P/1 – Kiko, eu queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome completo é José Henrique Goifman. Tenho um apelido que já me acostumei bastante, que é Kiko. Eu sou registrado como nascido em 5 de agosto de 1968, mas descobri que nasci, na verdade, em 2 de agosto. Eu nasci em Belo Horizonte, Minas Gerais.
P/1 – Qual são os nomes dos seus pais e as atividades deles?
R – Minha mãe se chama Berta Kubitschek Goifman. Ela está hoje com 71 anos. A atividade na vida inteira dela foi ligada à escola; ela trabalhou sempre em escolas. Já foi professora de música, secretária... Esse ano ela parou de trabalhar, ela cuidava da biblioteca da escola. Meu pai é Jaime Goifman e ele é exatamente quarenta anos mais velho do que eu. Ele faleceu em 98. Ele não tinha formação superior, a principal forma de trabalho dele foi como comerciante e depois ele trabalhou em instituições ligadas à defesa de direitos humanos e à Prefeitura de Belo Horizonte.
P/1 – Você tem mais irmãos?
R – Tenho uma irmã que se chama Márcia Goifman, três anos e meio mais velha do que eu. Nasceu em 15 de janeiro, em São Paulo, e mora em Belo Horizonte.
P/1 – Qual é a lembrança mais antiga que você tem da infância?
R – Lembrança mais antiga que eu tenho... Eu morava em Belo Horizonte, na Praça Raul Soares, e me lembro de olhar pela janela. Eu morava no nono andar e me lembro de ver a praça da janela desse edifício, que ficava na Avenida Bias Fortes, quase com a Praça Raul Soares... Na verdade, eu acho que a nossa memória embaralha um pouco as coisas. Eu não lembro se, nessa visão de cima, eu conseguia ver as fontes que tinham lá ou se eu me lembro depois e embaralho. Até os quatro anos de idade eu morei em Belo Horizonte e depois mudei para Niterói, mas, nesse período, eu me lembro de situações esparsas. Lembro-me de uma guerra de caroço de manga que eu...
Continuar leituraP/1 – Kiko, eu queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome completo é José Henrique Goifman. Tenho um apelido que já me acostumei bastante, que é Kiko. Eu sou registrado como nascido em 5 de agosto de 1968, mas descobri que nasci, na verdade, em 2 de agosto. Eu nasci em Belo Horizonte, Minas Gerais.
P/1 – Qual são os nomes dos seus pais e as atividades deles?
R – Minha mãe se chama Berta Kubitschek Goifman. Ela está hoje com 71 anos. A atividade na vida inteira dela foi ligada à escola; ela trabalhou sempre em escolas. Já foi professora de música, secretária... Esse ano ela parou de trabalhar, ela cuidava da biblioteca da escola. Meu pai é Jaime Goifman e ele é exatamente quarenta anos mais velho do que eu. Ele faleceu em 98. Ele não tinha formação superior, a principal forma de trabalho dele foi como comerciante e depois ele trabalhou em instituições ligadas à defesa de direitos humanos e à Prefeitura de Belo Horizonte.
P/1 – Você tem mais irmãos?
R – Tenho uma irmã que se chama Márcia Goifman, três anos e meio mais velha do que eu. Nasceu em 15 de janeiro, em São Paulo, e mora em Belo Horizonte.
P/1 – Qual é a lembrança mais antiga que você tem da infância?
R – Lembrança mais antiga que eu tenho... Eu morava em Belo Horizonte, na Praça Raul Soares, e me lembro de olhar pela janela. Eu morava no nono andar e me lembro de ver a praça da janela desse edifício, que ficava na Avenida Bias Fortes, quase com a Praça Raul Soares... Na verdade, eu acho que a nossa memória embaralha um pouco as coisas. Eu não lembro se, nessa visão de cima, eu conseguia ver as fontes que tinham lá ou se eu me lembro depois e embaralho. Até os quatro anos de idade eu morei em Belo Horizonte e depois mudei para Niterói, mas, nesse período, eu me lembro de situações esparsas. Lembro-me de uma guerra de caroço de manga que eu tive com minha irmã nesse mesmo apartamento, no nono andar da Avenida Bias Fortes...
P/1 – Guerra?
R – Era. Tínhamos uma babá ótima, que aprontava com a gente; ela era meio cúmplice das nossas brincadeiras. Lembro que estávamos chupando manga e começamos um a jogar o caroço de manga no outro, ela jogou na gente... Eu devia ter três anos, antes dos quatro. Lembro-me dessa brincadeira com manga que, para mim, era a coisa mais perversa que podia acontecer porque, mesmo na infância, eu carregava aquela imagem de que manga era aquela coisa que manchava e a gente jogou manga para tudo quanto é lado. Essa é uma imagem forte que eu tenho dessa época. Tem outra, também dessa época: uma imagem com meu avô, pai da minha mãe, que morava em Niterói. Ele foi comigo numa banca de revistas e eu pude comprar uma revista. Ele falava: "Pode escolher." Lembro-me dessa situação numa banca de revistas, olhando aquele mundo todo e não sabendo o que escolher... São alguns momentos que eu me recordo dessa época.
P/1 – Você morou em Belo Horizonte até seus quatro anos e se mudou?
R – Isso. Aos meus quatro anos, meu avô materno morreu e minha avó materna estava ruim de saúde. Ela morava em Niterói e eu mudei para lá com meus pais. Fiquei lá até 16 de janeiro de 1976 – eu me lembro da data –, quando voltei para Belo Horizonte. Foi mais ou menos isso, de 72 a 76 eu fiquei morando em Niterói.
P/1 – Foi a primeira vez que você viu o mar?
R – Acho que sim. Eu não tenho recordação de uma imagem de mar anterior a isso, então imagino que tenha sido nesse momento. Talvez eu possa até ter ido antes, quando criança, para Niterói e não me levaram na praia. Mas eu me lembro de conviver, de ter essa presença do mar e de fazer um caminho mais longo para chegar na escola para poder passar na frente do mar. Isso foi nesse momento.
P/1 – Você é um mineiro que viu o mar muito cedo!
R – (riso) É, fui e me encantei. Eu me lembro de aprender a nadar. O meu pai me jogava ali nas ondas, eu embrulhava e caía até conseguir ficar em pé. Lembro-me dessa situação de mar... Não lembro, por exemplo, do meu aprendizado de nadar em piscina, mas no mar lembro que foi tomando uns caldos ali na beirinha.
P/1 – Você morava em que bairro em Niterói?
R – Em Icaraí, que é um bairro de classe média, ao lado de um parque. Eu morava a quatro, cinco quarteirões da praia, não era na beira da praia. Eu morava do lado do Parque São Bento, que tem até hoje. Há alguns anos eu estive lá e tive aquela sensação frustrante de ver que o parque não era tão grande igual eu imaginava (risos). Lembro-me que tinha caminhos sombrios ali no parque... É claro que o parque mudou, mas meu olhar mudou mais.
P/1 – Kiko, e as crianças que viveram com você em Niterói? De que vocês brincavam nessa época?
R – Lembro-me que eu brincava muito de Forte Apache. Era um prazer grande construir histórias com os bonequinhos. Eu lembro, por exemplo, que eu tinha uma índia no Forte Apache que era a Regina Duarte. Eu imaginava que ela era a índia do meu Forte Apache.
P/1 – Para quem não conhece, o que era esse brinquedo, Forte Apache?
R – É um brinquedo em que você tem uma série de bonequinhos pequenos, miniaturas, principalmente com modelos. Tem esse modelo americano em que os índios são americanos, com aqueles cocares imensos, e os mocinhos são militares. Mas eu não brincava muito com os mocinhos invadindo e fazendo matanças de índio, nem eu e nem meus amigos. A gente ia atrás de histórias de aventura. Cada um daqueles personagens virava uma aventura e a indiazinha mudou a lógica de pensar do brinquedo, porque começamos a introduzir histórias românticas. Mas eu me lembro muito de brincar sozinho... Lembro-me de um cachorro vira-lata que eu tinha chamado Pompom, eu brincava bastante com ele. Posteriormente, depois de voltar para Belo Horizonte, ainda falando de brinquedos, eu lembro que meu pai tinha uma loja de móveis usados onde ele comprava móveis baratos e vendia barato, numa região de Belo Horizonte, Lagoinha. Uma vez ele comprou um guarda-roupa e dentro veio um autorama muito antigo – já era antigo para a época –, bem quebrado. Lembro-me do esforço para conseguir arrumar aquele autorama e para ter essa possibilidade de brincar de autorama, isso já na volta para Belo Horizonte.
P/1 – Conseguiu arrumar o autorama?
R – Consegui. Nunca foi uma beleza, mas era uma forma de poder fazer isso, apesar de uma origem judaica que eu tenho. Perto dos meus amigos... Eu sempre estudei, em Belo Horizonte, numa escola que tinha uma orientação um pouco mais progressista, a Escola Albert Einstein. Como filho de judeu comunista, meu pai foi um mestre em falências de lojas. Ele faliu muitas lojas, eu não tinha grana e a gente vivia de uma forma muito mais modesta do que meus outros amigos da escola. Eu não poderia ter um autorama bacana da Estrela, então tinha que me arrumar com aquilo. Trocava outro brinquedo por um carrinho que estava velho de outro amigo, conseguia fazer algum rolo... Assim conseguia brincar com as coisas que se brincava.
P/1 – Além de ser comerciante, o seu pai também tinha uma militância política?
R – Tinha. Meu pai sempre militou no PCB (Partido Comunista Brasileiro). Os pais dele são de uma região que ou era parte da Rússia ou parte da Romênia, principalmente nesse momento político dessa Arábia. Eles vieram para o Brasil na década de 20 acreditando na expansão do pensamento comunista. Chegaram aqui e procuraram grupos de atuação com esse mesmo tipo de pensamento. Meu pai nasceu aqui logo que eles chegaram. Meu pai os acompanhava em todas as reuniões, ele era moleque e não tinham com quem deixar. Aí aconteceu um fato curioso: meus avós foram presos em Ilha Grande e meu pai, com quatro anos de idade, foi recomendado a acompanhar, a ser preso também. Saiu uma matéria no Jornal do Brasil na época falando que ele era o mais novo comunista do Brasil. Ele tinha quatro anos e já tinha aprendido a falar "bandeira vermelha", "proletariado" (riso)... Meu pai teve uma história, uma vida inteira de militância. Ele nasceu no meio dessa situação de militância. Tem várias histórias dele, por exemplo: quando meus avós estavam presos tinha nascido a irmã dele, e meu pai passou um tempo disfarçado de menina para poder ficar junto da minha tia. Foi criado por várias famílias... Ele foi batizado, apesar de judeu... Ele ia para uma família que era da igreja batista, o batizavam; com uma família católica, o batizavam; espírita... Ele foi batizado várias vezes porque ficava com famílias de pessoas próximas, de amigos comunistas.
P/1 – Por quê? Os pais dele continuavam presos ainda?
R – Os pais foram presos muito tempo nesse período e, além disso, esse trabalho de militância fazia com que fosse assim: "Vamos para o Nordeste." "Então vamos deixar o Jaime com a Eva." – que é a irmã – "Vamos deixar na casa de alguém, vamos fazer uma militância. Vamos para o Ceará.” Iam para lá e deixavam os dois em tudo quanto é lugar. Eu me recordo do meu pai contando – era muito engraçado para ele isso – que ele se definia ateu de origem judaica, e falava que tinha sido batizado em todas as religiões (risos).
P/1 – Que interessante. A família que ficava com ele falava: "Vamos dar uma educação religiosa para ele" e o batizava?
R – Exatamente. Isso criou uma coisa impressionante que talvez seja o marco mais forte da personalidade do meu pai: talvez ele seja a única pessoa que eu conheci na vida que tivesse um total desapego com bens materiais. Meu pai se vestia com uma calça de tergal furada, uma camisa velha, não fazia a barba... Às vezes a gente falava: "Pai, você está parecendo um mendigo." Ele, ao contrário, falava: "E você está aí com um brinco e tal, todo vaidoso." Ele tinha esse desejo do outro muito forte, também. Sempre ajudou, minha mãe cobrava. Minha mãe, por outro lado, tem origens de judeus mais ricos, ligados à maçonaria. Foi um problema o casamento dos dois. Na época do casamento o meu pai estava ilegal, então casou com outro nome. Ele se chamava Jaime e casou com o nome de Alberto, que era o nome da ilegalidade. Até hoje minha mãe tem cartas guardadas que falavam: "Parabéns pelo casamento com Alberto." Ela mostrava para nós e ríamos bastante disso.
P/1 – Alberto era o codinome dele?
R – Era o codinome do meu pai. Ele queria estudar medicina, quis bastante, mas não pôde por questões financeiras e por questões ligadas à militância. Teve que sair do país para ir à Tchecoslováquia num momento maior de perseguição. Comigo vivo, lembro que em 1977 foi a última vez que ele foi preso.
P/1 – 77?
R – Lembro-me da minha mãe falando que meu pai tinha vindo para São Paulo e minha irmã falava: "Mentira, ele não está em São Paulo. Ele foi preso." Minha irmã me contava, ela já sabia. Em 77 eu tinha nove anos e minha irmã, três anos mais velha, tinha doze e pouco. Ela sabia que papai tinha sido preso e me contava escondido da minha mãe, que achava melhor não colocar o pai como preso. Talvez para alguém de nove anos ele pudesse ser visto como um bandido, coisa assim, mas na calada da noite a minha irmã contava que ele estava em cana mesmo.
P/1 – Ele era quadro de que hierarquia do PCB?
R – Isso mudou muito durante a vida. Ele sempre foi um membro importante. Aqui em São Paulo ele também teve uma atuação, morou aqui bastante tempo... Em Belo Horizonte chegou a ser candidato a deputado federal na época da Constituinte. O PCB, com poucos quadros... Meu pai era (riso) um dos pouquinhos quadros de cima do partido. Ao contrário do meu avô, que era uma pessoa extremamente erudita, que conhecia e tinha uma leitura maravilhosa da Bíblia... Lembro-me dele contando histórias para a gente na mesa e que eu não entendia nada das histórias, mas vê-se que um contador de histórias é bom só pelo gestual, pela forma que ele falava. Ele tinha uma leitura comunista da Bíblia maravilhosa, uma leitura super inteligente de Marx, de Lênin; meu pai, não. Meu pai era um comunista prático. Ele falava: "Não adianta ficar na teoria, temos que fazer alguma coisa." Teve vários momentos em que eu tive discussões com ele. Eu via as coisas por outro lado, mas se, na infância, eu tinha alguma dúvida daquilo... Era estranho ver seu pai preso... Lembro-me de uma vez, numa festa, em que chegou um cara – eu bem moleque – falando: "Seu pai é comuna, seu pai tem que deixar de ser comuna!" O cara falou isso em tom de brincadeira. Era um parente, falou isso brincando – talvez até ele já tivesse sido comunista –, mas aquilo ficou tão marcado na minha memória... Não consigo lembrar exatamente que idade eu tinha, era na volta para Belo Horizonte. Ficava um sentimento ambíguo, vermelho: "Seu pai é vermelho." Ele falava, também: “A cor é mais vermelha que azul.” Eu tinha essa imagem embaralhada. Na adolescência eu recuperei esse sentimento de ter muito orgulho disso tudo.
P/1 – Kiko, voltando para Niterói: vocês foram para lá por causa da sua mãe, você perdeu o seu avô, e o seu pai ficou trabalhando no comércio?
R – Trabalhando no comércio e fazendo um bico aqui, outro ali numa loja de parentes. Foi um momento financeiramente difícil para nós, e difícil por conta da doença da minha avó. Para mim pessoalmente foi difícil, porque foi minha entrada na escola. Eu já estudava antes. Como minha mãe trabalhou em escola – ela era professora de piano –, eu tenho memória, por exemplo, de ir à escola, pedir pra sair da sala, pegar um colchãozinho, colocar do lado do piano e ficar dormindo ali enquanto ela dava aula de piano para outras turmas. Tinha essa proximidade, a escola era um lugar afetivo para mim. Então fui parar numa escola tradicionalíssima chamada Colégio Oswaldo Cruz, em Niterói. Foi horrível, muito ruim, não lembro o porquê... Eu e minha irmã fomos estudar naquela escola, mas... Lembro-me de um uniforme meio militar, num desfile de 7 de setembro... Eu saí um pouco da marcha e tomei um beliscão da professora. Era um lugar horrível.
P/1 – Como era o rito escolar lá?
R – A gente chegava, cantava o hino... Eu era muito novo. Eu não tinha prazer nem no horário da merenda, era uma coisa muito pretensamente organizada que, na verdade, gerava até nos meninos do fundão... Eu, nessa época, não era do fundão. Fui ser depois. É engraçado que eu me lembro de alguns desses caras do fundão, dos nomes deles... Lembro-me até hoje. Eu tinha uma admiração por aqueles caras que eram contra tudo naquela escola. Lembro-me de um que tirou as calças no meio da turma – claro, foi suspenso, não sei por quanto tempo. Um que cuspiu na filha da diretora... Esses caras eram meus heróis. Para mim, é engraçado, porque eles me pareciam mais velhos. Apesar de estarem na minha sala e serem moleques de seis anos, eles me pareciam pessoas mais próximas da adolescência. Sei lá qual o parâmetro que eu tinha pra eles.
P/1 – Você aprendeu a ler nessa escola?
R – Aprendi a ler nessa escola. Eu acho que aprendi muito a ler com a minha mãe, na verdade. A minha mãe, até hoje, tem uma admiração absurda pela leitura. Aos setenta anos ela cuidava de toda a parte da biblioteca da Escola da Serra, em Belo Horizonte; sempre trabalhou na Escola Albert Einstein... Escolas que tinham uma orientação um pouco diferenciada, e ela era responsável pela leitura. Já naquele momento a minha mãe tinha uma visão interessante da leitura: incentivava a leitura de histórias em quadrinhos, gibis e esse tipo de coisa. Ela achava que era importante estar lendo alguma coisa e me incentivava. Ela tinha – claro que não organizada de uma forma teórica – essa concepção de que era bacana despertar o prazer da leitura. Então eu me lembro da dificuldade na sala de aula com esse estilo rígido e de punição. Lembro-me de aprender a ler com medo na escola, e de recuperar esse prazer da leitura em casa.
P/1 – Quais foram os primeiros livros que você gostou de ler que foram trazidos pela sua mãe?
R – Eu não me lembro de livros completamente infantis, mas devo ter passado por eles todos, desde A Bela Adormecida, Os Três Porquinhos... Os Três Porquinhos eu me lembro um pouco, e principalmente de uma pessoa que é muito importante na minha formação toda e que até hoje continua morando com a minha mãe, chamada Conceição. Ela foi minha babá. Ela não é a mesma da manga, que era uma mais novinha. Conceição era uma senhora que foi com a gente para Niterói e continua morando até hoje com a minha mãe. Eu brinco que ela passou mais tempo em casa do que eu. A Conceição me contava histórias à noite, então não como leitura, mas sempre João e Maria... Eu pedia para ela contar a mesma história e ela contava a mesma história e toda vez. Era João e Maria e eu dormia no meio. Depois da leitura, eu começo a me lembrar de O Menino do Dedo Verde. Eu não consigo organizar cronologicamente, mas outro: Eu vi mamãe nascer. Eram livros de uma coleção que tinha em Belo Horizonte, não sei qual é o alcance nacional dessa coleção... O Priolli era o escritor, tinha alguns livros... Não sei se era o Gabriel Priolli, acho que era outro Priolli. Não... Devia ser o Gabriel Priolli. Era um escritor mineiro. Depois eu tenho um hiato. Depois desses livros dessa coleção, lembro-me daquela coleção, Para Gostar de Ler, que reunia várias histórias... Começo a me lembrar daqueles livros da Edições de Ouro, que eu adorava. Aquilo ali da Edições de Ouro... Tinha uma série que era da Turma do Posto Quatro no Rio de Janeiro, tinha Operação Fusca Envenenado, Operação Fla-Flu... Aquilo, para mim, foi o despertar de uma literatura que contava com uma turma de moleques, eu me identificava com eles e aquilo era uma delícia, era muito bom. Aquilo era leitura.
P/1 – Aquela coleção é ótima.
R – É ótima. Tem muitos, do Memórias de um Cabo de Vassoura, também... Tudo das Edições de Ouro, adorava o formato pequeno para ler. Acho que talvez esse seja o momento em que eu começo a ir atrás de livros. Não só os recomendados pela escola e os que minha mãe colocava e me dava oportunidade, mas começo a fazer algum movimento para ler.
P/1 – E os gibis?
R – Ah, gibis... Li muitos. O mais bizarro de todos e o mais estranho – que, na verdade, nem é tão estranho, e eu ainda tenho admiração pelo herói até hoje, com todo o americanismo dele – é o Homem Aranha. Da geração do Homem Aranha eu posso te falar o nome de todos os vilões, da história... A revista número dois era o Abutre, a três entra o Duende Verde, a quatro... Isso era o meu passatempo predileto: sentar com uma revista do Homem Aranha, um copo de Nescau e pão cortado com requeijão. Isso era o máximo. É um hábito que eu, de vez em quando, até recupero. Turma da Mônica eu li bastante, também. Walt Disney, todos: Tio Patinhas, Mickey [Mouse], Pato Donald. Comecei a ter um ritual com meu pai que era muito bacana: todo sábado ou domingo – normalmente no sábado – a gente ia numa banca de revista e eu tinha uma quantidade "x" de grana para comprar o que eu quisesse. Ele não dava muito, era uma leitura que, às vezes, morria... Na segunda-feira não tinha mais nada. Mas a expectativa da espera do outro fim de semana, namorar as revistas na banca que depois eu poderia comprar, a chance de escolher... Ele não me falava: "Isso aqui é bom para criança", ele deixava eu pegar. Eu tinha uns cálculos: "Poxa, um Disney especial... Um almanaque Disney é mais grosso, vai dar para aproveitar mais tempo." Era muito gostoso isso.
P/1 – Kiko, você ficou em Niterói até que idade?
R – Eu saí de Niterói no dia 15 de janeiro de 1976, eu lembro muito bem. Não, dia 16 de janeiro: foi um dia depois do aniversário da minha irmã. Eu ia fazer oito anos. Lembro-me bem porque meu pai teve carros muito velhos e, na mudança, o carro quebrou na estrada. Era um opalão velho. Foi a primeira vez que eu ouvi falar naquela coisa que a água do carro está quente. A gente abriu e o negócio explodiu. Foi uma confusão, estávamos ainda em Petrópolis, tivemos que ir atrás de água fria numas pedras para poder por no carro. Depois eu fiquei em Belo Horizonte, morei na Rua da Bahia, 1010. Edifício Santa Maria, que existe até hoje, do lado da Sears.
P/1 – Como vocês organizaram a vida da família? Seu pai foi trabalhar no comércio?
R – Meu pai foi trabalhar... Teve uma época que o meu avô, pai do meu pai, por mais que ele fosse comunista e tivesse essa vocação que o meu pai teve, ele... Não sei se por herança ou por um talento de comércio que ele não tinha, ele se fixa em Belo Horizonte em certo momento da vida, já com três filhos, e abre uma loja que vai para frente. Essa loja é na Rua Guarani, no Centro de Belo Horizonte. A loja começa a ser administrada pela irmã do meu pai – nesse momento chamava Móveis Tropicais – e começa a crescer. Eles abrem uma filial na frente com o curioso nome Móveis Evron, que juntava o nome dela, Eva, com o do marido, Aron (risos). Foi crescendo e dando certo como comércio. Isso tudo é anterior a meu pai montar a própria loja dele, na Lagoinha. Na Rua Guarani, numa região central... Meu pai vai trabalhar com eles em 76, só que é um período tumultuado porque meu pai foi preso depois, em 77. Eles estavam estabilizados com aquela loja, com aquela rotina, a filha trabalhando com o pai e com o marido, e meu pai chega, meio assim... Tem uma coisa muito forte que não falei até esse momento: meu pai era alcoólatra. Meu pai era a pessoa mais doce sem beber. Nunca tomou uma cerveja, só tomava cachaça. Nunca teve o prazer de tomar uma... De beber alguma coisa e falar: "Que bom isso." Ele tomava cachaça para ficar bêbado e se tornava extremamente violento. Esse foi um momento em que ele estava numa situação bem difícil de alcoolismo. Com a morte dos pais minha mãe tinha herdado alguns imóveis – nada muito grande – e, nesse momento, começamos, até por necessidade, a vendê-los; um momento complicado para a gente. Não era nada demais, como herdar um edifício: ela herdou algumas coisas e coisas antigas que valiam pouco. Ela trabalhava de secretária na Escola Albert Einstein e eu fui estudar lá. Para mim, pessoalmente, é muito bom despertar esse prazer de uma escola, estudar numa escola que se propunha alternativa e ter um ambiente bacana... O que era mais complicado nesse momento era essa questão do alcoolismo e essa dificuldade profissional do meu pai.
P/1 – Como um menino de oito anos, o que você fazia em Belo Horizonte? Como era o seu dia?
R – Morava na Rua da Bahia, então ia muito ao Parque Municipal. Em alguns momentos eu me lembro de ter grana e poder andar de pedalinho. Isso era o máximo, porque para andar de pedalinho tinha que pagar, então não era sempre que podia, mas tinha os brinquedos que eram mais baratos – acho que alguns ainda tem até hoje. O Parque Municipal era uma referência muito importante. Ali no edifício Maleta tinha a livraria Shazam. Eu fui acumulando um patrimônio de revistas em quadrinhos muito grande. Eu ia à livraria Shazam, no segundo andar do edifício Maleta, trocar as revistas. Era ótimo: trocava duas por uma. Era interessante que ele tinha a mesma visão de moeda que eu tinha, por exemplo: o Homem Aranha número dois – o número um eu nunca tive – valia bastante, essa eu podia trocar até por dois Disney Especial grandes. Era um barato, uma coisa muito forte. Tinha uma relação da escola que eu estudava, era uma escola que tinha um clube. Eu ia um pouco nesse clube.
P/1 – Tinha um clube?
R – A escola Albert Einstein funcionava dentro da União Israelita de Belo Horizonte, na Rua Pernambuco, 326. É até curioso porque, num momento um pouco mais para frente, o meu pai acaba virando presidente da União Israelita. A União Israelita se diferenciava muito claramente da Associação Israelita, que era dos judeus mais ricos e que tinha uma orientação política que, simplificando, naquela época era mais de direita. A União Israelita tinha uma relação mais comunista, com judeus comunistas, tanto que lá foi implementada a Escola Albert Einstein, que era uma escola diferenciada. Era essa possibilidade de junção de um espaço... Eles tinham uma orientação, um estatuto e montar uma escola faria parte de um dos objetivos da comunidade judaica progressista. Eles montam a escola, chamam profissionais interessantíssimos que tinham experiências alternativas e estavam antenados sobre o que estava acontecendo no mundo, e montam a Escola Albert Einstein, que funcionava dentro do clube israelita.
P/1 – Kiko, você estava contando como era a vida de um menino de oito anos em Belo Horizonte.
R – Isso. Lembrei-me de uma coisa: eu fui morar no Edifício Santa Maria, ficava no décimo sexto andar... Ele era exatamente vizinho à antiga Sears. Eu tinha uma brincadeira que era extremamente cruel, mas bem divertida. A gente pegava saco de lixo grande – isso quando tinha saco de lixo, se não era saco plástico mesmo, mas o de lixo era o ideal pra essa brincadeira –, enchia de água e jogava do décimo sexto andar em cima da Sears. As pessoas que estavam dentro da loja tinham a sensação de que a loja estava explodindo, fazia um barulho absurdo. Era muito legal fazer aquilo. Tinha um vizinho, a gente começou a se dividir. Bacana era soltar água, mas mais bacana era estar dentro da Sears para ver a reação das pessoas. A gente tinha um sentimento de revolta, porque foi o surgimento daqueles bonequinhos Playmobil e eram muito caros na Sears. A gente extravasava certa revolta com aqueles sacos plásticos que jogávamos.
P/1 – Por que fazia esse barulho? Como era o teto deles?
R – Não me lembro do que era o teto. Lembro-me que era um barulho infernal que dava dentro da Sears. Era um prazer absurdo, cada vez queríamos jogar um saco com mais água para aumentar aquilo. Jogávamos até dois sacos às vezes, até que nos pegaram fazendo isso – não na Sears, pegaram em casa – e paramos. A mãe dele nos pegou, então paramos com essa nossa brincadeira. Ela ficou quieta nos vendo encher aquele saco de água e o que íamos fazer, até que fizemos isso. Era curioso, porque era um edifício alto – eu morava no décimo sexto andar – e tinha de um lado um número de apartamentos, a Sears e, do outro lado, também um prédio de apartamentos. Isso tornava a operação um pouco mais delicada, porque ninguém podia nos olhar fazendo isso do outro lado, que também era um prédio cheio de lendas: tinha uma pessoa que tinha se suicidado do apartamento da frente... A gente olhava – era um apartamento que tinha uma cortina roxa – e ficava imaginando... Não tenho a menor ideia se isso é verdade ou não, mas eram imagens que a gente tinha. Na nossa cabeça achávamos que aquele barulhão que fazia na Sears podia parecer que era alguém que estava se suicidando. Aquilo era um barato. Nesse momento, passamos a ter uma infância mais de apartamento. Em Niterói eu morava num prédio muito baixinho, ele tinha dois, três andares. O andar de baixo tinha uma área e eram muitos meninos, então tinha outra relação, era do lado do parque... Morando no centro urbano de Belo Horizonte eu não tinha essa relação. Em Niterói eu me lembro de jogar bola no parque ou mesmo numa rua mais vazia que tinha atrás. Nesse momento, a gente começa a se virar com aquela coisa de futebol no corredor, gol é quando bate na porta... Essa mudança é bem forte. Morei na Rua da Bahia e tinha o cinema [Cine] Metrópole em frente ao prédio, eu via sempre e senti muita dor quando acabou o cinema. Não que eu pegasse muitas sessões... Lembro-me de ir em sessões depois, um pouco mais velho. Não me lembro de ver filmes infantis ali, mas tinha uma mágica naquele cinema. Tinha uma magia bem interessante.
P/1 – Você se lembra das primeiras vezes que foi ao cinema?
R – É frustrante isso, porque cineasta gosta de falar do primeiro filme que viu. Eu não lembro. Não me lembro também de ir muito ao cinema com meus pais, de eles me levarem para filmes infantis... Lembro-me de ver bastante televisão, essa geração da chegada da televisão... Tinha aquela coisa curiosa, de vez em quando, que tinha em algumas casas... Não me lembro se isso tinha em Niterói... Chegou a televisão colorida e quem não tinha grana colocava um plástico azul multicolorido na frente (risos). Era uma coisa completamente absurda, mas eu me lembro disso. Cinema eu começo a me lembrar que assisti Os Trapalhões. Foi uma referência muito importante: lembro-me daquela fila para entrar para assistir Os Trapalhões no Planalto dos Macacos, Os Trapalhões nas Minas do Rei Salomão. Era um prazer. Depois começaram a passar aqueles filmes na televisão, eu pensava: "Pô, que bacana, posso rever de graça aqui na televisão." Assisti muita Sessão da Tarde, os filmes que passavam... Era impressionante como eram repetidos. Tinha A História de Elsa, a leoa, e sempre passava A Fantástica Fábrica de Chocolate, que eu tinha um ritual para assistir com a minha irmã: a gente comprava chocolate para poder ver e tinha aquela coisa de criança, de comer um mais devagar do que o outro para poder, no fim, terminar o do outro e ainda ter um pouco do próprio chocolate. Tinha aquele Esses Homens Maravilhosos e suas Máquinas Voadoras. Era forte isso. Na televisão... Corrigindo, uma leitura muito presente para mim, que eu acho que aconteceu nessa época, foi Monteiro Lobato. Muito forte. Quando começou a passar Sítio do Picapau Amarelo na televisão eu já tinha lido e eu sabia tudo: reinações de Narizinho, caçadas de Pedrinho, a fórmula da natureza, o Saci. Tinha uma coleção em casa que minha mãe tem até hoje. É uma coisa meio sagrada para mim. Ler o saci foi uma experiência com o mundo fantástico, era uma leitura que me dava medo dos bichos, da Cuca, do Boitatá. Nesse momento começa a primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo na televisão. Aconteceu na minha infância e foi fantástico assistir tudo, lembro-me de acompanhar, mas a lembrança do livro é impressionante, porque eu gostava muito. É engraçado, porque a memória que eu tenho do livro são outros personagens, construídos na minha imaginação. A dona Benta, na minha cabeça, não é a dona Benta que representava no programa que tinha na Globo.
P/1 – Kiko, nesse momento você está nessa outra escola... Ela é mais aberta, mais progressiva?
R – Muito mais. Eu senti isso de forma muito clara quando eu fui para a quinta série. Eu fiz terceira, quarta e quinta séries lá. A gente era criança e os mecanismos de desenvolvimento de português, matemática ou ciências eram muito diferentes da outra escola, mas essa liberdade não era tão clara pra mim. Quando eu chego na quinta série da escola a turma mudou muito o perfil. A quinta série era uma ruptura porque entravam muitos alunos não judeus na escola e eu adorava isso, porque chegam os malucos, tinha a piscina e... Lembro-me de duas meninas que saíam correndo e pulavam na piscina de mãos dadas, de roupa... O máximo que acontecia era ter que ir conversar com a diretora. Lembro-me de um amigo meu que bateu no outro até que o outro desmaiou, aquelas coisas absurdas de moleque... A punição dele foi, durante uma semana, frequentar a escola com luva de boxe para ele entender o conceito de violência, que aquilo estava fora de contexto e não sei o quê. Era uma punição simbólica. Foi bacana, época que eu tive grandes amigos.
P/1 – Quem eram os seus amigos?
R – Logo na chegada em Belo Horizonte meu grande amigo se chamava Careca, morava no [Conjunto Habitacional] IAPI, não judeu, ele era negro. A escola tinha uma política de bolsas. Lembro-me, por exemplo, de assistir à Copa de 78 junto com ele em casa. Inclusive, a Copa de 78 eu lembro muito bem. Talvez foi o meu maior momento de envolvimento com o futebol, com o glorioso time do Clube Atlético Mineiro, em 1977, Reinaldo e Cerezo na seleção em 78. Lembro que era curioso porque assistíamos aos jogos juntos, mas ficávamos loucos para acabar o jogo para podermos ir para a garagem do prédio. Em 78, saio desse edifício e vou para outro prédio, que tinha uma área interna em volta do meu apartamento e, por ironia do destino, no bairro Cruzeiro. Lembro-me perfeitamente que o grande barato... Lembro de todos os jogos, a escalação da seleção, tudo. Assisti Brasil e Suécia no começo da copa, foi um a um o jogo. Gol anulado do Zico em que o juiz terminou o jogo... A bola foi cruzada no escanteio e o juiz terminou com a bola no ar, foi uma grande polêmica aquilo. Reinaldo fez um gol, o gol de empate... Lembro que gostávamos de ver o jogo, mas adorávamos terminar a partida e ir jogar bola na garagem, cada um era um jogador... Isso era muito bacana, terminar e poder ser o Reinaldo. Como eu sempre fui ruim de futebol, muitas vezes eu ia para o gol também; mas tudo bem, era bacana ser o Leão. Era muito gostoso isso.
P/1 – Você viu com o Careca?
R – Isso, o Careca era o meu grande amigo. Depois ele volta na minha vida, na adolescência, com um novo apelido: ele virou Laranja, é contrabaixista em Belo Horizonte e, na adolescência, vira meu professor de contrabaixo no Conjunto IAPI. Eu ia lá estudar baixo. Não deu muito certo, sou péssimo pra ritmo. Infelizmente, porque eu adoraria ter seguido uma carreira de músico, mas seria um músico frustrado.
P/1 – Você falou de futebol, quando é que você se descobre atleticano?
R – Por uma curiosidade, eu sou filho adotivo. Meu primeiro nome foi Atleticano Goifman. Fui adotado no Edifício Dona Genoveva, do lado do Maleta. Os meus pais estavam procurando uma criança para adotar, um menino. O médico que foi me examinar terminou o exame e perguntou para minha mãe: "Como ele vai chamar? Qual é o nome dele?". Minha mãe estava descrente porque ela tinha visto outras crianças, o médico examinava e falava: "Não, essa criança vai ter problema." Acho que tinha uma visão de adoção que, se fosse adotar alguém, adotaria alguém sadio. O médico falou: "Se não tem nome, na primeira receita dele terá o nome de Atleticano Goifman." Meu pai, com essa visão comunista dele... Ele é carioca, mas era flamenguista, atleticano e todos os times do povo no Brasil. Torcia para o Internacional em Porto Alegre, o Corinthians, o Bahia... Ele tinha essa coisa do time popular. Na minha família, também vários eram atleticanos. Eu ia a campo quando era menino. Meu pai me levava às vezes, mas tenho primos mais velhos que me levavam com eles e era legal.
P/1 – Você é atleticano de berço?
R – Atleticano de berço!
P/1 – Você se lembra dos primeiros jogos do Atlético que você foi?
R – Não me lembro dos primeiros jogos. Lembro-me fortemente da decisão de 77, que eu não fui, infelizmente, porque eu já poderia ir com meus primos... A decisão do São Paulo e Atlético. Eu lembro, era um momento que eu sabia... Se bobear eu ainda lembro a escalação do Atlético. O Atlético estava dez pontos na frente do São Paulo e teve aquele episódio absurdo que o Chicão pisou na perna do Ângelo caído no chão, na prorrogação. Naquele momento, a lógica do campeonato não tinha essas coisas que hoje em dia tem, existia uma final sem nenhuma vantagem do empate. O jogo foi no Mineirão e o Atlético perdeu na disputa de pênaltis. Alves e Ziza fizeram os gols; Cerezo, Márcio Paulada e Joãozinho Paulista chutaram para fora. Três bolas para o alto e...
P/1 – Você se lembra da escalação?
R – 77... Posso cometer alguma grande injustiça, mas...
P/1 – Quais os jogadores que você lembra que jogaram melhor?
R – Jogadores, 77... Em 76 o Ortiz, que era o goleiro cabeludo do Atlético, sai do time e entra o João Leito, do Palmeiras; lateral direita era o Alves. Infelizmente na final não era o time maravilhoso do Atlético, tinha alguns jogadores, por exemplo, Márcio Paulada, que era reserva. Hilton Brunis, que era reserva, jogou nesse time também... Quem eu me lembro e que me fascinavam muito eram Marcelo, Reinaldo e Ziza, era um ataque fantástico. Tinha um meio campo interessante também com Cerezo, Denival, Heleno. Era um time fantástico de ver jogar. Reinaldo é, para mim, a coisa mais impressionante; um jogador de futebol impressionante. Vários jogadores me impressionaram. Joãozinho me impressionou, mas era do Cruzeiro, então me impressionava pelo lado mal: era um perigo aquele cara pela ponta esquerda. Nelinho era impressionante a força, depois vai para o Atlético... Agora, Reinaldo, para mim, está acima de tudo. Quando eu leio, até hoje, por exemplo, que saiu a lista dos jogadores que o Pelé elegeu como os melhores, e eu vejo Tustão fazendo a crítica dele, falando que vários foram esquecidos, inclusive Reinaldo... Eu sinto orgulho disso, sabe? Um jogador que parou de jogar tão novo, aos 28, e que era uma coisa fantástica. O que ele fazia dentro da área... Ele dava um chapéu no jogador e colocava a bola no meio da perna de outro, sempre com muita classe. Era interessante para quem era atleticano, porque era o fim do grande período do Dario, que nunca fez um grande bonito. Dario e suas frases feitas: ele fala que fez tanto gol que não deu tempo de jogar futebol. Ele fazia gol de canela, de tudo quanto é jeito, e o Reinaldo nunca fez gol feio. Era engraçado essa mudança de ídolo. O Reinaldo nunca chutaria uma bola de canela, ele era um esperto do futebol, era um jogador fantástico. Por outro lado, tinha essa questão da rivalidade muito forte, então eu lembro bastante dos jogadores do Cruzeiro. A Wanderléa, que era o Raul, a sua camisa amarela; o Moraes, que foi o jogador que, na minha opinião, acabou com a carreira do Reinaldo, porque era o cara que mais batia nele, era um zagueiro absurdo, um cavalo, e foi a arma do Cruzeiro para parar o Reinaldo. O próprio Joãozinho, tinha o Palhinha, tinha... O time do Cruzeiro era interessante, mas o do Atlético era muito melhor.
P/1 – Tem algum gol do Reinaldo marcante que você lembra?
R – Nossa, tem muitos. Tem um na eliminatória da Copa de 78 que é uma jogada do Marcelo e Reinaldo em que o Reinaldo dá um chapéu e coloca a bola embaixo das pernas do goleiro. Eu acho que o mais marcante – nem foi bonito, mas foi interessante aquilo – foi ver um gol... Era o primeiro jogo da copa do mundo, foi um gol do Clube Atlético Mineiro contra a Suécia, porque o Cerezo cruza a bola e o Reinaldo toca a bola para dentro do gol. Aquilo, para mim, foi um empate. O Brasil começou tomando um a zero da Suécia, e aquilo era a mostra, era o Atlético no mundo. Honrava o hino, que fala: "Nós somos os campeões do mundo, somos o orgulho do esporte nacional." Era ali a cara que era o Atlético. Infelizmente, nessa copa, no terceiro jogo, Cláudio Coutinho colocou Roberto Dinamite no lugar do Reinaldo. O Reinaldo só entrou no segundo tempo, Brasil e Áustria, que era exatamente a aberração. Roberto Dinamite era um cara que chutava a bola de qualquer jeito, fazia uns gols meio esquisitos, enquanto o Reinaldo era a sabedoria do futebol.
P/1 – Para quem não sabe, como essa copa termina para o Brasil?
R – Essa copa termina... Passando pela copa rapidamente, no segundo jogo o Brasil dá sorte de empatar com a Espanha, porque o Amaral tirou uma bola de cima da linha que ia entrar. No terceiro jogo, Brasil e Áustria, o Brasil precisava da vitória de qualquer forma. O capitão Cláudio Coutinho, que era o técnico, faz algumas alterações, inclusive tira o Reinaldo e coloca o Roberto Dinamite. O Brasil ganha da Áustria, três a um, vai para um grupo em que é Brasil, Argentina, Peru e Polônia. Tem alguns jogos no meio, não lembro de todos os Estados do grupo, mas chega naquela situação trágica em que o Brasil joga antes com a Polônia, faz uma diferença de dois gols que, somada com o saldo de gols, a Argentina teria que ganhar de seis a zero do Peru para poder avançar. O Peru entrega o jogo, isso já é meio clássico, foi quase confirmado. O goleiro Quiroga, do Peru, toma frangos incríveis. A Argentina ganha de seis a zero e vai disputar a final com a Holanda. É campeã com um time interessante, tinha Luque, Kempes. A Holanda – que estava no fim do carrossel holandês – também tinha um time interessante, com Neeskens, Krol, Rensenbrink. O Brasil vai disputar o terceiro lugar com a Itália, ganha com um gol absurdo do Nelinho e fica em terceiro lugar. Foi, se eu não me engano... Não sei se foi três a um, lembro que a Itália fez um gol com o Bettega. O Brasil fica em terceiro lugar e é chamado pela primeira vez de campeão moral. Curioso também porque foi invicto: ele não perdeu um jogo e não foi campeão da Copa de 78. Era muito impressionante. Lembro o estádio lotado, aquela pressão, a Argentina num momento de ditadura ainda... Não tinha essa compreensão na época, mas víamos aqueles papéis no campo... No último jogo era impossível, você não conseguia ver nem a bola de tanto papel que tinha no campo. Essa copa me marcou muito, assim como a seguinte, a de 82.
P/1 – Kiko, você comemorou algum título pelo Atlético? Como é que se comemorava título em Belo Horizonte? Você pegou isso de ir para a rua?
R – Isso é triste, porque... Já, mas é uma mancha que trago na minha carreira de atleticano, porque o Atlético ganhou o campeonato brasileiro de 71 e eu era muito criança. Comemorei título na rua, na Praça Sete, de campeonato mineiro, mas não ter conquistado um título brasileiro depois é peso que nós atleticanos carregamos. Não ter carregado, como no caso daquele timeco lá do Cruzeiro, que ganhou a Libertadores... Isso é uma coisa que fica faltando. Comemorei campeonatos mineiros na rua, fogos na rua, ou na rua de casa quando era mais moleque... Depois que eu saio desse Edifício Santa Maria, vou morar num bairro Cruzeiro, que é um bairro que tem mais casas – eu não morava num prédio – e fiquei lá o tempo todo que morei em Belo Horizonte, não mudei mais. Era uma região que tinha umas favelas perto e que eram todos amigos ali, então a gente comemorava na rua. Cheguei a ir para a Praça Sete comemorar, mas sempre tinha essa sensação de vazio da não conquista de um título nacional. Esse ano isso vai mudar (risos). Dizem que nós contratamos um jogador que chama Mexerica e outro chama Meio Quilo, eu acho que esse ano. Carregado por frustrações, teve essa final de 77, que foi muito doída; a final de 81, com o Flamengo, foi talvez a pior de todas.
P/1 – 80.
R – A final foi em 81, mas era do campeonato de 80. Por maluquices a final acabou sendo depois, mas é do campeonato de 80.
P/1 – Era para o Atlético ter a vantagem e não teve, né?
R – Não teve essa vantagem. Não era clássico, no último jogo do Maracanã, Reinaldo fazendo gol com um pé só e tudo... Era um momento mágico do futebol, porque o time do Flamengo era maravilhoso – fora o Nunes, que era um grosso e depois o Atlético contratou. Foi um carrasco do Atlético... O Atlético tem o péssimo hábito de contratar seus carrascos, então Nunes, Chicão, Renato Gaúcho, uns caras que a torcida odiava e acabavam sendo contratados depois. Aquela final foi complicada. Vi pela televisão, não fui para o Maracanã. Eu tinha doze, treze anos e não deu para ir, mas lembro de relatos de amigos mais velhos que foram e que falaram que ficaram com medo e que, no fim, não sabiam se torciam para o Flamengo ganhar porque não sabiam se iam sair vivos dali. Tinha essa coisa fora. Claro que tinha muita violência também no futebol, mas em alguns momentos tinha essa atitude quase heróica de você encarar uma final, de estar ali... Eu passei já aperto em campo de futebol. Bem depois, em Campinas, Atlético e Guarani. Eu tive uma situação complicadíssima pra sair do estádio quando eu morava em Campinas (riso).
P/1 – Kiko, nessa idade de doze, treze anos é que você tem o seu primeiro emprego?
R – Eu comecei a trabalhar na loja da minha tia e depois na loja do meu pai. Ele abre uma loja chamada Móveis Belo Horizonte, umas portinhas pequenininhas na Rua Itapecerica com a Adalberto Ferraz, na famosa Lagoinha, em Belo Horizonte. Minha irmã já trabalhava lá e eu começo a ajudar em venda, um pouquinho de aprendiz de office boy também, não tinha nem a capacidade de resolver questões de banco. Começo a ajudar um pouco. É interessante esse momento, a Lagoinha era um lugar muito estranho.
P/1 – Descreve para nós, que não conhecemos, as características do bairro da Lagoinha.
R – Lagoinha é um bairro colado no Centro de Belo Horizonte. Um bairro pobre, de um comércio pobre, de muita zona, área de prostituição, botecos, traficantes. Aquelas pequenas casinhas lotéricas, oficinas mecânicas sem nome na porta e tal. É quase como um braço pobre do Centro, na Avenida Antônio Carlos, que levava para Pampulha. Para mim, a Pampulha era o lugar mais distante do Centro – era uma visão que eu tinha. Um, pelas casas de parentes, onde, de vez em quando, tinha a oportunidade de ir numa casa na Pampulha que tinha piscina enorme, era uma farra. Mas a Pampulha era um lugar distante e a Lagoinha ficava nesse caminho como a parte pobre do Centro. Era tudo muito boteco, então às margens do boteco... Como eu disse, meu pai era alcoólatra. Tinha essa situação de que o boteco também era o lugar que ele ia encher a cara. Mas é interessante, lembro-me de uns caras, os vendedores, que eram uma figura. Tinha o Tuba, que tinha o nariz parecido uma barbatana de tubarão; tinha o Rubens, que era muito gordo... Eram os vendedores que eram um pouco a malandragem, também. Era uma turma que vinha de uma favela próxima, a Pedreira Prado Lopes, para lá para trabalhar e ganhar a vida. Tinha um pouco de um antro de malandragem e tal. Eu, moleque, ficava olhando aquilo, tentando ficar atento.
P/1 – Você fica muito tempo ajudando seu pai?
R – Não. Dos doze aos catorze anos eu consigo meu primeiro emprego longe dos braços da família. Eu fui trabalhar numa empresa que ficou muito mal e teve uma reputação muito ruim em Belo Horizonte chamada Metrobel, um órgão de controle do trânsito. Eu fui para lá e comecei a contar ônibus na rua, anotava os ônibus passando... Era como se fosse o fiscal do fiscal, ficava anotando e fazendo tabulação. Ficava parado na rua: “Tal hora passou tal ônibus, tal hora passou tal ônibus, tal hora passou tal ônibus.” Ficava anotando isso e contabilizando. Consegui galgar um posto melhor, que era cuidar da tabulação que chegava, e eu não ia mais para a rua. Eu recebia, fazia as contas disso e nesse momento foi minha grande experiência de abrir as portas para a adolescência, porque eu convivia com pessoas mais velhas. Eu era meio xodó, o molequinho e tal. Tive o meu primeiro amor, foi lá.
P/1 – Na Metrobel?
R – Tudo era na Metrobel. A minha vida virou a Metrobel. Tinha amigos, todos mais velhos, mas dali para a lama foi um passo (riso).
P/1 – Como foi essa história de amor na Metrobel?
R – Ah, era uma menina que trabalhava no grupo comigo. Nesse momento eu não estava mais com catorze, estava com... Tinha catorze para quinze anos e ela tinha dezenove para vinte. Isso era complicadíssimo. Eu sempre fui muito alto, eu até treinei basquete em Belo Horizonte. Aos treze anos eu tinha o tamanho que tenho hoje, um metro e oitenta e quatro. O problema é... Com dez anos eu comecei a treinar, e os técnicos davam para nós, escondido dos pais, umas bolinhas para tomarmos que eram umas vitaminas que você crescia. Não sei se isso deu certo ou não, mas era impressionante, porque com treze para catorze anos eu já tinha um metro e oitenta e quatro. Eu era muito alto. No basquete, cheguei a ser pivô. Hoje em dia não dou nem para armador com um metro e oitenta e quatro, era muito alto naquele momento. Tinha essa coisa, era alto e não sei o que... Comecei, conheci essa menina. Ela tinha um namorado que tinha dezenove para vinte, da idade dela. Não, ele tinha dezoito para dezenove, que eu me lembro que aproveitei a deixa que ele foi servir ao exército para poder (riso) me aproximar mais da moça. Mas foi super bonito a relação de...
P/1 – Foi platônico?
R – Não foi platônico, mas durou menos do que deveria ter durado. É aquela coisa, um ano e meio de confusões e tudo. Não foi platônico, mas – que bom! – eu tomei um pé na bunda. Ela me falava: "Eu não posso chegar para minha família, mostrar um pirralho de catorze, quinze anos e falar que é meu namorado, não dá." Sei lá, hoje em dia eu entendo, não sei dessas coisas... Na Metrobel eu tive contato com muitas coisas, de ver e entender algumas coisas.
P/1 – Você estudava em que horário?
R – Nesse momento eu praticamente não estudava. Eu ia à Utramig, que era a escola. Eu estudava de manhã, eu estudei... Fiz curso técnico de Eletrônica de catorze para quinze. Como eu faço aniversário no meio do ano, eu era um pouquinho adiantado com relação a isso. Eu estudava na Utramig, onde eu fazia curso técnico em Eletrônica, não cheguei a completar. Fiz dois anos, era o primeiro e segundo grau. No terceiro ano fui estudar numa escola de péssima reputação, mas era o único lugar onde eu conseguiria concluir, que era a escola Champagnat, em Belo Horizonte. Eu aproveitei que minha mãe, como era professora de música na escola, pagava a metade da mensalidade e dava para estudar lá. Foi também outro aprendizado de muitas coisas da vida com a turma da Champagnat. Era uma escória, ninguém queria estudar droga nenhuma... Paralelamente a isso tudo, fui sócio... Eu fundei uma das maiores empresas de segurança em Minhas Gerais, chamada Anjo da Guarda Segurança, que faz eventos. Eu comecei... Eu tinha um amigo chamado Afonso, ele era contínuo do Banco Real e eu, tabulador da Metrobel. Começamos a ficar muito amigos, conhecemos outro amigo e a gente queria ir nas festinhas e tal. Não tínhamos muita grana para ir em festas, então começamos a fazer segurança das festas. Eu era grande e ele também, e a gente começou a chamar os outros amigos. Era uma confusão danada aquilo, saía pancadaria, ia para as festas para arrumar confusão também... Só que eu durei pouco tempo nisso. No terceiro ano, diante de não saber o que fazer para o vestibular, eu resolvi fazer Ciências Sociais. Eu não sabia nem bem o que era. Percebi que não fazia mais sentido eu continuar com aquela vida de segurança, era tudo que eu não imaginava de bom pra minha vida. Ele continuou até hoje, tem essa empresa bem grande.
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