz muita diferença, um lugar que não tem pedra, que tem uma argila muito grande. Então, as cores mudam, o cheiro muda, o tato muda, o sabor muda, é tudo diferente. Para uma criança que era criada num lugar só, num lugar, ele pensa que o mundo todo é assim. Então eu tive um presente muito grande de novo, perceber que o mundo é muito diverso. Muito diverso. De sair pingando, de olhar o Brasil de cima. Então, sai de São Paulo, levanta de Congonhas, vai pro Rio de Janeiro, vê o mar. Essas coisas, para uma criança, são muito importantes. E aí eu cheguei no Acre, entramos numa rural, que foi para a casa dos meus tios, e aí, logicamente, cidade de vida no meio, mas não tinha ponte. Então eu, naquele romantismo, naquela criança ingênua, paulista, eu falava porta, corda, amor, o nome, Arnóbio, e aí chegamos na beira do rio e eu vi o pessoal atravessando o rio com catraia, aqueles barcos. E eu disse: 'Ah, papai, papai, vamos passear de barquinho.' Eu não tinha noção que aquilo não era passear de barquinho, aquilo era necessidade pública. Quer dizer, a cidade era dividida no meio sem ter ponte, então tinha que pagar para atravessar naquela catraia para chegar do outro lado. O rio não era cristalino, era puro barro, era um rio barrento. Mas eu me apaixonei pelas casas, pela arquitetura das casas todas de madeira, pé-direito alto, ventilação cruzada. Quer dizer, casas ecologicamente incríveis, porque elas, sem absorver calor, com uma iluminação natural perfeita, avarandadas. Então, tudo aquilo me causou muito impacto, muita emoção. Mas eu cresci nesse ambiente sem conhecer a floresta. Rio Branco era capital, mas uma cidade muito pequena, de 70 mil habitantes. Mesmo assim, ela não tinha relação com a floresta. Então, eu passei a vida toda, até a idade adulta, sem entrar na floresta. E assim, muitas pessoas nascem e morrem em muitas cidades da Amazônia sem entrar na floresta. É algo incrível. E, quando eu entrei na floresta, foi algo fenomenal, porque, como eu cheguei de avião e vi aquele mar verde, eu achava que a floresta era verde, que era monocromática. Tudo era verde, eu ia entrar dentro do verde. E, quando eu comecei a trabalhar no Projeto Seringueiro com o Chico, eu ficava um mês em cada entrada na floresta, eu ficava uma semana em cada escola de quatro, então, a cada vez que eu entrava na floresta, eu ficava um mês na floresta e ficava... uma semana em cada uma delas, dando formação para os professores, às vezes dando aula para ele ver como é que dava aula, porque os professores eram seringueiros, que mal sabiam ler e escrever, e já viravam os professores, e era um trabalho voluntário, que era muito bacana. A escola era construída de maneira comunitária para o professor voluntário, mas eu ficava muito tempo, então... e eu entrava sozinho na floresta, me perdi algumas vezes, porque o que era óbvio para eles não era óbvio para mim, porque é uma picada na floresta que eles chamam de varadouro. E, quando o seringal não tem mais patrão seringalista, aquele varadouro vai estreitando porque não tem a manutenção que tinha antigamente. E ele se confunde com a estrada de seringa. Então, eu entrava num lugar apertado nas florestas, o varadouro era mais estreito. E, quando eu entrei, aquele verde se desfez. Quer dizer, era um verde feito de muitos pigmentos, muitos pigmentos. Então, dentro do verde cabia tudo: cabia folha seca, cabia flores vermelhas, flores amarelas, frutos diferentes, bichos, que de cima você só vê verde. Quando você entra, era como aqueles tubos antigos de televisão, com aqueles pixels que você conseguia enxergar, cada um com uma corzinha diferente, com as cores primárias, fazendo todas as cores. E aí eu percebi que o verde era formado de muitos pigmentos, de muitas cores. Isso, pra mim... Então, a primeira vez que eu entrei na floresta, foi uma caminhada de 18 horas. Andei 10 horas um dia, 8 horas no outro, dormi no meio do caminho na casa do Raimundão, primo do Chico. E fui sozinho, me perdi. Mas foi muito, muito, muito bacana ficar essas 18 horas caminhando só comigo mesmo, refletindo sobre aquelas coisas. E, nesse momento, eu era comunista, dogmático, só existia... o mundo era todo bipolar, era certo, errado, feio, bonito. E, quando eu entrei na França, eu comecei a refletir sobre o mundo. Então, você entra num microcosmo que reflete todo o universo. A beleza do universo está nas coisas miúdas. Parece Manoel de Barros, as coisas miúdas começam a ter um valor impressionante. Então, eu fiquei muito tocado com aquilo e comecei a refletir sobre a minha militância, comecei a refletir sobre a vida, coisas que depois, quando eu experimentei a Ayahuasca, tudo veio. Só que de uma maneira muito mais sensível. A Ayahuasca mexe com a maneira de pensar, deixa tudo mais sensível. Você pega na calça, sente toda a textura do jeans, toda a textura do tecido, você sente cada coisa, você enxerga com uma luz muito forte, você ouve de maneira aguçada. Então, no meio dessa coisa de cores, sabores, textura, floresta, diversidade, culturas diferentes... Por exemplo, na floresta, teve uma vez que eu me perdi e vi que tinha um galho espetado no chão, quebrado assim, apontando por uma picadinha. Aí eu pensei: 'Não, o cara que passou na minha frente viu que eu ia me perder', porque o varadouro estreitou muito, ficou quase do mesmo tamanho da estrada de seringa, que a estrada de seringueiro, embora o nome diga estrada, é mais estreita do que o varadouro. 'Ele achou que eu ia me perder, então mandou eu entrar para cá.' Só que, na linguagem dele, era o contrário, era para não entrar. Então, os códigos são diferentes, os termos são diferentes. E eu entrei, e ali tinha uma espera, uma espingarda com gatilho e tal, para disparar se o bicho passasse. Ainda bem que não aconteceu nada. Mas eu entrei naquilo, rodei a estrada de seringa toda. Enfim, quando eu cheguei lá na casa do cara, aquela... 'Não, aquilo era para não entrar, não era para entrar.' Então, os códigos são outros. E eu fiquei analfabeto, porque eu saí da universidade arrogante, um garoto bobo, arrogante, achando que sabia de tudo. E, quando eu entrei na floresta, eu fiquei completamente analfabeto, eu fiquei uma pessoa que não conhecia os códigos mínimos. A floresta, como era muito isolada, e até pegar rádio era difícil naquela época. Então, eles mantinham um vocabulário que tinha quando eu cheguei criança. O Acre era tão isolado que a linguagem era outra. Então, eles chamavam... O que era pra mim bolinha de gude, eles chamavam de peteca. A peteca pra mim é aquela de pena. Eles chamavam cabide de cruzeta, eles chamavam esmalte de cutex, porque eles não conheciam as coisas, eles conheciam as marcas, então eles chamavam pelas marcas. Esmalte era cutex, perfume era estrato, eles não falavam vermelho, falavam encarnado e por aí vai. Então era outra língua e eu tive que penetrar nessa língua, mas mais do que penetrar na língua, foi penetrar numa maneira de pensar, de sentir, de se relacionar. Por exemplo, o seringueiro nunca diz não. Ele diz que está mal satisfeito. Ele está satisfeito, mas está mal satisfeito. Na realidade, ele está completamente insatisfeito, mas ele fica mal satisfeito e por aí vai. Esse mergulho começou a me ensinar a ver o outro. Porque todo mundo em São Paulo é um pouco egocêntrico, muito ensimesmado, não conhece o Brasil de modo geral. E aí eu vi que existia uma outra coisa que não era o que eu era, mas que era muito interessante. E eu comecei a me apaixonar, falar o acreanês e assim por diante. Mas, ao mesmo tempo, a gente viu um momento de desmatamento, de derrubada. Então, do mesmo jeito que tinha tudo que é bonito, tinha tudo que é horroroso. E aí eu me envolvi cada vez mais com o movimento de seringueiros. E o interessante disso é que eu queria ser pesquisador, fazer o curso de História, queria ser cientista político ou qualquer coisa do tipo, achando que existia uma lógica irrefutável da ciência, com verdades absolutas. E, ao chegar lá, eu encontrei pessoas que mal sabiam ler e escrever, com uma grande sabedoria. E uma sabedoria porque, claro, todo mundo é capaz, mas uma sabedoria ancestral que foi passada de gerações de indígenas, em contato com a cultura tradicional do Nordeste, que no caso do Acre foi um lugar da Bolívia, foi colonizado por nordestinos. Esse encontro de culturas foi uma coisa que me marcou muito. E foi esse povo, toda essa salada de saberes, de sabedoria, que criou um modo diferente de luta. No momento que eu era comunista, falando de luta armada, eles inventaram o empate. Eles, sem armas, impediam o desmatamento. E mais do que isso, quer dizer, o empate era uma luta de resistência, mas eles foram além disso, com a liderança do Chico Mendes, logicamente, de não ficar só dizendo não. Então foi outra coisa que eu aprendi, porque eu era um militante comunista que só achava tudo horroroso, que criticava tudo, mas eu não tinha uma proposta para uma vida melhor, não tinha uma proposta para uma sociedade justa, eu não tinha proposta para nada, eu só era contra tudo. O Chico nunca foi contra tudo e contra todos. O Chico era... ele se opunha às coisas colocando outra coisa no lugar. E a ideia da Reserva Extrativista foi uma criação genial. Criação genial. Primeiro mostrou que não tinha ambição, não queria propriedade, não queria riqueza, queria uma vida simples, alegre, feliz, saudável, com acesso às políticas públicas básicas. Foi lá com o Chico que eu aprendi a importância do mínimo necessário, porque ele sempre viveu com o mínimo necessário. Então, aí foi quando eu aprendi a base da política pública. A base da política pública, me espelhando no Chico, é que, para ser política pública, tem que se construir algo que seja realmente muito simples, para que ela seja universal para todos. Então não existe política pública fazendo ilhas de fantasia, construindo escola com piscina olímpica no centro da cidade, enquanto as outras escolas estão caindo aos pedaços. Então, as ideias do Chico eram muito complexas, elas eram muito... como é que eu posso dizer? Elas eram ideias muito refinadas, muito refinadas. Então, eu não posso dizer que as ideias dele eram simples, mas o fruto daquilo ali era um... era a construção de algo muito simples, para que fosse público. Então, quando ele criou o Projeto Seringueiro com a Mary Alegretti, começou a espalhar a escola, ele não queria substituir o Estado, mas ele queria fazer uma coisa simples que o Estado pudesse absorver e que pudesse ser para todos. Ele queria provar que era possível ter escola no meio do mato. Ele criou também 12 postos de saúde lá em Xapuri. Muito simples, muito simples, com pessoas também com pouca escolaridade, mas que eram viáveis. Ele criou uma cooperativa, ele criou projetos de desenvolvimento econômico que eram com base comunitária. Então era um pensamento muito... eu não posso dizer que era um pensamento simples e muito menos simplório, era realmente um pensamento elevado que transformava algo complexo, como chamou Morin, de algo construído junto, que não é algo fragmentado, mas algo sistêmico, mas que se traduz em propostas altamente viáveis, com baixo custo e com grande resultado. Depois, no governo, eu, Jorge, a gente colocou... a gente passou a incorporar essas ideias e universalizar. E aí a gente seguiu o caminho do Chico. Ele queria que a floresta dos antigos seringais fosse produtiva, que gerasse renda, que movimentasse a economia, mas uma economia que fosse de fato sustentável. O Chico Mendes era um visionário, com certeza. Então, ele imaginava que a floresta pudesse ter os mesmos serviços básicos que tem um centro urbano. Então, o projeto dele, Seringueiro, era um projeto de educação, saúde e desenvolvimento econômico comunitário. De certa forma, ele estava prototipando políticas públicas, porque ele tinha um pensamento rebuscado. Por exemplo, o projeto de educação era um projeto que seguia o calendário deles, era um projeto baseado em Paulo Freire, ou seja, não era uma coisa simples. Mas a maneira com que acontecia era de maneira simples, viável, de baixo custo, mas que pudesse escalar. Então, nada para o Chico era algo que não pudesse escalar. Ele não estava fazendo nada para o inglês ver. Ele estava fazendo algo para que fosse para todos. Ele queria algo para todos. Ao mesmo tempo, não era nada padronizado. Cada comunidade tinha o seu jeito de ser, de ajustar as propostas. Então, essa coisa dialógica e dialética, ao mesmo tempo, é algo rebuscado. Com muito autogoverno também. Cada comunidade tinha o seu jeito de lidar, tinha suas lideranças. Então, ele fornecia um básico, e esse foi o meu grande aprendizado. Quer dizer, qual é o mínimo para que se tenha qualidade? Qual é o custo que a gente pode bancar e que pode garantir qualidade? Qual é o custo que permite que seja para todos? Então, o Chico é assim. Eu lembro uma vez que a gente conseguiu algo inédito, que foi um financiamento do Ministério da Educação, que é cheio de protocolo, lá atrás, para construir 12 escolas. E a sacação foi: o Ministério da Educação financiou a compra de motosserra. O projeto para construir escolas era compra de motosserra, gasolina, corrente de motosserra, limatão — que era uma coisa de amolar as correntes — e um negócio chamado tirá-tábua, que era um negócio muito simples, que amarrava a motosserra e fazia tábua muito grosseira. Porque as escolas funcionavam debaixo de mangueira, funcionavam dentro de paiol, funcionavam dentro de qualquer coisa coberta de palha, com piso de terra. E ele queria uma escola bacana, bonita. Então, eu desenhei o projeto arquitetônico com telinha de cavaco, de madeira e tudo mais. E o Chico administrou isso. Ele construiu as 12 escolas com um mínimo de dinheiro. Ele que administrou. Ele que contratava os operadores de motosserras. Então, a gente encontrava uma árvore caída e a gente reaproveitava, cortava a tábua e fazia tudo em mutirão. Era tudo mutirão, ele mobilizava as pessoas, tudo de maneira comunitária e tal. E escolas lindíssimas, escolas com duas salas, cantina, tudo. E muito lindas, muito lindas mesmo. Com pé-direito alto, com lanternim para sair o ar quente, um negócio refinado e simples. E que não agredia a cultura, porque a identidade cultural das casas, a identidade das escolas, era influenciada pelo padrão arquitetônico de casas amazônicas, palafitadas, ou seja, com ventilação por baixo. Então, essa inteligência do Chico nos permite saber que dá para fazer política pública de qualidade com baixo custo. E, do ponto de vista ambiental, ele não queria ficar só na borracha e na castanha. Então, ele queria o multiuso de todos os recursos possíveis, para produtos medicinais, para mel de abelha sem ferrão. Ele pensava nas diversas possibilidades econômicas que fossem sustentáveis, que a riqueza pudesse ser reposta. A gente fala de extrativismo, hoje tem uma conotação de botar tudo abaixo, mas naquela época o Chico passou a dizer que a gente não é seringueiro, a gente é mais do que isso, a gente é extrativista, porque a gente trabalha com uma cultura que se renova, não só da seringa e da castanha, mas diversos outros produtos possíveis. E, claro, as ideias dele avançaram. Para hoje, a gente fala de sistemas agroflorestais com sequestro de carbono e produção de alimentos ao mesmo tempo, em áreas já degradadas, plantação em nascente e por aí vai. Sem falar em biotecnologia e outras coisas do tipo. Então, esse aprendizado foi todo pro governo. O Governo da Floresta, os dois governos, o Jorge e o meu, foram governos que beberam nessa fonte e transformaram os protótipos de política pública do Chico em política pública de verdade. Então, por exemplo, os indígenas não tinham escola. Eram poucas, mas eram poucas de altíssima qualidade, feitas por uma organização não governamental chamada Comissão Pró-Índio, que tinha uma educação muito boa, bilíngue, para os índios. A gente pegou esse, digamos, esse protótipo de política pública e universalizou as escolas do Projeto Seringueiro, o trabalho de saúde. Então, a gente passou a ter um conjunto de remédios básicos que garantia. E os projetos arquitetônicos do nosso governo foram simples: escolas simples, bonitas, funcionais, adequadas ao currículo, ao projeto pedagógico. E a gente aprendeu com o Chico. Então, ele foi o grande professor dessa causa.
P - E você, ao longo da sua vida, como é que você passou a encarar a natureza, a relação pessoal, seu corpo a corpo com a natureza? O que você pode falar pra gente sobre isso?
R - Bom, eu não tive uma educação ambiental, logicamente. Como eu falei, eu só entrei na floresta depois de adulto. Como eu falei, os movimentos sindicais que me influenciaram, os movimentos estudantis, estão muito ligados a áreas urbanas, classe média urbana ou proletária. Então, de fato, a gente via a natureza como um opositor. O homem tem que dominar a natureza, o progresso, basta ver os cartazes da União Soviética, da antiga União Soviética, tem toda essa coisa de chaminé, essa enfumaça, coisa bonita, né? A prosperidade, a riqueza vem desse trabalho. Então, era só uma questão de dividir a riqueza, mas a natureza não estava no jogo. Então, para mim era assim, eu também não estava no jogo. Mas a minha relação com a natureza não foi... Bom, primeiro, eu não era um ambientalista. Eu tinha um compromisso social. Lutava pela justiça social ao ponto de querer pegar nas armas, fazer revolução e tudo mais. E a natureza não estava no jogo. Mas o Chico mostrou que uma coisa não existe sem outra. E esse aprendizado aconteceu com a minha vivência, o trabalho lá, que eu passei a coordenar os três projetos de educação, saúde e desenvolvimento comunitário, assumi a presença dos trabalhadores da Amazônia, dava assessoria para o Chico, não estava só na educação, então eu começava a ver tudo. Eu percebi a relação da natureza com a saúde, das plantas medicinais, comecei a ver a indústria farmacêutica, ver que alimentação, os venenos que a gente comia e assim por diante. Mas teve outro fator também, que foi o meu contato com a Ayahuasca. Como eu fui comunista dogmático e tudo, eu não consigo mais pertencer a nenhuma doutrina ou religião, mas as experiências que eu tive com o Daime, cerca de oito, eu acho, foram incríveis para aguçar essa percepção. Então, aquela entrada na floresta que me permitiu perceber que o verde não era verde, ele veio na miração da Ayahuasca como bonequinhas russas. Eu, de repente, fui ficando pequeno. Uma bonequinha matrioska, acho que é o nome, foi ficando grande e eu mergulhei no vermelho, eu fiquei minúsculo e ela ficou muito grande, ao ponto de mergulhar numa parte da pintura que era vermelha e descobri que o vermelho era fruto de muitos pigmentos de várias cores diferentes. Foi aquela sensação da floresta, quando eu entrei no verde. Então aquilo veio. Mas ele veio me falando que não existe o finito. Ele me trouxe a ideia de que tudo é infinito para menos ou para mais. Então chegou uma hora que eu ficava fazendo contas matemáticas absurdas, construindo um número com sei lá quantos trocentos dígitos, para dividir por outro número com mais trocentos dígitos. Depois eu ia dividindo, dividindo, dividindo, aí chegava uma fração, dividia a fração, dividia a fração, fração da fração, e não acabava nunca. E é aquela coisa que no Daime você não fica maluco, você fica conversando com você mesmo. Então eu ficava pensando: “Não é possível, tem que acabar esse negócio”, aquele pensamento polarizado que eu tinha, tudo tem limite, o certo e o errado. Não, não tem, as coisas são tudo entremeadas. Então eu mergulhei profundamente nisso, ao ponto de ter uma relação diferente com a natureza, completamente diferente do que eu tinha. Então, a floresta era algo para ser explorado. Hoje, para mim, a floresta, a natureza, é algo que nos inspira, que nos traz energia, e por isso que eu moro no meio do mato, aqui, cheio de passarinho, a vida é completamente outra. A tal ponto que hoje, assim, essa minha relação de vida com o ambiente arrodeado de mato, de água, está me deixando tão perturbado a procurar fazer análise, porque eu nunca fui acostumado com a felicidade e, de repente, eu estou feliz. Essa minha culpa cristã não me permite gozar plenamente da felicidade que eu estou vivendo hoje. Eu fico impressionado com como é possível viver a felicidade. Então, eu estou querendo mergulhar profundamente nesse estado que eu nunca tive. A minha militância era sábado, domingo, feriado, e eu não via o outro. Eu não via o outro, eu não via a natureza, eu não via nada. Eu era rancoroso, eu era terrível, cartesiano, estava sempre vendo defeito em tudo, mas tudo é defeituoso. Então a natureza me ensinou: nada é perfeito, e é perfeito na imperfeição ao mesmo tempo. Para mim foi um achado que tira o peso das costas de querer entrar dentro de uma forma. Essa forma não existe, não tem nenhuma árvore igual a outra, como não tem uma pessoa igual a outra. E não existe o bem e o mal separado, um está dentro do outro, um está dentro do outro, e a gente tem que saber lidar com essas coisas que estão presentes em todos os lugares. Então a natureza é muito mais do que algo... porque a gente sai de uma fase de não gostar da natureza para uma fase de você se apropriar e tirar proveitos da natureza para uma outra fase em que você vive com a natureza em irmandade e percebe que você também é a natureza. Então, tudo de bom, de certo, de errado, tudo de ruim, está dentro de tudo. E você tem que viver essa relação compreendendo que a vida é algo que a gente não consegue alcançar com palavras. Então, nas vezes que eu experimentei a Ayahuasca, eu nunca consegui traduzir o que aconteceu. Porque a natureza, para expressar o que é a natureza, precisa de uma linguagem que a gente não tem capacidade. É como a música, talvez. Quando uma música bonita expressa a natureza, é porque não existem palavras para traduzir a natureza. Então, a beleza, a complexidade e a preciosidade, a joia que é o universo, o planeta e tudo mais, é intraduzível, realmente não tem condição. Então você tem que relaxar e sentir, aproveitar e viver a felicidade de ter oportunidade de ter relação com tudo isso.
P - Mas você pinta, né?
R - É, eu fui grafiteiro, eu não sou profissional, não. Antes de trabalhar com o Chico Mendes, antes de mergulhar mesmo no PRC, eu tinha passado uma fase trotskista, depois eu saí de tudo. Nessa fase que eu fiquei entre o trotskismo e o PRC, aí eu realmente me dediquei a fazer poesia, grafite, filme, teatro, que são coisas que também são linguagens diferentes de algo que a nossa fala não dá conta plenamente. Então a gente tenta, das mais diversas formas, de traduzir essa belezura, como diria o Paulo Freire, essa belezura que é viver.
P - Última pergunta, Binho. Como é que foi contar um pouquinho da sua história nesses dias todos que a gente esteve junto aqui?
R - A gente acaba falando coisas que a gente nunca pensou. É tipo um fio de novelo, que você vai puxando, puxando e... Então, tem coisas que eu nunca confessei nem comigo mesmo, tem coisas que eu não falei para mim mesmo e que, quando a gente começa a conversar, começa a descobrir coisas que eu mesmo não tinha percebido. Eu sempre quis dominar tudo, saber tudo antes. Quando eu vou para um evento, eu quero saber tudo o que vai acontecer. Quero já me preparar, saber o que eu vou dizer, com quem eu vou me relacionar. E essa conversa foi completamente sem pensar. E esse sem pensar é o que faz a gente pensar. Você desliga e a intuição vai te levando, o coração também. Então, foi legal, foi uma análise que você pode até cobrar por essa terapia, porque foi bem gostoso, bem legal. E faz tempo, né, tudo isso. Então, foi uma reconexão com o Chico, um reencontro. Então, acho que foi um reencontro com amigo.
P - Eu disse que era a última pergunta, mas só a última mesmo. Você falou muito da sua história, sem falar do Chico. Como é que você acha que ele veria a situação que a gente está hoje? Teria alguma indicação para o futuro para a gente? Você pensa nisso?
R - Eu penso, sim. Eu penso como é que ele estaria hoje. Esses dias eu troquei mensagem com o Ailton Krenak, que foi um grande parceiro do Chico. Eles criaram a Aliança dos Povos da Floresta. O Ailton está muito indignado, muito indignado com tudo. Ele acha que a gente precisa pensar em novas formas de luta, talvez ser um pouco mais agressivo. De certa forma, no passado, a gente foi um pouco romântico. Porque, às vezes, a gente faz alianças com oportunistas, que querem colar uma imagem ruim com uma imagem boa, e que, no pega-para-capar, instituições, pessoas, pesquisadores, às vezes, desaparecem. Então, buscar essa autenticidade que o Chico sempre teve, eu fico pensando o que ele diria hoje. Qual seria a autenticidade hoje? Porque o Chico sempre foi muito habilidoso para lidar com os diferentes, muito. Eu ficava puto com ele porque eu queria fazer a Revolução Armada e ele conversando com todo mundo, às vezes com partidos de direita, com todo mundo, não tinha ninguém que ele não parasse. Eu fui com o Chico na casa do assassino do Chico. Quando o Chico foi candidato a prefeito, ele pedia voto para todo mundo, porque ele sabia que, se ele não conquistasse o voto, ele sabia que lá com o Darly ele não ia conquistar o voto, mas ele neutralizava, ele criava um constrangimento da pessoa. Então, a pessoa ficava menos feroz com ele. O Chico era muito habilidoso politicamente. Então, a gente foi lá na Fazenda Paraná, tomamos café com o Darly, a gente foi bem recebido, assim, com a cara fechada e tudo, mas o Chico foi lá, falou, pediu voto e tudo, de tal maneira que mesmo um cara como o Darly ficou impactado com aquilo. Ele chegou de surpresa num jeep velho, que eu chamava de Hulk, era um jeep verde, um jeep que estava abandonado, que eu botei para funcionar, a gente foi lá e eu fiquei impressionado com aquilo. Eu fiquei muito impressionado, mas o Chico era aquilo mesmo. Bom, mas isso era naquela época. Hoje, eu não sei exatamente se o Chico se fecharia um pouco mais. Eu tenho a impressão que sim. Porque naquela época, assim, tinha um certo romantismo também. Tanto que o Darly não foi neutralizado, ele matou o Chico. Acho que o Chico não imaginava que o Darly fosse capaz de matá-lo. Quando a gente foi visitar, acho que ele não imaginava isso. Depois ele começou a perceber que sim, mas quando o Chico foi candidato a prefeito de Xapuri, em 1985, a realidade não tinha chegado a esse ponto ainda. Então, hoje parece que a maldade está mais... abriram a tampa do esgoto e ninguém tem mais vergonha de sair sujo de todo tipo de coisa e fedendo. Então, mesmo as piores pessoas, pessoas do mal mesmo, tinham um certo limite no comportamento. E nas ações também. Hoje parece que esse limite... Acho que até os bandidos têm uma ética, né? Parece que nem essa ética de bandido não existe mais. Então, as coisas são muito mais maldosas, traiçoeiras. Então, eu fico imaginando se o Chico estaria com o sentimento que eu tenho hoje. Hoje eu estou um pouco mais cético. Eu fico muito feliz com a juventude, porque tem coisas incríveis, os meus filhos, os filhos dos meus amigos, estão fazendo coisas impressionantes, muito melhores do que nós, do que a minha geração. Filhos da Marina, filhos de Toinho, que são afiliados, estão fazendo coisas incríveis, que a gente não era capaz de fazer. Mas, por outro lado, tem um outro lado que parece que é dominante, hoje no Brasil e no mundo. A gente está vendo aí, Trump e companhia, que a gente achava que não ia mais ver isso na vida, que tinha ficado para trás. E hoje volta voltando, volta trazendo retrocesso. Então, como é que ficaria? Eu penso, como é que o Chico... o que o Chico faria nisso? Eu não sei, não sei mesmo. Mas o Ailton Krenak está muito tocado com tudo isso, acha que a gente tem que repensar as nossas lutas, e eu acho que o Chico estaria também nessa mesma reflexão. Acho que ele e o Krenak estariam muito juntos repensando o futuro, porque ele sempre pensou no futuro. Mas esse futuro que ele pensou não se viabilizou como ele queria. Claro, ele conquistou muitas coisas, os ativistas, ele influenciou o movimento ambientalista mundial, ele criou o socioambientalismo, mas a vida dos mais pobres não mudou como ele gostaria. A natureza não está sobrevivendo como ele gostaria. As mudanças climáticas estão para lá do pensamento mais pessimista que a gente imaginou. Então, eu sinto muita falta dele. Eu acho que ele faria muita diferença se estivesse vivo. Ele estaria bem mais sábio, bem mais sábio, muito mais doce com o que tem que ser doce, muito mais duro com o que tem que ser duro. Como ele sempre foi, corajoso e amável.
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