P/1 – Dôra, a gente vai começar a nossa entrevista. Eu vou pedir pra você falar o seu nome completo, o local, a data do nascimento e como foi que surgiu o seu apelido. R – Ta. Agora, eu nasci em São Gonçalo do Rio Preto e a infância foi passada em outra fazenda, que é a fazenda do Capão Grosso, que inclusive estou terminando um livro sobre essa infância, essa vivência rural que, depois dessa pousada aqui, eu vejo que todas as pessoas que vêem aqui, o primeiro impacto é de uma nostalgia da casa do avô, da avó, de um tio, porque Minas é muito rural, Minas é muito campo. Então esse livro, que eu estou muito assim ligada a esse ambiente. Quando éramos... Essa infância na outra fazenda, que essa aqui só depois de virar pousada é que ela foi habitada. Porque antes não, era um sobradinho de uns antepassados e que, quando um professor meu apareceu aqui uma vez, em férias, Raimundo Nonato, ele falou comigo assim: “Porque você não transforma isso num hotel?” E eu falei: “Ai, nem pensar”. Essa palavra hotel, o que eu conhecia de hotel era uma coisa muito impessoal, muito frio. Você não conhecia o dono, você não sabia onde era a cozinha. As pessoas, uma recepção, tudo formal. E tem que ser mesmo porque é uma estrutura pra lidar com muita gente. Eu: “Nem pensar”. Com esse bando de pousada, em que os hóspedes se adaptam à vida da pessoa que está hospedando, aí tem uma outra conotação, uma coisa muito família, muito sem nenhuma sofisticação. O costume, os hábitos são assimilados pelos hóspedes que se integram também. Aí eu falei: “Isso eu topo”, pensei comigo. E começamos. Nessa aí a gente já, essa outra fazenda já ficou no passado. Aí, quando, eu vou fazer um parênteses aqui. Quando morávamos na outra fazenda, era um latifúndio. Quando o meu pai e o meu tio compraram a fazenda o dono dela, Marcolino, era uma pessoa que tinha problema com a polícia. Então tinha alçapão nessa fazenda. Da janela, quando ele sentia, na curva do morro, numa curva, que a polícia estava chegando, ele se escondia. Era uma fazenda assim. E era muito longe daqui e minha mãe não queria filho criado ali. Ela queria que os filhos estudassem, que tivessem bons colégios. E ela não se conformava. E um adoecia, era muito longe. Era cavalo pra vir procurar recurso. E eu sei que assim que ela pôde nós nos mudamos pra Rio Preto, que é onde vivia a mãe dela, os irmãos. Era a terra deles, a nossa terra. E aí papai compra essa fazenda mas ninguém nunca morou aqui. Quando ele comprou ele mexia muito com gado, tocava a vida. Abriu casa de comércio em Rio Preto. E nós ficamos, eu tenho irmãs que até o primário foi feito no colégio, interna, porque ela queria bons colégios tal. Tinha ideal com filho estudar. E também, assim, quando a gente morava na fazenda, por exemplo, ia matar um boi pra consumo na fazenda, papai avisava, ela botava a gente dentro do quarto e ficava lendo histórias pra nós, e histórias dos Irmãos Grimm, Andersen, da literatura universal. Ela tinha um livrinho de capa preta. E falava assim, era Gata Borralheira, Pequeno Polegar, João e Maria, Branca de Neve, essas coisas. E a gente ficava encantada. E isso era uma forma de desviar, tirar daquela cena chocante que era um abate. E papai à noite contava histórias pra nós também, só que as de papai eram de terror. A gente dormia de medo. Depois ele saía colocando cada um na sua cama, né? Porque que era de terror? Porque ele tinha medo que a gente fosse pro rio sozinha, sem um adulto. Nós éramos muito soltas na fazenda, e mesmo em Rio Preto. Então era uma forma que ele, de intimidar, de botar grilo, medo, e mamãe não gostava disso. Mas a gente queria. Uma moça que trabalhava conosco, que cuidava da gente, à noite: “Chama papai pra contar história”. E era história de terror, a gente morria de medo. Aí ela falava assim: “Vocês são que nem bode no pé de pimenta”, porque bode no pé de pimenta chora, esperneia, tudo, mas não larga. Então ela falava: “Vocês são que nem bode no pé de pimenta. Sofrem, têm medo mas querem ouvir”. P/1 – Quantos irmãos vocês eram? R – Nós somos nove. Aí papai depois tinha que levar todo mundo. E quando um acordava com pesadelo, com medo à noite, mamãe falava: “Vai lá você. Fica lá na beira da cama até dormir de novo porque isso é por conta das histórias que você conta”. Mas ele via surtir efeito. A gente não tinha coragem de ir pro rio sozinha. Então ele via o efeito e ele estava bem satisfeito com a pedagogia dele, entendeu, que justamente o objetivo era esse. Mas aí e tal, a gente vai crescendo, cada um vai pro colégio, termina. Eu fui pra Belo Horizonte, estudei em Belo Horizonte, fiz Letras na UFMG, tive uma bolsa fora, nos Estados Unidos, de pouco tempo. Eu não tinha dinheiro pra ficar. Eu queria conhecer o Brasil mas eu não tinha dinheiro pra ficar fazendo turismo. Aí toda chance que tinha de uma entrevista pra uma bolsa, um trabalho, eu ia, ganhava e aí morei um ano no Rio Grande do Norte, em Natal, em função disso. Eu estava bem no início, começando minha vida profissional de professora. Depois tive outra temporada em Macapá. Também assim, lá tinha uma empresa que explorava manganês, requisitava, recrutava professora no Sul pra ir pra lá, Sudeste, com todas as mordomias. Aí a gente ia. Quando era fim de semana ia pra Belém. Eles davam a passagem de volta, nas férias escolares. Aí a gente pagava uma diferença pra ir pra Manaus bater perna na zona franca, comprar bugiganga de zona franca. Mas eu estava sempre assim, me preparando pra voltar pra Rio Preto. P/1 – Essa época que você está dando essas aulas, começando a sua carreira como professora, que época que é mais ou menos, em que década? R – Oitenta, por aí. Assim, que eu estava andando por aí. Aí, quando, em 90 eu voltei de mala e cuia. Aí eu já pensei na possibilidade de abrir a pousada. Eu vi, em Diamantina, que pousada não era igual um hotel, era uma coisa menor, mais de família. Você conhecia o dono da casa. Aí eu falei: “Eu vou dar uma mudada nisso aqui, uma retocada”. Eu brinco que tudo que é re teve aqui, reconstrução, restauração, reforma. Porque isso aqui, assim, você não queira saber o que era um quartinho ali, outro aqui, lá. Era tipo uma senzala mesmo, o pé direito muito baixo. O que pôde ficar, ficou, que eu não queria que ela perdesse a identidade, descaracterizasse. E além disso tem um romance que chama “A noiva do tropeiro”, de Abílio Barreto, que é a única obra de ficção dele, se eu não estou enganada. Já fui informada. Ele foi o primeiro historiador de Belo Horizonte de modo que o primeiro museu de Belo Horizonte é Museu Abílio Barreto. Então ele era historiador mas escreveu “A noiva do tropeiro”. E aqui nessa fazenda é que era a pousada do Zé Lucas, que era o personagem, o tropeiro. É um romance bonito, triste. E, enfim, era aqui. Mas a gente ficou quatro anos e meio, mais ou menos, dando, fazendo banheiro, adaptando, fazendo todas as modificações que teriam que ser feitas pra funcionar como pousada. E até hoje a gente mexe porque é uma casa que, pela data, ela é do finalzinho do século XVIII. Porque eu Diamantina tem, no Museu de Diamantina, referências dessa casa, no Museu Chica da Silva. Então ela é muito antiga. Meu pai está com 95 anos e ele era criança, isso aqui já era de um pessoal antigo. P/1 – Dôra, vamos recuperar um pouco assim. Antigamente, vamos chamar assim, a quem pertenceu essa fazenda? Qual que é a história que você conhece? R – Olha, que eu conheço oralmente, de informação oral, é que Frutuosa, neta de Chica da Silva, foi dona disso aqui, proprietária, mas não tem nenhum registro que informe se ela morou aqui. O que a gente sabe é que aqui fazia parte do latifúndio dela. Ela tinha um latifúndio, tanto que ela morreu em Rio Preto. E ela era mãe de Franklin Amador. Olha, Chica da Silva teve a Maria Quitéria, Frutuosa, ela teve 13 filhos com o português, João Fernandes. A Quitéria teve uma filha chamada Frutuosa. Porque eu tenho um primo, Deusdedith, em Juiz de Fora, que ele fez a árvore genealógica da família. Então essa informação... Quando Júlia Freire, Júlia Furtado, fez o livro “Chica da Silva” e que pegou foto daqui, porque a gente é descendente, nós já tínhamos essa informação porque já existia a árvore. Então Frutuosa, neta de Chica da Silva, era a mãe do bisavô de papai, Franklin Amador. E essa fazenda pertenceu, está no livro, não como residência dela mas fazendo parte do latifúndio dela. E era um sobradinho que não tinha banheiro. Ficava era caseiro aqui, porque papai tocava a fazenda. P/1 – A fazenda nessa época produzia o que? R – Fazia cachaça, rapadura. Então tinha canavial, tinha gado. E você olha bem, papai era negociante, tinha fazenda, mas casas de comércio também, e ele falava, porque hoje ele está com 95 anos e a memória já viu, né, dançou. Mas quando ele estava bem ele falava que o banco era um pai que tinha, e fazia questão de falar assim: “E um pai bom”, porque o banco financiava tudo. E papai era muito caprichoso, gostava de tudo arrumadinho, gado, essas coisas. Então ele contava que ele pagava 3% ao ano e quando ia no Banco do Brasil pra quitar a dívida eles: “Não, vamos reformar isso, essa dívida”. Eu não sei bem como é o termo que usa. Enfim, eles queriam era emprestar mais e reformar aquele financiamento. Porque hoje em dia banco, virgem Maria. A gente fez aqui essa reforma toda e até hoje, ta vendo, curral, tudo novo, com recurso próprio, porque banco ninguém mais dá conta, só mesmo os grandes empresários rurais. E aí a pousada está funcionando. Pequena, a gente só tem nove apartamentos. Não temos nenhuma intenção de aumentar, está de ótimo tamanho. A gente fica bem em contato com os hóspedes porque não tem aquele caráter comercial, de uma empresa muito grande, sabe? É possível nem ter horário. Porque quando eu estava pra abrir aqui como pousada uma amiga minha falou assim: “Olha, Dôra, agora você deve por atrás da porta dos quartos um regulamento porque hóspede gosta de organização”. Aí eu falei assim: “Oh, eu vou tentar ser organizada sem esse papelzinho, sem esse horário”. E tem dado muito certo. A pessoa pode chegar e tirar o relógio do braço. Porque ela toma o café da manha, quer ir pro parque, vai. Quando é cinco horas da tarde, seis, depois do trekking, depois de pegar trilha, ela chega, o almoço está na chapa, tampadinho. E eu brinco que eu só não garanto a salsinha, a cebolinha estar tudo verdinha. Já murchou, né? Mas é o preço da liberdade porque não está igual a hora que faz. Mas o pessoal gosta, muito de Montes Claros. Noventa por cento da freqüência aqui é Montes Claros. P/1 – Deixa eu voltar um pouco na tua idéia de reformar e montar a pousada. Como assim? Você combinou com o seu pai? Como é que foi a reação das pessoas da família? Como é que você foi ganhando aliados, colocando em prática? R – Ninguém acreditava. Como eu sempre fiz tudo que me dava na telha, eu disse: “Eu vou arrumar essa casa e ela vai ser uma pousada”. Aí papai, mamãe, qualquer coisa que você quisesse fazer eles achavam bom, davam força. Não eram de podar. Aí meus irmãos não acreditavam muito: “Virgem Maria, isso aqui, até chegar nesse ponto...” Engraçado que isso foi em 94. Aí o meu irmão, Fernando, falou assim: “Ah, vai começar?” “Vai” “Ótimo. Até 2000 é capaz de sair”. E saiu foi em 2000. Não, 2000 não. A gente abriu aqui no réveillon de 98 pra 99, no réveillon de 1999. Tem oito anos, parece. Eu acho que é oito anos e uns meses. E por incrível que pareça a minha primeira hóspede, eu só soube no segundo dia. Ela era da Belotur Turismo. Gente, quando eu soube eu falei: “Vilma, você está aqui porque eu não sabia. Se eu soubesse eu falava que não tinha lugar”. Porque, como é que eu... Assim, você começando, ter uma pessoa que já está acostumada com o funcionamento aí dos grandes hotéis, pousadas, né? Mas acabou que ela é ótima, não tive problema. Depois a Mara Sales. Menina, quando a Ofélia se foi Mara ficou no lugar da Ofélia fazendo programa de culinária na Band. Aí minha prima em Belo Horizonte, que tem uma revista e que a sócia dela já era amiga da Mara, resolve vir pra cá. No segundo dia, no dia seguinte que vieram, a Ana Luiza convidou pra assistir o programa da Mara e eu fiquei sabendo, aí que eu fiquei sabendo, professora da Band. Tinha o Restaurante Tordesilhas e tal. Eu falei: “É a mesma coisa. Gente, é um choque atrás do outro”. Olha bem, eu falaria também que não tinha lugar. E hoje ela já veio aqui não sei quantas vezes, uma figura incrível, maravilhosa, e não tem nada assim que a fica receosa, acostumada a viajar, uma chefe importante. Mas aí então de vez em quando tem umas surpresas assim mas agora já foram tantos os sustos que eu já estou mais segura de estar recebendo esse pessoal. Mas aí começou a reforma derrubando tudo. Você pensa que uma coisa está boa, que é só um retoque, ela está desmanchando, você tem que refazer. Eu não queria mudar nada. Eu queria que ela mantivesse as características da época. E na medida do possível a gente conseguiu. E assim, a comida é comida mineira mesmo, que o pessoal gosta. Teve uma menina que falou assim comigo, uma amiga minha de Sete Lagoas. Quer dizer, somos amigas, tudo, mas ela veio como cliente. A gente não se conhecia e tal, hoje ela vem sempre aqui, Patrícia Leme Cavalcante, de Sete Lagoas. Aí ela fica assim: “Ai, Dôra, eu vim a primeira vez. Ai, meu Deus, tomara que não tenha maionese, que pra onde eu estou indo a pessoa não esteja preocupada com uma comida assim que não é muito rural, mineiro”. E chegou aqui, a gente realmente fazia questão que a comida fosse bem regional. Porque, por exemplo, eu estava te contando que quando uns alemães do Pró-Renda falaram que vinham pra cá,vieram conhecer e falaram que daí a 30 dias eles estariam vindo, aí eu brinquei, falei: “É o tempo de aprender a fazer chucrute”. Ele falou: “Nada disso. Nós vamos querer comer é feijoada, tomar caipirinha, frango caipira, pato, essas coisas, comida mineira. Enfim, é o cardápio do dia-a-dia. P/1 – Agora, ontem você comentou com a gente uma coisa muito interessante, que eu queria registrar. É assim, tudo se faz aqui na fazenda, as galinhas. Eu queria que você explicasse isso pra gente, todo esse lado mais artesanal. R – É isso que Mara gosta de ver também. Tudo que serve aqui é feito aqui. Assim, quase tudo, deixa eu falar, porque alguma coisa não tem como. Por exemplo, fruta pro café da manhã eu tenho que pegar fora. Por quê? Porque aqui na fazenda só tem fruta da estação. Mas o essencial, as quitandas, que é uma tradição mineira, é feita aqui. O pão, tudo, o café torrado, socado no pilão. Agora, como a gente está reformando curral, que eu não quero o curral perto de casa mais, a gente vai fazer, isso aqui vai virar estacionamento e o curral vai ser mais afastado. Porque? Porque dá muito mosquito onde mexe com leite. E também, assim, se o bezerro, você separa o bezerrinho novo da mãe, ele berra a noite toda, e ela. Então ainda tem uma conotação de violência que não deixa a gente dormir de pena. Que violência você tirar da mãe o bichinho que está ainda querendo o calor dela e tal. Se não fizer isso no outro dia não tem leite. Então que isso aconteça longe. Já que eu vou dormir, vou ficar direto aqui com hóspede. Ou então, se o bezerro já está na hora de desmamar, você separa também senão ele continua com a mãe e a mãe precisa pegar outra cria. Tem tudo isso, né? P/1 – O queijo é feito aqui? R – Então, agora a gente não está fazendo queijo. Eu pego queijo de uma fazenda aqui perto. Mas é de Rio Preto, um queijo bem feito e artesanal, da Fazenda do Alecrim aqui. Eu pego da família do diretor do parque, Tonhão e Ademarzinho, que é o agrônomo. Terminou também a faculdade em Viçosa, veio viver em Rio Preto, na fazenda do pai dele. Eu estou pegando com eles. Mas o requeijão eu estou pegando com outra pessoa. Por quê? Porque nós estamos transformando o curral numa área de estacionamento e o outro curral ainda não está pronto. Mas a horta aí, ela é toda cultivada com esterco de curral. Nem um grão químico. O máximo que a gente usa é uma água de fumo, quando tem pulgão, alguma coisa, cinza. P/1 – Como os antigos faziam. R – Exatamente. E, enfim, preservando mesmo esses hábitos rurais que hoje está difícil você conseguir morando numa cidade maior, mas que na zona rural ainda é possível. Os doces, todos os doces, limão laranja, cidra, doce de leite, tudo feito aqui, Zinha que faz. Antes era a Alice. A Alice saiu, ficou comigo uns seis anos. E eu tenho uma equipe que tudo dá certo por causa delas. Quando uma fala em sair eu ameaço cortar os pulsos, aí ela desiste, aí ela fica. P/1 – Eu já vou perguntar da equipe. Mas só pra gente terminar esse lado das delícias do casarão, explica pra nós, que somos de São Paulo, o que são quitandas. R – Ah, ta. Oh, quitanda, se em Belo Horizonte você perguntar às vezes assim: “Olha, tem uma quitanda por aí?”, uma vendinha também é chamada de quitanda. Mas, meninas, no interior e na cultura mineira, quitanda é o biscoito, rosquinha, quebra-quebra, biscoitinho, qualquer coisa que você tome com cafezinho. Então, por exemplo, no café da manhã aqui na pousada nós temos um aparador onde ficam as quitandas. E na chapa do fogão ficam as coisas quentes, canjica, mingau, caldo, no café da manhã, ovo. A parte das quitandas são as cestinhas com pão de queijo, biscoito, rosquinha, biscoitinho de vários tipos. Isso é quitanda. P/1 – E o fubá é feito aqui? R – É, o fubá, porque nós temos o moinho d’água. Então nós puxamos a água pra fazer a piscina. Você vê que tem a queda d’água, tipo uma cachoeira, e é água corrente, ela entra e sai. Por isso que não tem casa de máquina pra tratar como acontece nas piscinas. Então, quando é sexta-feira, tira uma parte da água da piscina pra tocar o moinho e pra limpar a piscina. Diminui a vazão, a queda d’água, e aproveita pra moer o milho e fazer o fubá que dê pra semana toda, não só aqui pra fazenda como pra minha casa na cidade, porque desse fubá se faz broa, mingau, angu. P/1 – Eu queria que você falasse a diferença entre o angu e a polenta. R – Porque aqui a gente faz angu de escravo mesmo. É uma iguaria, vamos dizer assim, que acompanha a comida dependendo do cardápio. Por exemplo, frango ao molho pardo é servido com angu. E polenta é um angu temperado, que não é muito da cultura. Se uma pessoa chegar e falar assim: “Olha aqui, você faz polenta?”, a pessoa fala: “Faço”. Mas ela está pensando que polenta é angu porque ela não tem a informação de que polenta é um angu temperado. Ela acha que é o angu que, vamos dizer, em São Paulo é conhecido como polenta, e não é. Polenta é um angu temperado. Você pergunta: “Tem polenta na sua casa hoje no almoço?” “Tem”, mas é o angu que é água e fubá. Agora, tem técnica porque você coloca a água quente, deixa esquentar. Depois a pessoa que já tem prática vem, vai salpicando o fubá. Quem não tem desmancha o fubá na água fria e joga pra ele não empelotar, mas quem tem a técnica, já o costume, vai fazendo uma poeirinha, mexendo, não dá uma bolinha. E aí, minha filha, haja muque. Amassa, amassa. Ele tem que dar liga e o fubá de moinho d’água faz isso perfeito. Porque aqui tem o fubá feito em desintegrador, algumas pessoas, moinho elétrico, porque hoje está mais difícil o moinho d’água, não é todo mundo que tem, mas não é a mesma coisa. Não dá aquela liga que o moinho d’água, a pedra. Já me explicaram até uma questão de enzimas, que essas pedras tocadas à água não quebram uma enzima, uma coisa lá que eu não sei bem explicar. Enfim, ora-pro-nóbis com lingüiça, feijão pede angu. Frango ao molho pardo pede angu, mamão verde com costelinha de porco, feijão e arroz pede angu. P/1 – Dôra, uma coisa que a gente não conhece em São Paulo e você citou é o ora-pro-nóbis. Eu queria que você explicasse o quê que é, qual é o gosto. R – Oh, isso é nativo aqui. Há pessoas que pegam uma estaquinha, levam pra plantar, mas eu nunca soube se nasceu, se deu certo porque aqui é nativo. Você planta também, mas qualquer estaquinha que você coloca por aí pega. Eu não sei o quê que tem a ver, se é com o clima, se é com o tipo... Enfim, em Minas, eu não sei nos outros estados mas em Minas é nativo. É uma folha, assim, por exemplo. Ela tem um espinhozinho no caule e tal. Tem um folclore, um negócio aí que eles contam, que diz que no adro das igrejas antigamente, Diamantina, tudo, na hora da reza, porque hoje ela está muito valorizada até pelo teor nutritivo e tal mas antes ninguém sabia. Só sabia que era gostoso e que era uma iguaria, uma mistura, como se diz. Mistura é feijão. Por exemplo, se tiver feijão, arroz, carne, a pessoa fala assim: “E qual que vai ser a mistura?” Mistura é a verdura. Então diz que as mães mais carentes, que às vezes tinha mais dificuldade em ter uma horta ou estar comprando, diz que avisava pros filhos. Então, assim, escravos, que era um pessoal mais tímido, mais retraído. Então diz que pedia aos filhos assim: “Oh, na hora da reza, na hora que você ver o pessoal respondendo ora-pro-nóbis”, porque ladainha de Nossa Senhora a resposta é ora-pro-nóbis, ou seja, rogai por nós, ela é longa. Então dava tempo de catar as folhas sem ninguém perceber. A história que eu vejo contar, a origem do nome é essa. Então que pediam assim: “Na hora que você ver ora-pro-nóbis”, falava com a criança, “você vai e pega”. E conclusão, todo canto aqui tem, todo mundo gosta, frango com ora-pro-nóbis, ora-pro-nóbis com lingüiça, ora-pro-nóbis, enfim, sempre com angu, tem que ter o angu. O ora-pro-nóbis pede o angu. E é isso. A origem que eu sei é essa. E se vocês fossem ficar aqui vocês poderiam comer o ora-pro-nóbis, mas fica pra próxima, quando vocês voltarem. P/1 – Deu vontade. E, Dôra, você comentou aqui com a gente também que você coordena tudo, né? Então essa coordenação na cozinha. Como é que você faz de coordenar o preparo de uma refeição, como é que você prova? R – Eu tinha uma cozinheira ótima, que era a Alice, mas a Alice está cuidando da aposentadoria dela e tal. Ela abriu lá também agora um Cantinho da Alice onde ela serve os caldos que ela servia aqui, enfim. E agora eu tenho Zinha. Oh, eu tenho Zinha na cozinha. Rosário sabe tudo de hóspede, de casa, de roupa de cama, de tudo. Eu durmo muito tarde. Quando os hóspedes vão embora mais cedo eu não acordo, ela é que acerta. Assim, quando depois do café da manhã resolve sair ou vai sair mas é muito cedo. Então eu tenho essas duas fixas e tenho uma da noite, que chega quatro e meia pra cuidar do lanche da noite, que é Lea. Tenho Madalena, tenho Maria, Alzira, que são diaristas dependendo do movimento, que às vezes tem treinamento aqui, às vezes um fim de semana fecha, agência de turismo fecha a pousada. Eu tenho que ter muita gente. Mas o que acontece, que eu falei, é o seguinte. Eu tenho uma cozinha de guerra lá embaixo, na parte de baixo. Por quê? Porque se fizer comida no mesmo local que serve a cozinha fica bagunçada, né? Então, depois que já está... Tem fogão à lenha. Tenho quatro fogões à lenha, sendo que um eles chamam de fornalha, só tem um crivo, que é pra fazer doce, que é pra cozinhar uma carne mais demorada, tudo à lenha. A água é aquecida à lenha. Então elas fazem, Zinha tem uma ajudante, elas fazem tudo lá embaixo, na cozinha de baixo onde tem a área do forno, da fornalha e tal. E eu falo o que vai ser feito, o cardápio eu que faço. Anoto, deixo pra elas. A lingüiça, tudo é feito aqui. Joaquim faz lingüiça, o Joaquim mata pato, mata frango, corta, dá um jeitinho pra Zinha fazer. Então isso é, a Mara descreve o ritual no livro dela de uma forma ótima, os detalhes todos. Então aí elas preparam a comida e sobem nas panelas de pedra e travessa, mas não sobe uma sem que eu prove antes, sem que eu... Às eu não estou presente mas toda hora eu chego: “Não, vamos fazer esse molhozinho aqui mais ralo, ou vamos encorpar mais esse molho”. Eu sei cozinhar. Eu sei cozinhar assim, cozinha mineira trivial, que eu estou acostumada na minha casa na cidade, tudo. Mas eu não pego, elas que fazem. Eu fico é dando palpite, provando, sugerindo. P/1 – E, assim, distinguir o gosto bom do gosto... R – Ah, isso aí o paladar já está acostumado. Tem duas coisas que eu não convivo mesmo, que é comida gorda, com muita gordura, muito óleo, to fora. E elas já sabem disso. E sal também. Eu acho que tempero, sal não é tempero pra você ficar abusando. Inclusive fica lá o saleiro, quem quiser... Eu acho que tempero é cebola, alho, essas ervas de horta. Por exemplo, o melhor tempero de carne pra mim é alfavaca, que aqui em Rio Preto eles falam favaquinha. Então você faz um frango e joga umas duas folhinhas, mas é outro frango. Eu, se eu morasse numa cidade grande eu ia ter um vaso com isso porque tempero de lingüiça, tudo, é ótimo. E as carnes todas preparadas aqui, sempre com esse toque dessas ervas daqui. Não pode ser, tem o ponto que se você abusar também não fica bom. Então a medida certa elas já sabem. Não tem segredo não, mas tem pequenos cuidados. Por exemplo, você vai servir uma feijoada no sábado, que normalmente, entre outras coisas, tem feijoada sábado. Quarta-feira, terça acontece de fazer. Porque? Porque você tem o pé de porco, o rabinho, esse negócio, carne de sol. Olha, a parte do pé de porco, rabinho, essas coisas de porco é muito gorduroso isso. Então o quê que faz? Lava, arruma. Está no ponto? Está. Frita tudo. E não pode ser tudo. Frita mas aos poucos porque se você colocar muita quantidade pra fritar a parte que está em cima não fica bem frita. Então vai fritando, botando no tabuleiro. Vai fritando, vai soltando mesmo o óleo, a gordura, vai pondo no tabuleiro. Depois pega esse tabuleiro e leva pro forno. Ainda sai mais gordura. Leva pro forno. Aí, quando você pega o pé de porco, depois que já foi pro fogo, ta igual pedra. Se você jogar numa pessoa fere, machuca, não é? Está igual uma pedra. Aí que você vai cozinhar. Então, conclusão, você, no sábado você serve a feijoada. Digamos, você leva depois pra geladeira. Acabou o almoço e tal, você leva pra geladeira. Você pode olhar. Normalmente as feijoadas têm uma camada branca no outro dia. Pode vir aqui, não tem uma pintinha branca. Tem uns defumados também que a gente coloca, mas já é tudo frito antes porque ninguém... Há pessoas que cozinham esses ingredientes e vão pegando, tirando a gordura por cima. Eu não confio que vai sair tudo. Então, no outro dia eu tenho que ver a feijoada e não ter nem uma pintinha branca, que é sinal de que está magrinha. É claro que não existe feijoada light, não tem como, mas se existir a daqui é, porque fica, tudo que pode fazer pra virar uma pedra, de não ter mais gordura, a gente faz. P/1 – Dôra, e assim, fiquei muito curiosa agora. Com quem que você aprendeu esses pequenos detalhes? R – Oh, quando nós, teve uma pessoa, Isabel, que morou a vida toda com a família, e eu gostava de ficar no fogão, sentada na banca do fogão vendo, a gente chamava ela de Bé, cozinhar. Toda vida, minha avó também, eu tinha uma curiosidade de uma coisa. Em frente à minha casa na cidade tinha um rancho de tropa. Um rancho assim, tinha um casarão, seria como uma garagem, e tinha uma cancela. E papai, como tinha casa de comércio, armazém, tinha loja, essas coisas, chegavam aqueles tropeiros de Montes Claros com aquelas mantas de carne de sol e ficava no rancho. Eles tinham uma trempe igual aquela ali perto da lareira, você viu ali? Uma trempe que eles punham fogo embaixo e a panela cozinhando a comida deles. E eu ficava fascinada com aquilo. O rancho era meio escuro e o teto tinha picumã, aquela fuligem de fumaça acumulada. E nós esperávamos a hora de papai ir fazer as compras das mantas de carne. Tinha uma porteira tipo de curral fechando como se fosse uma garagem. Nós não tínhamos coragem de entrar não. A gente tinha medo daquele ambiente, aqueles homens falando alto, aquele negócio. Mas a gente ficava vendo as carnes sendo retalhadas e eu sentia um fascínio por aquilo. Quando eu pude eu comecei a querer cozinhar. Eu lembro que uma vez vieram uns parentes nossos de Belo Horizonte, eu era garota ainda e eu falei com mamãe que eu ia fazer um almoço pra eles. Mamãe deixou. Eu fico impressionada de ver uma pessoa, porque eles só fizeram o primário, minha mãe e meu pai, mas eles tinham uma confiança, uma relação com a gente que, desde que a coisa não fosse perigosa pode fazer. Perigo físico, de acontecer alguma coisa. Aí não, aí era proibido e tal. Mas, entendeu? Então eu acho que foi muito do convívio de ver as pessoas. Essa cena do rancho de tropa, aquela fumaça subindo, aquele cheiro de alho, uma coisa gostosa. Na fazenda mesmo, porque sempre tinha a cozinha dos trabalhadores lá fora, porque eles almoçavam era o que, nove horas do dia. Eles levantam, tomam um cafezinho e vão. Quando é nove horas já tem comida pronta. Quando é meio dia tem merenda, angu doce com queijo, com leite, farinha de milho com leite, umas merendas assim. E quatro horas da tarde é o jantar deles. Aquele cheiro, aquele povo amassando pimenta no canto do prato, comendo mamão verde com angu, com costelinha de porco, aquelas coisas de roça mineira. Eu gostava de ver aquilo e fiquei gostando. E hoje eu não queria. Assim, eu escrevo sobre isso. Estou terminando, não sei se eu vou conseguir uma editora. Enfim, eu tenho tudo assim, quase um documentário, mas não é uma coisa. Porque mineiro é tudo assim, tem uma coisa subjacente em Minas, que você vê que é diferente aqui, ali, mas tem uma essência que é... Uma infância na roça é igual em qualquer roça, em qualquer parte. Em Minas, por exemplo, eu tenho certeza que é igual. Porque você vê, o Norte do país já é outra característica, do que faz uma criança. Mas no Sudeste e principalmente em Minas é muito parecido. Quando você pega... Ah, eu lembro que a minha avó fazia isso. Quer dizer, gente que mora em Belo Horizonte, que mora, todo mineiro tem um pé na zona rural, no campo. Não, às vezes, da própria pessoa mas de um tio, de uma avó, de uma pessoa assim ligada. E quando eu estava na faculdade, em 71, eu participei de uns concursos lá internos e ganhava os prêmios. Então eu peguei gosto pela coisa de escrever. Esse meu primo que fez a árvore genealógica, ele abre o livro dele com um poema meu sobre Rio Preto, mas é tudo da minha infância, Rio Preto, sabe? Então estou aqui. Gosto de cozinha, gosto de ler, gosto de escrever, gosto de viver aqui. P/1 – E como é que se deu? Teve muitas coisas especiais aqui na pousada, né, e muitas pessoas também pra cuidar. Como é que foi você chamar as pessoas pra virem trabalhar na pousada, mesmo que diaristas, treinar essas pessoas. Como é que foi essa coordenação? R – Ah, minha filha. Puxa, no princípio, olha, foi uma batalha. Por quê? Porque cozinhar qualquer pessoa em Rio Preto cozinha desde cedo, mas cada pessoa tem o seu estilo, sua forma. Então é uma batalha. Você fala assim: “Oh, fulana, você podia trabalhar comigo pra cozinhar na fazenda” “Ah, mas de jeito nenhum, Dôra” “Por quê?” “Ah, eu sei cozinhar pra mim”. Eles acham que pousada, comida pra hóspede é uma coisa muito diferente. Aí eu falo assim: “Você cozinha na sua casa?” “Lá pra casa eu cozinho” “Você faz o que? Arroz, feijão, carne, verdura, angu, costelinha de porco, frango caipira, carne cozida, carne, você faz isso?” “Faço” “Lá também é isso que o pessoal gosta” “Ah, mas eu só sei fazer pra mim”. Então, deixa eu te falar, no princípio o pessoal não tinha um treino nem assim, servir um café da manhã pro hóspede. Sabe o que acontecia, Cláudia? Eu, que sempre gostei de dormir tarde porque gosto muito de ler, e com hóspede, aí que eu dormia mais tarde ainda. Quando era de manhã eu tinha que levantar cedo. Pra que? Botar papel filme nas frutas que cortava. Eles sabiam lidar com esse papel. Eu sei que quando os hóspedes iam embora eu estava um caco, eu só queria dormir, porque eu dormia tarde e acordava cedo. Hoje eu sou a última que acorda, a última que toma café. Já pegaram tudo, até minhas manias elas captaram, as manias também. Então, tranqüilo. Quando eu acordo, levanto, porque eu durmo tarde, o pessoal já tomou o café, já foi pro parque ou já está na piscina, enfim, já está com o dia em andamento, e tudo com elas. E com a certeza de que tudo certinho. Tudo simples, tudo, mas com deve ser. Não tem nada que eu possa falar assim: “Ah, isso não está...” E elas sabem o seguinte, se um tabuleiro de pão de queijo não saiu como deve, não serve não, põe outro. Se tiver dúvida, ou não cresceu, ou não ficou bonito, não está bom, nem precisa me perguntar. E eu tenho certeza que elas sabem disso, não servem. P/2 – Essa coisa sua de dormir tarde, de ler, é uma coisa meio solitária? Como que é isso? R – Ah, isso é o seguinte. A pessoa acha, por exemplo, fica assim: “Você aqui nesse casarão, você é bem humorada? Como é que é isso?” Aí eu falo assim: “Ah, deve ser porque eu sou muito feliz no amor”. Aí a pessoa, aconteceu, aí a pessoa falou assim, já duas vezes: “Ah, eu não sabia que você tinha uma pessoa”. Eu falei: “Não tenho”, porque acha que amor, sou muito feliz no amor quer dizer com um homem, com uma pessoa. Não, é amor com a casa, tudo que rola, as árvores, os bichinhos, o barulho da água. Hoje qualquer tempo que eu passo fora daqui é tempo perdido pra mim, francamente que é. Eu vou a Belo Horizonte, de vez em quando tem que ir à corte, né? Eu vou mas eu vou rápido. Agora, eu sinto falta de que? Eu sinto falta de teatro, eu sinto falta de às vezes bater perna, fazer compra. De vez em quando eu vou. Mas seu eu pudesse era a noite lá e o dia aqui. Agora, à noite aqui o quê que eu faço? Gente, eu nem comento porque as pessoas podem ter até dificuldade de acreditar. Mas você abrir um livro, uma luz de cabeceira, barulho de água, porque é água pra todo lado com queda, então faz barulho. Eu me sinto até assim um pouco com sentimento de culpa de ver que minhas irmãs estão tudo em Belo Horizonte, barulho de carro ou, enfim, cheio de compromisso, pega filho, leva filho. E eu aqui com os livros que eu quero, à noite, mesmo na minha casa na cidade. É uma afinidade. Não é uma solidão força, uma solidão circunstancial, não é. É uma solidão buscada, que vivifica, que é tudo. Agora, tenho a maior dificuldade, Tiago, em dormir cedo, porque a noite é tão tranqüila, com tanto livro na cabeceira. Sou rezadeira também, leio a bíblia. Eu, de manhã eu dou uma folheada. Às vezes acordo, ligo. Eu sinto morar longe de uma livraria. Eu já pensei, até falei que eu vou pegar uma livraria em Belo Horizonte pra tudo que eu vejo de comentário de livro, seja na TV Senado, que tem uns programas de literatura, na TV Educativa, que me desperte a vontade, de eu ter uma forma deles mandarem pra mim por reembolso postal, por alguma forma, porque às vezes demora pra ir uma pessoa lá pra comprar ou pra mandar. Então eu não tenho esse problema, gosto, busco isso. P/1 – Que autores você gosta de ler? R – Olha, cabeceira, Clarisse Lispector. Gosto, li esse livro traduzido aí, “Caçador de Pipas”. Lindo. Você fica vendo como é uma cultura afegã, que é o autor do livro. Mas brasileiros, os que falam comigo a minha fala, ou seja, Guimarães Rosa, de cabeceira, Graciliano Ramos, J. Veiga “A hora dos ruminantes”, de J. Veiga. Eu acho aquele livro lindo. E os poetas, Goulart, Drummond, Tiago de Melo. Leio Borges, argentino. Enfim, todos eu leio. E tem esse negócio também. Se a crítica falar: “O livro é excelente e tal”, eu tenho que ler pra saber porque minha sensibilidade é que é meu crítico. Se eu gostei o livro é bom, se eu não gostei pode... Quem quiser falar que é ótimo. Eu tenho muito disso também, é o meu julgamento. E coincidentemente quando o livro é bom, é bom mesmo pra todo mundo e tal. Mas eu estou dizendo assim, às vezes um autor desconhecido, que você não sabe ainda, às vezes você lê, está no auge, não bate. Outra vez eles nem mencionam e é ótimo. Então tem livros, por exemplo, que eu tenho inveja da pessoa que vai ler pela primeira vez porque eu já li, já reli, e fico naquele grau de encantamento e fico pensando: “Porque que não sou eu que vou ler pela primeira vez”, porque o impacto. Tem livros, por exemplo, Machado de Assis a necessidade é de reler também, né? Você lê há mais tempo, depois você quer voltar pra sorver de novo o que você pegou da primeira vez. E tem a minha própria produção. Esse livro a metade é prosa, a metade é poema. Agora vamos ver a editora, se eu consigo. P/1 – Consegue. Dôra, pra gente começar a acabar, mais umas duas ou três perguntas. A gente veio aqui no casarão, cada cantinho da casa tem um detalhe especial, um quadrinho, uma planta. Como é que foi esse processo assim, depois da reforma, de dar esse tom tão aconchegante no casarão? R – Cláudia, eu não sei, tudo, não se colocou um tijolo sem mim, tá? Tudo, essa chapeleira ali, esse negócio ali, tudo eu coloquei. Agora, de uma forma intuitiva. Eu não sei, eu acho que fica bem, eu acho que não tem uma forma estudada não, é pura intuição. Eu sempre gostei disso. Uma vez minha irmã foi morar num apartamento em Belo Horizonte que era um andar o apartamento, e ela não é dada a essas coisas de decoração, sabe? Aí ela ficava: “Dôra, vem me ajudar”, e eu: “Ah, qualquer hora”, eu meio sem tempo e tal, estudando. Um dia ela falou assim: “Oh, se você não vier eu mesmo vou fazer. Vou por um Sagrado Coração de um lado, uma Nossa Senhora do outro, na sala”. Porque era assim que eram as casas da gente, da avó e tudo. Então é uma coisa que eu gosto. Eu nunca fiz curso assim. Mas sabe da maior? Tem esse pessoal do Feng Shui que às vezes aparece aqui e acha que está tudo em cima, e eu nem sabia disso na época. Não, eu tinha uma idéia, sabia que existia uma coisa assim. Por exemplo, esse caminho de pedra fazendo uma curva: “Dôra, isso é perfeito. Não pode ser reto, não”. O meu já estava pronto. E eu sem saber. O espelho na sala, em Belo Horizonte, no apartamento nosso tem, na minha sala na cidade tem e aqui tem também. Isso é ótimo. P/1 – Pra que? R – Eu fiquei sabendo depois, que a carga negativa de quem chega, umas coisas assim, que reflete e volta. Eles explicam umas coisas assim. P/1 – E o caminho não pode ser reto por quê? R – Não sei. Eles têm uma explicação. Aí eles me avisam que está tudo bem em termos desse tipo de cuidado que é estudado por pessoas orientais e tal. Coincide de dar certo. P/1 – Você ia falar de uma outra coisa e eu te interrompi. R – Não, é isso. É que, por exemplo, as quinas devem ser quebradas. Eu quebrei com medo de alguém machucar, sabe? Não tem... Água é altamente energético em termos de relax, de tudo. Tem oito nascentes aqui. É muito acidentado, então vem por gravidade. Você puxa uma bica aqui, põe outra coisa ali, a piscina com aquela queda d’água. P/1 – Tudo de água corrente? R – Tudo de água corrente. E outra coisa, 80% da área da fazenda é mata virgem preservada numa época que papai, ninguém sabia o que era ecologia, ninguém sabia o que era política de defesa ambiental, papai já preservava por intuição, por sensibilidade. Ele só deixava tirar madeira na mata se fosse pra alguma benfeitoria aqui. Não gostava, sabe, esse pessoal que mexe com madeireira, as madeireiras ficavam: “Ah, vamos vender, aqui tem muita madeira de lei”. Ficavam em cima de papai e ele ralando pra manter firme o estudo em Diamantina, no Cerro, e resistindo. Até hoje você pode ir nas nascentes aqui, a trilha que tem é o gado que faz, que o gado é muito rústico, porque aqui é muito acidentado. Tanto que quando eu programo que no almoço vai ser um churrasco, eu compro carne de boi maturada em Diamantina. Por quê? Porque o boi daqui é muito musculoso, a carne é dura. Eles sobem o morro e descem o dia inteiro. A única forma de você comer um bife é um filé porque aí fora os bois são confinados. Alcatra dá bife, patinho dá bife. Aqui não, é filé, senão fica duro, entendeu? Então é tudo, as nascentes são todas preservadas e vem de uma época que madeira de lei, tudo, porque papai tinha essa sensibilidade. Bem que ele precisava de dinheiro, ralava muito, mas resistia. Enquanto pôde, resistiu. P – Só pra gente localizar, a última pergunta, pra localizar onde está, penúltima pra não falar que eu estou mentindo. Pra gente localizar o casarão, assim, qual que é o perfil de São Gonçalo do Rio Preto, se é uma cidade mais urbana ou rural. R – Rio Preto é uma cidade antiga, mas assim, que tem um rio que a nascente é o parque. Aonde nasce esse rio é um parque estadual com toda a infra-estrutura e o rio passa na cidade. E Rio Preto teve um prefeito que mudou, foi na década de 80. Ele saiu daqui acho que em 89. Ele mudou a história de Rio Preto entre antes e depois dele. Ele, o Nivaldo Ramos Leão, Nadinho, os pais são da região, o pai é daqui de Rio Preto. Ele trabalhava, ele é um economista que trabalhava com projetos comunitários no Minas Caixa. O Minas Caixa fechou, né? Ele veio ser prefeito aqui pra passar uma época no interior, na terra do pai. Ele gosta muito desses projetos comunitários. E tudo que foi feito em Rio Preto, que hoje tem de bom, ele garantiu isso. Então o primeiro trator de esteira financiado pelo Fundec, que é Fundação do Desenvolvimento Comunitário do Banco do Brasil, está em Rio Preto. Quem conseguiu? Os produtores rurais. Ele na retaguarda, mas quem lutou, quem fez projeto com os assessores dele foi na gestão dele. Por exemplo, toda comunidade rural tem associação. A pessoa não sabia que ela tinha força, que se organizasse ela teria condições de lutar pelo que queria. Ninguém tinha essa consciência. Eu falo mesmo, papai era líder político aqui e tudo. Quando falava assim: “Fulano, em quem você vai votar?” “Eu não sei, eu ainda não conversei com o compadre”. Mas não era essa conotação de coronelismo não. É porque a pessoa era absolutamente despolitizada. Ela vivia numa zona rural, na roça. Então ela não tinha acesso à informação. Hoje eles têm televisão, eles já podem fazer até a opção deles. Hoje eles convivem com os meios de comunicação que não tinha. Ficavam afundados na roça, um radinho lá pegando uns programas caipiras, sertanejos, uns negócios. O máximo que se ouvia era a hora do Brasil, assim mesmo poucas pessoas porque as outras não estavam ligadas. Então, conclusão. Por exemplo, tem uma gruta aqui, que vocês não foram lá. Na saída da gruta... Porque o moinho daqui, esse que daqui você avista, havia cinco numa época aí que a gente não pegou, que daqui da porta até na gruta eram cinco moinhos. Tem um canal alto, que é esse que vem pra piscina. Ele é todo feito de pedra. Ele foi feito pelos escravos. Por quê? Porque se não fizesse a coisa bem feita na primeira enchente desmoronava, e é o canal que traz a água dos moinhos. Então, quando esse moinho da saída da gruta estava em ruínas, estava já caindo. Caindo não, estava um pouco estragado e difícil. Tinha que fazer a bica de novo pra funcionar. Aí eu falei com Nadinho assim, aqui na cabeceira da fazenda tem um povoado do Rio das Pedras, esse rio chama Rio das Pedras. Aí eu falei assim: “Nadinho, nós vamos doar esse moinho pra comunidade do Rio das Pedras porque eles não têm moinho d’água”. Aí ele falou assim: “Tudo bem. Mas você podia fazer uma coisa? Faz um documento falando o seguinte, que o moinho será deles enquanto existir a associação pra dar uma força, pra que no dia que eu sair daqui e que eu for embora, pra associação não morrer, pra eles sempre continuarem organizados. Quanta coisa eles conseguiram em função da organização”. Aí eu falei com o presidente da associação. Ele não quis. Ele falou assim: “Não, a gente aceita se for de papel passado”, ou seja, doou ta doado pro resto da vida. Aí eu é que já não quis. Eu falei: “Ah, é, não estão interessados não?” Peguei as pedras. Essa mesa é uma das pedras, e a outra mesa, porque ele já estava desmoronando, tinha que dar uma consertada nele pra funcionar. Não havia interesse. Então era uma pessoa assim, que cuidava da conscientização política, sabe? Ele deu voz, viu que a pessoa não era só o voto, tinha a voz também. Então, é isso que eu ia falar, veio uma firma de Portugal parece, o homem era português. A firma era brasileira mas um português aí com uma carreta com todo o equipamento de draga, de explorar o rio, entendeu? Aí ainda não era parque não. Não tinha tombado, não era preservada a área oficialmente. Aí chega essa carreta toda equipada e o cara com licença. Ele não veio de forma clandestina, ele veio com autorização. Nadinho chamou a comunidade, todo mundo lá em cima, na cabeceira do rio. Quatro horas depois o homem já estava com o equipamento todo em cima do caminhão de novo e nunca mais ninguém teve notícia dele, entendeu? P – Mas esse ajuntamento de pessoas, o quê que aconteceu? R – Não, brecou, falou: “Aqui você não instala isso”, entendeu? Aí o cara viu que a comunidade reagiu e não ia adiantar. Podia ter uma reação pior se ele tentasse na marra. E pronto, ninguém nunca mais pegou notícia desse pessoal. Todo mundo foi pra lá. O prefeito, como se diz, botou a boca no trombone porque ninguém estava sabendo dessa idéia, dessa intenção. Então o rio nasce, corre em Rio Preto. Na cidade tem uma praia, tipo um balneariozinho. Agora na seca o rio está baixo, mas tem lá, tudo gramadinho, com as cabaninhas de sapé onde vende lá uns churrasquinhos, umas coisas. P – Então a última pergunta, que eu prometi. O quê que você achou de ter ficado aqui com a gente esse tempo, de ter feito essa entrevista recuperando a sua história, a história do casarão? R – Então, eu achei ótimo. Eu to pensando se eu não falei muito e ultrapassei o tempo que seria o tempo de você, porque vocês deram corda e eu fui embora na história, né? Vocês me cutucaram e me deixaram e eu disparei. Espero, agradeço a oportunidade e tenho certeza que vocês vão voltar pra gente... Assim, vocês, sem esse compromisso que agora é de trabalho, pra conhecer o entorno de Rio Preto. Gostei muito, fiquei muito à vontade. Falei demais. Agradeço e tudo de bom, desejo. Espero que onde vocês cheguem as portas se abram pra vocês fazerem esse trabalho bonito e importante, interessante, porque isso é uma forma de perpetuar, de manter, de resgatar, de conservar, preservar detalhes da vida do brasileiro, que eu imagino que vocês façam em outros estados também, não é isso? Isso é um acervo da maior importância porque fica uma coisa bem assim de preservação. P/1 – Vamos encerrar então. Eu quero agradecer de você ter nos recebido aqui no casarão com café, quitandas deliciosas. R – O maior prazer. P/1 – Ter servido a nossa equipe. Eu te agradeço muito ter dado essa entrevista maravilhosa. Obrigado. R – Eu também agradeço.
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