Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Neiva Maria Robaldo Guedes
Entrevistada por Bruna Oliveira
Campo Grande, 30 de maio de 2025
Entrevista número PCSH_HV1465
Revisado por Nataniel Torres
P - Neiva, pra começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Eu sou Neiva Maria Robaldo Guedes, nasci em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, no dia 10 de janeiro de 1962.
P - E me conta qual era o nome dos seus pais?
R - Meu pai, Valdemir Guedes, e minha mãe, Inocência Robaldo Guedes.
P - E como eles se conheceram?
R - Minha avó, que era viúva muito cedo, com oito filhos, abriu uma pensão para rapazes na casa dela. Minha mãe, à época, tinha uns 15 anos e meu pai foi ser um dos pensionistas da minha avó. E lá eles se conheceram. Meu pai era 15 anos mais velho que minha mãe. Minha mãe ainda brincava de boneca na época e eles casaram quando ela tinha 16 anos, casou bem novinha. E casaram, eles se conheceram em Ponta Porã, onde a minha mãe residia e meu pai tinha ido trabalhar, e mudaram para Dourados, que é uma cidade a cerca de 150 quilômetros de Ponta Porã.
P - E como é que você descreveria a sua mãe?
R - Vixe, ela é uma baixinha, menor que eu, que eu também sou baixa, mas ela é menor que eu, eu diria que ela é uma abelha, porque ela é elétrica, eu digo que ela é ligada no 220, é uma pessoa bem dinâmica, extremamente solícita e que adora ajudar os outros, sorridente, encantadora de gente. Onde ela vai, todo mundo quer adotar ela. Ela tem hoje 81 anos, mas sempre foi uma pessoa muito querida, muito bem relacionada com a vizinhança, na igreja onde a gente frequentava. Uma pessoa, eu diria, de muito boa índole mesmo.
P - E o que que ela fazia?
R - Ela sempre foi dona de casa. Meu pai era o que trabalhava e o que provia toda a família. Então eles casaram, tiveram cinco filhos, escadinha, eu sou a segunda, um irmão mais velho, eu, outro irmão e o resto...
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Entrevista de Neiva Maria Robaldo Guedes
Entrevistada por Bruna Oliveira
Campo Grande, 30 de maio de 2025
Entrevista número PCSH_HV1465
Revisado por Nataniel Torres
P - Neiva, pra começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Eu sou Neiva Maria Robaldo Guedes, nasci em Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, no dia 10 de janeiro de 1962.
P - E me conta qual era o nome dos seus pais?
R - Meu pai, Valdemir Guedes, e minha mãe, Inocência Robaldo Guedes.
P - E como eles se conheceram?
R - Minha avó, que era viúva muito cedo, com oito filhos, abriu uma pensão para rapazes na casa dela. Minha mãe, à época, tinha uns 15 anos e meu pai foi ser um dos pensionistas da minha avó. E lá eles se conheceram. Meu pai era 15 anos mais velho que minha mãe. Minha mãe ainda brincava de boneca na época e eles casaram quando ela tinha 16 anos, casou bem novinha. E casaram, eles se conheceram em Ponta Porã, onde a minha mãe residia e meu pai tinha ido trabalhar, e mudaram para Dourados, que é uma cidade a cerca de 150 quilômetros de Ponta Porã.
P - E como é que você descreveria a sua mãe?
R - Vixe, ela é uma baixinha, menor que eu, que eu também sou baixa, mas ela é menor que eu, eu diria que ela é uma abelha, porque ela é elétrica, eu digo que ela é ligada no 220, é uma pessoa bem dinâmica, extremamente solícita e que adora ajudar os outros, sorridente, encantadora de gente. Onde ela vai, todo mundo quer adotar ela. Ela tem hoje 81 anos, mas sempre foi uma pessoa muito querida, muito bem relacionada com a vizinhança, na igreja onde a gente frequentava. Uma pessoa, eu diria, de muito boa índole mesmo.
P - E o que que ela fazia?
R - Ela sempre foi dona de casa. Meu pai era o que trabalhava e o que provia toda a família. Então eles casaram, tiveram cinco filhos, escadinha, eu sou a segunda, um irmão mais velho, eu, outro irmão e o resto meninas. Só que depois de 12, 13 anos dessas escadinhas, ela engravidou de novo, ela chegou a ter uma perda, e depois engravidou e teve uma filha bem temporã, com cerca de quase 20 anos de diferença pra mim, que era a segunda. E essa minha irmã, ela nasceu quando meu pai, com 47 anos, teve um AVC e morreu. Então assim, de repente minha mãe, que era só dona de casa, cuidava dos filhos e da casa, deu um giro de 360 na vida dela. Meu irmão mais velho já era casado, eu estava fora estudando, então foi uma situação bem difícil, mas superou. Tenho essa minha irmã hoje como quase uma filha minha, eu meio que assumi a minha mãe com essa minha irmãzinha e meus outros irmãos que eram menores ainda, mas uma família que o pai criava tudo muito debaixo da asa dele, só o irmão mais velho que já tinha saído de casa porque tinha casado. E minha mãe sempre… Eu diria que ela era um pouco dependente do meu pai das decisões. Então sempre meu pai que tomava todas as decisões, o que fazer, o que não fazer. Depois que ele faleceu, basicamente eu fiquei nessa função com ela. E hoje ela ainda mora perto de mim, eu cuido dela, ela mora sozinha, mas eu e minha irmã, essa mais nova, cuidamos dela direto.
P - E o que seu pai fazia?
R - Meu pai era marceneiro. Morávamos em Dourados. E ele era sócio numa marcenaria. Era um excelente marceneiro, pelo que eu me lembro. Eu tinha, na época, 19 anos, quando ele faleceu. E acho que ele era um dos melhores, porque daquelas grandes construções, em Dourados quase todo mundo, eram móveis que ele fazia. Ele era muito cuidadoso. E quando ele faleceu, como ele teve uma AVC em questão de duas horas, ele já faleceu, e a gente, tudo sob a asa dele, ninguém tinha conhecimento dos trabalhos dele, com quem ele tinha obra, com o que ele estava fazendo. Era ele o sócio, eu estava estudando em Campo Grande, meu irmão casado já morava em São Paulo, e os outros tudo menores, minha mãe dona de casa. E aí quando ele faleceu, o sócio falou que a gente não tinha nada para receber, só dividiu alguns equipamentos que tinha na marcenaria. Então assim, minha mãe ficou bem precária em relação econômica e com uma filha nascendo, que nasceu 40 dias depois da morte do meu pai. Então foi um período bem difícil das nossas vidas, a gente morava em casa própria, mas era uma casa simples, eu já estudando aqui, eu queria fazer medicina na época e era um curso de dedicação integral, o dia inteiro, mas eu tive que repensar e trabalhar para ajudar minha mãe e a criar minha irmã menor.
P - E como é que você descreveria o seu pai?
R - Nossa, um cara extremamente amoroso, mas de poucas demonstrações. Ele era muito preocupado com a alimentação, com a segurança, mas assim, não era muito de ficar demonstrando muito carinho. Eu diria que ele era um provedor, mas era bem amoroso, só que não era só de ficar demonstrando, mas era muito família, extremamente correto, isso eles dois deixaram de legado para todos os filhos, a retidão na vida pessoal e profissional e era uma pessoa assim, não muito de muitos amigos, muito poucos amigos, poucas relações, mas era uma pessoa bem caseira, vamos dizer assim, para visitar alguém ou viajar era muito pouco. No máximo, a família mesmo, [intervenção]. No caso da minha mãe, porque a família dele a gente teve pouca convivência, a não ser com a minha avó e o irmão dele. Então a relação com a família da minha mãe era maior do que com a família dele. Embora a mãe dele tenha morado com a gente e falecido, inclusive na nossa casa. Mas ele era um cara muito família. Um excelente profissional. Era uma referência na marcenaria, eu sei disso, mas não muito social, vamos dizer assim. Eu me lembro quando chegava a visita em casa, ele meio que apartava, não era muito de social, não. Mas era um excelente pai.
P - Eu queria saber exatamente isso, se você se lembra de momentos assim, se você chegou a conhecer os seus avós?
R - Sim, da parte do meu pai conheci minha avó e um tio. Essa avó que morou na minha casa, eu devia ser adolescente, eu devia ter uns 13, 14 anos. Na época eu estudava. A gente, quando criança e adolescente, com cinco filhos, meu pai marceneiro, só ele trabalhando e minha mãe dona de casa, a situação econômica não era das melhores. Não nos faltava nada, mas também não tinha excesso. Mas eu lembro que minha mãe sempre com os vizinhos se relacionava muito bem. E a gente, eu e meu irmão mais velho, cuidávamos das crianças dos vizinhos, que eram amigos da minha mãe. Era cuidava mesmo como se fosse um trabalho no contraturno da escola. E a gente sempre gostou de criança, tanto eu quanto meu irmão, e ajudávamos também nos deveres da casa. Já na adolescência, quando a minha avó morou com a gente, a gente morou um período em Ponta Porã. Mudamos para lá durante uns três anos mais ou menos, e eu me lembro que nesse período então minha avó, a mãe do meu pai, morou com a gente e eu não me lembro muito de relações com ela, não. Eu não sei se ela já estava meio isolada, não era uma pessoa muito velha quando morreu, não. Eu diria que talvez ela tivesse uns 60, 70 anos quando faleceu. Mas eu lembro assim que sempre foi muito cercada de cuidado, mas eu lembro que não tinha muita demonstração de carinho, tanto que eu lembro que a primeira vez que eu vi meu pai soltar uma lágrima foi no enterro da minha avó, quando ela faleceu, essa que era a mãe dele. Já a família da minha mãe, que eram vários irmãos, as tias principalmente, a gente conviveu muito desde criança, nas férias, até hoje tem muita troca, muita relação de proximidade. Então, minha avó, por parte da minha mãe, também foi uma mulher extremamente guerreira, eu diria, porque ela ficou viúva, meu avô esteve internado em manicômio e muito cedo ele deixou ela por óbito, mas com oito filhos pequenos. Então ela criou os filhos lavando roupa, e educou todos, formou todos, e era uma pessoa muito enérgica, mas muito batalhadora. Ela faleceu com 72 anos, se eu não me engano. A gente teve uma relação muito próxima e muito forte, sempre de muito carinho. Eu era a neta mais velha, e na época dos netos, dos filhos mais velhos da minha mãe, não tinham outros netos. Então, eu e o meu irmão mais velho, os três primeiros, fomos bastante privilegiados com relação a mimos, com as tias, com as avós, então foi muito gostoso, com os tios…
P - E como era Dourados e depois Ponta Porã durante a sua infância e adolescência?
R - Então, o que eu lembro de Dourados... Dourados é uma cidade do interior, mas uma das cidades mais economicamente desenvolvidas do estado. Na época, o estado era Mato Grosso. A gente é Mato Grosso do Sul mais recente. Não lembro agora quantos anos, mas é pouco. Na época ainda era Mato Grosso, mas era uma cidade bem desenvolvida, sempre foi muito ligada à agropecuária e a agricultura. Principalmente a agricultura porque o solo de Dourados é considerado um dos melhores solos do Brasil para a agricultura… A terra roxa. Então, inclusive a cidade mesmo na época não tinha muitas ruas asfaltadas e a minha era uma rua com chão mesmo, com terra. E eu morava bem pertinho do centro, a mais ou menos umas quatro, cinco quadras do centro. Tinha um grande hospital muito próximo da minha casa, cerca de duas quadras, que é o Hospital Evangélico. E próximo a esse Hospital Evangélico tinha uma praça pública, que era uma quadra. Na minha época, esse era o melhor e maior acontecimento. O Shopping não existia naquela época. Então a nossa diversão e todo o lazer era nessa praça ou brincar na rua com os vizinhos, que à época a gente podia. Os pais deixavam os filhos jogar betes, esconde-esconde, tudo na rua. Eu me lembro dessa infância muito, muito legal, mesmo. Me diverti muito, aprendi muita coisa: jogar bola, correr, depois andar de patins na praça, os meninos andar de skate, tudo coisa muitas vezes manual, que a gente não tinha condições de comprar, então os meninos inventavam. Foi muito boa, uma infância muito legal, que infelizmente hoje as crianças não tem mais, minha filha não teve isso, não pôde.
P - E como é que era essa praça?
R - Eu lembro que ela tinha um parque com vários brinquedos, balanço, coisa pra subir, roda, tinha roda gigante, tinha bastante brinquedos. A gente já era adolescente, mas a gente ainda conseguia brincar, porque hoje as praças são tudo fechadas, teladas. Na época não tinha nada disso, era tudo aberto. Tinha uma biblioteca, tinha provavelmente um espaço pra realização de eventos, mas eu me lembro muito claramente da biblioteca, e era bem arborizada. Acredito que ela ainda seja, faz muitos anos que eu não vou lá. Mas era uma praça, pra nós, era assim, o luxo, o top do luxo. E era como se fosse o nosso quintal, porque era muito próximo da nossa residência. Então, todas as minhas amigas, amigas dos meus irmãos, íamos em grupo brincar na praça. E os pais deixavam, porque era tranquilo, não tinha problemas que temos hoje de segurança. Então, foi uma infância muito gostosa. A praça me marcou bastante.
P - E tem algum cheiro, algum sabor que lembra a sua infância?
R - Mato. Nossa, sempre minha casa em Dourados era uma casa própria, simples, pequena, mas com um quintal muito grande, com muita árvore. E o que me lembro muito é plantas, mas sobretudo frutíferas, manga, caju, abacate, figo, muitas plantas frutíferas no quintal. E pra gente era... Hoje você vai no mercado e em qualquer época você encontra as frutas. Na época era a época da manga, a época do abacate, a época do figo. Minha mãe fazia muito doce com os frutos da casa. Então os meus cheiros e sabores são muito da casa e ligado à vegetação. A gente, por exemplo, na minha casa não tinha muito hábito de animal dentro de casa. Então a gente não tinha pet, gato, cachorro, não. Foi uma irmã minha que teve uma vez um cachorro por algum tempo, mas ele foi atropelado e foi o único. Eu nem lembro o nome dele, porque eu nunca tive muita relação com pet. Mas o quintal, as plantas e especialmente as frutas. Hoje ainda, manga é uma das minhas frutas prediletas. Carambola hoje, que é bem raro, tinha pé de carambola na minha casa. Minha mãe fazia doce, era lindo doce de carambola, de figo.
P - Você brincava no quintal da sua casa?
R - Sim, brincava no quintal. Tinha algumas amigas, mas uma em especial que era mais próxima e que a gente estava muito juntas, estudávamos juntas, íamos para a escola juntas. A gente, para ir para a escola, levava uma hora andando e voltando. A gente brincava de fazer comidinha, de fazer boneca, muito. A gente brincava muito no quintal, na rua e na praça.
P - E me conta quando você mudou pra Ponta Porã, como é que foi?
R - Então, a gente já foi, eu na adolescência, acho que primeiro, segundo ano da adolescência. Foi um horror, porque eu detestei, odiei, não queria ir, mas é óbvio que na época filhos tinha, eu acho que estava certo, não foi uma coisa legal, gostosa. Então a gente saiu da nossa casa, alugou uma casa em Ponta Porã. Na época, eu sei que foi pra ficar mais próximo dos meus avós, tanto da minha mãe quanto da mãe do meu pai. E foram basicamente três anos, eu o odiei. Porque eu tinha todos os meus amigos, eu tinha a praça, eu tinha o quintal. Eu nasci naquele lugar e eu era criada naquele lugar, e de repente ir pra um outro, que até conhecia a cidade, tinha meus parentes, minhas tias, tudo, mas uma coisa é você estar de visita, a outra é mudar. E nova escola e tudo. Pra mim foi um período de bastante revolta, eu diria. Foi bem aborrecente mesmo. Depois eu acabei fazendo novas amizades por lá, mas a gente ficou no máximo uns três anos e depois voltou pra mesma casa, onde eu fui sair com 19 anos.
P - E como é que era Ponta Porã nessa época?
R - Ponta Porã sempre foi uma cidade de divisa, do interior também, mas divisa fronteira com Paraguai. Sempre foi uma cidade muito violenta, extremamente violenta. Então assim, eu saí de um lugar onde você podia brincar na praça, na rua, nã nã nã, e ir pra uma cidade que eu não queria ir na época da adolescência, ainda que não podia nada, porque tudo era muito perigoso. Você podia estar andando na rua, mais ou menos como o Rio, e levar um tiro perdido. Isso acontecia muito. Às vezes ainda acontece. Lá não é tão frequente quanto foi no passado, era bem faroeste mesmo a cidade. Porque como é fronteira seca, se matava alguém aqui no Brasil, corria e escondia no Paraguai. E o vice-versa era verdadeiro. Porque tinha muitos quilômetros de extensão para você fugir, entende? Então era uma cidade perigosa, uma cidade menor do que Dourados e muito voltada para esse... A cidade do Paraguai sempre foi um local de venda de produtos de outros países, então brasileiros sempre foram muito para a fronteira comprar produtos de outros países porque era menor o imposto. Na época eu me lembro que tinha muita importação não legal, vamos dizer, contrabando, que é a palavra correta, de uísque, cigarro e outras coisas que eu não me lembro bem porque eu não me inteirava muito das conversas com os adultos, mas eu me lembro que tinha muito tráfico. E foi interessante esse período lá, porque a convivência com os paraguaios, são pessoas que eu sempre gostei muito dos paraguaios. A minha família toda sempre se relacionou muito bem com eles e aprendi a falar um pouco. Na época, eu já não lembro mais nada, de contar alguns números em Guarani, algumas palavras. É um pessoal também bastante sofrido, mas muito acolhedor, eu diria, os paraguaios. Até hoje eu tenho alguns amigos paraguaios não daquela época, mas é uma nação que eu me muito bem com as pessoas. Tive funcionários paraguaios por muitas décadas.
P - E como era o clima, tanto em Dourados quanto em Ponta Porã?
R - Quatro estações bem definidas. Dourados, o clima um pouco mais ameno, não tão extremamente quente, nem tão extremamente frio, mas tinha umas épocas de geada, de frio abaixo de zero, chuvas mais regulares na época, tanto que acho que o município se destacava com a produção de alimentos na agricultura. Já Ponta Porã não, Ponta Porã sempre foi mais duro, vamos dizer assim, na questão clima para o frio. Então sempre entravam as frentes frias, mais duras, mais fortes. Até o tipo de roupa que você usava era até diferenciado. Ponta Porã é mais ou menos como no sul do Brasil, faz aquele friozão forte. Só que não demora tanto tempo, demora aí uma semana, dez dias, mas é mais frequência e bem mais forte do que era em Dourados.
P - E dos seus irmãos, você contou que você era a segunda, como é que é o nome deles? Como era a convivência na infância?
R - Então, meu irmão mais velho chamava Jair, a diferença de idade era um ano e pouquinho entre eu e ele. Depois tinha o Joel, que era talvez uns dois anos, no máximo, mais novo que eu. Depois tinha um intervalo de uns três, quatro anos pra minha irmã Neliane. E ela com a minha outra irmã, Ester, era um ano exatamente de diferença, mas como a diferença dessas duas já era um pouco maior comigo, minha mãe deixava eu brincar com elas como se fossem minhas bonecas. Então minha mãe deixava eu fazer roupa para elas, dar banho, arrumar, cortar cabelo, enfim, elas eram minhas bonequinhas. Porque essa minha outra irmã bem mais nova, a convivência já foi assim, eu era já adulta, e ela bebezinho. Então assim, a relação com ela foi de quase mãe mesmo pra filha. Tanto que na adolescência ela entrou em crise achando que eu tinha engravidado dela jovem e minha mãe assumiu. E aí, a gente perdeu, a minha mãe perdeu, ela grávida de oito meses, a gente teve que mostrar as fotos. Ela foi pra psicologia porque o meu cuidado com ela foi quase que de pai mesmo e de mãe junto com a minha mãe. Mas esse tempo também foi muito família. Eu acho que eu aprendi isso com meus pais. E quando você é criado num grupo, não tinha aquela coisa individual, tudo era dividido, era tudo racionado. Então assim, você aprende a dividir cedo, desde cedo, compartilhar, defender seu espaço, a querer mandar. Eu sempre assim, no meu irmão mais velho eu não mandava muito, mas para o resto eu mandava em todas. Tanto, quando o meu irmão mais novo que eu mandava, a hora que ele virou adolescente e homem, aí a coisa mudou. Porque daí ele já era homem, então a relação vai mudar. Mas assim, o carinho e a relação que a gente criou foi muito, muito forte com todos os meus irmãos, com qualquer um deles. A gente tem uma relação muito boa. Eu já perdi esses dois irmãos, o mais velho e o mais novo. O mais novo primeiro, o mais velho foi agora recente na pandemia, mas a relação era muito boa, de muito cuidado, muito carinho um com o outro. Foi um laço muito bom na infância.
P - Eu queria saber como é que foi o momento de entrar na escola? O que você sentiu? Como é que você ia?
R - Então, como eu era a segunda, eu já fui, não lembro se foi junto ou logo depois do meu irmão, não lembro dessa primeira infância. Eu lembro das cartilhas, dos desenhos. Eu gostava, sempre gostei de estudar, isso desde pequena. Sempre tentava fazer muito bem feito tudo que eu fazia. Porque eu me lembro, e isso me marcou, que eu trazia pro meu pai, pra minha mãe ver, minha mãe sempre elogiava, falava. Meu pai “tá bom, filha”. Nunca vi assim “parabéns, nossa que legal”, nunca do meu pai. Então isso foi marcante, mas eu lembro que eu sempre estava entre os primeiros, sempre fui competitiva no sentido de que eu quero fazer tudo certinho, não gostava e não gosto, até hoje ninguém me chama atenção, então me dê as regras que eu vou cumprir, mas eu sempre gosto de fazer tudo muito bem feito.
P - E tinha uma matéria que você gostava mais ou algum professor que...
R - Eu lembro que já no ensino fundamental, matemática me chamava atenção. Eu gostava muito de matemática e eu não sei se era por causa de um professor. A gente talvez naquela adolescência tenha, eu não lembro se teve alguma paixonite ou não, mas eu sempre lembro que eu gostava, uma das matérias prediletas era a matemática, eu gostava. Já para o ensino médio, acho que não ficou mantendo a matemática. E aí era aquela coisa já de pensar em universidade. Eu fui a primeira da minha família a fazer um curso universitário. Então, meu irmão casou cedo e não chegou a ir para a universidade. E eu queria fazer medicina, então eu sabia que era muito concorrido, que não era uma coisa fácil, tanto que meus pais jamais teriam condições de uma universidade particular, isso sempre foi ensino público. A família toda estudou ensino, escola pública a vida toda. Então, minha única chance era entrar numa universidade pública. E na época, eu morava em Dourados, a única universidade pública, a única, era em Campo Grande. Por isso que eu vim fazer o terceiro ano um concursinho em Campo Grande para fazer Medicina. Então, me parece que, assim, do que eu me lembre, no Ensino Médio já foi me direcionando, porque eu já queria fazer Medicina, a estudar mais a parte biológica. Mas, como eu te disse, sempre fomos uma família de situação econômica não muito grande. Assim, com 15, 16 anos, todo mundo já começava a trabalhar na minha casa. Então, meu irmão, com 15, 16 anos, limpava a casa dos vizinhos. Eu acho que depois ele arrumou empregos. E eu com 17 anos fui trabalhar no hospital que era a duas quadras da minha casa como recepcionista, na época podia ter a carteira assinada. Então com 17 anos eu entro em trabalho formal com carteira assinada e tudo, e aí eu estudava de manhã e trabalhava oito horas, logo depois do almoço eu entrava no hospital e saia oito horas da noite. Eu acho que foi no hospital que me acendeu também mais ainda esse desejo de fazer medicina, que eu já tinha desde pequena, de cuidadora, de querer fazer alguma coisa para a saúde das pessoas, mas no hospital isso me chamou mais atenção ainda. Eles me deixavam assistir parto, me deixavam ajudar na sala de sutura, primeiro-socorro, eu sempre estava ali. Chegou um acidentado, eu corria lá para tentar ajudar, embora minha função fosse de recepcionista. Então foi bom, isso também. Me influenciou, eu diria.
P - E como é que foi essa mudança para Campo Grande? Você veio sozinha?
R - Sim. Então meu pai ainda era vivo, meu irmão casou e foi morar em São Paulo. Meu pai, então, trabalhava, você estava em casa, eu já trabalhava. E aí eu sempre, dos meus primeiros salários, eu já fazia uma poupança. Ajudava meus pais, mas fazia uma poupança. E eu entendi que pra eu fazer um vestibular, na Universidade Federal, era importante que eu fizesse aliado a um cursinho, porque eu via que as pessoas que passavam no vestibular tinham mais estudos que eu. Eu estudava na escola pública e lá eu só fazia o Ensino Médio. Então, como eu já tinha a família da minha mãe morando em Campo Grande, meus pais permitiram, principalmente meu pai, que era o mais “together”, aquelas pessoas que criam os filhos tudo junto, permitiu que eu viesse morar com a irmã da minha mãe, que também era minha madrinha, para eu fazer o terceiro ano com o cursinho. Então eu saí do emprego e vim sem emprego, mas morar na casa dela para estudar e focar na medicina. Eu estava fazendo isso quando meu pai faleceu, então só estudando de manhã e à tarde, e aí meu pai, minha mãe, grávida, meu pai falece em novembro desse ano que eu tava aqui fazendo o terceiro ano com o cursinho, no dia 19 de novembro meu pai falece e aí o meu vestibular era dia 3, 4 de janeiro. Minha irmãzinha, que minha mãe tava grávida, nasce no dia 1º de janeiro. Eu venho fazer o vestibular e eu não passo. Só que nesse cursinho eu era os top 10. Eu tava entre os 10 melhores do cursinho onde todos passaram, exceto eu, no vestibular. Era tudo pessoal pra medicina, pra odontologia, veterinária, os cursos mais concorridos da universidade. Todos japoneses, eu era a única brasileira. Então, assim, era certo dentro do nosso grupo que tinha que passar. Porque a gente estudava muito, e eu sempre fui muito dedicada. A gente não estudava só de manhã e à tarde, estudava à noite, varava à noite estudando. Tínhamos um grupinho dos dez que era ali estudiosos. E aí a gente faz o vestibular e eu sou a única que não passo. E aí tinha perdido o meu pai, não tava trabalhando e nessa situação financeira que a gente ficou sem muitas rendas pra minha mãe, inclusive criar a minha irmãzinha, então eu resolvo, eu entro em depressão, fico mais ou menos uns seis meses bem mal, mas ao mesmo tempo não dava pra.. Médico naquela época nem se falava em psiquiatra. Nem remédio e nem tínhamos plano de saúde para tal. Tudo que se tinha na época era público. E ao mesmo tempo precisava trabalhar. Então assim, não dá para ficar choramingando, “não passei, tem que ver o que eu vou fazer e ao mesmo tempo ajudar minha mãe e minha irmãzinha”. E aí eu arrumo um emprego, começo a trabalhar. A minha mãe vem pra Campo Grande, também vem morar com a minha avó, e eu continuo com a minha tia, minha mãe vem com a minha irmãzinha, e o meu trabalho era o dia inteiro, eram oito horas. Então, assim, fica difícil eu pensar em parar de trabalhar pra só estudar, que era o dia inteiro, a medicina, e ao mesmo tempo eu precisava do recurso pra continuar ajudando minha mãe e minha irmã. Então, eu resolvo fazer Biologia, que era um curso noturno, pra quando tivesse uma situação melhor, eu voltar e fazer medicina e já eliminar algumas matérias. Essa é a minha ideia: eliminar algumas matérias da medicina, porque eu ainda continuava querendo medicina. Só que na biologia, eu comecei a gostar da biologia. Já no segundo ano, me encantar com a biologia, buscar fazer estágio. E aí eu decido, não quero mais medicina e vou seguir com biologia. E aí eu me formo em biologia.
P - Então quando você começou a fazer, você vai abandonando essa vontade da medicina?
R - Isso. Na época eu não aceitei, porque eu fiquei até com depressão. Mas hoje eu sempre falo que Deus escreve certo pelas linhas tortas. Então eu sempre questionava e não entendia, era um pouco revoltada. Mas hoje, nossa, eu dou milhares de graças a Deus, porque sou tão plenamente realizada na biologia. E acho que consigo fazer um trabalho que é diferente do que se eu estivesse na medicina. Tem muitos bons médicos, eu queria ser pediatra, do que gente trabalhando no campo, como eu faço. Então, assim, graças a Deus que foi assim. Mas eu só fui entender isso muitos anos depois.
P - E como foi esse momento de luto, de assumir novas responsabilidades que você não estava esperando?
R - Foi difícil. Eu fiquei uma época que eu tinha síndrome de perda. Então, assim, qualquer coisa parecia que eu ia perder alguém da família. Acontecia qualquer coisa, gente, eu vou ficar sem minha... Já fiquei sem meu pai, vou ficar sem meu irmão, vou ficar sem minha mãe. Era um susto constante. E uns três ou quatro anos depois, eu acho que meu pai faleceu, minha mãe começou a ter problemas de saúde. Ela era muito nova. Quando ela teve essa minha irmãzinha, ela tava com 40 anos. Essa que eu tenho quase 20 anos de diferença. E ela começou a trabalhar também, minha mãe. E aí ela começou a ter problema de estômago e foi por isso que ela veio morar em Campo Grande, porque pra ter atendimento médico aqui, ter o apoio da família, ela veio pra cá. E ela precisou passar por uma cirurgia, por exemplo, onde ela ficou entre a vida e a morte. Uma cirurgia grande. O médico falou assim, teve um dia que o médico falou pra gente, falou assim: “A tua mãe, se ela sobreviver a essas 24 horas… A gente não sabe se vai sobreviver, mas tem o prazo de 24 horas”. Foi, como se tivesse uma outra perda. Então, não foi um momento fácil, foi bem difícil. E depois disso eu começo a tratar com homeopatia, essa questão da perda, essa síndrome, porque pra mim tudo parecia que ia perder. E hoje o trabalho melhora isso, mas talvez tenha algumas coisas incubadas que não foram tratadas.
P - E na biologia, o que você gostava de estudar? Com o que você se apaixonou?
R - Animais. A fauna sempre me cativou mais do que a botânica, a vegetação. Nas aulas de fauna, o que tinha pra mexer com bicho, eu queria estar sempre metida com isso. Nas de botânica, eu fazia o necessário e o importante pra aprender, mas não era aquele prazer como era na fauna. Então, sempre gostei muito, principalmente das áreas afins mesmo, das biológicas mesmo. Na época eu lembro que eu não gostava muito das estatísticas, das bioquímicas, mas as biológicas e de fauna eu amava de paixão. Na época não tínhamos muitos projetos de conservação no Brasil e principalmente aqui no Pantanal tinham um projeto com jacaré no Pantanal de estudo de biologia, mas eu acho que se eu tivesse na época mais conhecimento como hoje os biólogos estudantes têm. Nossa! Eu teria ido para a área rapidinho. Eu fui fazer pesquisa com peixes, com genética, gostava bastante de genética também, mas a fauna que sempre me encantou mais. E aí depois de formada, eu ainda estava trabalhando, eu cheguei a ser secretária executiva no Departamento de Estradas e Rodagens em Campo Grande, tinha um bom salário, já tinha carro próprio, mas eu sempre dizia assim: “Não, agora eu quero trabalhar na minha área, na biologia”. E não tinha oportunidades na época. Então surgiu uma bolsa de pesquisa para trabalhar na Embrapa, gado de corte aqui em Campo Grande, com melhoramento genético de brachiaria. Nada a ver com o que eu queria, que era a fauna. Mas eu fui lá e aprendi muito, principalmente com a pesquisadora que era a responsável, a Cacilda do Vale. Hoje já está aposentada, mas que foi uma boa referência como pesquisadora para mim. E também estar naquele ambiente da Embrapa é muito bom, um ambiente de pesquisa, você tem uma aprendizado muito grande, convivência com outros pesquisadores. Foi um ano e pouco, muito bom que eu passei lá.
P - E nessa época, o curso de Biologia aqui em Campo Grande, era de alguma forma voltado para as especificidades do Pantanal ou era geral?
R - Não, não era geral e nem era muito voltado para o Pantanal. Na realidade, ele começou como a Biologia era curso recente. Eu sou uma das primeiras turmas, eu não sei te dizer qual. Talvez a quarta ou a quinta, mas não era muito antigo o curso, não. Porque tenho poucos colegas mais velhos que eu na biologia. Eu entrei em 83, 84 eu acho. E aí nesse curso, a maioria dos alunos da biologia eram aqueles que não tinham passado na medicina, na veterinária, na odontologia, nos cursos afins da área de saúde, a maioria. Poucos eram realmente “eu quero fazer biologia”. E a turma era pequena, não era muito grande, o curso era de licenciatura, não era um curso de biologia bacharelado, como tem hoje os dois: licenciatura e bacharelado. Então a licenciatura, o que ele formava? Biólogos para dar aula. E vem isso durante todo o curso, só que os professores eram maravilhosos. Eram biólogos natos, muitos deles até naturalistas, eu diria. Embora então o curso fosse de licenciatura, eles nos despertaram muito a questão da biologia plena, da biologia mesmo naturalística, da pesquisa. E alguns, muito poucos professores faziam pesquisa no Pantanal, na Embrapa Pantanal e aí eu consegui entrar nesses grupos de pesquisa e como estudante eu fui para o Pantanal fazer estágio duas vezes na Embrapa Pantanal. Mas o curso era assim, o normal que todo mundo tinha que fazer mesmo era dar aula, era fazer estágio em colégio. Essa parte eu queria sempre pular. Eu fazia o que era obrigatório, mas não era o que me encantava. E eu sempre disse que eu não gostava de dar aula, que eu queria trabalhar com pesquisa. E fui buscar isso.
P - E como é que foi? A gente já fala sobre essa busca, mas como é que foram esses estágios no Pantanal? Como é que foi a primeira vez que você foi?
R - Então, a primeira vez que eu fui pro Pantanal foi com o professor Eliezer, que trabalhava com o Projeto Jacaré no Pantanal, fui eu e uma colega de sala, a Maria do Carmo, fomos fazer estágio com ele, que ele fazia na época o estudo do desenvolvimento embrionário dos jacarés, se era afetado ou não pela temperatura, a mudança e variação da umidade da temperatura no ninho. Então o estágio consistiu durante 40 dias, percorrer o Pantanal a pé, a cavalo, de carro, com o apoio dos pesquisadores locais, buscando os ninhos de jacaré que eram na borda das matas, encontrava esses ninhos, a gente marcava e escolhia uma posição em um ou dois ninhos para fazer essas observações e medições de temperatura e umidade a cada uma hora, durante 24 horas, durante o período de incubação todo. Os jacarés colocam de 40 a 50 ovos em canarinho, as fêmeas colocam ovos e a fêmea fica chocando. Então a gente geralmente ficava numa árvore empoleirada e observando com máquina fotográfica e anotando o tempo todo o comportamento e medindo a cada uma hora a temperatura e a umidade. Hoje você tem equipamentos que você coloca e não precisa estar lá. Então na época a gente tinha que estar. Então não era uma coisa assim muito simples, vamos dizer, e era bem “hard”, porque era mosquito, era carrapato, era frio, era calor, porque o Pantanal é bem semelhante a Corumbá e Ponta Porã. Você pega aquelas frentes frias, que é uma área muito aberta, vai até nos ossos o frio. E a gente tinha que levantar de madrugada, o despertador nos tocava pra gente ir lá e medir a temperatura do ninho. Então foi bem hard, mas pra gente era um desafio. E eram duas meninas só, porque nos deixavam lá. Tinha uma, como se fosse uma van, era um motorhome, mas era uma van, era um quarto onde a gente também tinha comida. E ficava ali acampada perto do ninho. Ficava fazendo observação na árvore. E à noite, as duas iam medir de hora em hora a temperatura do ninho. Mas o professor não ficava. Ele nos deixava no começo da pesquisa e vinha buscar no final. Então, a gente ficava meio que sozinha ali. Na época, isso ainda era possível. Hoje, no Pantanal, com a questão das onças, isso jamais é feito, jamais seria feito de novo. Mas foi uma experiência muito boa, aprendi muito. Conheci muito do Pantanal, porque eu não conhecia. Foi a minha primeira experiência. Depois eu fiz vários cursos, tive outras, mas essa foi a primeira. Foi muito boa também.
P - E dava medo?
R - Claro que dava, mas a vontade de aprender e de fazer não media consequências.
P - E a primeira...
R - A vontade de fazer as coisas superava o medo, tanto meu quanto da minha amiga.
P - Você lembra um dia que vocês ficaram sozinhas?
R - Vários, todos a gente ficava. Era punk. Na realidade, a gente sempre pensava em onça, cobra. Mas o maior perigo mesmo eram abelhas, marimbondos e carrapatos. Esses eram os maiores problemas que a gente tinha. Porque os ninhos eram bem em borda de mata, às vezes beira de rio também. E essa é uma área que tem muito espinho, tem uma palmeira, uma planta que chama... Ai, meu Deus. Esqueci o nome, ela parece um abacatinho, cheia de espinhos. Espinhava muito a gente. E é uma área que fica muito com folhagem, então pode ter cobra. Mas o que você pegava mais mesmo era carrapato e o perigo maior era as abelhas e os marimbondos. Então eu lembro de ter levado uma picada de marimbondo bem nas costas, que doeu uns três dias. Se chama marimbondo-cavalo e isso assustava mais. E na época a gente nem levava nada para socorrer se você tivesse um choque anafilático, nada. Simplesmente vai! Acho que era Deus cuidando.
P - E como é que... Esse foi seu primeiro contato, assim, digamos, com... Lógico, você esteve na faculdade durante as aulas. Mas foi seu primeiro contato em campo com animais silvestres? Como é que foi?
R - Foi o primeiro contato em campo ver os animais, primeiro, muitos, eu nem conhecia, então fui conhecer nessa viagem. A maioria dos grandes mamíferos e répteis do Pantanal eu conheci nessa viagem. Aves, que eu também não tinha muito conhecimento. Então foi esse contato, mas eu acho que mais que tudo isso, sobressaiu também muito os pantaneiros, as pessoas que moravam na fazenda. A gente foi ficar numa fazenda de campo de pesquisa da Embrapa Pantanal, que chama Nhumirim. Bem no meio do Pantanal fica mais ou menos umas três horas de Corumbá e de Campo Grande, umas oito ou nove. Então, as pessoas que moravam naquela região eram poucas famílias, eram muito queridas, porque como eles ficavam ali isolados, qualquer pessoa que chegava de fora era novidade. Então, eles acolhiam tão gostoso, era como se tivéssemos novas famílias. Isso me marcou bastante, além da fauna, obviamente, e da própria paisagem do Pantanal. Era muito linda também a paisagem.
P - Como foi esse primeiro contato com a paisagem?
R - Ah, deslumbrante. Era um descortinar sem fim. Porque no Pantanal é um dos lugares no mundo, pelo menos que eu conheça, onde você pode avistar muitos exemplares da fauna em pouco tempo. Se você vai para um Pantanal, se você vai com conhecimento, um guia que conheça, num dia você pode visualizar mais de 100 espécies. Em outro bioma, eu já estive na Amazônia, por exemplo, você pode andar o dia inteiro, pode até ouvir alguns bichos, mas não vai ver tanto, embora tenha mais, do que você vê no Pantanal, porque é uma área aberta. E os bichos estão por ali, comendo, se reproduzindo, brigando, enfim. É uma festa, eu diria. É muito bom.
P - E como é que seguiu a sua formação, você se formou, começou a fazer o estágio no Embrapa, como é que foi essa experiência depois do Embrapa?
R - Então, eu continuei o curso, resolvi seguir com a biologia. Eu voltei ao Pantanal fazendo cursos de conservação ainda enquanto estudante. Esse estágio foi o único no Pantanal, depois eu fui fazer em laboratório lá no interior de São Paulo. Fazia, era legal tudo, mas aí eu já queria, depois desse primeiro estágio no Pantanal, a minha vontade já era estudar algum bicho no Pantanal. Eu saí dali: “Eu tenho que voltar para estudar algum bicho”, e eu pensava no cervo, grandão, bonitão, que eu podia estudar ele. Eu estive lá no Pantanal já nesse estágio, um pesquisador na Embrapa, que é o Walfrido Moraes Tomas, que ainda é pesquisador. Ele, o Guilherme e a Zilca Campos, que na época estavam atuando como jacaré, mas o Walfrido já estudava um pouco os cervídeos e os veados. Então, eu gostava muito, me chamava bastante atenção já nessa época.
P - Sabe o que eu ia te perguntar? Acabei lembrando agora. Quando você foi fazer seu estágio, já eram os anos 80.
R - Já, já era. Eu tava já. Devia ser 86, 87, 85.
P - E o tráfico, pelo que o Ângelo contou ontem, já tinha.
R - Sim, a gente andava no Pantanal e eles trabalhavam com jacaré, exatamente porque na época já tinha o contrabando de jacaré. Então a gente andava, mas você tinha muito cuidado de andar à noite. Mas a fazenda da Embrapa, a Nhumirim, era uma área não muito grande e mais protegida. Muitos pesquisadores andando. Ali nunca tivemos caçadores. Mas nas fazendas vizinhas, que eram maiores, mais abertas e tinham muitos acessos, sim. A gente andava por locais que tinham tido caçadores. Então, era a época dos coureiros. Mas nessa época eu ando lá no Pantanal, vendo jacaré, vendo outros bichos, vi araras azuis também, mas não tinha um despertar, vamos dizer assim, para as araras, entende? Era mesmo a fauna, eu estava encantada, conhecendo, e me encantavam os grandes, que eram os cervídeos e os veados. Me encantavam bastante.
P - Em que momento isso muda?
R - Quando eu vou fazer um curso de conservação da natureza, já depois de formada, e a gente volta para o Pantanal, mas um outro Pantanal, esse Pantanal de Miranda, especificamente na Caiman, com um professor da USP, Álvaro Fernando de Almeida, que estava fazendo levantamento de aves lá na Caiman, porque ela estava criando uma RPPN, e eu vou como uma estagiária deles. Não, eu já estava fazendo o curso de conservação da natureza. Trabalhava na Secretaria de Meio Ambiente, era formada. Quando eu me formei, eu fui fazer um ano e pouco de estágio na Embrapa Pantanal, com melhoramento genético de brachiaria. Então, eu não conseguia ainda, só que eu estava lá, estava tudo bem, o estágio eu era bolsista, ganhava menos do que eu ganhava na Secretaria, do DERSUL, como secretária executiva, mas eu estava fazendo pesquisa, eu estava bem. Só que era uma bolsa de um ano e aí essa orientadora que eu trabalhava com ela, pesquisadora, ela tentou até que eu fosse fazer mestrado fora com esse melhoramento genético e eu me via lá nos laboratórios ou em campo fazendo cruzamento de brachiaria e eu pensava: “É legal isso aqui, mas não é isso que eu quero por daqui 20 ou 30 anos. Não quero estar fazendo isso”. Aqui dentro do município e no laboratório você passava muito tempo em lupa vendo os resultados. Mas não tinha projetos, não tinha ideia do que eu poderia fazer no Pantanal, embora eu quisesse estudar fauna, e não tinha oportunidades. Então, eu soube de uma vaga na Secretaria de Meio Ambiente para biólogo, e indicaram o meu nome, e eu fui fazer uma entrevista, acabei sendo contratada e fui trabalhar com educação ambiental na Secretaria de Meio Ambiente. Estava, acho, segundo ou terceiro ano de bióloga, segundo ano de bióloga formada. E nesse trabalho a gente teve a oportunidade de participar de um simpósio para a conservação do Pantanal onde já estava tendo esse problema de caça de jacaré e veio esse professor da USP, que é o Álvaro, dando uma palestra e que depois ele montou um curso de conservação da natureza para os técnicos da SEMA, do IBAMA e de outros órgãos ambientais, onde a gente visitou vários parques e reservas do Brasil e a última etapa foi na Caiman, nessa reserva que ele estava criando. E lá nesse curso a gente vê numa árvore, mais ou menos umas 30 araras-azuis pousadas num galho seco e ele disse que elas estavam fadadas a desaparecer da natureza. E eu já conheci o bicho, mas fiquei encantada com ela e disse que ia fazer alguma coisa para que ela não acabasse, que as pessoas pudessem ir no ambiente dela, vê-la livre e voando. E eu saí dali falando pra todo mundo que eu ia estudar araras-azuis, sem saber nada dela, sem saber nada de pesquisa de estudar uma arara, e volto, falo com o secretário que eu quero criar um projeto, ele me coloca em contato com o pessoal do WWF, que na época só tinha escritório fora do Brasil, era o pessoal dos Estados Unidos, e aí eles me falam para escrever uma proposta para esse estudo. Eu faço essa proposta, e depois eu acabo também entrando no mestrado com esse mesmo professor para me orientar, e começo o trabalho com as araras. E nem é na região onde eu vi elas nessa cena, que era final de tarde, a gente via as araras no galho pousado, e eu decidi estudá-las. Eu volto lá para Nhumirim, onde eu tinha feito o estágio enquanto universidade. Lá no meio do Pantanal.
P - Muitas informações. Eu vou tentar... Agora eu achei.
R - Te organizar. Chega, vamos organizar.
P - Primeira coisa: qual foi o sentimento quando você viu aquela árvore?
R - Nossa é de alegria genuína, como se fosse uma árvore de natal colorida de azul e amarelo, um bicho que é curioso, que quer ver o que é que tá acontecendo ali, e ao mesmo tempo um comportamento. Então assim, a Arara Azul, ela é um bicho que ela até faz uma aproximação porque ela é curiosa, então se tem alguma coisa por perto ela fica olhando, vocalizando, fazendo o comportamento dela quando tá em grupo, se é limpeza de pena, bico a bico, enfim. Ela é mais curiosa que as outras grandes araras, porque quando você chega onde ela tá, ela geralmente vai tentar ver. Já as outras, você chega, ela sai. E isso me encantou demais nelas. E aí, saber que elas poderiam desaparecer, porque a gente já tinha aí as ararinhas azuis um número extremamente reduzido, na época, se não me engano, três indivíduos na natureza, e Arara-Azul-de-Lear que estava num grupo de menos de 200. Então o caminho que ela poderia percorrer era esse pra extinção. E aí eu falava, não, esse bicho tem que continuar a existir, é muito lindo, é um encantamento mesmo, eu sempre falo que me apaixonei ali pelas araras e a vontade de fazer alguma coisa pra que elas não acabassem e continuassem existindo na natureza. Sempre pensei, “eu não quero esse bicho preso numa gaiola, eu quero ele livre”. Conservar só pra ter em zoológico, em museu, não era a minha praia, eu queria o bicho voando.
P - E qual que era a situação das araras?
R - Então, quando eu decido estudar, muito determinada, sem saber nada, vou fazer um levantamento bibliográfico sobre a espécie e eu descubro que na época dos coureiros, além de jacaré, pele de jacaré, eles também roubavam araras. Então tinha o tráfico que tinha sido muito grande na década de 80, isso eu não sabia até então, e praticamente dizimaram os grupos de araras, inclusive no Pantanal, capturando e levando para fora do Pantanal, tanto no Brasil quanto principalmente no exterior. Depois, em literatura, eu encontrei que mais de 10 mil indivíduos foram retirados da natureza. Então, a situação delas era bem drástica mesmo. Primeiro, por causa do tráfico. Em segundo lugar, por descaracterização do ambiente, por desmatamento, queimadas, que na época, hoje, comparado, nem era tão forte como é atualmente, essa descaracterização do ambiente, mas também, em alguns locais, a coleta de indivíduos para a retirada de penas, para a confecção de cocares e colares. Esse terceiro fator, depois, em termos de legislação no Brasil, ele foi até alterado. Hoje as populações indígenas, elas até podem ter as penas para os seus cerimoniais, nas suas culturas, mas não podem vender. Porque quando você olha um cocar de uma arara, eles usam basicamente as caudas, as penas da cauda, e a cauda de uma arara tem no máximo 12 penas. E eles vão usar as penas que estão intactas. Então quando você vê um cocar cheio de penas, você imagina quantas araras não foram necessárias para a confecção daquele produto. E também que antigamente eles usavam esses cocares e colares pra cerimoniais, era do pajé, ficava muitas décadas. E aí quando começa um comércio com a compra por pessoas de fora das tribos pra enfeite ou pra museu, há uma pressão muito grande em cima dessas araras. E por isso que depois o comércio foi empreendido. Eles então podem continuar usando, mas não mais pra comercialização. Nenhum produto da fauna. E a questão do desmatamento e da descaracterização do ambiente, ele também ocorre no Pantanal, mas ainda em pequena escala, mas também ocorre na Amazônia e principalmente na região do Cerrado, onde a espécie também ocorria. E o fato é que nesse momento, então, que eu decido estudar e vou levantar referências, ou estudo sobre as araras na natureza, tem praticamente nada. O que tinha de conhecimento era os desbravadores, os bandeirantes, o Rondon, ou mesmo na região amazônica aquelas expedições, viam araras onde eles ocorriam, então você tem relatos: “Encontrei bandos de Araras-azuis em tais lugares, no rio”, mas não tem muita informação de alimentação, reprodução, ovos, filhotes, como era a vida das araras na natureza. Então é essa parte que eu quero fazer, entender, para ajudar para que ela não desapareça. Esse era o meu desafio naquele momento. Então, quando eu fui fazer esse levantamento do que tinha sobre a Arara-azul na natureza e comecei a minha primeira proposta, o que eu sabia sobre ela era que ela era bonita, encantadora e que eu podia usar ela para conservação. Então, de imediato, na minha primeira proposta, eu já coloco ela como uma bandeira para a conservação. Porque lendo artigos de fora do Brasil com outras espécies que tinham trabalhos de conservação, eles usavam panda e outras espécies emblemáticas e carismáticas para trabalhar a conservação como um todo. E ali eu vi Arara-azul um encaixe perfeito, certinho para esse módulo. Era a única função que eu conhecia dela naquele momento de importância dela na natureza. Estudando e ao longo de décadas, a gente viu que sim, todo ser vivo tem uma função importante, ou é alimento, ou é um predador. No caso da Arara-azul, a gente descobriu que ela tem dois papéis muito importantes e fundamentais. Primeiro, ela é uma das dispersoras de semente a longa distância. Então a gente conseguiu comprovar, temos até um artigo publicado com outros pesquisadores estrangeiros, onde um Arara-azul que come numa planta ou pega um fruto no chão, pega às vezes esse fruto e viaja até um quilômetro. Isso foi medido com binóculos que medem a distância, com esse fruto no bico e aí ela pode deixar cair no meio do caminho, lá na ponta. Isso é o papel que os grandes mamíferos fazem, como o anta, alguns porcos, catetos, queixadas fazem esse papel. E a Arara-azul também. É um papel extremamente importante, que é de dispersora de semente, que regenera a floresta, faz recuperação de área. Então isso ficou comprovado nesse artigo que a gente publicou. Mas o outro papel que eu acho até mais importante ainda que esse, que ela faz muito bem, é aumentar pequenas cavidades que um pica-pau ou um besouro, comedores de madeira fazem, ou quando um galho quebra, fungo, bactéria pode dar origem a uma pequena cavidade e ela, assim com aquele bico forte dela, que é um bico adaptado para partir sementes duras, faz uma grande cavidade. E essa grande cavidade é no mínimo 50 centímetros de DAP, ou seja, de cavidade interna, para que caiba ela lá dentro com o seu filhote, porque ela tem um metro, às vezes até um metro e cinco de comprimento da ponta da cabeça até a ponta da cauda. Não são muitos animais que conseguem fazer essas grandes cavidades em árvores. Então onde tem Araras-azuis, as grandes araras em geral, mas ela em especial por causa do bico forte, ela acaba beneficiando mais de 40 espécies que vão usar esse ninho quando o filhote dela voar para se reproduzir, para dormir ou para se alimentar. Então a gente fala que ela é uma engenheira ambiental porque a casa dela vira a casa dos outros. E a gente fala hoje que ela faz um “Airbnb da biodiversidade”. Como a gente pega a casa dos outros e vai alugando, ela também faz isso. Então, são os papéis fundamentais.
P - Eu também estava lembrando de ontem da entrevista que conversando com o Coronel Rabelo, ele disse que, principalmente aqui no Mato Grosso do Sul, era muito comum você ter animais silvestres dentro de casa. E eu queria saber se nas suas pesquisas, pelo menos as iniciais, você conseguia ver isso em relação às araras.
R - Então, de fato, isso acontecia muito. Sabe, caía do ninho, um filhote, tinha, mas não era muito. Mas era mais com papagaios, com outros mamíferos, porquinho, cateto, queixada, seriema, ema, até capivarinha a gente via, mas com Araras-azuis, porque eu não sei se porque já tinha tido tráfico, não era tão grande. A gente teve, sim, alguns casos, mas eram bem pequenos aqui no estado. Mas já tinha maior volume em São Paulo, Rio de Janeiro, outras cidades já tinham, já devido ao comércio. Mas aqui ainda não era muito. Tinha, mas era bem menor. Era mais comum com papagaios. Papagaios quase, e caturrita, que é um outro psittacidae menor, quase toda casa que eles chegam tinha um de estimação. Sempre tinha caído do ninho. E aí eles estavam cuidando, dando alimentação. Isso sim. E aqueles que criavam no quintal. A Seriema, ema, cateto, queixada, porcos, essas coisas.
P - E me conta, você viu essa primeira árvore que você avistou? Foi na fazenda Caiman em Miranda?
R - Isso, 36 km de Miranda.
P - E como você tem essa ideia de não ir pra Miranda, de ir pra outro lugar?
R - Ah, não foi ideia, eu não fui aceita. O Roberto Klabin, que é o proprietário da Caiman, quando eu escrevi para ele e pedi autorização para estudar as araras, porque eu tinha conhecido lá, ele falou assim: “Não vai ser possível, porque eu já tenho gente lá do Museu de New York, Zoological Society, aqui. Então, não”. E aí, então, como eu já conhecia o pessoal da Embrapa e já tinha ficado na Nhumirim, eu pedi pra ir pra Nhumirim. E foi lá, então, que eu comecei. Então, assim, não é que eu não quis, eu quis, mas eu não fui aceita. Anos depois é que eu recebo o convite pra ir pra Caiman, onde eu estou até hoje, tem uma parceria, uma relação maravilhosa com o Roberto Klabin e os gestores, a família toda, os funcionários da fazenda maravilhosa, mais de 30 anos trabalhando já ali. É onde virou nossa base principal, nosso ponto focal do projeto.
P - E como se desenvolve essa história? A sua história com as araras, as pesquisas, a partir dessa primeira pesquisa?
R - Dessa observação, que vi as araras lá. Então, eu tava trabalhando na Secretaria de Meio Ambiente, com Educação Ambiental, fazendo esse curso. Vejo as araras e falo: “Eu quero estudá-las”. E eu sempre fui muito determinada, quando eu decido alguma coisa. Então, quando eu precisei ajudar minha mãe, que eu queria fazer medicina e não dá mais porque eu tenho que trabalhar: “Então eu vou trabalhar e vou ajudar minha mãe”. “Ah, agora eu não quero mais medicina, vou fazer biologia, foco na biologia”. Quando eu vejo as araras e decido estudar, eu já vou no secretário de meio ambiente, no meu chefe que era o Rabelo, eu trabalhava junto com o Rabelo, ele era meu chefe, dizendo que eu quero estudar as araras azuis. E aí eu começo então a levantar referências, bibliografia, tentar entender o que tinha a respeito delas, que de fato era muito pouca coisa. E o secretário não só me apoia, o próprio Rabello também. Várias histórias para contar com a parceria com ele. A minha hora de falar mal dele. Brincadeira. Mas o secretário me apoia, ele também, e me pedem uma proposta e que eles encaminham para o WWF, que não tinha escritório aqui, só nos Estados Unidos. O WWF sempre trabalhou com espécies emblemáticas, como panda, em outros lugares com outros bichos, porque era o que se usava bandeira para a conservação. Então, eles apoiam o meu trabalho, resolvem me financiar. Logo na sequência, eu entro no mestrado com esse mesmo professor que eu tinha visto as araras, na ESALQ, USP em Piracicaba, e aí eu resolvo ir para o meu primeiro campo. Esse encontro foi em novembro de 89, na Caiman. Você vê que o novembro é bem marcante na minha vida, novembro de 89 na Caiman e aí eu vou para o primeiro campo já em janeiro que chega o recurso primeiro do WWF. E o WWF quando me manda esse recurso me manda também um gringo, um pesquisador norte-americano chamado Lee Harper que tinha estudado na Amazônia principalmente com aves, eu acho. Mas ele sabia escalar árvores. E ele veio junto com o primeiro recurso e trazendo já os primeiros equipamentos para me ajudar nesse primeiro campo. E aí eu vou para a fazenda, a Nhumirim da Embrapa, com o apoio da Embrapa, usando a estrutura toda deles, lá com o apoio dos pesquisadores vou para as fazendas, ando a pé, ando com os peões a cavalo, mas aprendo já a subir nas árvores e coletar os primeiros dados. Então tento encontrar onde tem araras, onde tem ninho e ficar fazendo observações, muito tempo de observação. Eu consigo os primeiros dados importantíssimos das araras com relação à reprodução que ninguém sabia. Então isso chama a atenção da mídia internacional e eu vou até para um congresso no Canadá apresentar esses primeiros resultados porque eram inéditos. Mas, ao mesmo tempo, foram 40 dias essa primeira viagem também, baseado no meu primeiro estágio, 40 dias, então os primeiros 40 dias a viagem que era o que eu poderia fazer um roteiro e andar nessa região com o apoio das pessoas. O que eu observo nessa primeira viagem, além de conseguir bastante dados biológicos sobre a espécie, é que eu tive uma necessidade grande de ser independente. Eu sempre quero fazer isso, vou e faço. Eu não sei ficar muito por favor, ou dar carona. Não, então eu já vou, vou a pé, vou o que tiver. E aí eu senti a necessidade de ter um veículo próprio, porque às vezes eu precisava chegar no ninho bem cedo, antes da Arara sair, para ver se ela estava dormindo lá, se ela estava saindo cedo, como que era a rotina dela. Mas os funcionários da Embrapa eram celetistas. Eles começavam às 7h da manhã, paravam às 11h, voltavam às 13h e terminavam às 17h. Eu só podia sair com eles depois das 7h. Eu sempre ia chegar no ninho muito tarde. Eu ficava o dia inteiro, aí eles me deixavam e iam me pegar à tarde, mas eles tinham que me pegar até às 5 horas, porque às 5 horas tinham que encerrar o expediente. Então, embora tenha conseguido muitos dados inéditos, essa dificuldade foi marcante. E aí eu começo a escrever para várias montadoras no Brasil pedindo um veículo emprestado para eu fazer teste no Pantanal enquanto eu realizava o meu trabalho. A Toyota, Ford, Gurgel e aquele russo, na época, estava chegando nos carros Lada Niva, ele deve conhecer, e eu pedi para essas todas, escrevia pedindo um carro que me cedesse o veículo para eu testar no Pantanal enquanto eu fizesse minha pesquisa. 100% não, todo mundo negou. E aí, eu fui para o Canadá com esses primeiros resultados, os 40 dias que eu tinha conseguido, apresento os resultados lá. Quando eu estou voltando para o Brasil, esse professor que eu tinha feito o curso de conservação da natureza e que viraria meu professor no mestrado, deu uma palestra em São Paulo e falou do meu trabalho e da minha necessidade. E nessa plateia tinha um engenheiro da Toyota, que era o Sidnei Kakazu na época, e ele ficou comovido com a minha história e foi pro chefe dele pedir um veículo pra mim. Ele já tinha um legado. E dessa vez deu certo. Eles me cederam um jeep bandeirante e eu vou pegar já no segundo semestre do ano de 90, esse veículo lá na fábrica. E eu nunca tinha dirigido um Toyota, muito menos em São Paulo. Eu era uma pessoa de Mato Grosso do Sul, de Dourados, minha família nem tinha carro. O meu primeiro carro foi na Secretaria, no DERSUL, quando eu comprei meu primeiro veículo, um Chevette, onde eu aprendi a dirigir nele. Na época você não era obrigada a pagar autoescola, então quem me ensinou foi o meu irmão mais velho e eu só sabia dirigir um Chevette. E aí eu consigo um jeep bandeirante para fazer o meu trabalho, que era a minha necessidade no Pantanal, mas tinha que buscar em São Paulo. E eu fazia o mestrado ali na USP em Piracicaba. E o Rabelo já era da Polícia Ambiental, já tinha a companhia lá em Miranda ou Corumbá, não lembro, mas ele sempre dirigia os Toyotas no Pantanal. E aí eu pedi pra ele me ajudar, então ir na fábrica comigo, pegar o carro pra trazer pra Campo Grande. E ele vai, e essa é a primeira furada dele comigo, assim, grande, porque ele não chega. E eu tô lá sozinha, os caras me ensinam as coisas do carro. Eu tinha um carteira, eu era motorista, mas nunca tinha dirigido um Toyota. Mas a maior coisa não era nem dirigir o carro, era sair de São Paulo e ir para Piracicaba. Porque São Paulo, pra mim, era aquele estresse de carro. Muitos carros, muitas vias. E ele me dá esse rolo do não vai. E aí eu saio, então com o Carlos me fazem um mapinha que eu faço o caminho e eu consigo chegar em Piracicaba. Acho que eu levei umas três horas. Devo ter perdido alguns quilos, porque eu tava muito nervosa. Suava!
P - Naquela época não tinha GPS.
R - Não, ia ter noção do carro no meio, porque era de um carro baixinho, o Jeep era um carro alto. Ele atrasou, ele teve algum imprevisto, eu não lembro o que foi. Ele atrasou e foi me encontrar em Piracicaba. E aí, sim, a gente trazer o carro pra Campo Grande. Eu fiquei tão brava com ele, que eu sentei no banco de trás e falei: “Agora eu não dirijo mais”. Aí ele vai levar esse carro lá em Campo Grande. E eu vim no banco de trás brava com ele, bicuda, eu ficava bicuda. E ele veio dirigindo o tempo todo. Mas a gente se ama muito, ele é maravilhoso. Ele é o cara que eu posso estar na China, ou ele, se um ligar, um dos três precisar, vai, sabe que pode contar, entendeu?
P - E quantos anos você tinha nesse começo de carreira com as araras?
R - 90, eu sou de 62, eu devia ter 20... Faz as contas aí que agora eu tô... Eu sou de 62 e isso era 90, 91.
P - Quase 30.
R - Por aí.
P - E me conta como que... Tem algumas coisas que eu queria perguntar. Como é que foi... Você contou que você aprendeu a subir em árvore com o Lee. Como é que foi essa experiência de campo que era... Eu imagino que tenha sido muito diferente da que você tinha na infância.
R - Não, na infância e no estágio. Totalmente diferente. Primeiro assim, nunca... Na minha época, na minha cidade, como anteadolescente, não tinha essas práticas que hoje os jovens podem ter, que você tem em casa, que oferece fazer escalada, indoor, nada disso tinha. Então, assim, foi o meu primeiro contato, vamos dizer assim, com equipamento de alpinismo, mas eu me lembro de uma coisa. Eu queria tanto ver um ninho de arara, eu queria tanto ver um filhote, que na primeira que ele me ensinou, na segunda eu já tava fazendo, e aí eu brigava porque só queria eu subir. Então, assim, era muito aquela curiosidade e a vontade de ver. Eu tava marcando ninhos, cavidades que poderiam ser ninhos, e aí a hora que via uma cavidade que cabia uma arara, a vontade era de subir e de ver, e realmente a gente encontrou alguns com filhotes já. Nessa primeira viagem não tinha mais ovo, mas tinha filhotes, então era muito legal. Era como ganhar um prêmio, chegar lá e encontrar um filhotão lindo, maravilhoso. Não tem palavra pra descrever. Era muito lindo.
P - Eu queria saber um pouco disso, como foi o sentimento de, depois daquele primeiro avistamento que você tinha visto, ver a partir das suas pesquisas, com seus próprios olhos, a primeira vez que você subiu um ninho, como é que foi?
R - Então, é como se fosse um presente mesmo pra mim, entende? Eu queria tanto entender e conhecer sobre o bicho, que cada achado, e até hoje para mim encontrar um ovo e um filhote é um presente. Era muito bom, era satisfatório demais. O comportamento das araras na natureza é muito encantador para mim. Elas têm uma relação familiar entre o casal muito grande, muito coesa, estão sempre junto, um limpando as penas do outro, de coçar e de estar próximo, se um voa o outro vai voar junto. Com o tempo, estudando o comportamento, eu vi que a fêmea geralmente é mais, a que vai primeiro quando é pra defesa, é a mais agressiva, mas, no geral, eles estão sempre juntos. Quando não é época reprodutiva, eles se reúnem em bandos pra dormir em dormitórios, às vezes tem um casal que tá aqui juntinho, aí chega um outro indivíduo, tenta perturbar, eles dão uma... Chega a falar pra vir pra cá, entendeu? Mas é muito interessante, eu sempre gostei muito de observar o comportamento deles, não me cansa. Até hoje, eu falo pra equipe, a gente tem bastante imagem de câmera trap e quando eu tenho tempo e preciso ver alguma coisa de câmera trap, às vezes eu até preciso ver um assunto específico, mas eu pego um banco de dados, eu posso passar dias e horas vendo o que me enche de energia, de alegria, porque é muito encantador. É um bicho maravilhoso para estudar.
P - E quando você vai nesses 40 dias, nessa primeira expedição de 40 dias, tem algum episódio que foi muito marcante para você?
R - Eu acho que o marcante foi realmente ver os ninhos. Encontrar filhotes não era o meu esperado. Embora eu tivesse ido buscar as araras, o que eu pensava quando eu fui? “Ah, eu vou ajudar as araras. Eu vou ficar fazendo observação”. Igual quando eu pensei com o jacaré. Com o jacaré a gente encontrou o ninho, ficou lá em cima da árvore e vendo o ninho, marcando todo o comportamento e estudando. E eu pensei a mesma coisa com o ninho de arara: “Vou encontrar o ninho, vou acampar e vou ficar estudando”. Só que daí veio um pesquisador da Embrapa, eu me lembro bem, era o Guilherme Mourão, ele falou assim: “Neiva, se você quer estudar as araras, você não pode estudar só um casal, você tem que estudar vários, você tem uma média. Você precisa ter um N”. E aí, então, por isso que eu saio procurando ninhos. E procurar ninhos pra mim naquela época era árvore. Onde que eu podia encontrar arara comendo, bebendo ou se reproduzindo? Mas eu não sabia nada, não sabia se tinha ovos, filhotes, quantos e em que época. E aí a primeira vez, deve ter sido lá no quadragésimo e alguma coisa que eu encontro um ninho, porque era final de estação reprodutiva, hoje eu sei, mas na época eu não sabia, um ninho com um filhotão de arara? Meu Deus do céu! Foi o êxtase. E, detalhe, o que tinha em literatura é que as araras só tinham um filhote. Eu encontro cinco ninhos, e encontro um ou dois, eu não lembro, eu tenho isso registrado, mas eu não lembro de cabeça agora, com dois filhotes. Então, assim, de cara eu já derrubo uma fala muito antiga, e assim, da pessoa que era considerada o que mais conhecia de arara, que não era verdade. Porque eu estava vendo lá dois filhotões, lindos e maravilhosos, quase prontos para voar. Então foi muito marcante isso. Tanto que eu marco nessa primeira viagem cerca de 54 ninhos. E aí depois é que eu começo a monitorá-los numa área de mais ou menos 13 fazendas, percorrendo quase 200 hectares ao longo de uns três anos.
P - E nessa época você já tinha começado a perceber essa dificuldade deles conseguirem os ninhos, essa tentativa de, depois que você fez, de tentar suprir essas cavidades naturais que eles faziam com os ninhos artificiais, como que foi?
R - Então, como foi isso? Primeiro, então, nessa primeira viagem, 54 ninhos, marco, meço, tudo. Tem esses filhotes que vão, continuam monitorando. Na próxima estação que começa lá por julho, agosto, eu tento monitorar todas as cavidades de novo e faço isso por três anos. Pelo menos uma vez por mês olhando essas cavidades. E o que eu observo? Eu observo que nessas cavidades têm muita briga entre as araras. Eu começo a observar entre araras-azuis, casais de aranhas-azuis brigando, quando eu falo briga, é brigando mesmo, de um tentar bicar o outro, machucar, sangrar, ou azul com vermelha. Então eu vejo que tem uma disputa por essas cavidades e isso me chama atenção. Por que elas estão brigando? Porque eu vi aquele mundaréu de árvores e nem tantas araras assim para estarem brigando. E aí isso me desperta: “Ok, se elas estão brigando tanto é porque deve estar faltando cavidade”. E aí eu pego uma área de mais ou menos 10 mil hectares e faço um levantamento durante uns dois meses de todas as árvores que poderiam ser ninhos nessa área. E aí eu vejo que não tem muita. Eu confirmo que realmente os ninhos que eu tinha cadastrado eram limitantes, tinha mais casais tentando reproduzir do que cavidades disponíveis, por isso que elas estavam brigando. Então, aí eu penso, se isso é um problema, o que eu posso fazer? Eu começo a pensar o que eu posso fazer, e aí eu penso, conversando com as pessoas e trocando ideias, aqueles galões plásticos de 20, 200 litros, pode ser um ninho. Então vamos testar, vamos trazer, instalar e ver o que dá. Aí tinha na fazenda em Nhumirim os restos de tubo de fibra de vidro, pesado pra caramba, que estava abandonado, que eles não iam usar mais. E era um canaletão grande. Aí também instalo isso nas árvores e faço algumas caixas para ver se elas utilizam esses três métodos alternativos. E aí eu vejo o seguinte, que o galão de 200 litros é bom, é ótimo, mas nenhum bicho usa, excetuando a abelha. Por quê? Porque no Pantanal às vezes tem até 40, 47 graus e você pode ter até 0 graus, menos 4, menos 6. Essa variação grande de temperatura nesse galão era igual ao ambiente. Então nenhum bicho usou, só abelha mesmo que gostou desses galões, nenhuma arara, nem outros animais. Os tubo de fibra de vidro até dava um certo conforto, dava pra pato usar, algum outro bicho, mas araras não foram, era muito duro, aí a gente vai entender depois porque não, mas o peso pra você instalar isso era sobre-humano, não era uma coisa prática, e eu usei resto de material, ou seja, pra eu ter aquele material disponível pra instalar lá também não era fácil. E a caixa de madeira que eu fiz, já não, ela funcionava, porque ela mantinha uma certa temperatura, não era tanto quanto do ninho natural, mas preservava um pouco mais a temperatura. As araras gostaram, e aí eu entendi porque elas não usaram os tubos de fibra de vidro, porque ela precisava beliscar, então ela sempre roía madeira quando ela ia usar um ninho, e aí nessas caixas de madeira semelhantes que a gente tem aqui, elas usaram, e funcionou. Logo depois que eu instalei, uma arara não só usou, como se reproduziu. Falei: “Ah, essa é a chave”. E aí eu começo, então, a instalar em larga escala esses ninhos. Isso foi em 93, 94, que eu começo a instalar esses ninhos artificiais. E aí é uma virada de chave porque eu começo a ofertar cavidades que estavam sendo limitadas para elas no Pantanal.
P - E qual é a resposta dessa instalação?
R - Então, eu esperava, instalei 10, 20, outro ano 30, 60 ninhos. Eu esperava que todos fossem ocupados. Faltava cavidade, você não tem casa, agora tem casa, então vamos ocupar. E não foi isso que aconteceu. Elas exploraram, ocuparam 10% das caixas, mas ficou muita caixa vazia. Porém, outras espécies que competiam com o ninho com elas, gaviões, coruja, tucano, pato, amaram as caixas também e começaram a usar. E com isso, nos primeiros anos, o resultado foi mais sucesso nos ninhos naturais do que nos ninhos artificiais. Mas, por outro lado, diminuiu a competição. Então, a gente teve já um aumento, porque não tinha tanta briga, não tinha tanta morte nos ninhos naturais, que estavam tendo casa para os outros bichos também. Então o sucesso não foi o esperado, mas foi um bom resultado que deu certo. Só que ao longo dos anos a gente vem observando que a importância dos ninhos artificiais, que quando eu comecei a instalar era uma medida de curto prazo, ou seja, “eu vou fazer um teste só para repor neste momento que está faltando”, mas a ideia é que os pantaneiros plantem as árvores que são ninho, para que daqui 50, 100 anos tenhamos araras se reproduzindo nos ninhos naturais. Então, esse era o meu discurso com eles. E aí, ao longo dos anos, a gente continua com esse discurso, inclusive a gente planta manduvis, os fazendeiros muitos também plantam, mas a necessidade da caixa continua ocorrendo e a importância e uso pras araras cada vez mais importante e sendo utilizada a cada ano. Para você ter ideia, nos últimos anos, cerca de 50% dos filhotes que voam são dos ninhos artificiais. Teve ano que já voaram mais dos ninhos artificiais do que dos naturais. E aí a gente pode entrar na questão do fogo, na perda das árvores, que já são árvores velhas, senescente quando vem o fogo, mesmo que ele não atinja a árvore, não mate, queimada naquele momento, só aquela sapecada ali na base, se ela é um pouco mais profunda ou mesmo lá em cima, às vezes você tem um fogo que não chega aqui no chão, mas atinge a parte aérea e deixa ela mais exposta, acaba levando uma morte mais rápida do que era o natural. E aí a gente tem perdido muitas cavidades naturais com os incêndios. Por isso, então, tenho implementado mais caixas ainda, que resolvem o problema. Mas há uma necessidade constante de troca, de mudança, porque não dura igual nenhum natural. Dois, três anos tem que estar trocando essas caixas.
P - Você que fez as caixas?
R - Sim, muitas inventei. Com a medida do ninho interno que eu já sabia que era 50 centímetros de DAP, então fiz uma caixa que tinha esse mínimo que eu via na medida média desses 54 ninhos primeiro que eu marquei. E aí fiz essa caixa. E aí quando eu instalo e elas ocupam e tem sucesso, é o mesmo padrão que a gente usa até hoje. Mas o ano passado a gente teve um desafio diferente com essa caixa, por conta dos incêndios, aí a gente pode até abrir umas aspas, quando tem um incêndio, principalmente os incêndios que são grandes incêndios mesmo, não é só um fogo, mas é um grande incêndio no Pantanal desde 2019, ocorrido com mais frequência e com mais intensidade, esses grandes incêndios para uma espécie que é bem específica no habitat, ou seja, come poucos frutos na natureza, a arara-azul come duas frutas basicamente de palmeiras, castanhas de palmeiras, semente de palmeiras, a curiboca e a uva praticamente no Pantanal, em outras regiões, em outras espécies, mas basicamente desde que é recém-nascido até adulto, até morrer, basicamente duas plantas, e usa árvores não são muitas árvores no Pantanal grandes, que tem o miolo mole, que ela pode escavar. Ela vai escavar poucas espécies, porque tem umas que são madeira muito dura e ela não consegue escavar. E aí ela acaba sendo dependente então de duas palmeiras para alimentação e algumas poucas espécies, maioria dos ninhos do Pantanal, 95% numa única espécie arbórea para reprodução. Isso faz com que ela dependa de três espécies. E aí quando vem o fogo e queima ou comida ou ninho, é como a gente ficar sem comida e sem casa. Às vezes a gente coloca ninho, dá comida, mas ela acaba ficando enfraquecida. E aí o fogo a gente vê que atinge as araras não só na hora que passa aquele incêndio, que atinge ninho, queima caixa, queima ovos e pode até levar a óbito filhotes. Mas os efeitos se perduram quatro, cinco anos depois dos incêndios, você tem as araras sofrendo ainda com baixa imunidade, um desenvolvimento mais lento. Então afeta não só no momento do fogo, mas por anos depois. Por que você poderia me perguntar que isso acontece? Porque quando o fogo passa e afeta não só a arara, mas outras, a vegetação, os insetos, afeta uma cadeia na natureza. Afeta a relação entre as espécies, que estava ali em harmonia, eu como esse bicho, eu como essa planta e eu como esse bicho aqui. Quando vem o fogo e vai extinguir alguns grupos, como os répteis, os anfíbios que não conseguem escapar, naquela determinada área, quem comia ele vai passar fome e vai tentar comer outra coisa. E isso a gente vê na natureza depois dos incêndios. Então uma espécie que não comia arara ou não comia ovos, de repente é o que ele acha e é o que ele vai comer. E aí a gente tenta descobrir formas de evitar que isso aconteça porque elas são mais vulneráveis. Não que o bicho não precisa comer, mas que ele não coma arara, vai comer pato, vai comer outras espécies que têm em maior quantidade. E essa alteração da relação entre as espécies acontece em vários níveis. Ao nível do chão, ao nível das espécies micro, médio e grande porte. Então, afeta muito a reprodução. E aí, eu estava dizendo do ninho. Então, esse ninho, há mais de 30 anos, o mesmo modelo, a mesma medida, não só para Arara-azul, mas para arara-canindé, arara-vermelha, pato, tucano, muita gente usando, abelhas, até mamíferos, tamanduá-mirim, usa muitas caixas para dormir e para abrigo com o seu filhote. Aí, a hora que vem um incêndio, um gavião, chama gavião-pernilongo, que consegue voar e não é queimado pelo fogo, mas que o alimento dele acaba sendo extinguido, começa a ver Arara-azul ali no ninho e vai tentar pegar o filhote, ele é pernilongo porque ele tem uma perna longa e ele tenta então acessar os filhotes dentro da caixa. Ele não consegue pegar o filhote pela profundidade, pelo tamanho dos bichos e tirar, mas ele machuca bastante levando alguns a óbito. Então a gente teve que agora este ano mudar, pelo menos na Caiman, a medida de algumas caixas para testar, ver se ele não vai afetar mais. E antes das araras voarem, os filhotes, de imediato que a gente começou a ver que eles estavam atacando muito e matando muitos filhotes, a gente resolveu criar uma mecanismo, colocando um tubo de plástico, que ele ia tentar, mas não ia conseguir alcançar, dificultar o acesso dele no ninho. A gente teve que dar uma modificada pela primeira vez num produto que a gente criou, inventou que funcionava, mas que precisa agora de uma adaptação.
P - E você estava contando que você tinha muito apoio da Embrapa no começo, principalmente no começo.
R - Sim, tive, sempre contei.
P - Mas eu queria saber do homem pantaneiro, do povo do Pantanal, se esse apoio se estendia a essas pessoas.
R - Então, o pantaneiro, sim. Eu trabalho 100% com apoio do pantaneiro. O pessoal da Embrapa se inclui entre os pantaneiros, porque eles ali acabam sendo pantaneiros também. Mas o homem do Pantanal é extremamente importante e foi muito acolhedor, eles são muito acolhedores. Houve um diferencial que foi muito importante no meu caso, quando eu vou com um pesquisador, Walfrido, Guilherme, Zilka ou um outro de plantas ou de gramíneas ou de animal, e eu vou numa fazenda e ele fala: “Essa é a Neiva, tá hospedada lá na Embrapa, vai fazer um trabalho de ______”, o fazendeiro, o proprietário, o pantaneiro ou o peão já abrem a porta e você já é da família, ele já mostra tudo. É assim como abre alas. Agora, nas fazendas que eu vou sozinha: “Com licença, sou Neiva. Eu estudo arara…” - no começo.Quando ninguém conhecia o projeto - “Eu queria estudar as araras, o senhor tem só tem alguma arara aqui? Tem algum ninho? Poderia me mostrar?” “Não. Tem, não. A gente vê elas por aí, mas nunca vi ninho, não”. Tá, daí passado o tempo e quando ele começa a te conhecer, você volta e volta e volta e ele vai vendo que você é uma pessoa de confiança, porque ele é meio desconfiado. Cara, ele tinha um ninho na porta e não te mostrava porque ele não te conhecia, mas a partir do momento que ele te conhece, ele traz pra dentro de casa, dá casa, dá comida, enfim, portas abertas, muito apoio, até hoje a gente tem. E hoje, como o projeto já é conhecido no instituto, não só aqui no Pantanal, mas no Cerrado, e agora a gente indo lá para Pará, por exemplo, nossa, quando a gente fala que é do instituto, “pode ir lá em casa”, já começa a mostrar as árvores, tem arara, é uma abre alas muito grande, muito grande. A gente tem uma reciprocidade com os pantaneiros, com os proprietários também do Cerrado, com o projeto. Teve uma época no projeto que eu nem conseguia atender todos os pedidos. “A APEMarara vai estudar na minha fazenda”. Porque assim, a gente não dava conta. Era muito. A gente ainda tem bastante demanda de pessoas pra estudar, hoje pra instalar ninho. Isso é bem bacana. É uma, vamos dizer, conquista do nosso trabalho ao longo dos tempos. Que começou comigo, mas que hoje tem uma equipe fazendo.
P - E você percebe que eles têm se juntado mais à essa luta pela conservação a partir da sua pesquisa e depois do instituto?
R - Não tenho dúvida disso. Obviamente que tem um percentual pequeno das pessoas que não conseguem visualizar a importância da natureza, muito pequeno, mas a maioria, sim. Hoje você vê uma mudança muito grande e eu acho que quanto mais as pessoas entendem, e isso foi uma prática do instituto, a gente não só ia lá e estudava as araras e publicava o artigo ou defendia a tese, e não voltava mais. Não, a gente ia, voltava, dava informação: “Olha, ali tem ninho”, todos sabem onde a gente tá, tudo que tem, não é uma informação só nossa, é deles também, por isso eles ajudam. E a partir do momento que eles começam a entender essas relações, essas falas que eu tô te fazendo, não tem como. Acaba assim dando as mãos e ajudando e levantando a bandeira da conservação. Hoje muitos dos que estão nas propriedades são filhos daqueles que eu conheci. Totalmente outra cabeça, sempre dispostos a ajudar e você vê que tem um entendimento maior. Ainda tem pessoa que é mais imediatista, que pensa só no ganhar, no dinheiro. E é um pouco mais difícil de você trabalhar com essas pessoas, mas em geral a maioria tá entendendo que a natureza é importante e que faz parte até do ganho dele pra continuar negociando.
P - E dos anos 90, que você começa até caminhar para o surgimento do Instituto, o que acontece? Como é que é o caminho?
R - Tem horas para dias aqui, moça. Muito chão se passou. Primeiro eu era a pessoa que vinha ali então daquela família sozinha, era o arrimo de família, vamos dizer assim. E já com uma idade aí, trabalhando no Pantanal, nem tinha namorado, mas sempre fui família, queria casar, queria ter filho. Então chegou um momento que eu senti a necessidade de namorar, de casar, mas eu tava sempre no mato, sempre metida com as araras. E até que eu conheço, então, aqui em Campo Grande, meu futuro marido. Namoro, fico noiva, caso e finalmente engravido. E nesse engravidar a primeira vez não foi um preparado, foi esse meio de surpresa e sem saber eu estava grávida e trabalhando. Quando eu descubro que estou grávida, já estou no quarto mês quase de gravidez, e a primeira coisa que me falam é que não pode subir nas árvores. Então, naquela época, hoje, acho que até isso deixariam, mas na época, a primeira coisa que o médico diz “não”. Então, assim, como eu era a única que dirigia, que sabia onde estavam os ninhos, que fazia todas as coisas, eu busquei uma bióloga e um motorista para que fizessem o trabalho quando eu não pudesse ir no momento que eu tivesse muito gestante e com o bebê amamentando. Treino essas pessoas, deixo no campo, e aí paro de subir, mas continuo indo para o treinamento deles. E numa dessas viagens, já entrando no sexto mês de gestação, eu pego uma infestação muito grande de carrapato e perco meu primeiro bebê cerca de 48 horas depois. Entre 24 e 48 horas eu perco. Eu tô no Pantanal, tenho essa infestação grande de carrapatos, sinto lá uma dor muito grande, mas nada notável. Quando eu chego em casa, no amanhecer do dia seguinte, eu já tenho febre alta, ligo para a médica, vou para o consultório dela, lá estoura a bolsa e manda para a maternidade, mas aí já era perda, já era meu corpo expulsando. Então foi outra chapuletada. Depois da perda do meu pai, outra grande perda que a vida me dava. E bióloga, que estuda natureza, reprodução, vendo os filhotinhos de arara, vendo as vacas com as vaquinhas, os veados com as veadinhos, capivara com as... Cara, é bem difícil. Eu, de novo, entro no trabalho pra não ficar pensando. E aí depois, mais ou menos uns seis meses eu engravido de novo, que nem era tão recomendado, tinha que ter dado um tempo, mas aí eu pego o Dengue. Aí eu não vou mais pro campo, eu não subo nas árvores, daí eu já limito o trabalho de campo. Mas eu fui em Bonito só pra mostrar pro meu assistente um ninho pra instalar. E eu pego um carrapato. E, de novo, eu devia ter sensibilidade na época que eu tava grávida e esse carrapato me dá uma infecção. Aliás, primeiro foi a carrapato, foi a da minha filha, que foi a infecção. Eu pego dengue com 40 dias, na segunda gravidez. E aí tem que ir pro hospital e não tem sobrevivência de novo. Então foram duas perdas. Aí eu levo três anos pra engravidar de novo, aí já tentando planejar, tentando desacelerar no campo. Ficar mais na cidade, que meu marido era da cidade, não era do campo. E eu engravido, e aí assim, não vai tanto pro campo, não sobe nas árvores. Aí que eu vou pra Bonito pra colocar um ninho, não eu colocar, mas só pra mostrar onde colocar. E eu pego um carrapato e de novo começa aquele processo de febre, febrão, corro no hospital. E aí minha filha tava nascendo, mas eu tenho que salvar. E aí eu tenho uma filha que me realizou completamente como mãe. Tem 22 anos hoje. A gente tava falando, então, nesse período...
P - Tava falando da Fundação Toyota.
R - Isso, então, que eu tava, assim, com um projeto dentro da minha casa, tinha base de pesquisa já, já tinha criado o instituto, mas basicamente não operava muito com ele. E sentia, necessidade, que eu precisava de mais braços aqui na cidade pra me ajudar. Primeiro fui procurar um lugar, um escritório pra alugar, não achei, e achei aqui que tinha uma casa velha, e que dava para eu comprar. Eu comprei, doei para o Instituto esse terreno e depois eu convenci a Fundação Toyota, que era recém-criada. A Toyota me cedia os veículos, mas eu não tinha apoio financeiro. Tive uma coisa bem esporádica e depois eles criaram a Fundação Toyota. E aí, com a Fundação Toyota, eu consegui convencê-los de a gente desmanchar essa casa que tinha aqui no fundo, morava ali, não vim pra essa casa como escritório, e construí uma sede do Instituto Arara-Azul aqui em Campo Grande pra eu poder ter gente pra me ajudar, porque já tava ficando difícil, eu não tava dando mais conta. Na minha casa, o telefone era aqui, eu ficava o dia inteiro no escritório, não tocava duas vezes, era uma vez e eu já atendia. Então, era muita coisa. E eles topam, a gente leva dois anos entre demolir, planta e construir. E aí em 2013 a gente inaugura aqui, novembro de novo, de 2013. Até plantamos uma árvore que depois infelizmente a gente teve que tirar, que tá aqui secando, mas é outro manduvi, que são as árvores-ninho, as maternidades das araras, uma em cada lugar, uma aqui, outra lá no fundo. E aí eu consigo então ter mais gente pra me ajudar, que vem a Elisa, a Eveline e as estagiárias que também passam a fazer parte aqui do projeto aqui na cidade. Aí é um novo respirar, é um momento já de crescimento e a gente ganha um outro salto profissional, com a Elisa aqui, outra virada de chave. Porque eu trabalhava muito, mas não tinha muito tempo de fazer algumas coisas mais profissionais. Era só campo, campo, campo, campo, campo. E com a Elisa a gente dá outra mudada, que foi muito boa. Que era aquela irmã que eu trabalhei lá na Educação Ambiental junto com o Rabelo, que veio trabalhar aqui comigo.
P - E antes de a gente falar um pouco da ação do Instituto e esse salto que vocês dão, eu queria saber como é que foi esse momento da maternidade em que impôs uma escolha pra você, de escolher uma coisa que você amava muito, que era o campo, que eram as araras e, ao mesmo tempo, escolher a maternidade que era uma coisa que você queria muito.
R - Então, é outro momento difícil, porque apesar de eu ter tido, então, a minha filha, ela nasceu prematura, foi o primeiro bebê prematuro da família, todos os bebês da minha família eram “Johnson”, sabe aqueles bebês bonitos, rosados, prontinho, já, cheio, todos, todos, sem exceção. Minha filha é a primeira a nascer prematura, porque esse carrapato que eu peguei em Bonito, nasceu com 6 para 7 meses, 36 semanas, se não me engano, na época. E ela foi uma dificuldade, mesmo tendo corrido para o hospital, a médica sendo rápida, o pulmão dela não estava amadurecido, não deu tempo de dar medicação para amadurecer o pulmão, porque o parto na família era muito rápido sempre, quase que parto indígena, sabe? Chegou a hora, sai. E com 48 horas eu fui liberada do hospital, mas ela não. Ela ficou alguns dias na UTI. E isso, na minha cabeça, foi muito difícil. Não estava preparada. Então, ao mesmo tempo que eu tinha uma realização de ser mãe, a fragilidade dela e naquele momento entender se ela ia sobreviver ou não, e que sequelas teria, era bem difícil pra mim. Hoje, quando eu vejo uma criança prematura, eu falo de experiência própria, que talvez nem sempre vai ajudar, mas a gente esquece, é só uma fase da vida, vai ser normal o resto tudo. Mas na época, não. Você achava que podia ter sequelas, era bem complicado. Então, entrei de novo em depressão, só que aí já um pouco mais amadurecida, minha médica também ajudou bastante. Naquele momento que ela falou que eu tava em depressão, imediatamente já fui procurar ajuda, e aí sim, com médico, com medicação, eu consegui reverter esse quadro e até pela filha, pela família, pelo marido na época, enfim, eu consegui sair. Então foi uma dualidade muito grande, porque era uma coisa que eu sempre desejei, mas não foi fácil. Pra família toda sempre foi fácil ter filho, e pra mim não. E eu tive ela com 40 anos. Então, eu engravidei com 39, quando ela nasceu eu já tinha 40. Já era uma gravidez de risco. Hoje, tem mulher tendo um filho até com 60, 56 anos, tá normal. Mas na minha época, não era. Era bem arriscado, vamos dizer assim. Tanto pra ela quanto pra mim. Mas graças a Deus, deu tudo certo. Ela se desenvolveu super bem. Foi difícil, mas superamos. E ela tá uma moça linda, super inteligente e me realiza completamente.
P - Qual o nome dela?
R - Sofia Guedes Cardoso.
P - E esse momento de decidir se afastar um pouco do campo, como é que foi?
R - Então, não foi. Não foi muito, porque como ela ficou do campo até que deu uma diminuída, mais com três meses, já estava levando ela para o campo, mesmo sendo prematura. E do campo deu uma diminuída, mas o trabalho, como era na minha casa e como ela saiu do hospital, mas eu não, eu comecei a trabalhar imediatamente, eu não fiz um resguardo. E quando ela saiu do hospital, eu me lembro, eu tenho fotos amamentando ela no computador ou no telefone. Eu não parei de trabalhar. Eu diminuí campo, mas não parei o trabalho. Hoje eu me arrependo disso. E a minha equipe, quando alguém engravida, “esquece, vai cuidar do seu filho”. Primeiro, a gravidez não vai pra campo. Segundo, nascer o bebê tem que cuidar por pelo menos seis meses, que eu acho que é um período que é muito importante a relação. Acho que tem algumas coisas que dá pra trabalhar, mas não essa parte que eu fazia que era de campo, de escalada, dirigir, de tá no meio do mato mesmo. As mulheres dos peões ou dos fazendeiros que moram no campo não estão no campo, moram no campo, mas não estão lá no meio do mato como a gente está. Então, na gravidez, realmente a gente fica mais suscetível. Isso eu aprendi comigo, então eu tento preservar isso na minha equipe hoje.
P - Eu estava pensando agora, quando você estava contando do comportamento das araras, dos ninhos, e depois você se tornou mãe, você conseguia enxergar alguma similaridade no comportamento?
R - Então, eu diria que eu sou quase igual ao meu pai, protetora, cuidadora, mas eu não sou uma arara, talvez. Eu sou um pouco, mas não tanto como eu conheço outras pessoas que são, sabe? Eu chamo minha filha de ararinha, a primeira palavra que ela falou, nem foi mãe, foi arara. De tanto Arara que ela ouvia e via na casa. Em minha casa era quadro, era pintura, era vídeo, era tudo de arara. E ela cresceu nesse ambiente. Mas, assim, eu me acho um pouco na parte proteção, cuidado. Mas talvez eu não seja tão... Porque sou capricórnio, o meu jeito é muito prático, não sou muito de nhe nhe nhe. Não, eu sou muito mais... Pega que a vida tá aí. Às vezes ela sente, ela é bem mais melosa, vamos dizer assim, que eu.
P - E me conta como foi esse salto do Instituto, de uma certa forma essa ampliação da equipe.
R - Sim, então foi um salto maravilhoso. A gente, assim, realmente é como se tivesse uma flor que leva décadas para desabrochar, mas quando desabrocha… Porque tínhamos uma qualidade de informação e de dados muito grande e muito boa e muito consistente. Já muita relação com as pessoas, esse entendimento que desde o começo a gente conseguiu fazer com os moradores, com as pessoas que queriam nos ajudar, patrocinadores, ele só quintuplicou, vamos dizer assim. Então foi muito bom. Aí foram chegando os alunos que foram se formando e foram ficando, como é a Fernanda, Larissa, Elisiane, a Maria Eduarda, tem Ana Cecília no campo, César, eu tenho um assistente de pesquisa que tem quase 30 anos trabalhando comigo, que foi um dos primeiros lá da base na Caiman, que não por acaso é meu cunhado. Então, foi muito bom. Assim, eu sempre envolvia a família no tudo que eu fazia, e aí agora consigo envolver amigos ou desconhecidos que nos procuram, que a gente acaba trabalhando. Enfim, faz um grande lastro, vamos dizer assim.
P - E quais são as principais vitórias que você tem acompanhado e vivido com o Instituto?
R - Eu acho que primeiro o fato da própria espécie ainda estar aqui, a gente ter a oportunidade de vê-las. A relação que as pessoas mudaram em relação não só a elas, mas a conservação de uma forma em geral. Hoje a gente mora numa cidade, Campo Grande, que é a capital de Mato Grosso do Sul, onde a gente tem o privilégio de conviver com as araras, não as azuis, mas as vermelhas e principalmente as canindés, que chegaram aqui no final do século passado. E aí a gente, tendo essa expertise com as araras-azuis no Pantanal, começou a estudá-las também e acompanhá-las. E acabou virando uma grande referência pra essas aves que estão ocupando as áreas urbanas hoje, e Campo Grande acabou se transformando num centro de reprodução das araras. E aí a gente trabalha com a população local, população urbana, com as crianças desde um aninho, seis meses, professores, estudantes, comerciantes, pesquisadores, jornalistas, enfim, com a sociedade de uma forma geral e você vê claramente essa mudança de uma capital que tinha já bastante biodiversidade, vamos dizer assim, que convive com a fauna. Você tem anta andando no asfalto, tem tamanduá-mirim já passou aqui, mutum já caiu aqui no quintal, araras vem aqui à tarde comer, a gente tem beija-flor, tucano, sabiá, um monte de bicho no nosso dia-a-dia aqui. E aí você conseguir relacionar isso para a qualidade de vida das pessoas nesse local é muito bacana. Então, eu acho que isso é uma das grandes conquistas. Esse fato da gente fazer a inter-relação da ciência com os saberes, com a cultura. Muito usada esse conhecimento todo. [intervenção] O estabelecimento do Instituto Arara-Azul como uma sede própria em 2013 aqui foi um salto muito grande para o nosso trabalho, para o projeto como um todo. Principalmente com relação a essa mudança de entendimento da população, do conhecimento científico, do envolvimento com a cultura, com os empresários, do saber que a natureza não é só para a gente olhar e para a gente apreciar, ela tem um valor, que nem sempre a gente precisa estimar em valor monetário, mas quando a gente pensa no nosso bem-estar, na nossa saúde, e que a gente vive num só planeta, e que se a gente afeta aquele ambiente com desmatamento, com queimada, o mundo em chamas, não é só as araras que a gente vai perder, as antas, as onças, as capivaras, os jacarés, as cobras. Não, é a nossa qualidade, a nossa raça que está sendo extinta, que está acabando. A gente teve um exemplo da pandemia, a gente teve exemplos dessas grandes variações das mudanças climáticas, como o Rio Grande do Sul, outras cidades e outros países, quanto toda hora isso está sendo afetado. Então quanto mais as pessoas entenderem isso, mais elas vão ver que a gente só vai conseguir minimizar, porque não tem mais volta, essa relação a partir de atitudes pessoais de cada um, das minhas escolhas que eu faço hoje, no meu dia-a-dia, para ter um mundo melhor para todo mundo, para todas as espécies, para todos os seres. Então eu vejo que o instituto faz muito esse papel. Isso que eu estou te falando, desde bebezinha eu tenho certeza que as crianças hoje, que no futuro vão estar comandando, serão diferenciadas.
P - A gente tinha comentado do Carlos Saldanha, como é que foi essa parceria com ele?
R - Então, o Carlos Saldanha, primeiro que ele é brasileiro, mora nos Estados Unidos, mas a gente estava no Pantanal ainda na Caiman, alguns anos atrás, e ele chegou lá com um dos vizinhos da Caiman e querendo conhecer o nosso trabalho. E aí a gente foi mostrar pra ele. Ele disse que ele já conhecia de internet, dos trabalhos, porque ele usou muito no filme Rio 1. E ele tava naquele momento fazendo o filme Rio 2. E aí a gente tem essa aproximação, trocamos bastante informações, e ele acaba virando um parceiro, adotando ninhos e ajudando a continuidade do projeto. Hoje sabemos que ele está fazendo o filminho 3. É um cara maravilhoso, de uma simplicidade, de uma sensibilidade sem tamanho.
P - Eu queria que você comentasse um pouco desses projetos do instituto, do “adote um ninho”.
R - Sim, não é projeto, são campanhas ou produtos de captação de recursos. Bom, primeiro de projeto, deixa eu falar rapidinho, então hoje ainda o nosso maior projeto, e se Deus quiser sempre será, arara-azul, porque ele é o mote do nosso trabalho, embora não seja A gente, quando fala da Arara-azul, não é só nela que a gente pensa, mas a gente pensa nas vermelhas, nas canindés, nos patos, no tucano, até no urubu, nos insetos que vivem na cama, várias espécies e até no homem. Então a gente está trabalhando com a conservação de um todo. Mas a gente tem as araras-canindés aqui na cidade, que a gente trabalha com aves urbanas, e daí tem uma elenca, cada um desses projetos, tanto Arara-azul quanto aves urbanas, vários outros subprojetos, que são com parceiros e associados que fazem pesquisa de sanidade, de leishmaniose, de aspectos sanitários, de comportamento, de genética, enfim, uma infinidade de outros trabalhos. Trabalhamos muito forte com educação ambiental e sensibilização da comunidade, como eu te disse, desde bebezinho até idosos, e tem vários formatos que podem nos visitar, receber uma palestra ou acompanhar um trabalho de campo aqui ou no Pantanal. E também trabalhamos com comunidades mais vulneráveis como quilombolas e indígenas, principalmente com artesanatos, produção de materiais voltados para natureza, dando uma alternativa de renda para essas pessoas que querem e continuam morando no campo, mas que às vezes não tem muita alternativa de renda. Então a gente tenta capacitá-los e dar outras alternativas de trabalhos pra eles e que mantenham uma cultura, e etc. e tal. Esses são os nossos principais trabalhos. Para que o instituto exista e que a gente tenha uma equipe que não é muito grande, a gente tem 14, 16 pessoas e no período de reprodução das araras vêm os estagiários ou bolsistas. Mas para a gente manter isso 30, a gente vai fazer 36 anos já, é um esforço sobre-humano de captação, porque a gente não tem uma novidade todo dia, a gente não está descobrindo uma espécie nova, inovando um produto todo dia. Então, muitos parceiros nossos são de longo prazo. Então, a Toyota que começou cedendo um veículo de teste, hoje continua parceiro no cedendo quatro Hilux para as equipes de campo. Aí veio a Fundação Toyota, que acabou sendo nosso patrocinador principal, apoiando com recursos e também ajudando na própria ideia de continuidade do projeto, que construiu essa sede, mobiliou e continua nos apoiando, acabam virando parceiros de décadas, como são. Mas com o crescimento e a necessidade de mais recursos para o trabalho, a gente precisa se reinventar. Então, uma dessas formas é uma política bem estabelecida de captação de recursos. Então, se você me dá um real de doação, eu vou te dizer o que eu vou fazer com esse um real e de que forma que você vai aparecer me doando um real. Se você me der um milhão, eu vou te dizer o que você pode usar em termos de imagem do produto, o que eu vou te dar de devolutiva, enfim, é uma coisa bem estabelecida, esses critérios. O “adote o ninho” ou “adote um filhote”, são duas campanhas diferentes, são campanhas então que a gente faz, onde as pessoas vão adotar simbolicamente o ninho no Pantanal. O ninho que é monitorado, o ninho que é geograficamente referenciado, que se você adota o ninho, você pode ir lá conhecer. Óbvio que a gente não vai pagar a sua passagem, a sua hospedagem, é por sua conta, mas se você quiser e tiver a oportunidade, pode ir que a gente vai te mostrar. Porém, independente de ir ou não, você vai receber o relatório com informações descritas do que acontece no seu ninho a cada dois meses, com fotos e vídeos daquela ocupação, que pode ser de Arara-azul, de Arara-vermelha, de gavião, de coruja, até de urubu, porque os ninhos estão lá na natureza. A maioria é Arara-azul, mas pode ter outras espécies também. Então é uma forma simbólica que tem das pessoas ajudarem a continuidade do trabalho e a gente então poder reportar e recompensá-la dessa forma. Já estamos indo para o 12º ano de adoção de ninhos e tem gente que está desde a primeira campanha adotando todos os anos. É muito legal isso. E depois disso foi criado o “Adote um Filhote”, em que aqui na cidade, aí com as araras-canindé, que também é uma adoção simbólica, ninguém vai pegar um filhote de arara-canindé da natureza levar pra casa. Embora alguém nos ligue perguntando isso. Não é isso. É simbólico, então ele também tem uma contribuição e aí isso vai ajudar nas pesquisas. Ele também vai receber relatório, imagens e vídeos e se quiser vir aqui conhecer, a gente também vai mostrar onde que é o ninho, vai mostrar o filhote, etc. e tal. Mas existem outras formas de doação como categorias, como eu falei, um real ou um milhão, tem categorias diferentes, como Arara, aquele que dá o máximo é o patrocinador Arara, o que dá outra faixa de recurso é o patrocinador Acuri, o outro é o Manduvi, e assim vai, várias formas de captação, também produtos que a gente desenvolve específicos e só nossos para que as pessoas possam trocar por doações. “Ah, eu quero dar um presentinho que seja exclusivo, seja único”, vai encontrar no nosso site ou aqui no instituto e dessa forma ela está contribuindo com a continuidade das pesquisas.
P - E para além desse desafio, qual foi o maior desafio da sua carreira enquanto conservacionista?
R - Então, o primeiro maior desafio foi, sem dúvida nenhuma, o financeiro. Depois que eu consegui um pouco de recursos: gente pra trabalhar no campo. Porque assim, olha, tem muita gente que gosta do campo, da natureza do Pantanal, principalmente. Quando vê um vídeo, quando vê uma foto, quando vê um filme, que é lindo, maravilhoso, porque o filme não se resume ali, o ápice do que você pode ver. Mas estar no Pantanal, 1, 2, 3, 10, 15, 20, 30 anos, não é pra qualquer um. São poucas pessoas que tem essa resiliência, essa determinação e esse gosto por estar trabalhando na natureza. No sol de 40 ou no frio de 6, menos 6. Então, na chuva ou não, no seco ou no atolado, no alagado, ainda é um grande desafio ter gente, porque é um trabalho que leva tempo para ser treinado. E hoje em dia as pessoas estão muito mais nas redes, na conexão, do que realmente na vivência com a natureza. Eu acho que esse hoje é um dos maiores desafios que a gente tem, de motivar as pessoas para os trabalhos de campo, de fato.
P - E esse trabalho de formação de novos profissionais, que de alguma forma vocês fazem, tem alguma história marcante?
R - Várias, boas e nem tantas.
P - Eu queria que você contasse uma de cada.
R - Uma, por exemplo, recebendo estagiários que é isso que eu te falei, ver você apresentando uma palestra, ver vídeo, conhece na internet, tipo, “nossa, quero ir no Pantanal, quero ir lá, lá, lá”. Quando chega aqui e vê o hard de que é pesado, é levantar cedo, de madrugada, dormir tarde, ficar várias horas no sol com mosquito, carrapato ou na chuva, não é tão legal assim, dependendo da cabeça. Então eu tive um rapaz que chegou, veio do interior de São Paulo para estagiar com a gente, e na primeira semana ele falou que a avó dele tinha morrido e ele precisava voltar. Na realidade não era, era que ele não aguentou o trampo e resolveu voltar. Porque depois a gente fica sabendo que ninguém tinha morrido, só porque não tinha coragem de dizer, “não aguentei, não era bem isso, preciso ter contato com gente, preciso de cinema, preciso de shopping, por isso preciso ir pra cidade”. Isso já aconteceu mais de uma vez, não de matarem, mas assim, de não ficar. Poucas, mas aconteceram. Por outro lado, tem as histórias boas, principalmente que eu te falei, esse rapaz está comigo já há mais de 30 anos, aqui hoje você tomou café com a Fernanda, que deve ter mais de 15, a Larissa, que são pessoas que vêm, ficam e que estão independente de onde e quando ou como. Então, isso é muito prazeroso, de você contar com essas pessoas que estão sonhando com você e estão levando esse sonho adiante. Aí tem várias pessoas para falar. E é isso agora, o desafio novo que a gente tá começando lá no Pará. Uma área tão distante daqui onde a gente está e com novos desafios, mas que cada desafio só nos deixa mais motivados para seguir sempre em frente.
P - Me conta o que você vai fazer nessa viagem.
R - Então, é a segunda viagem que a gente está fazendo lá no Pará. No passado, em 2006, 2007, depois 2013 e 2014, no primeiro ano eu organizei e coordenei, mas não estive, foi outra colaboradora que executou, e depois, em 2014, eu só participei na parte escrita, não a campo, nenhuma das duas vezes eu fui a campo. E essa, então, é a primeira vez que eu estou indo a campo no Pará. É muito legal, é muito bom, é interessante. Mas a gente está, assim, como se fazendo, como eu fui no comecinho do Pantanal. Vendo onde estão os ninhos, onde estão as araras, qual é a relação das pessoas com ela, como as pessoas veem as araras, o que que tá acontecendo com o ambiente delas? E aí tendo essa informação, de que forma que a gente pode ajudar, de que forma que a gente vai atuar. É nesse processo que nós estamos. Então, estamos na segunda viagem, a equipe já foi antes de mim, e a gente se encontra lá segunda-feira, e vamos ficar até o dia 9, eles ficam até o dia 11 ainda bem bacana, que é como se fosse uma expansão do nosso trabalho aqui no Pantanal, lá naquela região.
P - E me conta quais são os seus sonhos?
R - Sonhos hoje é ver minha filha formada, profissionalmente independente. Ela quer muito casar, eu também quero, claro, quero ter netos. Não vou ser a avó que vai ficar cuidando de neto, não. Acho que o João tá velho pra isso. Mas ainda tenho vontade de conhecer muitos lugares na área de conservação e continuar formando, porque a gente já formou bastante, mas dar continuidade à essa formação de novos biólogos ou mesmo veterinários, pessoas engajadas na conservação, é um grande sonho. Por isso o Instituto trabalha firme para realizar isso. A gente quer cada vez investir mais na educação e na formação de jovens ou de profissionais que atuem, não só nessa área, mas em áreas correlatas para a continuidade de um ambiente saudável para todos nós.
P - E o que a Arara-Azul representa na sua vida?
R - Difícil de definir. Às vezes eu penso nela como uma parte do meu corpo. Exemplo, quando eu peguei o primeiro fogo, incêndio mesmo, em 2019, na Caiman, que foi assim, eu já tinha visto fogo no Pantanal, mas era sempre fogo pequeno, numa determinada manchinha, logo apagava. Mas na Caiman foram 17 dias de incêndios imensos. A gente na neva, na fumaça, tentando fazer alguma coisa, nada apagava. Avião, carro, água, enfim, nada. A não ser a chuva que apagou. E aí você vê os efeitos do fogo. Eu entrei em desespero. Entrei em desespero como se tivesse eu queimando. Eu ligava pra todo mundo. Eu só não liguei pro presidente da república, pro resto. Presidente do Ibama, bombeiro, polícia militar, fazendeiro, todo mundo ligava pedindo ajuda para que apagassem o fogo, que ajudassem as araras. E hoje, já mais amadurecida, eu vejo que tem coisas que você pode fazer antes, porque na hora do fogo mesmo, é só orar para chover, porque tudo você mitiga, mas o incêndio mesmo, você só apaga grandes incêndios com chuva, não tem outro. A gente vê isso, porque a hora que ele queima, tudo que não tem mais o que queimar é que ele para. Então, é como se uma parte mesmo de mim, é como eu digo sempre que são minhas filhas, eu falo pra minha filha que ela é minha ararinha cor-de-rosa e que as irmãs dela são as araras-azuis, porque eu tenho como filhas, como uma parte de mim, eu não sei muito explicar isso, não. Mas é uma relação muito forte com elas. Como eu digo, me emociona ainda quando eu vejo um ovo, um filhote, uma arara numa caixa. Nossa, pra mim não tem preço, não tem nada que pague isso. E eu sei que elas não sabem o que eu faço, mas pra mim tá tudo bem.
P - A gente já tá chegando no final da entrevista, tenho só mais duas perguntas. A primeira é te perguntar se tem alguma coisa que eu não perguntei que você queria muito contar. Ou deixar alguma mensagem também?
R - Olha, perguntar, não vou lembrar porque a conversa foi longa. Não sei se eu vou ter alguma pergunta. Mensagem, eu acho que eu já disse também. A continuidade do trabalho, isso pra gente é muito importante e eu fico muito feliz porque eu sinto que no instituto as coisas não vão parar comigo, elas vão ter essa continuidade, eu vejo isso nas meninas, na nossa equipe, e isso me dá uma satisfação muito grande. Eu sinto uma felicidade muito grande não em receber prêmios, eu acho que é legal, eu sou cobrada, às vezes penso, “ah, tem que se inscrever, porque é bom, dá uma divulgação”, “tá, a gente se inscreve”, meio assim na obrigação, mas quando eu chego, por exemplo, numa fazenda, lá no Pará, e a pessoa ouviu falar do trabalho, sabe que você tem um trabalho. Isso é muito legal, de saberem que tem alguma coisa a fazer. Mas não é só a gente que tem que fazer isso que eu falo. É que todo mundo tem que fazer a sua parte. Cheguei num hotel esses dias em São Paulo e o cara que estava na manutenção, que foi atender o nosso quarto, me reconheceu e já tinha ouvido falar do projeto. Isso não tem preço, sabe? De saber que você motiva outras pessoas, outros jovens ou crianças a irem nesse rumo. Entre tantos outros que eles têm oportunidade. Então, essa parte de você estar contribuindo para a sociedade é muito bom. É bom. É muito bom.
P - E o que é importante para você hoje?
R - A conservação não deixa de sair do topo. Como eu disse, a minha família, especialmente ver a minha filha formada, é muito importante para mim, a saúde da minha família, a continuidade dos nossos trabalhos, o crescimento do instituto ampliando para outras áreas, não só em regiões, outros biomas, mas também nessa parte mais de educação. Eu acho que isso é o que eu considero de mais importante, que a gente possa realizar em breve.
P - Como foi contar essa história hoje para o Museu da Pessoa?
R - É, mexer no baú. Uma mexida no baú da minha vida, do meu trabalho, da minha história. Mas foi legal. Não foi tão sofrido. E eu consegui ficar quieta, sem ficar atendendo muito o telefone e o trabalho. Foi legal. Obrigada.
P - Neiva, em nome do Museu da Pessoa, em meu nome, em nome do Saulo, da Thais, a gente agradece muito. Muito importante. Muito obrigada.
R - Obrigada. Eu sei que o trabalho de vocês deve ser lindo. Eu não tive tempo de olhar ainda. Mas, como eu disse...
P - Tudo tem seu tempo.
R - É. Não tenha dúvida disso. Cada coisa ao seu devido lugar. Então, obrigada pela oportunidade. Desejo um bom trabalho pra vocês.
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