Projeto Vidas Vozes e Saberes em um mundo em chamas - Parte Vidas e Lutas Ameaçadas
Entrevista de Flávio Vicente Machado
Entrevistado por Bruna Oliveira (P/1) e Paulo Endo (P/2)
Dourados, dia 7 de junho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1475
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Eu queria que você começasse apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Me chamo Flávio Vicente Machado. Nasci em Nova Odessa, Americana. Tenho 43 anos. E qual que era a outra pergunta?
P/1 - Qual foi o ano do seu nascimento?
R - 14 de janeiro de 1982.
P/1 - E me conta como era o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chama Mauro Vicente Machado, minha mãe Letícia de Fátima Quirino Machado.
P/1 - Como você descreveria eles?
R - Assim já de… Meu pai, a imagem que eu tenho dele é do homem trabalhador. E minha mãe, de uma mulher dedicada às causas consideradas, às vezes, perdidas também, porque ela sempre foi muito amiga das pessoas excluídas da sociedade. Os dois já são falecidos. Minha mãe desenvolveu uma doença degenerativa chamada Huntington, uma doença rara. E meu pai desenvolveu um câncer e também faleceu há dez anos. Trabalhou até quando não conseguia mais. E é isso.
P/1 - Com o que eles trabalhavam?
R - Meu pai era mecânico de tecelagem. Trabalhava consertando máquinas de tecelagem, mais agora no final. Mas ele começa nas fazendas. Minha família paterna é afrodescendente. Meus avós e meu pai nasceram na fazenda. Eles sempre trabalharam no interior de São Paulo. Meus tios nasceram tudo nessas fazendas e de lá ele migrou para São Paulo, no interior, tentando novas oportunidades. Minha mãe veio de Minas, meus avós, minha avó Carminha era de Varginha, meu avô de Campo Gerais, meu avô José Alfredo, e eles migraram então para Nova Odessa, em busca também de novas oportunidades, enfim. E é onde se conheceram.
P/1 - Você estava falando que sua mãe, de alguma forma, trabalhava em causas...
R - É, a...
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Entrevista de Flávio Vicente Machado
Entrevistado por Bruna Oliveira (P/1) e Paulo Endo (P/2)
Dourados, dia 7 de junho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1475
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Eu queria que você começasse apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Me chamo Flávio Vicente Machado. Nasci em Nova Odessa, Americana. Tenho 43 anos. E qual que era a outra pergunta?
P/1 - Qual foi o ano do seu nascimento?
R - 14 de janeiro de 1982.
P/1 - E me conta como era o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chama Mauro Vicente Machado, minha mãe Letícia de Fátima Quirino Machado.
P/1 - Como você descreveria eles?
R - Assim já de… Meu pai, a imagem que eu tenho dele é do homem trabalhador. E minha mãe, de uma mulher dedicada às causas consideradas, às vezes, perdidas também, porque ela sempre foi muito amiga das pessoas excluídas da sociedade. Os dois já são falecidos. Minha mãe desenvolveu uma doença degenerativa chamada Huntington, uma doença rara. E meu pai desenvolveu um câncer e também faleceu há dez anos. Trabalhou até quando não conseguia mais. E é isso.
P/1 - Com o que eles trabalhavam?
R - Meu pai era mecânico de tecelagem. Trabalhava consertando máquinas de tecelagem, mais agora no final. Mas ele começa nas fazendas. Minha família paterna é afrodescendente. Meus avós e meu pai nasceram na fazenda. Eles sempre trabalharam no interior de São Paulo. Meus tios nasceram tudo nessas fazendas e de lá ele migrou para São Paulo, no interior, tentando novas oportunidades. Minha mãe veio de Minas, meus avós, minha avó Carminha era de Varginha, meu avô de Campo Gerais, meu avô José Alfredo, e eles migraram então para Nova Odessa, em busca também de novas oportunidades, enfim. E é onde se conheceram.
P/1 - Você estava falando que sua mãe, de alguma forma, trabalhava em causas...
R - É, a minha mãe sempre... Bom, eles se casaram, né? E aí meu pai foi trabalhar, voltou a trabalhar na fazenda, na colheita de café. E essa é uma das primeiras memórias que eu tenho. É interessante recordar... Trabalhava na fazenda de café, e eu havia recém-nascido. Eu lembro que a primeira memória que eu tenho é que eles me colocavam debaixo do pé de café para esperar eles durante o dia trabalhando. E numa dessas vezes eu comecei a mexer com uma mangueira e depois minha mãe disse que era uma cobra. E aí essa situação difícil ali de trabalhar na fazenda dos cafés, na colheita do café, minha mãe não suportou muito. E embora ela amasse muito meu pai, ela decidiu se separar. E isso foi um marco na minha vida, porque daí eu... Passei a viver na família, digamos assim. Uma hora eu estava com o tio, uma hora estava com o avô, uma hora estava com a mãe, uma hora estava com o pai. Então eu fui passando por vários membros da minha família ao longo da minha infância. E minha mãe tinha uma proximidade muito grande com prostitutas, com gays, durante a noite, amizades, e isso sempre foi muito incompreendido pela minha família. E ajudava todo mundo. Realmente, ela se desfazia das coisas dela pros outros, assim. Então, nunca teve nada, assim, nunca. Só que eu fui entender isso tarde também. Fui entender isso tarde, esse compromisso dela com as pessoas que eram excluídas. E que ela fazia isso justamente por conta disso, porque essas pessoas eram excluídas. Então, na minha adolescência mesmo, eu tive dificuldade de entender isso em alguns momentos. E muito também pela pressão da minha família, que minha família sempre falava as coisas. Só na faculdade que eu entendi isso. O que significava o trabalho dela, o que significava. Então, a minha infância foi assim, vivendo com meus avós, com meus tios. Em cada período, eu tenho muito forte isso. Isso também gerou uma vontade de estar junto com eles, enfim. Aí, com 13, 14 anos ingresso no seminário. Na verdade, com 7 anos eu começo a ser coroinha na igreja. E é uma coisa que, para mim, fazia muito sentido, de ajudar na igreja. O padre, meu pároco, que é o padre Vítor, ele foi muito importante na minha vida, na formação, de entender também a nossa pobreza, de ajudar a gente na nossa pobreza, de fazer vários gestos de cuidado, de testemunho. Então ele é uma pessoa muito importante na minha vida. Agora ele vai fazer 70 anos de padre, então ele já tem 90 e alguma coisa. E por conta dele eu entrei no seminário dos Filhos da Caridade. É uma congregação voltada para trabalhar com os pobres. E fiquei 10 anos lá, nessa congregação. Lá eu fiz o ensino médio, e fiz a faculdade. Eu fui o primeiro da minha família a fazer faculdade e por conta do seminário. E me tornei Irmão Canossiano, que é o nome. E aí depois de um ano, um ano e meio, eu pedi para fazer uma experiência fora. Posso seguir?
P/1 - Eu queria te perguntar uma coisa antes. Qual era o significado da religião e da fé nessa época para você?
R - Foi um encontro aos sete, oito anos, quando eu entrei. Minha família não ia na igreja. Meu pai trabalhava o dia todo. A minha tia, que eu vivia com ela, tinha que cuidar de quatro crianças e cinco comigo. E aqui agradeço muito ela, minha tia Nenê. Inclusive, num período da minha infância, chegou até a me amamentar, porque a minha mãe teve problemas. E ela me amamentou também. E aí, eu não me lembro bem, mas uma senhora, minha vizinha, convidou pra eu ir na igreja com ela. E eu passei a gostar. E aí me colocaram pra tocar o sino antes da missa, pra chamar o povo, e eu me sentia muito bem fazendo isso. E aí comecei a entrar, e aí o padre Victor me chamou pra ser coroinha, e eu não saí mais. Aí eu conheci minha madrinha da igreja, dona Lourdes, foi quem fez minha primeira batina. E aí eu ingressei na igreja, fui contribuindo nos espaços, ajudava na coordenação dos coroinhas, depois, catequese, até ingressar no seminário. Então, a religião, ela me encontrou, na verdade. Meus pais eram católicos, mas não eram praticantes. E aí, na igreja, foi um lugar que eu encontrei uma identidade também, onde eu me reconhecia, e principalmente nesses trabalhos voltados com as comunidades, com os coroinhas, a gente fazia passeio com as crianças, era uma coisa que me completava muito, de poder ajudar nas missas, enfim.
P/1 - Tem uma memória dessa época que tenha sido marcante para vocês?
R - Tem vários. Os passeios eram sempre muito fortes. Na minha paróquia tinha mil coroinhas. Então, eram sempre dez, quinze ônibus para poder levar para os passeios. E era um esforço gigante. Então, essas memórias são muito fortes. Uma que me vem sempre assim são os gestos do Padre Vítor. Eu não conseguia perceber que a gente era extremamente pobre. Não sei se é porque o meu pai nunca deixou faltar nada. Mas hoje eu entendo que ele percebia. Ele me levava, ele ganhava as coisas e reservava para mim uma camiseta, uma calça, enfim. Hoje eu sei que ele não fazia só comigo, não era só o Flávio, era com todo mundo. Tanto que ele é uma referência histórica da nossa cidade. Tudo lá tem nome dele. Porque não era só comigo. Mas, para mim, são as memórias que tenho desse período.
P/1 - E essa decisão de passar um período fora, como foi tomada?
R - Eu entrei muito jovem, 14 anos, e embora eu já trabalhasse, comecei a trabalhar com 11 anos. Com 10 anos eu participava de uma organização social de guardinhas lá na minha cidade. E aí com 11, 12 anos a gente já podia trabalhar em algumas empresas. E eu comecei a trabalhar numa empresa de fabricação de camas lá na minha cidade. E comecei na produção ali, ajudando a lixar a cama, essas coisas. Depois passei pra parte de armários planejados. E terminei na parte do escritório, ajudando em serviços de banco, essas coisas assim. E era uma coisa que eu gostava muito também, trabalhar nessa empresa, porque era a empresa que tinha mais guardinha, então formávamos uma turma nessa empresa. Mas eu fui no seminário naquela época, entrava no ensino médio, na congregação, no propedêutico, e aí já ia para o ensino médio com uns 14 anos. E aí foi quando surgiu o convite, comecei a fazer o encontro vocacional e decidi ir. Aí a minha saída, depois de 10 anos, foi por conta disso. Eu sentia que faltavam algumas experiências que ajudariam a fortalecer a minha vocação. Aí eu pedi um ano. Eu saí em fevereiro de 2006. Aí eu fui acolhido por uma família lá em Araras, que é onde eu morava. Na congregação, antes de eu sair, eu trabalhava, era diretor de uma obra social em Araras, que trabalhava com crianças da periferia. E fiquei um ano, um ano e pouquinho lá, nessa obra do Oratório Irmão Tarcísio. E aí, quando eu saí, uma família ali, que era próxima da gente, me acolheu numa casa deles. Porque eu também não queria ficar longe das atividades. Eu queria estar meio perto, enfim, porque eu saí em fevereiro, e a congregação não prepara você pra sair, ela prepara você pra ser padre, pra ser religioso. E aí, depois de alguns meses que eu saí, eu entrei numa crise muito grande, assim, porque é isso, era enfrentar o mundo, não conseguir emprego. E também, quando você é religioso, você tem uma relação política dentro da igreja, que não existia mais, enfim. E aí eu, então, me mudo para Ribeirão Preto. E lá em Ribeirão, uma outra família me acolhe. Eu também começo umas experiências ali de tentar emprego, mas também não rola. E aí eu tinha feito um compromisso de, daquele ano, participar de uma romaria, que é a romaria dos mártires, que eu sempre me identifiquei muito com essa teologia da libertação. E dentro da teologia da libertação tem uma referência à memória dos mártires, das pessoas que deram suas vidas pelas causas, muito forte. E a cada cinco anos acontece essa romaria, em Ribeirão Cascalheira, que é onde foi assassinado o padre João Bosco. Ele estava junto com o Dom Pedro, Dom Pedro Casaldáliga, que é uma referência para nós da teologia da libertação. E o assassinato dele gerou, então, essa romaria e a constituição do Santuário dos Mártires. E eu tinha feito compromisso de ir, e ela era no meio do ano, e eu não trabalhava, não tinha como ir, não tinha dinheiro. Então eu decidi ir caminhando. E aí eu fiz a experiência de peregrinação de um mês. Saí do interior de São Paulo, morava em Ribeirão Preto nessa época. E eu fui caminhando até Ribeirão Cascalheira, lá no interior de Mato Grosso. Foram 17 dias, assim, ao todo. E aí caminhava, pegava carona, dormia onde dava. Tentava fazer alguns pontos nos meus amigos, enfim... Porque eu tava realmente perdido nesse período, né? Eu não sabia o que ia ser da minha vida. Enfim, tava bem perdido. E aí, nessa romaria, quando eu cheguei lá, eu pude chegar duas semanas antes, então eu trabalhei lá, ajudando a montar as coisas junto com as equipes, e foi muito importante para mim. E aí, dessa Romaria, eu recebi três propostas de trabalho. Uma era do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), nas aldeias Xavantes, de ajudar com a língua portuguesa. O Tião era o coordenador lá e a gente foi para a aldeia junto e ele convidou para fazer essa experiência. Fiquei entusiasmadíssimo. Recebi uma de uma irmã, da irmã Ione, que eu conheci no mosteiro de Goiás Velho, e ela tinha uma ONG em Ribeirão Preto, que trabalhava com catadores, e ela sugeriu de eu ir lá conversar com eles para tentar me encaixar. E eu fui lá conhecer o trabalho delas. E a terceira foi, estava começando uma aliança entre a Pastoral da Criança e a Pastoral da Juventude, para enviar missionários para o Nordeste e para o Norte, para trabalhar em municípios com os mais baixos IDH. E eles estavam fazendo essa aliança entre as duas pastorais nacionais e precisavam de alguém para ajudar. E eu era ligado à Pastoral da Juventude. Ribeirão Preto, eu ajudei na coordenação da diocese, com a equipe. Então, eu era ligado à PJ. Então, o pessoal da Pastoral da Juventude me conhecia e me convidaram para ajudar nesses diálogos. E eu topei. Então, entre os três, eu acabei topando essa porque tinha mais a ver comigo, assim, aqui na Juventude, naquele momento e tal. E aí, já em outubro tinha a formação dos missionários que iam. E eram jovens. E a gente esperava cinco, seis jovens para essa experiência e, ao final, tinham mais de cem inscritos para passar um ano nesses locais. E a gente se viu desesperado, porque como é que você ia trabalhar com cem jovens? Mas acabou dando certo. Só que nessa experiência eu conheci a Lídia. Lídia era uma das jovens que veio no grupo do Pará. O Pará tinha um grupo grande, acho que eram uns 10, 15 jovens. A Lídia veio e a gente foi para esse encontro de formação de um mês, em Uruaçu, no interior de Goiás. E aí eu me apaixonei por ela. E acho que ela se apaixonou por mim também na época. E a gente começou a sair, a namorar. E aí eu desisti da parte de articulação e me inseri numa comunidade missionária, porque eu queria ficar perto dela, não queria morar junto, mas eu queria ficar perto. Então, nós fomos enviados para o Ceará. Ela trabalhava numa comunidade no sertão, porque as comunidades eram formadas por jovens. Então, tinha sempre alguém da Pastoral da Criança, porque o nosso objetivo era, nesses municípios, fundar a Pastoral da Criança e fundar a Pastoral da Juventude. Então, as comunidades eram formadas por pessoas da Pastoral da Criança, que tinha esse objetivo, e da Pastoral da Juventude, com o objetivo de articular os jovens. Ela foi para o interior do Ceará, no sertão, e eu fiquei mais perto de Fortaleza. E a gente morou um ano lá, com esse trabalho. O projeto era sempre um ano. E a gente se via sempre nos feriados. Fomos se conhecendo mais, aprofundando a nossa relação, tudo. A gente decide repetir a experiência no ano seguinte, daí nos mandam para o Maranhão. Aí novamente ela vai para o interior do Maranhão e eu fico mais perto de São Luís, ali na região dos Lençóis, ali naquela região. E durante um ano a gente trabalha também nessa… E aí a gente meio que cansou, queria fazer outras experiências. E a Lídia vem de Altamira, no Pará, que na época era o bispo de Altamira, era o Dom Erwin, e ele era o presidente do CIMI. Então a Lídia também tinha uns contatos com as questões indígenas, e ela falou: "Olha, a gente poderia tentar procurar o CIMI". E a gente não queria sair do Nordeste, das questões do Maranhão, a gente gostava muito do Maranhão. Eu trabalhei num município lá em Santo Amaro, que não tinha energia, o município todo não tinha energia, e carne chegava uma vez por mês, de barco por São Luís, pra você chegar no município só com uma caminhonete. Então era uma coisa incrível, assim, porque as casas não tinham portas, porque não precisava, todo mundo se conhecia. Todo mundo sabia quem chegava, porque pra chegar na cidade era horas e horas, então só aquela caminhonete levava as pessoas pra lá, naquela época. E a gente queria continuar nesse mundo, né? Daí a gente contata a equipe do CIMI em São Luís.
P/1 - Antes da gente entrar na parte do CIMI, eu tenho duas perguntas: uma é, como foi pra você e pra ela, acho que a gente não vai poder ouvir ela, como foi para você, e o que você sabe dela, essas experiências das pastorais?
R - Para mim foi muito forte, porque a gente ia para municípios muito pobres. Eu trabalhei, por exemplo, no Ceará, foi em Chorozinho. E a gente trabalhava com o interior das comunidades. Era realmente muita pobreza. E ela também. No Maranhão, eu morava em Presidente Juscelino e atendia aquela região, que é a região continental da Diocese, que pega Santo Amaro, enfim. E foi uma experiência muito forte de contato com o povo, direto com o povo. Ela sofreu muito no Maranhão, principalmente, porque era uma comunidade muito isolada, ficava a 70 quilômetros do município. Então, se acontecesse alguma coisa com você, era muito difícil. Tinha que pegar um cavalo, ou se alguém tivesse moto, alguma coisa assim. Então, foi uma imersão na vida do povo mesmo, dessa região. E, para ela, foi difícil. Também a comunidade era a única mulher do grupo. Mas, de maneira geral, foi uma experiência que marcou a nossa vida. E a gente não continuou mesmo porque a gente queria estar juntos, começar um caminho juntos. Então a gente procura o CIMI no Maranhão, participa de uma assembleia deles. E, nessa assembleia, estava presente o vice-presidente lá do CIMI. E, nas conversas, enfim, nos aprofundamentos, ele falou: “Olha, pelo perfil de vocês, talvez seria mais interessante se vocês fossem para o Mato Grosso do Sul”. “Mato Grosso do Sul? O que é isso, né? Onde que fica o Mato Grosso do Sul?” A gente ficou meio assim, assustado. A gente falou: “Não, a gente achava que tinha que ser aqui mesmo”. Mas lá no Maranhão tem um grupo muito bom do CIMI, as companheiras, as mulheres lá, as coordenadoras são umas queridas, e a gente queria ficar nesse meio junto. Mas daí a gente acordou de vir visitar o Mato Grosso do Sul, uma semana, para a gente conhecer, saber onde ficava esse lugar no Brasil. E aí a gente veio, e quem nos recebeu no aeroporto foi o Egon, Egon Heck, que é um dos fundadores do CIMI. E eu lembrei dele lá da Romaria dos Mártires, há 4, 5 anos atrás, de ter visto ele. E ele nos recebe. E a gente já vem pra uma reunião no Passo Piraju, que é uma comunidade aqui, quando vai pra Guyraroká, fica antes, um pouquinho na ponte ali, fica o Passo Piraju, porque eles tinham sido atacados e tinham sido processados. O Passo Piraju tem lá o Carlito, que acho que era um nome também muito forte, talvez, para vocês entrevistarem. Numa noite, homens armados entraram na aldeia para expulsá-los da retomada, de onde eles estavam. E no confronto com os indígenas, dois desses homens morreram. Um no contato direto com um dos indígenas, no confronto corpo a corpo, e um outro que tentou... Quando foi atirar no indígena, o indígena bateu o pau e o tiro acertou na perna de um desses pistoleiros. E ele sangrou e morreu. Dias depois se descobre que essas pessoas eram todas policiais militares. E aí você já imagina o que aconteceu. A comunidade foi criminalizada, torturada, apanharam inúmeras vezes. E a gente foi lá ouvi-los, nesse caso. E aí a gente falou: “Não, é aqui que a gente tem que estar”. E a gente decidiu vir para cá, Lídia e eu, em 2009.
P/1 - Você já conhecia o trabalho do CIMI?
R - Ela conhecia em Altamira, distante, mas sabia do que era o mundo indígena. E eu conheci lá em Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso. Mas, como não entrei, não fiquei. A gente veio conhecer, de fato, o CIMI aqui. Era para a gente morar em Dourados, porque aqui só tinha um companheiro aqui em Dourados. Então a gente ia ficar um mês em Campo Grande para poder se inteirar um pouco das coisas, que em Campo Grande é a nossa sede regional. E a gente ia ser enviado para cá. E é o que a gente queria, a gente queria estar perto das comunidades aqui.
P/2 - Flávio, pergunta para você. Você falou de duas características que marcaram, ou que você se lembra, mas certamente marcaram, da sua mãe e do seu pai. Seu pai era um trabalhador e sua mãe era uma pessoa preocupada com populações ou vulneráveis ou excluídas. De que maneira, se é que isso aconteceu, você acha que isso ficou em você e interferiu nas suas decisões?
R - Depois que eles faleceram, eu comecei a identificar esses pontos e fazer uma revisão da minha história de entender que a minha aproximação com esses trabalhos sociais, de ter entrado numa congregação que é voltada para os pobres, de ter entrado num projeto social para trabalhar com pobres no Norte, no Nordeste, e de estar no CIMI agora, tem tudo a ver com eles. E com elementos que muitas vezes eu fui crítico. Eu cheguei a sentir, em alguns momentos, vergonha, por exemplo, da minha mãe, das relações com ela, porque eu era adolescente, criança, adolescente, e não conseguia entender. E era isso. A minha família gerava uma pressão muito grande de críticas, de não aceitação do jeito dela. Mas hoje eu entendo que se eu posso dizer que eu tenho uma paixão por isso, se eu tenho esse compromisso também despreocupado em querer, sei lá, acumular, de estar a serviço mesmo, é devido a eles, né? Meu pai, pra trabalhar, ele capelava duas horas pra ir e duas horas pra voltar. Quando não, tinha que ir a pé. A pé pra ir e a pé pra voltar. Até quando não aguentou mais, caiu de dores e a gente descobriu que era um câncer e três meses depois ele faleceu. E de começar a observar como é que eles sofreram. Por exemplo, quando eu saía com meus primos, nossos amigos, teve uma vez que a gente saiu de uma balada, de um clube, à noite, e a polícia nos parou. E eu fui o único que não sofri abordagem. E eu estava junto com eles. Meus primos negros foram todos abordados. Então, eu não tinha consciência política do que era isso. Hoje, eu tenho. Hoje, obviamente, eu sei que era preconceito, racismo, tudo isso. E quando eu fui... Na faculdade que eu fui adquirindo, que daí eu fiz filosofia, no seminário, e eu fui ganhando mais consciência dessas questões, eu perguntei para o meu pai um dia: “Pai, você já sofreu racismo?”, eu perguntando para um homem negro se ele já tinha sofrido racismo. E ele disse que não. E aí eu entendi que, de como a minha família, para sobreviver, eles construíram uma resistência muito forte, um cara como um forte mesmo, que bloqueia, eles não enfrentam, mas também não aceitam, então fica... É isso, eles aprenderam a fingir que não veem uma coisa assim, sabe? E acho que tudo isso me molda, e cada vez que eu ganho mais consciência disso, reforça mais ainda o meu compromisso, meu estilo de vida, minha vontade de estar sempre disponível para ajudar. E de também não... Quem é do meu núcleo mais de confiança, que me relaciona comigo todos os dias, meus companheiros e companheiras do CIMI, e algum outro amigo, conhece muito as minhas capacidades, mas, para fora disso, sou muito tímido, muito reservado também.
P/1 - Flávio, como foi chegar aqui na comunidade indígena que você chegou, num processo de retomada após um ataque. Como foi chegar nesse cenário, nessa situação?
R - Situações que eu nunca vi. Logo na primeira semana, nos primeiros 15 dias que a gente chegou, que a Lídia chegou, eu cheguei primeiro e a Lídia veio dias depois. Nós estávamos com uma atividade da campanha Guarani, e uma liderança foi morta mais ao sul, e os Guarani disseram: “Ela foi morta e foi desovada na rodovia”, e os Guarani fecharam a rodovia e disseram que só iam liberar a hora que a gente chegasse, o CIMI chegasse. E a gente estava aqui na região de Dourados, com essa atividade, com a comunidade reunida, a gente não tinha como simplesmente dizer: “Olha, a gente não dá para ir agora, mas a gente vai”. As comunicações eram sempre difíceis também, não era como hoje. E eles mantiveram o corpo um dia e meio na beira da rodovia até a nossa chegada. Era muito frio. Isso ajudou a conservar um pouco, eu acho. E a gente, quando chegou, a gente sentiu o peso da missão aqui. Porque tamanha (era) a confiança dessa comunidade. “Não só vocês podem vir…” O CIMI, né? Porque eu tava chegando. Então, era os companheiros que tavam aqui. Era o Egon que tava aqui, que essa era a referência. E a gente fez foto. Nunca tinha tido tanta proximidade com o cadáver. A gente fez foto do corpo. Oswaldo Lopes, chamava. Um jovem. No dia seguinte, a Lídia passou mal, desmaiou. Foi muito forte pra ela. Mas reforçou o nosso compromisso. “Não, é aqui que a gente veio ficar”. E aí a gente acabou não vindo para Dourados. Campo Grande precisou da gente lá, na parte do escritório, porque era só o companheiro que fazia isso e uma irmã. E aí a gente ficou cinco anos lá seis anos em Campo Grande. E aí foi quando me pediram para ajudar na coordenação do regional. E aí a gente começa, então, a articular as lutas, ajudar os Guaranis nas lutas, os companheiros. O Egon sofre uma perseguição aqui, depois da morte do Nízio Gomes, em 2011, ameaças, e aí ele decide ir para Brasília, com a companheira dele, por conta das ameaças. E aí a gente acaba ficando sozinho, no sentido, sem esse irmão mais velho, mas a gente tinha o Geraldo, que era um outro companheiro também com bastante tempo no CIMI, que vivia aqui em Dourados. E aí começa uma reestruturação, a gente começa a envolver mais irmãs, mais leigos, e o CIMI se reestrutura. E aí um companheiro nosso, o Geraldo, é eleito para a coordenação, aí ele vai para Campo Grande. O Matias, que é o atual coordenador, faz parte dessa coordenação, vai pra Campo Grande também. E aí a gente decide vir pra Dourados, aí finalmente a gente vem pra Dourados. E estamos aqui já há sete anos.
P/1 - Nessa época em Campo Grande, você tinha contato com as populações indígenas do Mato Grosso do Sul, então?
R - Isso, é. A equipe de Campo Grande tem um trabalho mais regional, né, no estado todo. Aí trabalha tanto com os Guarani-Kaiowá aqui. Principalmente quando não tinha uma equipe constituída forte aqui, só tínhamos um companheiro aqui. Mas também com os povos do Pantanal, os Terena, os Kadiwéu, enfim. Então a equipe lá faz esse trabalho um pouco mais regional. E aí os Kaiowá, a T.I. Guaçu, ela nos demanda muito. E a gente começa um caminho de fortalecimento das lutas, de apoiar as retomadas, apoiar as idas para Brasília, as incidências. E tem um campo que a gente também desenvolve, que é o campo internacional, seguindo os Kaiowás, porque os Kaiowás já faziam tudo isso. O que a gente faz é ampliar, dar mais sistematização, apoiar mais idas deles. E aí essa experiência do Kaiowá, na questão internacional, ela também inicia uma nova fase dentro do CIMI, na questão internacional. Então, do CIMI buscar reconhecimento na ONU, a gente apoia, ajuda o CIMI ali no processo de conquista do status consultivo em 2016. Aí o CIMI é reconhecido então com esse status. A partir disso a gente começa a trabalhar diretamente com o Conselho de Direitos Humanos da ONU. E aí a cada três meses tem uma liderança Kaiowá que vai para o Conselho ou que faz uma declaração no Conselho. Ou alguma liderança indígena que participa do Conselho. Outros casos nacionais acabam entrando também nessa dinâmica. E aí a gente começa a ampliar essa ação internacional e em nível de entidade. E aí hoje tem uma equipe de incidência internacional no CIMI, que cuida justamente dessa relação com a ONU, com a Comissão Interamericana, enfim. E desde fevereiro eu tenho contribuído na coordenação dessa equipe. Basicamente é isso.
P/2 - Quais os problemas que vocês enfrentam, você enfrenta pessoalmente por estarem nessa causa, que questões você tem sobre essa luta?
R - O CIMI, desde a sua origem, desde o seu nascimento, por estar próxima aos povos indígenas, por ser aliada aos povos indígenas, a perseguição que os povos indígenas sofrem se estende também à entidade, ou a todos aqueles que se levantam na defesa dessas pessoas. Então, ao longo da história do CIMI, a gente teve vários companheiros que foram mortos por conta desse compromisso. A irmã Cleusa, o irmão Vicente Cañas, no Mato Grosso, o próprio padre João Bosco era da coordenação do CIMI, o padre Rodolfo. Então eram missionários que, por esse compromisso, foram mortos. Aqui no Mato Grosso nós tivemos um missionário que desapareceu, de uma maneira misteriosa, e até hoje a família busca por ele. Então, essa perseguição se estende a nós. Nós temos consciência de que a luta, o protagonismo, não é nosso. O protagonismo é dos povos indígenas, dos povos originais. No nosso caso específico aqui, dos Kaiowá. Então a gente procura se colocar também sempre numa retaguarda. Porque por mais que a gente possa dizer que nos sentimos ameaçados e perseguidos. Bom, tivemos uma CPI aqui contra nós, especificamente contra o CIMI. Já tive que me dar de casa algumas vezes por conta de ameaça. Mas isso não se compara em nada ao que os Guarani passam diariamente. Diariamente. As ameaças... Todo líder religioso, todo nhanderu ou nhandesy, é uma pessoa marcada para morrer. Só por ser o que eles são. Então eu tenho muito cuidado também de dar onde me colocar pra não retirar o protagonismo deles, não correr esse risco, de tá, então agora tem um não índio ameaçado, então isso repercute. Enquanto, na verdade, quem morre são eles, de fato, assim. Então, a gente tem um respeito e uma... A gente trata esse espaço que eles nos dão com muito sagrado, com muito respeito. Um compromisso muito forte. Mas, sim, depois que passa a violência, ou mesmo ainda durante a violência, em vários momentos nós estivemos nos momentos dos ataques, nos momentos que eles eram atacados, tentando fazer alguma coisa, tentando chamar a polícia, tentando chamar governo, político, autoridade, enfim. Porque é uma sensação de incapacidade também que a gente sente. De nessas horas a gente não saber quem mobilizar. Daí eu acho que a importância da igreja nesse sentido, por conta da influência política que ela exerce na sociedade. Então, o ano passado, quando esse jovem foi morto com um tiro na cabeça, lá em Marangatu, por um policial da elite da Polícia Militar do estado de Mato Grosso do Sul. E o nosso presidente, um cardeal da igreja, vem e pisa ali onde ele derramou o sangue dele, para nós é muito forte. É um testemunho muito forte de estar junto com essas pessoas, de testemunhar que a luta deles não é só para benefício deles, mas é de todos nós, ainda mais nesse tempo de crise ambiental, climática.
P/2 - Flávio, você tem sua companheira também ativista, e você tem filhos, uma família aqui em Dourados. Como esse ativismo impacta a sua família?
R - De fato, a nossa filha nasceu em 2010, um ano e pouquinho depois que a gente chegou, dois anos quase, e ela foi inserida nesse contexto. E ela pegou um período em que eu estava começando na coordenação do regional. E hoje eu tenho a memória, por exemplo, dela pedir colo, às vezes, e a gente está envolvido, resolvendo coisas, enfim... E eu distraía ela para não ter que pegá-la no colo. E hoje eu... Na época eu não percebi o quanto que isso era impactante para ela. Eu lembro que ela tinha um ano e meio, dois, e ela ficava de castigo já, atrás da porta. E muitas vezes por estar nos atrapalhando no nosso trabalho. Porque ela ia pro escritório com a gente. A gente não tinha com quem deixá-la. E aí ela ia pro CIMI com a gente. Pra aldeia, todo momento. Tinha o lugar dela no carro já reservado. Ela aprendeu a andar na aldeia. E assim é com todos os filhos do CIMI, dos casais do CIMI, dos leigos do CIMI. Os filhos estão juntos na luta, não tem muito o que fazer. E aí o Erwin vem depois, quatro anos depois.
P/1 - Qual é o nome dos seus filhos?
R - A Isis e o Erwin. E aí, com o Erwin, eu já não tô mais na coordenação do regional, e aí eu sinto que foi um pouco diferente, embora é um pouco aquilo que eu partilhava com vocês, eu sinto também o compromisso deles com a justiça. Eu acho que aprenderam com os Guaranis nesse sentido, com o que a gente faz. E a gente deseja que eles sigam nesse caminho, que eles sejam pessoas boas, comprometidas. Não sei se eu te respondi, mas não tenho o costume de falar de mim. É estranho falar.
P/2 - É porque você tinha mencionado que a Lídia, logo o primeiro impacto dela, quando ela chega aqui, e essas situações, limites, no dia seguinte ela desmaia e não suporta.
R - Foi muito forte.
P/2 - Como eu acho que inúmeras situações que vocês vivem são insuportáveis, de algum jeito.
R - Na época da CPI, por exemplo, que era uma perseguição clara, uma injustiça clara que nos indignava, mas que a gente tinha clareza também do que eles queriam, do mal que eles queriam nos fazer. E isso foi pesado, sobretudo para ela, de ver os nossos filhos expostos no ambiente da CPI, as fotos, nossas fotos circulando. E, quando digo, não é só do Flávio e da Lídia, mas de todo o CIMI aqui. Porque é isso, nós somos um corpo, não é uma pessoa, é um corpo que está junto, que trabalha junto. E isso foi muito forte, sobretudo para ela, de ver nossos filhos expostos nisso. Eu achei que a gente ia até ir embora naquele período daqui, mas o nosso compromisso com os Kaiowá segurou a gente. Nos propuseram, inclusive, da gente ir para um outro regional trabalhar e a gente acabou não topando. Depois que passou a CPI, a gente decidiu ficar mesmo. E vários momentos. Eu, particularmente, tento alguns cuidados, porque eu sei que, se de fato a coisa apertar mesmo, talvez isso nem queria dizer, mas, enfim, prefiro não dizer.
P/2 - Por que vocês, de alguma maneira, incorporaram essa estratégia de luta Guarani: vocês saem e voltam, né?
R - Exato. A gente aprendeu a ser CIMI com os Guaranis, a partir do que os Guaranis exigiam, das demandas, de você estar todo o tempo disposto, disponível. Porque a situação aqui é constante. E agora com os grupos de comunicação, as coisas fluem muito rápido. Chega muito rápido, as informações circulam. Eles têm muito aliados, isso é muito importante também. Quando a gente chegou, tinha mais claro que o CIMI era o principal aliado, hoje já existem outros aliados também que se somam, diante da gravidade dessa crise humanitária que está colocada sobre eles. Felizmente já existe um grupo de aliados que você consegue também compartilhar também os tensionamentos. E, consequentemente, também esses aliados sofrem isso. O próprio MST, por exemplo, o compromisso deles com os Kaiowá também tem feito eles serem perseguidos. O CPT também, a Comissão Pastoral da Terra. Então, é uma luta conjunta mesmo, assim.
P/1 - Flávio, nesses momentos, desde que você chegou, desde que você e a Lídia chegaram, e acompanharam os Guarani-Kaiowá. Existiram momentos de maior tensão ou é uma tensão constante?
R - Constante. Mas os momentos dos assassinatos e dos ataques acabam sendo bem mais intensos. Tanto no nosso trabalho de atender a comunidade diretamente, no que está acontecendo, mas também na demanda que aquilo decorre, porque daí tem uma pressão grande, uma necessidade muito grande da imprensa, do poder público, de articulação. Então, são dias muito intensos de contar o que está acontecendo, de ouvir as lideranças, de ir para o local, escutar as vítimas e acolher os feridos. As irmãs nossas aqui têm um trabalho incrível de atender os feridos depois dessas coisas, depois que esses ataques ocorrem. Esses momentos são mais chave e isso nos marca. A primeira grande morte que me marcou, além dessa do Oswaldo, porque a do Oswaldo acabou nos impactando diretamente o contato com o morto. Mas aquela que, de fato, nos faz ter consciência da luta dos Kaiowás é quando assassinam o Nízio Gomes, que é o pai do Genito. Porque é a primeira de grande repercussão que a gente tem. E isso mexe muito com a gente, porque os Kaiowás estavam muito mobilizados nessa morte. Fizeram marchas, fizeram... Porque era um rezador sendo morto. E era um rezador reconhecido. E a esposa dele, a dona Adúlia, foi quem nos batizou, a Lídia e eu. E com uma reza quando eles estavam refugiados em Amambai. E a história deles ali, a primeira retomada que eles fizeram, eles fizeram a pé. Na segunda, de bicicleta. E o fazendeiro botou todas as bicicletas em cima do caminhão e trouxe de volta. Pra dizer que era uma família pequena que insistia com o seu ______. E na terceira ou quarta vez que eles tentam retomar, o Nízio é morto na frente da família. E repercutiu muito. E aí a morte do Nise é quem nos leva, quem me leva pela primeira vez a viajar nessas incidências. A gente vai para uma audiência na Comissão Interamericana. Os guaranis já viajavam muito, mas foi a primeira vez que eu fui com eles. E eu lembro que era um mês que tinha para tirar passaporte, organizar vistos, porque foi em Washington. Organizar vistos da liderança, minha. E eu demorei a decidir, porque era uma novidade muito grande. Eu nunca imaginei que... Eu não falava inglês, enfim... Nunca imaginei que ia ter essa situação. E num mês a gente conseguiu organizar toda a documentação e é a primeira audiência que os Kaiowá de fato fazem. E ele não parou mais. Teve várias outras audiências, articulações, enfim. E o fato é que os Kaiowás hoje talvez sejam um dos povos mais mencionados em relatórios internacionais da ONU, da própria comissão interamericana, por conta dessa incidência deles. Na época em que eu fazia uma pesquisa de mestrado, a gente fez um levantamento. Pelo menos 25 lideranças, nos últimos 15 anos, viajaram por alguma incidência internacional. E aí tiveram com presidentes, o presidente Macron, por exemplo, recebeu os Kaiowás, o Papa Francisco, a rainha da Bélgica, enfim, reis e rainhas receberam eles. E tudo isso por conta da gravidade que a situação aqui é. Os Kaiowás sempre tiveram maior quantidade de lideranças mortas, por exemplo. Durante o governo Bolsonaro, isso escalou. Não é que aqui diminuiu, mas é que em outras regiões aumentou, então acabou meio que gerando uma média. Aumentou, mas a violência aqui segue forte. E é essa gravidade que faz com que eles continuem resistindo e continuem ocupando esses espaços internacionais. Nacional e internacional. Porque, em Brasília, a presença dos Kaiowás sempre é uma presença muito diferenciada, muito forte. Então, eles têm um papel no movimento indígena nacional também muito singular.
P/3 - Eu tenho duas perguntas. Primeiro, quantas das comunidades que o CIMI atende e quais são as principais demandas das comunidades? Só para a gente ter um panorama maior.
R - A gente não conta muito como comunidade. A gente tem um grupo de comunidades que é prioritário, que são as retomadas, essas comunidades que se formam de tempos em tempos de maneira autônoma para retomar parte de seus territórios. São famílias normalmente refugiadas dentro das reservas, essas reservas que foram criadas pelo SPI. Esse é o nosso grupo prioritário, os que estão na linha de frente da luta pela terra. Depois vêm as aldeias e depois as reservas. A reserva, sobretudo de Dourados, de Caarapó e de Amambai, tiveram nos últimos anos uma atuação maior nossa por conta da violência que se instalou, se deflagrou nesses espaços. Então, a Amambai teve a retomada de Guapoy, em que a polícia militar atacou ali essa comunidade, sem decisão judicial, sem nada, e matou o Vitor, que era uma liderança dali, atirou sobre crianças de um helicóptero. Então a gente passou a atuar, a acompanhar Amambai. Ali em Caarapó também tem, foi a partir do massacre de Caarapó, que é quando o Clodiodi é morto. E aqui em Dourados, na reserva. Porque surgiu várias retomadas do entorno de Dourados. Por conta disso, a reserva não cabe mais ninguém, tá super populosa, tá transbordando agora. E aí, tem ao menos nove retomadas. E foram muito atacados. A gente registrou aqui, num único mês, pelo menos 19 ataques. E lideranças que tinham sido baleadas no mesmo mês, em dois lugares diferentes, na perna e no pé, no mesmo mês. Então a coisa ficou, de fato, muito forte. Então a gente calcula mais a atuação junto aos povos, os Guarani-Kaiowá, os Terena, os Kinikinau, de maneira mais prioritária. Os Kadiwéu quando eles nos procuram, os Ofaié também quando eles nos procuram, mas com todos eles há uma relação histórica de atuação, porque o CIMI tá aqui já vai fazer 50 anos no Mato Grosso do Sul. Mas a gente tem um pouco essa lógica. Então, se for ver, são todas as comunidades, aquelas que vão emergir nos conflitos, são as que vão entrando na nossa linha de prioridade. Por conta disso, que o objetivo principal do CIMI é apoiar essas comunidades na luta pela terra. Porque a gente entende que a terra é a estrutura básica que vai garantir todo o resto. Vai garantir a cultura, vai garantir os direitos, vai garantir a saúde, o futuro dessa população. E a outra?
P/3 - A outras eram as principais demandas dessas comunidades.
R - A gente tem os acampamentos, que são esses que estão na luta pela terra, que eles sempre surgem acampamentos e retomados a todo momento. Conforme as famílias conseguem forças internas, elas partem para a ação. Então hoje a gente calcula que tem em torno de uns 40 acampamentos e alguns deles são ainda na beira da rodovia. E aí a gente tem dado prioridade para esses acampamentos também. Então nós, articular forças, por exemplo, relacionadas à alimentação, então a gente cobrar do governo que o governo apoie eles com acesso a cestas básicas, a alimentação específica, porque... É isso. Os Kaiowás não têm terra mais pra plantar. E aí você tem uma situação de que um povo inteiro, 60 mil pessoas, vivem de cesta básica, dadas pelo governo. E aí, então, eles estão sujeitos às políticas que estão por trás disso, às politicagens que estão por trás disso. Então, quando o governo para com as cestas básicas, escala a fome. E a gente recebe muita demanda de comida. Muita demanda de comida.
P/1 - Eu ia te perguntar... Eu tenho várias perguntas, mas eu vou normalmente cada vez. Quando a gente estava conversando informalmente antes, você citou vários nomes de lideranças e de Guaranis que foram assassinados. E eu lembro que você falou que você lembrava porque eram amigos. Eu queria que você falasse um pouco sobre isso.
R - De fato, as lideranças é muito forte quando são mortas, porque é de uma forma muito cruel. E quando você entende o que tem por trás daquela luta, do que eles querem, quando, por exemplo, eles ocupam a mata, porque eles não querem mais que sejam derrubadas as árvores, porque lá moram seres protetores. E aí eles... A conclusão que eu chego é que eles são convocados por esses seres protetores para proteger essa mata. E aí, quando vão, são mortos, por isso isso é muito forte. Os próprios Kaiowá, os Guarani e os Kaiowá, eles fizeram do morto uma estratégia de luta, de resistência. Então, a cada sangue que é derramado, eles fincam uma bandeira, fincam um xirú, que é um altar sagrado nesse local, e eles não saem mais. Então, essa resistência pra gente é muito simbólica. Então, eles mesmo nos vão transmitindo essas lideranças. E aí, depois de tantas viagens com eles, que eles vão relatando os nomes, a gente vai assumindo isso. Então, eles falam sempre do Marçal de Souza, assassinado em 83, com um tiro na boca. Algumas famílias falam muito também do Marcos Verón, que foi assassinado em 2003. Depois, o Dorvalino Rocha, o Dorival Benítez, em 2005. Em contextos diferentes, um era Kaiowá, morto no Marangatu, o outro era em Ñandeva, morto em Sombrerito. Então, regiões totalmente diferentes, assassinados. Vão completar 20 anos agora da morte deles e seguem impunes. Ninguém foi preso. E numa situação muito grave, porque... Aí, Xuretê Lopes, 2007, uma anciã, de uma ñandesy, que é morta com um tiro na frente da comunidade, também impune. O Ortiz Lopes, no ano seguinte. Em 2009, dois professores primos, o Rolindo e o Genivaldo Verá. E é o ano que a gente chega aqui. Foi muito impactante quando acharam o corpo do Genivaldo no rio, com traços de tortura, arrancaram o cabelo dele. E o Rolindo, até hoje, a gente não sabe onde está. Dois jovens que… Em 2010, o Denilson Barbosa foi pescar, o fazendeiro deu um tiro na cabeça dele, a comunidade retomou, pendurou aqui, está lá até hoje, sobre o túmulo dele. Em 2011, o Nízio Gomes. Em 2014, o Clodiodi. Em 2015, o Simeão Vilhalva, morto dez anos depois do Durvalino, nas mesmas circunstâncias. Aí tem o Vitor, o Márcio. O Márcio frequentou a nossa casa. O Nízio Gomes frequentou a nossa casa. Então, isso não tem como não marcar, e de você se relacionar hoje com as lideranças e saber que ela pode ser mais uma. Jovens agora com um protagonismo muito forte de luta pela terra. É isso.
P/1 - Você estava contando que o momento da CPI foi muito difícil, principalmente para a sua companheira. Queria que você contasse um pouco o que foi essa CPI.
R - Diante da impunidade da morte do Nízio Gomes e também dos assassinatos que vieram depois, eu não mencionei todos, tem outras lideranças. Houve uma unificação dos movimentos sociais aqui no estado e a gente começou uma campanha de denúncia do genocídio Guarani-Kaiowá. Uma campanha internacional. Denunciando o genocídio e de que os produtos do agronegócio daqui continham sangue dos Guarani-Kaiowá. E isso foi muito forte. E aí esse grupo de deputados ruralistas se uniram, juntamente apoiado por outros fazendeiros, e criaram essa CPI. Uma CPI que não tinha objeto, porque o CIMI não recebe recursos públicos, não é um órgão do Estado, não é uma empresa. Tanto que, depois que ela começa, a gente consegue suspendê-la em um primeiro momento. Mas foi um espaço para criminalizar o movimento indígena. Não o CIMI, embora fosse uma CPI contra o CIMI, eles queriam atacar o movimento indígena, queriam atacar os Guarani-Kaiowá. Queriam tentar desmantelar essa luta maior dos Guarani Kaiowá a partir de uma criminalização de um de seus aliados. Então isso ficou muito claro. E aí com isso também gera uma união nossa, mais ainda junto com os movimentos. E a gente consegue criar então a CPI do genocídio, em paralelo a ela. E aí as duas CPIs teve um período que aconteciam ao mesmo tempo. Tinham as sessões da CPI contra nós e as sessões da CPI de genocídio, e a gente incindindo nas duas. Houve um período em que a coisa ficou mais grave, no sentido de querer criminalizar mesmo, e a gente entendeu que era importante centrar na figura do nosso presidente, a defesa da entidade. E aí é isso. É o que eu posso dizer sobre isso. Mas perderam. Perderam no sentido de que a CPI foi anulada anos depois. Inclusive, eles deveriam ressarcir os cofres públicos por todo o custo que teve, os deputados deveriam ressarcir o povo, porque eles fizeram isso com o dinheiro do povo. Tentaram algum indiciamento, mas não tinha objeto, não tinha do que nos acusar. Ficou um papel muito ridículo para eles, mas enfim, nos fortaleceu muito, isso eu posso dizer. Mais pessoas vieram para o CIMI, mais organizações nos apoiaram, o próprio movimento indígena se saiu muito mais fortalecido disso. Então, assim, são umas positivas nesse aspecto, de eles não terem conseguido o que eles queriam. Não tiveram coragem, por exemplo, de invadir nossa sede. Enfim, é isso.
P/1 - Você estava contando um pouco dessa... Antes da gente conversar aqui, você estava contando um pouco das pressões que vocês sofrem, tanto pela luta, quanto pelo genocídio em si. Eu queria saber de onde vem essas pressões e também ameaças?
R - O principal inimigo dos povos indígenas são aqueles que ocupam as terras deles. Porque o principal objeto de luta deles é a recuperação de seus territórios tradicionais. E quem tá lá são os fazendeiros. É o agronegócio, é a pecuária. Então esses são os que se organizam, inclusive em muitos casos na forma de milícia, contra essa população e, consequentemente, contra os seus aliados também. Então é deles que vêm as ameaças, é deles que vêm os ataques, é deles que vêm a segurança privada, que vitimou muitas lideranças. É eles que se organizam, e é eles agora que aparelham o Estado. A FamaSul, a AcreSul, que são as entidades de classe desses grupos, estão no governo do Mato Grosso do Sul. Estão no governo federal, no Poder Judiciário, no Poder Legislativo nem se fala. Então, o Estado todo é aparelhado. Por esses grupos de interesse. E aí você tem Miguel e Tito resistindo. Naquele jeito deles, com a enxadinha. Contra tudo isso.
P/1 - Eu acho que a gente pode ir encaminhando para o final. Eu tenho mais algumas perguntas, mas elas são mais contemplativas. Eu queria perguntar para você, mais da sua vida pessoal, como foi se tornar pai?
R - Quando a Ísis nasceu, eu lembro que uma coisa que veio da minha mente foi de que o som da vida é de uma criança chorando, porque foi a primeira coisa que eu escutei no corredor. E foi muito profundo. Quando eu vi pela primeira vez, quando eu dei o primeiro banho dela. Então foi algo muito único, assim, porque eu sou muito intenso nessas coisas, assim, muito forte, assim, pra mim, internamente. Então, não consigo nem dizer o que significou. Quando o Erwin nasceu também. Eu lembro que quando eu soube que a Lídia estava grávida, eu saí gritando pelas ruas. Pelas ruas da cidade. Foi algo assim. Abri a janela do carro pra não sair a gritar. Quando deu positivo nem. É isso. É isso.
P/1 - Na sua vida, o que é importante pra você hoje?
R - Eles, a causa que eu defendo, a família. Acho que: eles, a causa e a família. Acho que é isso. Não faz perguntas difíceis, não.
P/1 - Uma coisa que eu queria perguntar é importante. Surgiu, na nossa conversa lá, um momento em que o Mateus conta que você teve um projeto de doutorado sobre a integração dos povos Guarani. Queria que você falasse um pouco desse projeto, se você quiser.
R - É tudo culpa dos Guaranis, porque é isso. Tudo que eu fiz não fui eu que fiz, foi por conta deles e aí eles têm uma articulação já antiga, o CIMI tem uma articulação antiga de apoio, de uma rede Guarani, com organizações parecidas a nós na Argentina, no Paraguai e na Bolívia, são organizações irmãs que a gente fala organizações indigenistas vinculadas à igreja católica nesses países. Então na Argentina tem a INDEPA, no Paraguai tem a CONAP, e na Bolívia tem o SIPICA e outras organizações ali também. E desde os anos 80 há uma articulação de apoiar os guaranis nessa articulação. Mas em 2010, o CIMI consegue articular e apoiar a realização de um encontro continental dessa nação Guarani, juntamente com essas organizações que eu mencionei. E foi muito forte, porque era uma das primeiras vezes... Acontece antes, no Sul, em 2006, no contexto dos 250 anos do assassinato do Sepé Tiarajú, da morte do Sepé Tiarajú, que foi morto em 1750, 1756, na verdade. Na comemoração desses 250 anos, houve o Encontro dos Guaranis. Mas, em 2010, acontece o Encontro Continental mesmo, reunindo massivamente lideranças de vários desses quatro países. E ali eles fundam uma organização para fazer essa articulação, que é o Conselho Continental da Nação Guarani. E eu tive o privilégio de acompanhar essas discussões, de acompanhar as lideranças, juntamente com o Egon. O Egon era, de fato, quem ajudava a pensar essas coisas todas. Em 2014, eles fizeram um quarto encontro, que foi na Argentina, e tentam manter uma articulação. E aí o meu trabalho foi um pouco contar essa experiência dessa articulação, desse apoio que essas entidades deu aos Guarani para fortalecê-los enquanto nação. Divididas em grupos, em subgrupos ou grupos, enfim, em povos, mas que conformam uma única nação linguística, cultural, enfim. Foi isso, sim. É porque é isso que entra no nosso processo de apoio. As demandas relacionadas à luta pela terra desse grupo, as demandas internacionais desse grupo. O CCNAGUA fez reuniões na ONU, viajou. Eu lembro que a gente fez um evento, uma vez, no Conselho de Direitos Humanos, com liderança dos quatro países. Foram para Genebra e ali teve várias incidências. Mesmo no fórum permanente que acontece anualmente em Nova Iorque, o CCNAGUA é uma das organizações que fazem parte do fórum. Parte de lideranças da Bolívia e do Paraguai que têm participado. Fizeram uma grande reunião, um evento paralelo durante o fórum em 2024, não, em 2022, sobre a realidade do Guarani no continente. E uma experiência legal que eles fizeram é de que essa organização tivesse uma estrutura que melhor se adequasse à forma como eles se organizam tradicionalmente. Porque normalmente os povos indígenas são obrigados a seguir uma organização semelhante a como o Estado se organiza. Então, presidente, vice-presidente, secretário. E isso você vai concentrando o poder nessas pessoas ou nessas instâncias. Então tem essa relação vertical. E a gente sabe que os povos indígenas e, sobretudo os Guarani, eles têm o poder descentralizado nas famílias. Então, a história mostra que essas organizações e essas associações indígenas não dão certo por conta disso, porque elas conseguem sobreviver a um primeiro ciclo de apoio e depois não mais, porque o poder não é concentrado nessa população. Então, o CCNAGUA faz a primeira experiência de ter um estatuto, embora não tenha sido ainda não reconhecido por nenhum dos países. Ou seja, esse estatuto não gerou um CNPJ, por exemplo, que eles pudessem movimentar recursos no sistema financeiro, mas foi uma experiência interessante de debate entre os Guaranis daqueles que tinham uma experiência mais de adequação a esse sistema vertical, e aquelas comunidades que mantêm ainda uma resistência, com organizações tradicionais que respeitam essa estrutura, essa forma de organização tradicional. Esse foi um debate que eu conto nesse trabalho, que a mim me marcou muito. O Mateus fala disso, que ele é um querido. Enfim, mas é isso, basicamente é isso.
P/1 - Tem algum momento da luta que tenha sido muito marcante para você e que você não tenha contado e você queira contar?
R - São muitos os momentos assim, difícil pensar em um específico, teria que me debruçar durante um bom tempo, assim, pra... Mas eu acho que é isso, eu acho que o mais forte é quando a gente tem que ir pra essas áreas que estão sob ataque. Você não saber o que pode acontecer. Depois que meus filhos nasceram, mudou um pouco essa relação. Inevitavelmente, você se sente mais responsável. Mas acho que são muitos momentos. Não teria um em específico, mas acho que o contato direto com a violência, mas também, com a reza e com os momentos de felicidade dos Kaiowás, é algo muito forte. Durante os momentos em que eles estão rezando juntos, em roda, fazendo aquele círculo, para mim, é um momento muito sagrado. Muito sagrado. De respeito a eles, das mulheres, de ver a cor da pele, sentir o calor, os olhos brilhando, a força, a força deles, das mulheres batendo o takuapu no chão, cantando. É muito forte, é uma coisa que nunca se torna comum. Toda vez, é algo muito forte. Já estou aqui há 16 anos, nós estamos aqui há 16 anos. E sempre é algo que nos convoca, essa reza deles. É muito forte. E é o que nos dá força mesmo, assim. É o que nos mantém. Essa esperança deles, essa teimosia. É algo que eu me identifico, que me revela a minha identidade, que me ajuda a entender quem eu sou também, por que eu estou aqui, por que eu vim, por que eles não deixaram eu ir. Então, é isso.
P/1 - Flávio, como foi poder compartilhar um pouco da sua história hoje?
R - Eu nunca tinha contado a minha história. Acho que poucos sabem, talvez a Lídia é quem mais sabe, mas houve situações aqui que eu acho que nem ela sabe. É muito novo falar de mim. Não tenho o costume de falar de mim. E acho que eu falei, não sei se eu falei muito, mas enfim, foi bom, eu estava pensando, ontem eu estava assistindo o vídeo de uma das senhoras ali, do museu, e eu comecei a pensar o que eu teria para contar, e pedi que viesse iluminação, vamos ver o que vem, e fiquei feliz com o que veio, de reencontrar esse passado, reencontrar o pai, a mãe. Claro que agora é muito mais significado, eu acho, muito mais assentado o que eles representam na minha vida. Mas foi importante. Obrigado.
P/1 - No nome do Museu da Pessoa, eu agradeço também.
R - Eu te agradeço. Obrigado mesmo.
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