Projeto Memórias de Serra Pelada
Entrevista de Etevaldo da Cruz Arantes
Entrevistado por Lucas Torigoe (P/1) e Antônio Carlos Souza da Silva (P/2)
Serra Pelada, 13 de setembro de 2024
Código da entrevista: MSP_HV020
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Etevaldo, para começar uma pergunta muito difícil, que é, qual é o seu nome completo, o local e data de nascimento?
R - Eu me chamo Etevaldo da Cruz Arantes, nasci no dia 27/09/1964, em Pinheiros, no Espírito Santo, divisa de Bahia com Minas Gerais, norte do Espírito Santo, divisa de Bahia com Minas Gerais.
P/1 - Você nasceu em casa ou em hospital? Como que foi?
R - Em casa, com uma parteira chamada Dona Amélia.
P/1 - Ela fez parto em outras pessoas da região também?
R - Ela era a parteira da região e fez uns três, quatro partos da minha mãe. Nós somos onze irmãos, metade, 4 nascidos em Montanhas e 4 nascidos em Pinheiros. Os que nasceram em Pinheiros praticamente foi essa parteira que pegou todos.
P/1 - E contaram pra você como é que foi o dia que você nasceu? Se foi difícil, se foi fácil? Como é que foi?
R - O meu pré-nascimento é meio complicado. Naquela época tinha-se o hábito de vim um parente, uma parente, pra poder ficar com a grávida preparando para nascer e tal. E foi uma moça cuidar da minha mãe, quando estava para eu nascer, e a minha mãe grávida, não podia namorar, e meu pai acabou se engraçando dessa moça, e resultado disso eu tenho uma irmã que é nove meses mais nova do que eu. Que eu vim descobrir a 12 anos atrás, e ela já morando na Espanha, em Barcelona, já casada, divorciada, com três filhos e quatro netos. A família rende assim num “vapt-vupt”.
P/1 - Ela é parecida como o senhor e seus irmãos?
R - Parece muito com as minhas irmãs, com as outras irmãs que eu tenho.
P/1 - Vamos falar um pouquinho agora da família do seu pai. A família do seu pai e de que região? O que eles faziam?
R - A família do meu pai é de Minas Gerais, de...
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Entrevista de Etevaldo da Cruz Arantes
Entrevistado por Lucas Torigoe (P/1) e Antônio Carlos Souza da Silva (P/2)
Serra Pelada, 13 de setembro de 2024
Código da entrevista: MSP_HV020
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Etevaldo, para começar uma pergunta muito difícil, que é, qual é o seu nome completo, o local e data de nascimento?
R - Eu me chamo Etevaldo da Cruz Arantes, nasci no dia 27/09/1964, em Pinheiros, no Espírito Santo, divisa de Bahia com Minas Gerais, norte do Espírito Santo, divisa de Bahia com Minas Gerais.
P/1 - Você nasceu em casa ou em hospital? Como que foi?
R - Em casa, com uma parteira chamada Dona Amélia.
P/1 - Ela fez parto em outras pessoas da região também?
R - Ela era a parteira da região e fez uns três, quatro partos da minha mãe. Nós somos onze irmãos, metade, 4 nascidos em Montanhas e 4 nascidos em Pinheiros. Os que nasceram em Pinheiros praticamente foi essa parteira que pegou todos.
P/1 - E contaram pra você como é que foi o dia que você nasceu? Se foi difícil, se foi fácil? Como é que foi?
R - O meu pré-nascimento é meio complicado. Naquela época tinha-se o hábito de vim um parente, uma parente, pra poder ficar com a grávida preparando para nascer e tal. E foi uma moça cuidar da minha mãe, quando estava para eu nascer, e a minha mãe grávida, não podia namorar, e meu pai acabou se engraçando dessa moça, e resultado disso eu tenho uma irmã que é nove meses mais nova do que eu. Que eu vim descobrir a 12 anos atrás, e ela já morando na Espanha, em Barcelona, já casada, divorciada, com três filhos e quatro netos. A família rende assim num “vapt-vupt”.
P/1 - Ela é parecida como o senhor e seus irmãos?
R - Parece muito com as minhas irmãs, com as outras irmãs que eu tenho.
P/1 - Vamos falar um pouquinho agora da família do seu pai. A família do seu pai e de que região? O que eles faziam?
R - A família do meu pai é de Minas Gerais, de Mantena, de Mantena não, de Almenara, basicamente o distrito de Pedra Grande. Então, eles eram proprietários de terra. E naquele período houve uma seca Grande em Minas Gerais e eles mudaram de Minas Gerais para o norte do Espírito Santo, especificamente Montanha. De montanha ficaram um período, e de Montanha foram para Pinheiros, onde nasceu metade dos meus irmãos nasceu em Montanha, a partir de mim por diante já nasceu em Pinheiros. Moramos em Pinheiros durante uns 15 anos, talvez. Eu sou… Estou entre os mil primeiros nascituros da cidade de Pinheiros, sou do primeiro livro de registro do cartório, Alberto Santes, com o registro de número 769. Então, sou entre os primeiros 800 indivíduos nascidos na cidade.
P/1 - Era uma cidade nova na época? O que as pessoas faziam lá?
R - É uma cidade de agricultura e pecuária. Hoje é muito mais agricultura, mas na época era pecuária também, agricultura. Que é uma região de terras muito férteis, muito boa, umas terras roxas, então assim, a produção de feijão, de mandioca, milho. Hoje é uma das maiores produtoras de mamão do país, região de Pinheiros, Montanha, São Mateus, Linhares, é onde está a grande produção de mamão do país. Então, continua sendo uma região de muita agricultura.
P/1 - E a família do seu pai trabalhava com isso?
R - A família do meu pai sempre criou gado e fez roça.
P/1 - Você conheceu os seus avós por parte de pai?
R - Conheci! Meu avô chamava-se Sebastião Antunes Matos e a minha avó Maria Balbina de Jesus.
P/1 - E me fala um pouquinho, rapidamente da família da sua mãe, a mesma questão, qual que é o nome…
R - A minha mãe… Meus avós maternos são mineiros também. O meu avô chama-se Minervino Gomes da Cruz, a minha avó materna chama-se Cesarina Gomes Nogueira da Cruz.
P/1 - E também é uma raiz parecida.
R - Também o mesmo modelo. Meu pai conheceu, lá nessas vindas de Almenara para o Espírito Santo, que ele veio com a minha avó, minha avó, a minha bisavó chamava-se… Não vou recordar agora, depois vai vir. E aí, ele conheceu a minha mãe já em Montanha, e depois por questões políticas, o meu avô materno perdeu na política e de lá ele voltou, foi para a Bahia, foi para Barcelona na Bahia. E aí, o meu pai saiu do Espírito Santo para casar com a minha mãe em Barcelona. Aí, de lá voltaram para Pinheiros, para Montanha, Montanha para Pinheiro, onde nascemos metade dos irmãos. E após isso meu pai comprou terra em São Mateus, é vizinho com Pinheiros, e de lá nós viemos para o Pará em 1980.
P/1 - Pinheiro, pra quem não conhece fica aonde no Brasil, no Estado do Espírito Santo?
R - Pinheiro fica no norte do Espírito Santo, fazendo divisa com Minas Gerais e Bahia. Por um outro lado a gente sai de Pinheiro, Montanha, pega a estrada do boi, sai em Nanuque, para pegar a 101, sair em direção a Carlos Chagos, Teófilo Otoni, aí você saindo pelo outro lado, você sai de Pinheiro e chega em Pedro Canário, uma média de 40, 50 quilômetros, atravessa o Rio Itaúnas, você chega a primeira cidade baiana, Teixeira de Freitas.
P/2 - Há familiares ainda na cidade de Pinheiros?
R - Sim! Tenho tio lá. Vários primos, tanto em Pinheiro, quanto em Montanha. Mas a maioria dos meus tios… Meu pai sempre foi uma liderança na família, então por onde meu pai ia sempre o resto dos familiares acompanhavam. Então assim, meu avô hoje, meu avô materno, meu avô paterno, enterrado em Boa Esperança, no Espírito Santo, próximo a Pinheiro. Meu avô materno é enterrado em Teixeira de Freitas, na Bahia. A minha avó Cezarina, que é a minha avó materna, está enterrada em Pinheiros no Espírito Santo. E minha avó paterna, que é a Balbina, é enterrada em Jacundá, no Pará.
P/1 - E você conviveu com os seus avós parte de mãe e parte de pai?
R - Sim, tive esse privilégio.
P/1 - Por que esse privilégio? Como eles eram?
R - Os avós sempre são avós, né? Os avós são pais duas vezes, e eles sempre foram muito cuidadosos, e principalmente meu avô materno, que ele era assim, um sábio, um pensador político, já na época. Então, ele era empreiteiro de fazer as estradas. Ele fez a estrada ligando Nanuque a Pinheiro, a Montanha, no picareta, no enxadão, com turmas. Ele foi um dos que abriu a estrada de Pinheiro para Montanha. Aliás, de Montanha para Pinheiro, que Montanha vem na frente. Enfim, ele era alguém que estava sempre em convívio na sociedade, com o mundo político, tanto que após uma derrota política, ele saiu de Montanha e foi parar na Bahia. Aí, de lá que ele já veio direto para Pinheiro, já não ficou mais em Montanha, já passou para Pinheiro. E também é de uma raíz garimpeira, de mineradores, afinal nasceu em Mantena, em Almenara, onde era uma região de pedras, tava próximo a Pedra Azul, próximo Teófilo Antônio, então era uma região de garimpos, principalmente garimpo de pedras preciosas. Então, essa história de garimpo, ela já tá meio que no sangue.
P/1 - Quando você nasceu, como é que estava a situação da sua família? Quantos irmãos você já tinha?
R - Eu sou o quinto, eu sou o sétimo de uma família de 11 irmãos. E tive o privilégio de nascer em uma família, de certa forma, bem organizada, para a época. Então, meu pai tinha a propriedade dele, meus avós tinham a propriedade deles. Meu pai optou em vender a terra maior que tinha, distante da cidade, comprou uma terra pegada na cidade para fazer, para colocar a gente para estudar. Então, lá em casa não teve doutores, mas todo mundo se alfabetizou. E o meu avô paterno, materno, como não havia escola na época, ele contratou um professor. Então, o pessoal por parte da minha mãe, todo mundo são alfabetizados, foram alfabetizados. Já por parte do meu pai, todos eram analfabetos, meu pai só escrevia o nome. E na matemática era o cara, mas não sabia armar uma conta, ele é tipo aquela molecada que aparece na televisão, você fala um monte de número e eles dão resultado no final. Meu pai era tipo isso aí. Você podia espantar 500 vacas numa porteira, ele contando, se faltasse uma, podia procurar que não tinha passado naquele meio. Então, ele ensinou todo mundo a fazer conta, a somar, multiplicar, dividir, sem saber armar uma conta no papel.
P/1 - E a sua mãe, como que era? Ela é viva?
R - Meu pai faleceu dia 10 de agosto de 2021, 3 anos atrás, 3 anos e 13 dias, 3 anos e 43 dias, 33, foi dia 10, são 13, né? E a minha mãe tá hoje… próximo natal ela completa 88 anos de idade. Está com Alzheimer, quase não reconhece a gente, raramente reconhece alguém, mas continua andando, comendo com a mão própria, aqui, acolá, faz uma graça, conta uma história, meio sem nexo, mas está lá, estamos lidando com ela. Não a visitei hoje antes de vir para cá, porque eu estava gripado, e não quis me aproximar.
P/1 - Como é que foram eles na sua criação? Como que era o papel do seu pai, da sua mãe?
R - Meu pai tinha uma política muito própria, ele dizia… A gente morava, a divisa da cidade era a cerca do meu pai, então a gente morava… Nós fomos criados na roça e convivendo na cidade. E o meu pai tinha uma política bem interessante, que ele dizia: “Olha, se sair para rua e brigar, se apanhar na rua quando chegar em casa apanha, e se bater na rua quando chegar em casa apanha. Não tem pai na rua para poder lhe bater, e nem tem filho para poder estar batendo”. Então, a lógica seria assim: não brigue, respeite. Não podia passar, se alguém tivesse conversando, menino não passava na frente, um olhar já era o suficiente para poder neguinho voltar e já ficar preocupado com a disciplina que viria depois. Então, foi uma educação rígida, mas era a educação que se tinha na época. Então, a gente tem a educação que nossos pais e avós nos deram como a melhor daquela época.
P/2 - Dos dois, qual que era o que mais corrigia o filho?
R - A mãe. Meu pai, como eu disse, era tropeiro, vivia um pouco no mundo. A minha mãe era a responsável das crias, da educação e tudo mais. Então, dela a gente aqui, acolá, fugia para não apanhar. Mas o meu pai quando chegava e a gente tinha feito alguma coisa errada, ele mandava buscar, pegar a taca, aí você escolhia, você vinha para ele bater, sem ter que pegar na mão, faz lombo, e ele… Raramente batia, mas quando batida era dessa forma. E a minha mãe, quando conseguia pegar, ela contava: “Essa pisa é por causa daquilo, essa outra por causa daquele dia”. Você tomava duas, três, quatro, cinco de uma vez para pagar todas as malinesas que haviam feito nos dias anteriores.
P/2 - Qual das duas você gostava mais?
R - Nenhuma! Não gostava de nenhuma das duas, na questão de apanhar não gostava de nenhuma das duas. Mas normalmente eu apanhava, as minhas pisas eram muito mais por desavenças na escola, ou porque eu gostava de jogar bola e tinha as obrigações normalmente no período da tarde, tipo apanhar lenha, colocar comida para o porco, apartar bezerro, torrar café. Que a gente tinha café pronto, então a nossa região, de café principalmente, o café Conilon se produz muito. A maior produção do café Conilon do país ainda é no Espírito Santo. Então, nossa família também sempre produziu café. E nós sempre tínhamos o café, milho. Basicamente o que se comprava era o arroz, o sal e açúcar. Nem sempre o açúcar, que às vezes a gente produzia cana e o vizinho tinha uma fábrica de melado e adoçava o café com o melado da cana.
P/1 - E como era a casa de vocês? Onde é que vocês dormiam? Que era muita gente, você falou. Como é que vocês se organizavam?
R - Nossa casa era uma casa muito boa, a casa do meu pai era uma casa boa. Onde eu nasci era uma casa de assoalho, tipo pau a pique, mas de assoalho, bem alta, a parte de baixo, dava quase para a gente entrar por baixo dela em pé, morrendo no final já quase no chão. Então, tinha aquele assoalho, basicamente os animais se abrigavam lá na chuva, era um período de mais escassez de sol, até para se agasalhar. E dormia um monte de meninos no quarto, um quarto com várias camas. Mas também naquele tempo… Aí, quando a gente ia para a casa dos tios que moravam mais distante, morava no interior, às vezes, dormia aqueles três, quatro, cinco meninos, oito meninos, em couro de boi forrado no assoalho da casa. Aí, vem aquela música do couro de boi que dividiu no meio e tal. Aquilo não é só uma história, aquilo de fato, as pessoas usavam couro de boi para dormir. Ou esteira, que era esteira feita de taboa, que é uma planta que se dá muito nos brejos no Espírito Santo e parte da Bahia e Minas Gerais. Então ela solta um pendão, daquele pendão tirava a pluma para fazer os travesseiros e para encher os colchões, em algumas vezes, e dá folha fazia a esteira para forrar na cama. E servia também para dormir.
P/1 - E vocês se davam bem, seus irmãos nessa época, como é que era?
R - Nossa relação de irmãos, ela ainda hoje permanece muito boa, é tanto que aqui cada um tem uma propriedade, ou mais de uma, aqui em Serra Pelada, mas nós quatro moramos todos na mesma casa. Então, essa casa aqui mora eu, o Agnaldo, Toninho e o Almir, basicamente aqui que a gente recebe nossos amigos, as nossas esposas quando vem ficam aqui. Mas a gente tem outras propriedades, porém moramos todos juntos. Há um ditado que diz que se o porcão sair do rebanho a onça pega, então a ideia de estar junto é que um protege o outro. E a gente foi criado… A terra do meu pai era pegado com a terra do meu avô materno, então assim, junto com meu avô morava mais três tios, então nós fomos criados num grupo aí de aproximadamente 40 primos, homens, meninos e meninas. Então, a gente sempre teve uma relação familiar muito próxima, de primos irmãos, por morarem próximo e conviverem o dia a dia juntos, e dividir os brinquedos, as diferenças, as brigas, os arranjos. E sempre proibido ficar de mal, se alguém brigasse com o outro, ficasse de mal, o meu pai, meus tios, pegavam, fazia abraçar e dava uma pisa nos dois abraçados, para pedir desculpa. E isso fez com que a gente… Nós crescemos todo mundo muito unido, todo mundo muito parceiro um do outro.
P/1 - E o que vocês faziam juntos nessa época?
R - Trabalhava. Então os pais saíam, todo mundo tinha missão, capinar mandioca, capinar feijão, plantar feijão, plantar mandioca. Os adultos capinavam, na maioria, e as crianças quando não estavam no horário de aula, todo mundo tinha que estudar. Quando nós estava no horário de aula, ia plantar feijão, ia plantar mandioca, ia fazer alguma… cuidar de porco, cuidar de galinha, cuidar de gado. Então, todo mundo trabalhava. Mas também tinha o momento da bola, do pic trisca, enfim, como era muito menino tinha todas as brincadeiras que você tinha na época, a gente fazia. E as nossas casas eram casas grandes, e tinham as festas de São João, as festas de Cosme e Damião, as festas festivas dos Santos católicos eram sempre recheadas de muita comida e muita alegria, muita brincadeira. [intervenção]
P/1 - Mas vocês brincavam também, né? E tinha alguma que vocês criavam, algum brinquedo, alguma brincadeira?
R - Não, tudo era criado, não se comprava nada, o carrinho se fazia de lata de sardinha, de madeira, os pneus era feito de resto de sandálias, de aproveitamento de pneu, mas sempre tinha o mais engenhoso, que fazia carrinho de mão para descer na ladeira, com rodinha, com freio, com volante. Era um pouco de tudo. Como era muitas crianças, adolescentes, outros já ficando jovens, então assim… E dentro da cidade, que a nossa terra era pegado na cidade, então a gente tinha facilidade, nós crescemos participando de tudo, tudo que é da roça nós sabemos fazer, e tudo que era da cidade a gente aprendeu a conviver. Então, esse convívio na roça dentro da cidade… Hoje parte dessa terra do meu pai, do meu avô, faz parte da cidade de Pinheiro.
P/1 - E tinha muita diferença entre a roça e a cidade nessa época?
R - Sim, bastante! Até porque as diferenças eram grandes. Nós não tinhamos energia, primeira energia que teve naquelas roças foi na casa do meu pai, que era uma energia a gás, com os tubinhos, uns caninhos focados, aí os aladins, aí tinha uma camisinha de um material, que você amarrava ela ali, aí botava fogo, uma cobertura de vidro, para o vento não dissolver, aí você botava fogo nela, ela queimava, depois ficava aquele bolinho de cinza ali. Aí, você ia lá, quando dava a noite, você só ligava o gás, e não podia triscar a chama do fogo naquela coisinha de cinza, senão dissolvia. Então, você riscava, de longe, e aquilo clareava tudo. Aí, tínhamos também geladeira a gás. Então, as nossas primeiras coisas foi isso. Depois veio o motor, motor elétrico. Nós nunca fomos um povo rico, mas também nunca passamos por necessidade, sempre tivemos um equilíbrio nisso aí.
P/1 - Vocês ouviam muito rádio, LP, disco, ou não? Como que era isso?
R - Ah, o meu pai gostava de música, então ele tinha sempre o radinho, levantava de madrugada para tirar leite, ligava ali na Record, no programa do Zé Béttio, Rádio Nacional, Rádio Globo. E eu gostava muito de ouvir os jogos do meu time, do Flamengo. E nas quarta-feiras, principalmente, quando o meu pai estava em casa, era uma dificuldade, ele dizia que bola era coisa de malandro, de desocupado. Então eu esperava ele dormir, largar o rádio em cima do guarda-roupa, o guarda-louça, que tinha aquelas… Aí, ligava ele bem baixinho, e ficava quase com ouvido dentro do fone do rádio, aí na hora do gol do Zico, do Adílio, aí não tinha jeito. Nossa vítima preferida ali, o Galo de 1971, bem lembrado, né amigo? Aí quando fazia, gritava, acordava o meu pai, era aquela confusão. Ele me botava para dormir e tal. Mas era muito bom.
P/2 - Seu pai curtia música também?
R - Ah, meu pai gostava muito, tinha radiola em casa, uma sonatinha. Então, tinha muito disco, moendo café. Aí, meu avô veio aqui no Pará em 1971, buscar meus primos, aí levou disco do Pinduca. Então, assim, a gente lá no começo dos anos 70, já ouvia o Carimbó. Então a gente já conhecia um pouco da cultura daqui baseado nessa visita do meu avô, que levou esses disco do Pinduca, e do Carimbó Paraense, Carimbó de Santarém pra lá. Mas a preferida do meu pai era os pagodes de sertanejo, tipo, na época, Jacó e Jacozinho, Tonico e Tinoco, Léo Canhoto e Robertinho, Silveira e Silveirinha. Então, eles gostava disso, a música caipira, de raiz. Tinha o Carreiro e o Pardinho.
P/1 - E você nessa época estudou, tava indo na escola. Tinha alguma matéria que você gostava mais?
R - Tinha a que eu gostava menos, matemática, exatas, física, química e matemática, era o que eu menos gostava. Sempre gostei muito de português, de filosofia, de estudo sociais, história. Que na época tinha estudos sociais, tinha OSPB também, era muito interessante, eu gostava muito de OSPB, que era a Organização Social e Política Brasileira. E tinha Educação Moral e Cívica, e tínhamos aulas de inglês e francês.
P/1 - Em qual escola você estudou lá?
R - Colégio Nossa Senhora de Lourdes, era um ginásio, uma escola controlada, tinha um diretor que era civil, mas era controlada pelos padres. Então, lá nós tínhamos… Era chamada a escola da igreja católica, e todos nós passamos por essa escola. Então, era uma escola muito boa, e eu gostava muito de ler, então acabei me dando bem, me dedicando muito. Que é algo interessante, que não se fala aqui em Serra Pelada, dos livros, das leituras, que era muito bom. Na época da loucura da ditadura militar, do Curió, aquele negócio de bater continência para todo mundo, um homem com apito tocando 20, 30 mil para onde queria, e na fila do cinema… Já estou adiantando algumas coisas. Lá no finalzinho tinha umas bancadas, e os leitores chegavam um pouco antes, botavam um monte de livros, principalmente bolsas e livros de bang bang, e a gente vinha tocar. Mas aí, tinha de tudo, você encontrava de livros de didáticos à best-seller de todas as formas aí. Ainda devo ter aí Santo Agostinho, que eu troquei naquela época, Allan Poe, tem um Allan Poe aí que talvez seja dos mais antigos, ta só os frangalhos, mas ainda tenho. Enfim, Platão. O que que eu tinha até um outro tempo desses? Nicolau Maquiavel. Li também… Li vários! Lia de tudo! Lia até jornal que vinha enrolado em sabão.
P/2 - Havia alguma diferença no tratar das outras crianças pelo fato de você morar na zona rural?
R - Nem tanto, porque a gente tinha um convívio muito grande, mas como meu pai era muito dado a ajudar, várias crianças, vários filhos de amigos deles vinham do interior a cavalo, e largava o cavalo lá em casa pra ir para escola, às vezes dormia, ficava na escola, na cidade a semana, o cavalo ficava lá, aí na sexta-feira eles pegavam os cavalos e voltavam de volta para casa deles, e só apareciam na segunda-feira. Inclusive, hoje no Pará, um dos meus melhores amigos, o Valdomiro, ele está hoje com 63, 64 anos, e nos somos amigos desde quando eu tinha 3, 4 anos, que eu ajudava ele pegar o cavalo dele. Aí, ele estava para Manaus, apareceu recente, passamos o domingo passado juntos, era aniversário da irmã dele de 60 anos, nós passamos o domingo juntos. E sempre é muito bom recordar dessas coisas. Mas tenho muitos amigos ainda lá no Espírito Santo, gente que eles convivem. E depois daí veio o outro também, o Mica, filho do seu Alvino. Alvino era castrador de cavalo, de burro, era quem castrava burro, cavalo, porca, porco. Então, era alguém muito requisitado. E o seu Alvino era amigo do meu pai, eles passavam todo dia na porta de casa para ir para escola, os meninos, e a gente se tornou amigo naquele tempo, e voltamos, por coincidência, voltamos a nos encontrar aqui em Serra Pelada, depois de mais de 20 anos, sei lá quanto tempo, a gente voltou a se encontrar aqui.
P/2 - Dentre tantos professores que você teve na infância, tem algum que você destaca como aquela pessoa que marcou o seu período escolar?
R - Tem! Professora Valquíria Ganho, ela era professora de ciências e geografia. E tinha o professor Zé Pinheiro, que era professor de história, esse era o cara, ele chegava na sala de aula e dizia: “Abre o livro na página tal e a partir do parágrafo tal. Fulano leia”. Se você errasse alguma coisa, ele sem abrir o livro, ele sabia que tu tinha errado, mandava consertar de novo. Zé Pinheiro era o cara. História. E as professoras de inglês e francês que eram freiras, então assim, era bem interessante esse convívio para nós que não tinha muito essa relação, está tendo aula com uma freira. Freira era algo bem interessante, bem difícil, não era do convívio de todo mundo está convivendo com freira. E a igreja era pegada na escola, e tinha um corredorzinho que saia da escola para a igreja, e eu acabei achando uma chave dessa, daqui acolá eu fugia por ali. Era massa fugir dali. Era bom fugir dali. Saía pela igreja, quando assustavam tavam nós lá na rua. “Fazendo o quê menino? Por onde?” Até descobrir que era pela porta da igreja, que a chave tinha sido roubada, demorou muito tempo.
P/1 - Você nessa época era muito levado?
R - Não era eu, tinha uma meninada levada. Os meninos eram mais responsáveis que o de hoje, imagino, mas eram mais arteiros, eram mais… Eles tinham que inventar mais coisas para poder se livrar, porque a disciplina era muito rígida. Então, você tinha que ser bem sagaz pra você fazer as coisas sem ser pego, se não o teu pai ia na escola, você só voltava a estudar quando o pai, ou a mãe, ou o responsável fosse lá conversar com o diretor da escola. E cada vez que isso acontecia, era garantido uma pisa em casa, isso era sem dúvida.
P/1 - Você e a sua família iam muito na igreja, tinha uma relação com a religião?
R - Lá em casa todo mundo foi batizado, crismado, comungado. Então, assim, todo mundo fez o procedimento católico exigido na época. E ainda hoje. Então, todo mundo passou por esse cerimonial aí. Todo mundo tem o batistério, o batismo, todo mundo fez catecismo, todo mundo fez primeira comunhão, todo mundo se crismou. Todos! Então, a gente tinha uma relação muito forte com a igreja.
P/1 - Mas pra você é uma coisa que você gosta ou não? Como é isso?
R - Gosto! Creio! E como creio, gosto. E aqui em Serra Pelada eu trabalhei bastante durante bastante tempo com a igreja católica daqui.
P/1 - E me conta uma coisa, seus pais, os mais velhos contavam algumas histórias pra você? Assim, de noite, ou não?
R - Meu pai não era contador de história, muito contador de história, mas o meu padrinho é contador de história. Meu padrinho logo pouco tempo depois que meu pai veio, vieram os irmãos dele, irmãs e alguns tios. E o meu padrinho veio também, ele mora hoje em Jacundá, está com 96 anos de idade. E nas férias a gente ia para casa dele, lá é onde a gente dormia em cima do couro de boi. E juntava 20 meninos, não tinha cama que desse para tanto menino. Então, ele forrava os couro do boi no chão, a gente primeiro ia descascar milho, debulhar o milho, para dar para o bode, para os porcos, no dia seguinte. E enquanto isso ele contava histórias de todas as notícias, João e Maria, não sei o que, aquelas histórias de cordel, enquanto a gente estava debulhando, descascando o milho, debulhando milho, ele tava contando histórias.
P/1 - Você lembra de alguma para você registra pra gente?
R - Detalhes, não. Mas eu lembro dele contar João e Maria, João e o Pé de Feijão. Foram várias, muita coisa. Eu lembro de muita… dele contando, mas não recordo exatamente. Nesse período agora, tá acabando o frio, né? De maio, junho, julho, agosto, faz bastante frio, que é o inverno. E eu me lembro de um dia dormindo, e a minha madrinha levantava para poder conferir a menina. E eu rolei naquele couro para cima do assoalho, e o frio apertou, eu cacei a coberta, não achei, encontrei um saco. Aí, eu entrei no saco, segurei a boca do saco, e a minha madrinha chegou, contou os meninos tudo, faltava um. Estou eu lá dentro desse saco. Quem sofreu bullying foi eu no dia seguinte: “O menino do saco, não sei o que, do saco”. Então assim, passaram muito tempo tirando onda comigo por causa dessa dormida no saco. Então isso, eu deveria ter seis anos, sete anos.
P/1 - Dessa época tem alguns dias que marcaram o senhor, que você sempre se pega lembrando?
R - Vários, porque o meu padrinho, ele é muito receptivo ainda hoje. E a meninada nas férias iam todo mundo pra lá, então se juntava 20, 30 meninos, sobrinhos dele, os afilhados dele, todo mundo gostava. A minha madrinha, muito gente boa, muito tolerante com a meninada e cuidadosa. Então, assim, juntava muito menino e a gente brincava de muita coisa. E trabalhava também, menino brincava, mas menino trabalhava. Daqui acolá arrumava briga, alguma confusãozinha, aí a madrinha pegava um cipozinho, dava umas lapadas em um e outra, acabava briga e vida que seguia. Mas lembro também que lá foi quando eu comprei a minha primeira brilhantina. Primeira brilhantina. Passou um caixeiro viajante vendendo. E esse hoje, quase nada de cabelo, era bem ouriçado assim, modelo… Eu fui chamado algumas épocas de Valderrama, de Biro Biro, gostava de bater uma bola, de preferência jogar contra os atleticanos, vascaínos. Então, na época era chamado de Biro Biro. Então, eu lembro assim, que foi algo marcante, foi quando eu comprei meu primeiro vidrinho de brilhantina. Todo empolgado que estava passando brilhantina no cabelo, aquele trem ajeitado, tal. Algo que me lembra muito, é isso.
P/1 - Dessa época?
R - Dessa época. De conhecer os irmãos do meu padrinho, as meninas. O meu padrinho tem umas meninas bonitas e tal. E lá sempre… as meninadas iam pra lá aos domingos, os vizinhos iam pra lá. Fogueira e o padrinho contando histórias no terreiro pra gente ouvir.
P/1 - Nesse período você tinha algum sonho que você queria ser alguma coisa?
R - Não! Na verdade eu gostava de ser vaqueiro, tirar leite, montar em cavalo, essa era a minha paixão. E jogar bola, se tinha algo que eu pensava, era de ser jogador de futebol. Mas eu preferia mais montar a cavalo e andar atrás de gado do que propriamente qualquer outra coisa.
P/1 - Quem eram os seus ídolos do futebol? Você queria ser quem jogando bola?
R - Ídolo, sempre gostei de vários, mas o cara, o cara da história, era Zico. Adilio, Cerezo, Reinaldo, Roberto Dinamite, aí Rivelino, aí já um pouco em fim de carreira, mas ainda jogando no Fluminense e no Corinthians. Aí depois já o Falcão, mas um pouquinho mais adiante. Mas cheguei a ver esses meninos jogando, Reinaldo, Cerezo, Falcão, Dinamite. E falo a escalação do Flamengo que ganhou do Atlético em 1971, inteira. E o campeão do mundo de 1981, começo de Raul, a Leandro, Mozart, Marinho, Júnior, Andrade, Adílio, Zico, Nunes, Paulinho na direita e Júlio César na esquerda. O timaço!
P/1 - Tem algum específico que você queria ser igual a ele?
R - Eu nunca quis ser igual a ninguém, mas para mim, o maior craque que eu assisti jogando, foi o Zico. E o “cracasso” que eu vi ele jogando assim, de pertinho, foi o Ronaldinho Gaúcho, que eu tive o privilégio de assistir o primeiro jogo dele, e o primeiro gol dele, no Estádio Olímpico, em Porto Alegre. Em 1998 eu assisti a estréia do Ronaldinho, Copa Libertadores da América, fez um golaço em cima do Vasco da Gama. O primeiro gol profissional do Ronaldinho foi esse no Vasco da Gama. O Vasco fez 1 a 0 no primeiro tempo, com gol do Luizão, e o Ronaldinho entrou no segundo tempo, estreando, e fez golaço em cima do… Nome do goleiro? Também não lembro não, mas se buscar na minha memória vou lembrando dele também.
P/2 - Essa conexão, essa socialização que você teve dentro dos seus antepassados, o quanto isso foi importante pra sua estrutura hoje, pessoal?
R - Ah, cara, família é fator mais estruturante de qualquer indivíduo. E nós tivemos o privilégio de ter uma família grande e muito boa, muito unida, muito respeitosa e muito respeitada. Então, a minha família, os meus pais, os meus avós, por onde passaram, largaram a marca deles, e essa marca a gente vem conduzindo até hoje. Então, assim, o que me fez ser o que sou, foi exatamente a estrutura familiar que eu tive desde o nascimento. Todos nós tivemos. Então, isso faz a diferença em qualquer indivíduo.
P/1 - Você morou em Pinheiro, nesse cenário que a gente está falando aqui, até que ano?
R - Em Pinheiro até 1977, 1978. Aí, o meu pai vendeu essa terra lá e comprou uma casa na cidade, e aí comprou uma fazenda em São Mateus. Aí, a gente ia para lá só nas férias. Aí, já ficou um pouco distante daquele núcleo de cá, aí já era próximo a São Mateus. Depois ele vendeu em São Mateus, comprou na beira do rio Itauninha, que é divisa de Pinheiro com São Mateus. E de lá nós viemos para o Para, isso final de 1979, começo de 1980.
P/1 - Antes de falar de Pará. Por que o seu pai fez essa mudança? Qual foi o motivo dele ter saído de Pinheiro?
R - Mineiro é meio nômade, os mineiros gostam de aventura, de buscar coisas, de caçar lugares, de conhecer pessoas. Isso fez a minha família estar sempre mudando de um lado para o outro. E daqui já foram mais para diante, quem não veio pra cá, parte dos que não vieram pra cá, foram para Rondônia, para o Mato Grosso. Mas esses aí já são parte da família de outro ramo familiar, de outro galho familiar. Os mais ligados aos meus avós maternos e paternos, vieram basicamente todo mundo para o Pará.
P/1 - E pro Pará vieram fazer o que aqui?
R - Terras, sempre em busca de terra. Aumentaram a terra para poder criar melhor a família e criar estrutura para os filhos que estavam crescendo.
P/1 - Qual era a oportunidade que seus pais viram nessa época aqui no Pará?
R - A oportunidade, são várias. Mas qual a ideia mesmo? É que você vendia um alqueires de terra no Espírito Santo, você comprava cinco, seis, aqui. Dez, dependendo de onde fosse. E ainda, na época, se fosse mais para dentro, você encontraria terras devolutas. Terras do Estado onde não tinha ninguém ali tomando conta. Então, você tinha toda uma possibilidade de ampliar o seu território e alocar os seus descendentes.
P/1 - E eles vieram para o Pará em que região?
R - Marabá. Rondon, Marabá, Jacundá. Porque na época Abel Figueiredo ainda não existia, Bom Jesus de Tocantins não existia, Parauapebas não existia, Eldorado, Curionópolis não existia. Então a base mesmo era Marabá, Rondon, ou Jacundá.
P/1 - E você sabe como eles souberam exatamente dessa região? Alguém contou pra eles? Eles vieram para cá antes? Como é que foi essa história?
R - O governo militar criou um modelo de terras sem homens, para homens sem terra, e trouxe gente de todos os lugares do país, tanto do Nordeste, como do sul do país. E também fez a doação de vários, milhares de hectares, para os grandes empresários. E aí, eles achavam, ou imaginavam, ou fizeram de conta que essas terras eram todas terras sem donos, e não eram, aqui havia índios, aqui havia ribeirinhos. E daí, surgiu as grandes matanças e os grandes conflitos agrários, exatamente porque o governo, quando ele doou essas terras, ele não se preocupou com quem já existia. Então, eles doaram… Lembrando que assim, pro Itaú, cem mil hectares de terra, para o Bamerindus aqui em Eldorado, oitenta mil hectares, pro Banco Nacional, não sei quantos. Tucumã, Tucumã foi um projeto montado pelo governo militar para o povo do Sul, em que nortistas não podia nem entrar. Se você chegasse, subisse em direção para São Félix do Xingu, aí chegando na entrada desse projeto, tinha uma barreira, você não podia passar, você tinha que voltar, ir quase no Mato Grosso, para poder chegar em São Félix do Xingu. Você tinha que subir de volta, sair na Vila Rica, para poder pegar o Rio Fresco, o Rio Xingu, para poder sair lá. Mesmo você olhando, percebendo São Félix do Xingu a cem quilômetros, menos de cem quilômetros, você tinha que andar quase quinhentos para chegar. Tanto que para Ourilândia, era conhecido como guaritinha, eles botaram uma guarita, que a cidade é bem pertinho uma da outra, eles botaram uma guarita com guardas que atiravam, que matavam quem tentava passar para lá. E ali naquela guarita foi chegando gente, não podia furar, foram armando barracas, aí já apareceu alguém, botou uma banquinha para vender comida, para não sei o quê. E dali surgiu a cidade que hoje é Ourilândia. Hoje é divisa com Igarapezinho, de um lado para o outro. Porque os militares criaram um projeto só para quem era branco e tinha os olhos claros. Tipo os fascistas de Hitler lá, que se não fosse de olhos claros, estavam condenados ao despiolhamento. Sabe o que era o despiolhamento? Era quando os judeus eram levados, os judeus ciganos eram levados para a câmara de gás, eles diziam que era para fazer o despiolhamento, tiravam roupa, e tudo do indivíduo, ele ia nu. E lá eles eram mortos com gás, e depois cremados. Então lá o governo militar montou Tucumã, foi montada dessa forma, era só sulista. Então, eram basicamente os brancos de olhos claros, que podiam ir lá, do norte. Então, Maranhão, nortista, só ia até a barreira.
P/2 - O por que da propaganda então ser tão popular?
R - Porque é fácil num momento de crise, e principalmente no final dos anos 70, uma recessão medonha, uma seca também que houve em Minas Gerais, Bahia, aquele lado de lá, e os animais morrendo de fome. Eu lembro eu criança, o pessoal descarregando gado de Minas Gerais, para aquelas bandas lá, e largado na fazenda do meu pai, o gado que não dava conta na terra. Meu pai tinha uma fazenda, tinha uma pequena propriedade. Ir largando lá e o gado morrendo de fome, porque não tinha comida. Então, naquele período muita gente optou em vir para a Amazônia onde chovia todo dia. Água com fartura e terra sem dono. E aí Rondon foi um dos lugares. Teve o Projeto Rondon, o governo militar montou uma série… Tipo assim, Canaã, Canaã foi uma agrovila montada. Sedede 1, Sedede 2, foram agrovias montadas pelo Governo Federal para implantar o povo. E ao mesmo tempo espantar os índios. Esses indivíduos eram responsáveis por fazer o enfrentamento aos indígenas, matar e morrer brigando para espantar os índios do local onde o Estado queria fazer estrada, onde queria fazer usinas. Exemplo: a usina de Tucuruí é montada numa terra que era dos Gaviões da Montanha, e o governo praticamente exterminou os Gaviões da Montanha. No final, já bem depois para não acabar, para não exterminar todos os índios, o chefe, Pajarê, rendeu e foi morar de parceria na terra dos Quencatejês, ali em Bom Jesus. Hoje eles recuperaram a terra, o governo, a Eletronorte deu uma pequena parte de terra para eles na divisa de Nova Ipixuna com Bom Jesus e Jacundá, e eles ainda nem mudaram, tem a terra, mas ainda continua morando na Aldeia dos Quencatejês. Então, Tucuruí foi um grande, um local de muito extermínio, tanto os índios mataram as pessoas em Alcobaça, antiga Alcobaça, onde hoje é Tucuruí, onde hoje está debaixo de água, mas que depois veio a virar Tucuruí, tanto os índios mataram muita gente, como o povo matou muito índio.
P/1 - Agora você se lembra como foi essa viagem para a região de Marabá?
R - Bem interessante.
P/1 - Como é que foi?
R - Oito dias de viagem em cima de um pau de arara, três famílias num caminhão, e a gente vinha trazendo pavão, pato, galinha. Eu trazia um casal de Canário da Terra, e um casal de melro-coqui, e eles eram criados soltos lá. E aí, eu botei eles na gaiola para trazer pra cá. Então quando chegava nas paradas, a gente tinha que parar, alimentar esses bichos. Tem nada mais fedido do que merda de pavão, pavão fede demais. E aí, trazia um Jeep ainda, em cima desse caminhão, e aí não secamos o tanque desse caminhão, desse Jeep direito, e naquelas batidas, aquele fedor de gasolina se espalhava debaixo da lona. E só era pior ainda quando chegava assim, o motorista dizia, parava o caminhão e dizia: “Agora todo mundo baixa a lona e fica em silêncio, que daqui a tantos quilômetros tem o guarda”. Porra! Você ficava debaixo daquela lona ali, quilômetros sem poder nem respirar direito, nem dar gritos, nem brigar, nem arrumar confusão com os primos dentro do carro, porque lá vinha o guarda. Quando você ia falar alguma coisa, já levava cascudo, porque se o guarda pegasse era uma confusão, multa, aquele trem todo. Então nós viemos em três famílias nesse caminhão de lá para cá. E em outro caminhão vinha gado, cavalo. Esse veio na frente, porque demorava mais, tinha que parar, largar os animais para pastar, beber água. Normalmente em Bom Jesus, Nazaré das Farinhas, próximo a Nazaré das Farinhas, na beira do litoral, por ali, que eles paravam para os animais, tinham os currais, e os pastos, onde eles soltavam os animais para beber e comer. Então, nós viemos em dois caminhões, um distante do outro, um caminhão trazendo gado e cavalo, que era muito raro aqui, tinha poucos animais na época, e o outro caminhão trazendo as mudanças.
P/1 - E veio toda a família?
R - Toda a família, todo mundo!
P/1 - E quando você chegou aqui qual que foi a primeira impressão que você teve da região?
R - Primeiro medo de índio, né? Chegamos ali em Bom Jesus, e aí, antes eram os guardas, de Bom Jesus pra cá, vinha muito calado, porque os índios pegavam, os índios escalpelavam, os índios matavam. E pô, não era nada disso. Então, a gente vinha assombrado com medo dos índios, e nada. Depois virei amigo do Capitão, virei amigo dos índios, estudamos juntos lá no morada nova, e pá, sem problemas. Mas esse era um dos maiores medos. E medo de onça. O tempo todo lá, era mata para tudo que era canto. E a gente ia sair, minha mãe dizia assim: “Ah, menino, cuidado, tem onça aí!” Aqui acolá você escutava onça esturrando num canto e no outro. Capelão gritando, enfim. Mas nós já tínhamos amigos nossos que tinham vindo antes. Inclusive, esse que eu falei primeiro aí, que é meu amigo de infância. E aí, eu encontrei ele, era vizinho, meu pai comprou uma terra próxima, uma distância assim de uns cinco, seis quilômetros. E todo o trajeto, todo percurso que a gente fazia na época, era a cavalo. Então, saia da terra do meu pai, para beira da estrada, que era dois quilômetros, e andava mais quinze a cavalo, para ir para Nova Ipixuna, jogar bola, namorar, fazer farra. E aí, eu passei a jogar bola, então todo domingo ia jogar bola com a molecada lá. Sábado ia tomar cachaça e raparigar, e no domingo jogar bola. Mas o mais cruel foi uma roça de arroz de dois alqueires, quando o meu pai comprou a terra tinha dois alqueires de derrubada no machado, e plantou tudo de arroz e milho. E eu só conhecia bem arroz no prato, e muito pouco, porque baiano, mineiro e capixaba não é muita arrozeiro, ele comeu, gosta mais de feijão, farinha e outras coisas, uma batatinha, uma macaxeira, aipim. Aipim, lá a gente chama de aipim. E bater de frente com arroz. Meu pai voltou para o Espírito Santo, e eu tive que comandar aí uns 20 homens, eu com 14 anos de idade, para comandar os 20 homens apanhando arroz, para bater, aprender a apanhar no pé com o cutelo, depois na faquinha de mão já, batia no cachos. Mas foi tudo uma experiência muito boa. Aquele tempo novo, você levantava 5:00 da manhã, 4:00, tirava o leite, aí os peões já ia para o mato, já ia pra frente, terminava, botava o gado de um lado para o outro, aí ia pra lá, trabalhava, o almoço era na roça. Aí quando era mais tarde voltava para apartar o bezerro, os bezerros. Aí, já voltava com o jumento com a cangalha para trazer mandioca para os porcos, já largava um cavalo amarrado, quando vinha tomava um banho e ia para o boteco tomar cachaça. Aí às dez horas da noite, 11 horas, chegava em casa, no outro dia de 4:00 horas da manhã estava em pé, vida que seguia. Isso assim, uma semana, um mês, uma vida naquela brincadeira.
P/2 - Sua família conseguiu entrar nesse projeto do governo?
R - Não, não, nunca fizemos parte de projeto do governo, trabalho do meu pai, da minha família, sempre foi mesmo familiar, individual. A família sempre junto, todo mundo, os irmãos do meu pai, os irmãos da minha mãe, e a gente enquanto irmão também. Mas nunca fizemos parte de projetos de governo. Assim, como aqui no Pará a gente participou bastante, principalmente eu e o Toninho, participamos bastante do Movimento Sem Terra, mas sem ficar com a terra. A gente nunca tirou Terra no Sem Terra, mas colaboramos muito na edificação da 17 de Abril, da Palmares Um e Dois, do Rio Branco.
P/1 - Isso na época já ou depois?
R - Isso aí já nos anos 90.
P/2 - Acampavam?
R - Não, a turma acampava, a gente dava suporte, orientação com advogado, montar estratégia de defesa. Ataque, quando necessário, defesa sempre quando preciso. E a gente foi desenvolvendo técnica junto com a equipe, para poder se defender. Mas nunca nenhum de nós teve terra nos acampamentos. Nem ficamos acampados. No período de acampamento era só nos períodos que era necessário contribuir de alguma forma.
P/1 - Agora vocês chegaram em que anos mesmo?
R - 1980. A família toda em 1980, mas antes, 1978, 1979, veio o meu irmão mais velho, o Toninho, aí depois veio o meu irmão mais velho, que é o Arnaldo, aí já em 1979, começo de 1979, e foi trabalhar no Banco Bradesco, em Marabá. O Arnaldo começou a trabalhar de office boy no banco, e chegou a gerência e superintendência do Banco Bradesco. Aí, depois quiseram transferir ele para o Rio Branco, ele não quis sair de perto de casa, saiu do banco, hoje mexe com pecuária no município de Nova Ipixuna.
P/1 - Então vocês chegaram muito próximo da revelação do ouro?
R - Sim, no mesmo período, por coincidência.
P/2 - Sua família já estava em Marabá nesse período?
R - Já estava em Marabá, parte da família estava em Marabá.
P/1 - E você se lembra o dia que vocês ouviram essas primeiras notícias? Como é que foi?
R - Sim, porque os nossos vizinhos que já estavam, aí já vieram pra cá, já vieram em busca de ouro. Na época não era, mas hoje o meu cunhado mais velho foi um dos primeiros a vir para cá, os dois mais velhos chegaram aqui no começo de 1980, eles chegaram aqui primeiro que o Curió. Então, eles já… E eram vizinhos de terra, então estavam sempre indo, e vindo, voltando, e trazendo as notícias. Eu achava estranho essa ideia de vir trabalhar no meio desse monte de gente, essa loucura que era. E normalmente chegava lá, que tinha, a pneumonia era a doença que mais incomodava e que mais matava aqui, dadas a falta de higiene, de saneamento básico, enfim, não havia nada, era uma favela no meio do mato. A maior favela da Amazônia foi Serra Pelada, eram cem mil homens, chegaram a passar mais de 120 mil homens, não tinha um banheiro. Então, você cagava, mijava em qualquer canto. Não tinha mulher, não tinha criança. E aí, essas fezes, essa urina secando, o cabra pisando por cima, aquilo virando pó e o indivíduo aspirando aquilo, e aí haja pulmão, haja… Então, assim, a doença que mais incomodou aqui, naturalmente a malária, que a malária em todo desbravamento, a malária ataca, principalmente quem vai para a beira das grotas. Mas fora isso, dentro da Currutela, o que incomodava muito era pneumonia. Aí, eu não queria vir para cá. Aí, fui para Serra Norte, teve um garimpeiro, cunhado do meu tio, veio pra cá, ele andou fazendo umas brigas por aí afora, no 30, e ele não veio, não queria vir pra Serra Pelada com medo do Curió e a polícia pegar ele. Aí, foi para a Serra Norte, que é a Serra dos Carajás. Aí, ele ficou uns dias lá na fazenda do meu pai, ele disse: “Bora menino!” Eu disse: “Bora!” Aí, minha mãe virou aquela onda, não vai, não vai. Eu digo: “Vou!”. Joguei a diamantina nas costas, e saí para a Serra dos Carajás, Serra Norte. A polícia botou nós para fora, voltamos de novo. Aí, chegou o momento em que Serra Pelada reabriu. Que parava, né! A atividade de garimpeiro em Serra Pelada era muito sazonal, então todo período de inverno parava, e as pessoas ficavam aqui basicamente sem fazer nada, ou voltavam para colher o arroz no Maranhão, no Piauí, então o garimpo ficava pouca gente. Então, eles tinham saído, a gente foi para a Serra dos Carajás, Serra Norte, na volta eles vieram. Aí, a gente andava com espingarda, você entrava no mato tinha que estar armado, tem onça, você tem que caçar para comer, para se alimentar, enfim. E aí, a turma resolveu. “Não, agora Serra Pelada abriu, vamos para lá”. Como eu vou? Menor! Não podia ter menor. Não podia ter criança, nem bebida alcoólica, nem mulher, nem viado. Não tinha nada aqui, o sistema era bruto. E aí, quando chegou em Curionópolis, a turma entrou para cá, eu digo: “E eu? Vou também!” “Vai menino?” “Vou! Se me botar para fora, vou pra casa e venho de novo”. Enfim, nessa brincadeira eu acabei entrando treze vezes a pé, três pelo 30, pela mata, e dez vezes pelo 16. O difícil é a primeira vez, depois você amansa, você pega o macete, vai descobrindo os caminhos mais seguros, mais fáceis. Até que em 1982, eu completei 18 anos. Antes de completar os 18 anos, eu tirei o meu primeiro documento, que foi o certificado de matrícula garimpeira, expedido pela Receita Federal. Esse, fora o registro de nascimento, que foi o que o meu pai fez, e fora as carteirinhas de estudante, que a gente tinha uma cadernetinha onde anotava as notas. Porra, quando aparecia uma nota vermelha naquela porra, era foda você chegar em casa com ela lá para mostrar. Era cruel! Então, assim, foi o primeiro documento que eu fiz, foi esse certificado de matrícula do garimpeiro, que depois passou a ser chamado de carteirinha amarela. Que quando eu vim pra cá… Que daí não podia entrar menor, né? Aí o barracão dele, da turma, era fornecido pelo meu pai, meu pai era sócio, ajudava a financiar. Aí, eu fui pra lá! Quando o meu tio soube que eu estava lá, ele mandou me botar pra fora, porque eu era de menor, e ele era daqueles velhos sem vergonha, puxa saco de militar, coriolando à toa, me mandando botar pra fora. Aí, eu fui virar meia praça, eu desci, tive que sair do barracão, aí eu virei meia praça, virei saqueiro, carregar saco. Aí, eu virei saqueiro, virei cavador, enchedor, apontador. Aí, depois… peguei um orinho nesse barranco, 1990 tilim, aí comprei porcentagem, já passei a tocar barranco. Então, assim, aqui em Serra Pelada eu passei por todos os estágios, de furão a saqueiro, só nunca fui diarista. Mas meia praça, furão, meia praça, saqueiro, carregador, apontador, quebrador de pedra e barreira, de barreira, amarrado com uma corda na cintura. Passei por todos os estádios aqui dentro. E na época, muito puto, porque meu tio à toa, puxa saco de militar. Mas serviu de experiência. Depois eu percebi que foi bom, se não eu não poderia contar tudo isso que eu falo hoje.
P/2 - Etevaldo, você fala da sua ida a Serra Norte, lá já era Vicinais, era assentamento?
R - Não, Serra Norte era o assentamento da Vale do Rio Doce, montando a estratégia para retirar o minério da N1, N2.
P/1 - Você trabalhou lá?
R - Não! Fui garimpar, fui garimpar. Então, lá tinha uma guarita na beira do rio Parauapebas, e só podia subir os funcionários. Os garimpeiros eram proibidos de entrar na área, a gente entrava pela mata, atravessava o rio Parauapebas a nado, saía do outro lado e seguia. Aí, depois disso eu voltei lá de novo, atrás de ouro lá no projeto Bahia, no Rio Bahia. Falavam de uma área que tinha lá, que o trator tinha empurrado um ouro numa área de muito ouro, que a Vale tinha feito uma uma laje de cimento em cima desse ouro, e tal. “Vamos buscar!” Aí, fomos buscar esse ouro lá. Aí, à noite. “Não vou subir isso a pé não, homem”. Dei a mão pro carro, ouvi um barulho de um carro, dei a mão. Porra, era o carro dos guarda. Aí ele disse: “E aí, tá indo pra onde?” “Não, a gente só parou porque tem uns amigos nossos que tá pra trás aí, se encontrarem diga que a gente já desceu”. Eles deram uma arrancada assim. “Não, bota sua bagagem aqui.” Aí, fodeu! Botamos a bagagem em cima do Jeep. Tivemos que voltar a pé, de novo, cá para a guarita, atravessar o rio, e depois atravessar de novo pra cá, pra descer, a gente atravessou na ponte, pra voltar pra lá tivemos que atravessar a nado, nadando com o rancho e as coisas na cabeça pra não molhar. Corta o cipó, amarra de um lado para o outro, e vai passando no cipó com o rancho na cabeça, a bagagem na cabeça, põe lá, volta. Os mais fortes, ou mais habilidosos, faz esse trajeto e os outros…
P/1 - Agora me conta uma coisa. Você até então era agricultor, era vaqueiro?
R - Sim!
P/1 - Não era garimpeiro. Como é que você aprende esse ofício? Como é que se ensina? Como é que é esse processo? Dá para ensinar? Como é que?
R - Você é obrigado a aprender no mato. Você começa a fazer tudo, você vai com um cara que sabe, e aí você vai fazendo aquilo que não exige prática, em todo serviço tem isso, aquele serviço banal, trivial. Aí, você vai fazendo, e vai observando os outros fazerem. E bateia é muito simples, bateia você começa a pegar o equilíbrio na bateia, e daí um pouco mais você tá conseguindo batear e conseguindo separar o ouro do… Porque o ouro é um material muito pesado, então de acordo que você vai girando a bateia, ele vai condensando e ficando no fundo, a bateia tem aquele fundinho, aí o outro por ser material mais pesado ele vai acumulando sempre no fundo. Você tendo a habilidade de girar a bateia com uma certa habilidade, ele vai… A terra vai subindo e o ouro vai cada vez mais concentrando no fundo, aí você vai tirando a terra, vai tirando, vai ficando o ouro. Mas há uma maquininha, você faz uma manualzinha lá no meio do mato, e um coxo, principalmente de mamui, que é uma madeira mole no meio do mato, você abre ele de facão, faz as cavas e monta o sistema, vai embora.
P/2 - Então a primeira experiência sua sobre garimpo foi…
R - Serra Norte. Hoje chamado de Serra dos Carajás. Fui duas vezes lá, nesta primeira, e nessa segunda que eu fui já com experiência, já fui atrás dessa laje de ouro, que não achamos, mas mergulhamos atrás de pedra dentro de um lago que tinha na N1. Fica a oito quilômetros do Rio Bahia, se a gente tivesse chegado na época lá no Rio Bahia a gente tinha pego muito ouro. Aí, como a distância era muito longa, o rancho começa a acabar, aí a fome vai bater, você tem que sair antes que o alimento acabe. Aí, foi o que fez a gente voltar do meio do caminho.
P/1 - Você foi na Serra dos Carajás. Como é que foi chegar em Serra Pelada… Antes de você chegar em Serra Pelada, você falou do caminho, pra quem não conhece como é que você fazia esse caminho sendo furão? Quais os perigos? Quais eram as condições?
R - Não, o perigo do furão é adoecer, que a estrada, toda hora, era dia e noite passando gente. Então, você só acompanha a turma e ia chegar cá. Na chegada o perigo era adoecer, ou na chegada que a polícia federal estava te aguardando na tocaia para poder lhe pegar, dar uma pisa, e mandar de volta. Fora isso! Tinha perigo. “Ah, uma cobra!” Normal, em qualquer lugar você pode achar uma cobra. “Ah, uma onça.” Onça só pega alguém se ela tiver com muita fome, ou parida, ou foi atacada, senão ela vai te ver e vai correr. A gente imagina que uma onça vai te ver, vai sair te atacando, não! Não funciona assim. Ela tem medo de você, na maioria das vezes. A não ser que ela esteja com muita fome, ou se sinta atacada, ameaçada, ela vai se defender. Como uma cobra, uma cobra para lhe picar você tem que ameaçar ela, pisar nela, passar muito perto, ela se sentir ameaçada, se a cobra tiver aqui, a cobra vim lá e te olhar aqui, tu ficar quieto, ela vai caçar outro canto, e vai embora, cobra não ataca, cobra se defende. Só se sentir ameaçada. Mas aí, na última vez que eu vim pelo 30, eu vinha trazendo um furão, amigo meu, visitei ele ainda agora, em Nova Ipixuna, fazia tempo que eu não via, eu vi ele no dia que, vizinho nosso, lá do Espírito Santo também. Morreu um irmão dele a uns vinte dias atrás, fui no velório, encontrei ele, e uns dez dias atrás fui visitá-lo lá em Nova Ipixuna. Eu vinha trazendo ele, eu não andava com bagagem, tinha minhas coisas aqui, eu saía sem nada e voltava sem nada. Minhas coisas ficavam nos terreiros aqui. Aí, eu vim trazendo ele de lá para cá, aí passamos uma noitada no 30, nos Cabarés, aí no outro dia saímos para vir pra cá, e eu adoeci na estrada. Aí, não dei conta de andar. Sabe como é adoecer mesmo, não dá conta mais. Aí, ele perguntou: “Estamos onde, Etevaldo?” Eu digo… Fogoió, eles me chamam de Fogoió ainda hoje. “Nós estamos onde, Fogoió?”. Eu digo: “Olha, cara, quando a gente subir aqui a gente chega na cova dos garimpeiros, dali pra lá já é metade”. Ele disse: “O que? Cova de garimpeiro? Tem garimpeiro morto aí dentro?” “Tem!” “Fico não!” Filho duma égua tinha medo de defunto. Aí, ele foi embora e me largou para trás. Aí, eu digo: “Larga pelo menos uma rede aí pra mim”. Aí, ele largou a rede com uma boroca, boroca de brabo, uma mala de todo tamanho, com uma rede daquelas montoeiras, uma coberta seca poço. Eu digo: to fodido para levar esse trem, vou largar tudo para trás. Armei a rede numa grota, eu fiquei por cima da água, eu tava tão mal que eu não dava conta de descer para tomar água, a água passando por baixo de mim, e eu morrendo de sede em cima. E ía passando os garimpeiros, né! Aí, eu olhava, redona grande, olhava. Eles diziam: “E aí, Furão, o que que houve?” “Adoeci!” “Ah, não, vai morrer mesmo aí, tem que acabar de matar para poder herdar a rede. Vai morrer, outro vai ficar com a rede. Vamos matar logo esse filho de uma égua para ficar com a rede dele. Ficar com a camisa”. Camisa pendurada no punho da rede ali. “Olha a boroca bonita do furão, vamos levar.” Aí passava outro mais saliente, dizia assim: “Vamos comer o cu desse filho de uma égua, porque cu de defunto é frio, depois que morrer não presta”. São fatos assim que não saem da memória da gente, marca muito. Quando foi lá para umas 9 horas da noite, apareceram três indivíduos, e pararam para merendar, na beira da grota: “E aí, Sansão, o que houve?” “Ah, cara, adoeci aí, passei mal, tô aqui” “Tá com quem? Desde que horas?” Eu falei. Eles disseram: “Tomou remédio?”. Digo: “Não, não tomei remédio ainda” “Você quer um Anador?”. Digo: “Quero!”. Aí ele foi lá, a latinha de salsicha que ele havia aberto para merendar, lavou ela ali na água, sacudiu pra lá, levou um comprimido de Anador, e uma latinha de água. Tomei aquela água com uma avidez medonha, pedir de novo, ele tornou a encher a lata de água, me deu. Aí, queria mais. Ele disse: “Não, não vou te dar mais água não, vou deixar aqui, vou encher. Aí colocou do lado ali. “Não pode beber muito não”. Tinha suado, uma febre da porra. Aí, tava jogando Flamengo e São Cristóvão. Flamengo e São Cristóvão, Flamengo tava perdendo de 2 a 0 para o São Cristóvão, e empatou com gol do Zico e do Adílio. E aí, esses caras ficaram lá até terminar o jogo no radinho. Aí quando terminou o jogo, eles arrumaram as coisas. “Você comeu alguma coisa?” Eu digo: “Não!” “Quer comer?” Eu digo: “Não!” Aí eles foram, arrumaram, pegaram uma moquequinha de farinha de puba numa sacola, um pedaço de rapadura assim, botaram junto e amarrou no punho da rede, e foi embora. Nunca mais vi, se vi não sabia quem era, não conheci, tava de noite, não tava dando conta, mesmo se eu tivesse bom era difícil de reconhecer alguém naquele escuro, mas principalmente que eu não tava bem. Aí, ele foi, me deu outro comprimido de Anador, na hora que ele tava saindo. Tomei mais essa lata de água. Ele tornou a ir lá, encheu a lata de água, um deles, tornou a colocar ao alcance. “Na hora que você dormir um pouquinho, que acordar, você toma o outro comprimido”. Cara, eu acordei, tomei, acordei depois, tomei o outro comprimido, tomei a água, aí já estava bom, desci. Aí, voltei, deitei de novo, gente passando. Acordei como se eu nunca tivesse tido uma dor de cabeça. Como se esses caras fossem mandados por Deus mesmo. Show de bola! Então, assim, hoje eu me sinto na obrigação de ajudar, e fazer tudo por qualquer um, independentemente de saber, de imaginar de onde veio, quem é que é ele, se é do bem, se é do mal, se é preto, se é branco, se é homem, se é menino, se é mulher. Eu tenho a função e a obrigação de ajudar, independente de saber quem quer que seja, e tenho feito isso. Tenho tentado fazer isso. Bom, aí amanheceu o dia, a madrugada, aí passou uma turma, pararam para merendar lá também. “Ei, Furão, primeira vez?” Eu digo: “Não!” “Então, conhece a estrada?” “Conheço” “Ah, então, bom que você vai de guia pra gente” Eu disse: “Se levarem a cachorra.” “Não, é com nós!” Dezoito homens. Aí pegaram essa boroca desse furão, botaram nas costas. Eu na frente, na frente, olhando. Se subir a serra hoje, Serra Leste, onde tá aquela extração, a gente passava por cima dela para vir pra cá. Aí, desci naquele troço, quando chego no lugar ali, que a gente chamava Pedra D'Água. Tinha uma água que nascia de dentro da pedra, hoje acho que está na terra do Murilo, do Murilo não, do Seu Joaquim. Tinha umas flores, que hoje está na terra dele. De lá eu vi a Polícia Federal com um monte de gente presa. E no meio desse povo, tinha um senhor de idade, na época ele deveria ter uns 40 e poucos anos, meio cabeludo. Encontraram um vidro de azougue, de mercúrio. Cara, eles bateram tanto nesse cara por causa dessa porra desse azougue. E eu lá de longe observando. Aí, eles cortaram o cabelo dele canivete, tirou uma faca assim, cortaram o cabelo dele. Aí, ele amarrado, de mão para trás, e eles batendo, cortando o cabelo de faca. E depois pegaram… Olha a loucura. O azougue era proibido para não poluir o chão. Aí, eles pegaram, cortaram esse cara, e derramar esse azougue na cabeça dele, exatamente na nascente, onde o povo vinha, todo mundo que passava ali, era o lugar de beber água, quem vinha com sede, era o lugar de beber e repor as vasilhas de água para poder seguir viagem. E a polícia federal pegou esse cara, bateu, e levou ele, jogou esse azougue na cabeça dele. No outro dia de manhã, de tarde, ele foi apresentado em cima do palanque. Que aqui tinha uma ideia assim, uma história de hastear a bandeiras às 8:00 da manhã, arriar às 18:00, com o hino nacional. E era hora de apresentar os infratores. E aí, quando foi à tarde esse cidadão estava lá amarrado de corda, apresentado em cima do palanque como se fosse um dos maiores criminosos do mundo. E não era só ele, todo dia eles… Se pegasse o cara bêbado, se pegasse o cara que botava a pedra fora do lugar, no outro dia, de manhã e de tarde, ele era apresentado. Eles diziam que tinha que se fazer, o que tinha acontecido no garimpo, as áreas interditadas, as áreas que podiam trabalhar, e aí apresentavam esses infratores. Se pegasse com uma cachaça, bêbado. Pegasse e descobrisse que era gay, ia pra lá, metia a taca, botava em cima do caminhão, iam soltar lá no gogó da onça. O cara não tinha direito nem de voltar no barracão dele para pegar os documentos, ficava na rua, na currutela. Onde eles encontravam o sujeito, ali ele era pego e conduzido, e levado, posto para fora. Então, assim, era algo horrível. E quem vivenciou aquilo e tinha um mínimo de bom senso, ainda hoje se sente altamente repugnado com aquilo. Revoltado com aquela forma de tratamento.
P/1 - Antes de perguntar mais como que era o sistema. Mas me fala como foi a primeira vez que você viu a cava? Em que situação ela estava? O que você sentiu? O que você pensou quando você chegou?
R - Quando eu olhei, eu achei que eu não ia dar conta de transitar no meio daquele povo. Como eu disse, era um trânsito indiano, gente indo, gente vindo, passando pelo outro, se cruzando. Gente de Kichute, gente descalço, de todas as formas, pisando só com a ponta do pé e o penhasco lá embaixo, ele só com um cantinho do pé aqui para poder se equilibrar e passar para o outro lado. Então, assim… Mas é só a primeira impressão, depois você se acostuma. O homem é produto do meio, rapidinho ele se habitua a tudo. A não sentir dor, a não sentir medo, a não se intimidar. Homem é um produto completo. Homem é um produto completo!
P/1 - E pra quem não conhece, como é essa hierarquia das funções que você listou, que você passou por todas? Quem faz o que ali?
R - Os Barrancos aqui eles eram trabalhados por dez indivíduos, e esses eram chamados meia praça. Então metade da produção daquele barranco, eram do fornecedor e do proprietário, e os outros 50% eram dos dez meia praça, isso tocaria 5% para cada um. Você com dez homens. Vinte homens. Então, dividiria, ficava dois e meio para cada um. Isso era comum também acontecer, você aumenta o número de pessoas e diminuir a porcentagem. Até porque aqui a gente dizia que não tinha porcentagem pequena. Não tinha porcentagem pequena, tinha ouro pouco. Então, você com 1% no barranco que dá uma tonelada de ouro, você tem dez quilos de ouro. Mas se você tiver cinquenta no barranco que não deu nada, não vai ter nada. É interessante assim, todo mundo tinha esperança de pegar ouro, ninguém tinha a usura de pegar o ouro do outro. O barranco descendo, o cara colocando um prumo para não entrar nem para lá e nem para cá. E pegar um machado e ir lá lapidar a parede, cortar a parede. Aí aqui acolá, colocar o prumo de novo. Área onde tinha cascalho, era desse jeito assim, pra não entrar nada. Uma pepita no meio. Aí, caçava um jeito de marcar ela, e depois que tirava cortar no meio, ou pesar ela e dividir o dinheiro. Mas ninguém ficava com nada de ninguém. Roubo, assalto, muito raro acontecer. Até porque o sistema era bruto, ninguém perdoava ninguém. E como todo mundo tinha expectativa de também pegar ouro, ninguém queria cometer uma infração para não ser posto para fora. Esse palanque era terrível, era temido. Quem tinha medo desse palanque era eu. Puta que pariu! Eu menor ali, que andava pisando fino para não ser preso, e nem ir para esse palanque. Acabei sendo preso um dia e tirei um fino nele. Que é proibido sair com ouro, então tudo que tu encontrava tu tinha que vender aqui. E um britador nosso lá funcionando, e aquelas pepitinhas voando pelo britador. E a gente catando, eu, o Ebenesio, catando as pepitinhas, os pedacinhos de ouro no chão, botando no vidrinho. Eu dei a ele para guardar. Passei mal, deu uma desinteria. Na verdade era uma pneumonia, quando eu saí lá fora eu fui descobrir, que era uma pneumonia. Aí, eu passei mal e fui embora. Aí, como eu tinha mandado ele guardar, ele pegou um vidrinho de Eparex quase cheio, ele foi e colocou no bolso da minha boroca. E eu só apanhei as coisas, botei, quando chegou lá na guarita, Federal mandou: “Pode ir!”. Aí, quando eu cheguei um pouquinho mais, ele: “Você volta aqui!” Porra, o cara enfiou a mão bem no vidrinho de Eparex. Aí fodeu! Aí, até na bainha da calça, eles abriram para ver se não tinha mais ouro. “De quem é? Pra quê?” Eu digo: “Meu, to levando que um amigo meu pediu para fazer uma obturação” “Qual a quantidade?” “Isso aí, quatro gramas, cinco gramas”. Mas daria umas sessenta gramas de ouro. Aí, me levaram pra Delegacia de Polícia Federal, negão lá, Doutor Leal, que era o Delegado, quase dois metros de altura. Eu olhei pra aquele negão lá, porra, eu tô fodido. Um bolo desse cara aí, arranca o braço. Aí, o agente chegou e contou pra ele a história como foi. Ele só escrevendo aqui, aí uma hora ele olhou para mim, quando o agente terminou de concluir, ele: “Dispensado!”. Eu fiquei sentado lá. Meia hora, e o negão lá, assim, sem se mover, sem dar sinal de falar nada comigo. Quarenta minutos, eu ali agoniado, aí chegou uma hora eu não dei conta, digo: “Ei, doutor, eu estou saindo porque eu estou doente, não jantei, e não tomei café da manhã, e tô com muita fome, tô para passar mal aqui”. Ele olhou assim: “E o que que tu quer que eu faça?” “Eu quero que me dê comida, ou me deixe comer” “Como é que foi a história?” Aí, eu contei a história realmente como foi. Ele disse: “Meu agente estava mentindo?” “Não, senhor! Mas se eu contasse para ele a história verdadeira, ele ia debochar de mim. Tava comigo, na minha boroca, era meu. É meu! Assumi que era meu. Assumi que estava levando, mas não levei de propósito”. Aí, ele olhou pra mim assim: “Tá bom! Deixa isso aí! Pode ir lá merendar”. Aí, Currutela, lanchonete bem pertinho. Aí, na saída eu perguntei. “E o senhor, gostaria de alguma coisa?” “Não!”. Beleza, fui lá, voltei e sentei ali de novo, e fiquei, e fiquei. “Doutor, eu estou doente, não posso ficar aqui não. Me manda embora, faça de qualquer jeito comigo aí”. Ele: “Eu vou ver o que eu faço contigo aí. Quantas gramas de outro tem aí?” “Ah Doutor, não sei não, mas uns seis, sete gramas de ouro, não dá isso não”. Aí ele disse: “Deixa o Doutor Evaldo chegar”. O Evaldo era coordenador do garimpo, que era um cabo velho, aposentado, vindo da guerrilha. Que era os homens de confiança da porcaria do Curió, os matadores do Curió viraram tudo Doutor aqui, Doutor Evaldo, Doutor Magno, Doutor Alexandre. Depois eu fui descobrir, os cabras não sabiam nem escrever o nome. Esse Doutor Magno, tive um embate lá em Brasília, aí eu precisando da assinatura dele, pois ele não sabia… sabia mal desenhar o nome, e se fosse para ler um texto, era melhor você armar uma rede para poder esperar ele, era uma hora para ler uma página. Aí, beleza, aí demorou, demorou, Doutor Evaldo chegou, o delegado ligou para ele, ele falou: “Não, manda ele vender o ouro aí e libera o homem”. Digo: “Agora você vai…” “Doutor, eu lhe disse que eu tô doente, não vou para fila”. Fila aí de 200, 300 pessoas, para queimar ouro. Tinha que ir cedo para queimar ouro, tinha que ir cedo lá, se não você passava o dia lá na fome, com fome. Tinha que ir duas pessoas, para um ficar na fila, e outro ir merendar, almoçar, pra ficar na fila para vender ouro. Quando estava vendendo 50 gramas, 100 gramas, 2 quilos, bacana. Quando tinha uma turma lá que ia pesar 10, 15, 20 quilos de ouro pra queimar. Aí, você estava fodido esperando. Aí, eu digo: “Olha, Doutor, eu dou para o senhor, eu jogo fora, dou para o pessoal ali, mas não vou vender” “Você tem algum parente, algum amigo seu aqui no comércio?”. Tinha o meu tio. Digo: “Tenho não! Só no barracão!”. Meu tio sem vergonha, se fosse lá, ele ia era me sacanear, podia até mandar me dar uma pisa, que ele era à toa mesmo. Aí, eu digo: “Não, só no barracão mesmo”. Voltei lá, o mesmo camarada quer havia guardado o ouro, eu vim cá com ele, pegamos, entreguei para o delegado, o delegado me entregou, eu entreguei pra ele. Ele disse: “Agora, cê vende!” E eu… Foi um fino, cara! Eu só não lembro o número da placa do carro, mas era um Fiat 147, placa do Pio XII, no Maranhão, carro que eles me botaram lá dentro da Polícia Federal para trazer para a delegacia, pra guarita. Até hoje eu sou invocado porque que eu não decorei o número daquela placa.
P/1 - Isso você tinha o que, 17 anos?
R - É, eu tinha 17, ainda não tinha 18 anos, ainda não tinha documento.
P/1 - Vamos falar um pouquinho do sistema. Esse sistema foi criado pelo Curió, é isso?
R - Sim!
P/1 - Quando você chegou…
R - Já estava instalado. Qual a ideia? Na época o Brasil passava por uma recessão muito grande, no final do governo militar, aquela euforia de 10 anos em 1, 100, 10 que era a propaganda do Delfim Neto e companhia. E muito desemprego. Então, Serra Pelada foi uma válvula de escape, principalmente para a região norte. Uma seca medonha no nordeste, uma recessão geral no país. E o Curió foi mandado para vir aqui. E aí, eu descobri uma coisa muito interessante, na apresentação do filme, “Serra Pelada: a Lenda da Montanha de ouro”, ele foi apresentado na Rússia, no Canadá, e aqui no Brasil na câmara de vereadores do Paraupebas quando era ali na frente. Aí, naquela história ali, o Vitor me ligou e não conseguiu falar. Enfim, mas eu cheguei no Paraupebas estava passando o filme, quando eu cheguei já havia começado. E naquilo ali eles encontraram o Doutor, que era chamado de Doutor, e realmente era, mas era um policial aposentado, que era responsável pela segurança da Vale. Ainda hoje ele é um dos caras da segurança da Vale. Vou lembrar o nome dele daqui a pouco. Venâncio.
P/1 - Antônio Venâncio.
R - É! E ali Venâncio estava passando, fazendo exercícios, e o Vitor havia entrevistado ele, chamou ele para poder fazer uma conversa, assistir o lançamento do filme e fazer uma conversa. E ali eu soube de coisas que eu nunca imaginava. A primeira pessoa a vir aqui foi o Venâncio, não foi o Curió. Ele veio a mando do Curió, fez um levantamento da situação, voltou, falou para o Curió como que era, aí o Curió mandou primeiro 70 homens, vieram como Furão, se infiltraram por todos os lugares, inclusive aqui nesse terreiro, lá no Açaizal, na saída que vai para as pirâmides, todas as entradas e saídas esse povo dele veio e se espalhou por aí. Nos barracões, todo mundo, onde mais, quanto mais gente, mais cabra caçava jeito de estar por ali e tal.
P/2 - Como garimpeiros?
R - Como garimpeiro. Quando chegou o momento do Curió vir, aí ele veio, e mandou antes dele vir, às véspera dele vir, vim mais 200 homens. Curió tinha trinta mil homens na guerrilha, ele comandou trinta mil homens na guerrilha do Araguaia, para pegar 69. E passaram 10 anos e foram 3 tentativas frustradas, até conseguirem pegar e matar um bocado desses meninos. Aí, ele veio e percebeu, disse: “Bom, não dá de tirar esse povo”. Sessenta e nove homens eles passaram dez anos para poder dar conta, de 1968 a 1974. E ainda seguiu durante muitos anos ainda, o medo, aquela história toda. Então, ele veio, disse: “Porra, aí a grande oportunidade, é um nicho político. E se for botar esses homens pra fora vai dar uma crise maior ainda, o povo com dinheiro, com vontade de ouro, aquela loucura”. Ele veio e organizou o garimpo, trouxe a Cobal, trouxe a Polícia Federal, trouxe a Polícia Militar, trouxe Telepará, postinho telefônico. Trouxe a coordenação, que era chamada a coordenação do garimpo, comandada por alguns geólogos do DNPM, que estavam acompanhando, mas quem comandava mesmo eram os cabos velhos. E veio e se organizou. Aí, ele contou a primeira mentira, foi quando ele veio e contou a primeira mentira que foi pedindo para o povo entregar as armas, porque ele veio, ia botar ordem, não precisava ninguém está armado, que ia ter aquela história e outra, quem precisava de arma eram as famílias que ficou no Maranhão, que entregasse, que quando fosse embora ele devolvia. A arma que tivesse defeito eles iam consertar, que eles tinham especialistas naquilo e pá. E aí, convenceu e a maioria entregou. Quem não entregou… E eles diziam, depois disso eu ouvi as pessoas falarem assim: “Porra, a Polícia Federal adivinhava, cara! Sabia onde estava a arma, sabia quem não tinha devolvido”. Era os filhos da puta cagueta que estava lá no barraco, que aí eles sabiam quem entregou e quem não entregou. E eles próprios entregavam as deles, tinha 2, 3 escondidas. Eles diziam: “Eu vou entregar a minha, porque o homem mandou e tem que entregar mesmo”. Aí, fazia aquela frente e entregava. Aqueles que não entregavam, eles ficavam olhando onde escondia, quando a polícia chegava já ia exatamente no esconderijo. Isso foi intimidando todo mundo, entregaram as armas. E ele nunca devolveu uma arma para ninguém. Aquela foi a primeira mentira. A última foi quando morreu. Parou de mentir, enganar o povo, nunca mais. Aí, virou deputado federal em 1982. Com o slogan: “Eu gosto de Serra Pelada porque papai trabalha lá”. As camisas que vendia, ele ganhou muito dinheiro vendendo essas camisas. E o slogan da campanha dele era assim: “Curió 82, Serra Pelada 83”. Acho que algum garimpeiro, alguém ainda deve ter dessas camisas aí, que são mais chegados a esta guardando coisas, provavelmente deve ter essas camisas. Uma malha péssima, lavava uma vez e encolhia, quem tinha coragem de usar. Então, assim, Curió conseguiu fazer isso, organizou, mas quando o garimpeiro estava chegando no ouro, eles começavam a quebrar as dragas, criar dificuldades. Aí, todo ano a gente tinha que fazer luta para poder conseguir mais um ano de trabalho, e depois passava, vencia aquele ano, mais luta para fazer outro ano. Enfim, essas lutas ao mesmo tempo que retornava ao garimpo, também marginalizava a categoria, que começavam a dizer, são baderneiros, são arruaceiros, estão atrapalhando o progresso, quem dá lucro é a Vale, então tem que tirar eles daí para a Vale tomar de conta. E aí, começou a criar divergência entre garimpeiros, parte da sociedade, e companhia Vale do Rio Doce, CVRD. Que naquela época era a Companhia Vale do Rio Doce, CVRD.
P/2 - Qual foi a sua visão do trabalho do Curió aqui dentro, positivo pro lado do garimpeiro?
R - Cara, a única coisa de vantagem mesmo do Curió, foi ele ter trago estes setores do governo, tipo Cobal, postinho de saúde. Que aí a Cobal, a mercadoria era um preço justo. Mas o demais foi tudo de mal, porque tudo aquilo que nasce de uma enganação e termina com uma enganação, não tem nada de bom. Então, ele chegou mentindo, passou a vida mentindo, e foi embora enganando. Não vejo muita vantagem. O ouro já estava, ele não deu ouro para ninguém, o ouro foi Deus que botou, deixou na terra, o povo tirou, um abraço. Aí, dado essas circunstâncias, ele virando deputado, e querendo manter, de certa forma, esses milhares de indivíduos, calmos, tranquilos, sem divergências, sem risco de revolta. Eles fizeram rebaixamento, 1981, 1982, depois fez um mini rebaixamento, já de 1983, para 1984, mas isso com o dinheiro do próprio garimpeiro. Então, não foi feito por eles.
P/1 - Você pode explicar o que é o rebaixamento?
R - O rebaixamento seria desmontar um pouco da montanha para evitar que o peso dessa montanha viesse a forçar a queda de barreira para atingir o garimpeiro que estava lá no fundo da cava. Mas ao mesmo tempo, eles criaram um sistema que se chamava água no chillin, segurança nos homens. Que seria quebrar as dragas de sucção de água, a gente atingir os lençóis freáticos, então eles quebravam… O próprio Curió, a equipe dele mandava quebrar as dragas, o garimpo alagava, enchia de água, aí ficava 8 dias, 10 dias. Imagine você com 30 homens, 40 homens, 8 dias comendo e bebendo sem produzir. Daí, quando consertavam a draga, 2 dias depois, secava o garimpo, aí quando secava, aquelas laterais estavam cheias de rachaduras, as bordas da cava estavam cheias de rachaduras. Aí, você tinha que quebrar a sua, amarrar de corda, pendurar, amarrar de corda na cintura, pendurar, um monte de segurando lá, aí você amarrado feito um macaco, pendurado numa corda na barreira com uma alavanca, quebrando aquilo e jogando embaixo. Aí, aqueles barrancos que tinham ficado no ouro, aí você aterra tudo de novo, ficava reto aquele trem. Aí, você limpava de novo, trabalhava mais 3, 4 dias, quando estava ensacando, pegando o ouro, eles tornavam quebrar a draga, tornava encher de novo. Então, eu digo o seguinte: “É o único lugar no mundo em que o próprio governo organizou para quebrar o trabalhador”. Isso fez com que as pessoas fossem se quebrando, desestimulando emocionalmente, e quebrando economicamente. Então, o cara que tinha tirado um quilo de ouro, tinha comprado uma terrinha, umas vaquinhas lá fora, lá no Maranhão, no Piauí, no Jacundá, daí ele começou a vender as vaquinhas e trazer para cá de novo. Daqui a pouco ele não tinha mais ouro, não tinha mais terra, não tinha mais mulher, que ele ficava com vergonha de voltar. Daqui ele foi para outros garimpos atrás de mais gente, morreu de malária, morreu assassinado, morreu na cadeia por ter matado também, ter sido preso por esse mundo afora aí. Nunca mais voltou. Só ficaram um monte de viúvas e homens vivos. Pelo nordeste afora, viúvas de homens vivos, maridos vivos perdidos aqui na Amazônia, e as mulheres lá sem saber onde está o pai dos filhos delas.
P/2 - Uma estratégia…
R - Sim, uma estratégia do Estado. Afinal, o Estado sobrevive de estratégias. Todo Estado sobrevive de estratégias. Essa foi uma estratégia para o garimpeiro quebrar e eles tomaram de conta de Serra Pelada. Fato que quase ocorreu, não fosse a nossa insistência aqui, tinha acabado tudo. Nós passamos o pior momento da história de Serra Pelada, foi de 1993 a 2000 e alguma coisa. Você não podia trabalhar, você não podia cavar um buraco no chão pra fazer uma fossa que eles diziam que estava garimpando, a polícia vinha e te levava preso. Eles compraram essas terras tudo em volta, então você não podia fazer uma roça. Você não tinha fonte de renda nenhuma. E a malária se multiplicou, aqui tinha malária demais, demais, demais. Esse bairro do Morumbi aqui, foda, era cruel. Tinha o Felipe, da Elisa, Felipe, ele é especial, é meu afilhado, o Felipe. O Felipe quando tinha 13 anos de idade, ele tinha 21 malárias. No ano 2000, aqui nesta casa, eu tive cinco malárias, de março a dezembro. O último remédio de malária que eu tomei foi no dia 9 de dezembro de 2000. Tanto que se você olhar ali, aquilo lá, ó. Aquilo ali é uma armadilha que está ali para tentar descobrir se ainda tem mosquito. O pessoal da Sema, Sefa, Sesma, alguma coisa da saúde do estado, saúde federal, eles montam armadilha aqui quase todo mês para poder pegar mosquito, ver se ainda tem mosquito da malária, não sei o que, para eles combaterem. Então, a malária aqui arrebentou todo mundo, ninguém podia trabalhar, ninguém podia fazer nada. Para virem aqui… Eles montaram um telão em volta, que pra alguém vir aqui, tipo na minha casa, ele tinha que chegar no portão ali, depois da cava um pouquinho, apresentar um documento, dizer onde vinha, o que vinha fazer, e que horas voltava. Se não, não podia vir.
P/1 - Como era ser contrário ao regime do Sebastião Curió?
R - Como é sempre ser contrário a qualquer regime estatal. Você é perseguido, você é incomodado, você é marginalizado. A um sistema muito próprio em qualquer lugar do mundo, quando as empresas de mineração chegam, independente de ser aqui ou não, de ser a Vale ou não. Primeiro, eles tentaram convencer as pessoas de influência a estar do lado deles, oferecendo vantagens. E aí, te coloca… Arruma o cabra que filma, que faz retrato, não é? E ele vem, te ajeita daqui. “Esse é o cara! Esse é um menino bom, não sei o que”. Se ele te convencer, e você ir pro lado dele, tu continua bonzinho, com vantagens. Se você se rebelar, aí ele já passa a caçar os defeitos possíveis para colocar em ti. Aí, tu já vira estuprador, tu já vira pessoa não grata, você vira traficante, você vira. Enfim, esse é o processo que a gente… Primeiro, é o de… o que chama de cooptação branca, que é esse de querer te levar pro lado deles. Aí depois vem o processo de satanização, que é esse onde ele bota todos os defeitos que tiver, coloque em ti, se tua mulher não dá para ninguém, mas eles começam a dizer que ela é prostituta, que está lhe chifrando. E começa a botar defeito, é o processo de satanização. Depois desse processo de satanização, aí vem o processo de eliminação física. Comum! E naquela época, morreu muita gente. Morreu Mauro, morreu Zé Mendes, morreu Antônio Kleine Cunha Lemos. Fora outros que morreram por aí afora. Fernando Marcolino escapou, por acaso. Eu escapei pelas bênçãos de Deus, várias vezes eles tentaram me matar. E vários outros. Enfim, esse é um processo do Estado, ou daqueles que ousam enfrentar as empresas do Estado? Que no caso, a Vale na época, era uma estatal, e depois para poder privatizar, e no processo de privatização, isso ficou muito mais evidente, a violência do Estado, ou dos que tinham interesse em comprar o que era do Estado. “De quem a Vale?” “A Vale é do Bradesco, Vale…” Então, esses caras tem interesse muito grande. “Quem está atrapalhando?” Aí, vem os caras para poder fazer o processo. Aqui tinha uma empresa de segurança chamada Campo, a sede era bem aqui do lado. Foi o que fez eu vim para cá. A gente morava no Sereno, e em 1996 eles estavam desmanchando, derrubando as casas. Eles chegavam, cercavam o quarteirão inteiro de policiais, abraçados um no outro aqui, de braço a braço. E o pessoal da Vale vinha, tirava suas coisas de dentro de casa, amarrava lá, e botava debaixo de uma mangueira, e metiam, tra. Uma casa dessa aqui em meia hora eles tinham desmontado ela e estava em cima do caminhão. Mas se tu não tivesse em casa, quando tu chegava: “Cadê a minha casa?”. Estava só lugar e tuas coisas lá no mato, no chão, pendurado numa árvore. Mas isso eles ficaram acampados lá no Luisão, parte do grupo, uma parte deles ficavam na fazenda, ali perto do campo, ainda não tinham construído, isso aqui já foi eles que construíram. Outra parte ficava na Caracol, outra parte ficava no hotel Serra do Ouro, do Luisão, lá no fundo de casa, no Sereno. E lá eles iam, lá tinha um campinho, lá onde tinha aquela castanheira, tinha um campinho de futebol ali, eles tomaram logo de conta, a gente não podia mais pelo campo, nem nada. Porém, era muito homem, e eles tinham que cagar, mijar. Aí, passaram a usar a privada lá em casa. Aí, eu fui proibido também. Isso deu uma confusão, no dia que eles chegaram lá, que eu mandei o Amarildo tirar foto. Eu fui anotar o número dos ônibus, número de placa, aquele trem todo. E o Amarildo foi tirar foto, aí o soldado tirou a roupa, botou o fuzil do lado, e foi cagar, e ele foi lá e tirou a foto da porra desse soldado. Aí, o soldado juntou as calças aqui. Quando eu assustei de lá, foi Amarildo correndo para dentro de casa, e jogou essa máquina fotográfica… Minha irmã. Nesse dia minhas irmãs estavam aí, meu cunhado e tal. Aí, ele já jogou a máquina fotográfica, que era da minha irmã, já no colo dela, ela pegou. Aí, cercaram aquele quarteirão ali, tudo de polícia, helicóptero por cima, com os atiradores com os rifles apontados, com os fuzis apontados para baixo, aquele trem… Uma loucura, ficou tipo uma ilha, aquele grupo de pessoas ali no meio, até o nome do do tenente, Tenente Figueiredo, que era o comandante da equipe lá. Eu, minha irmã, e mais outros ali em volta, e em volta só polícia. E por cima da gente, o helicóptero com as metralhadoras apontadas para baixo. E tira, pega, não pega. Eu digo: “Ah, vocês invadiram minha casa, meu irmão, isso aqui é meu, que papo é esse?” Já cheguei, esculhambei todo mundo. E dali de casa a gente saiu lá pro campinho, lá no campinho houve esse outro rebu. E aí, minha irmã também, meio danada, eles queriam a máquina fotográfica. “Não, a máquina é minha, vocês querem o filme?”. Aí abriu, puxou o filmezinho, e jogou na cara do policial. Aí, foi outra confusão danada. Trem de doido, trem de doido. A gente falando parece brincadeira, mas foi uma loucura. E aí, foi quando eles começaram a desmanchar as casas. E lá nós descobrimos, num certo momento, eles fazendo treinamento lá, o Amarildo… Eles iam fazer os treinamentos, e o Amarildo ia para dentro da privada, e lá ficava ouvindo as conversas. “Olha, tem que intimidar a comunidade, mas não pode bater, não pode obrigar ninguém. Se alguém não permitir que desmanche a casa, deixa, fala que vai voltar depois, depois a gente volta e vê o que que faz” “Ah, não vai desmanchar nada!” E aí, foi quando demos a testa lá, juntamos o povo, comunicamos a comunidade. Aí, o povo foi, enfrentou, eles pararam de derrubar as casas. Mas nessa brincadeira desmancharam mais de 500 casas na época. E vinham pra cá. Aí, essa casa aqui não ficava ninguém, isso aqui era cercado de madeira, de tábua, tudo cercado. Portão grande ali na frente. E cercado de tábua, e com um metro de cerca de arame, de arame farpado por cima. Aí, viemos para cá. Não tinha energia, não tinha água encanada, não tinha nada. E a turma não queria vim de lá para cá, e aquela confusão. Eu digo: “Vamos, que eles vão desmanchar as casas” “Não vamos!” Vamos, não vamos. Aí, eu chamei Genésio. Genésio, um meio de levar esse povo é levar a cozinha, sem a cozinha ninguém fica. Aí, arrumei uma égua, eu tinha uns animais, arrumei uma cangaia do seu Bomfim, botei um par de balaio, botei a bagulhada toda dentro, vim por ali. Aí, no dia que nós chegamos aqui, à tarde, no outro dia, a equipe da Vale amanheceu ali do lado. Estava em construção, já amanheceram alí. Depois foi quando eles montaram o telão. Aí, para a gente derrubar esse telão foi uma outra loucura também. Mas eles passaram uma média de 8 meses, 10 meses para montar, fazer o telão. Nós derrubamos em menos de duas horas. Foi a derrubada mais rápida. Nem a derrubada da Bastilha foi parecida. Foi muito louco!
P/1 - Fala do telão pra gente. A construção foi em que ano e qual que era a função dele?
R - Em 1997. Eu creio mais ou menos, 1997. E a função era separar a direção da Vale dos garimpeiros, era isolar. Eles queriam de todas as formas tirar os garimpeiros daqui. Então, compraram terrenos, desmontaram casas. Mas depois nós, através de uma ação do senhor Benedito. Benedito lá de Tocantins, de uma cidadezinha depois de Araguaína. Ele entrou com uma ação na justiça e conseguiu tirar, separar Serra Pelada da área leiloada da Vale. Então, Serra Pelada acabou não entrando no leilão de privatização da Vale. Então, isso aí acabou forçando eles a refazer os ânimos e mudar a estratégia. Tanto que hoje a estratégia da Vale, não é mais tirar o povo, é cooptar. Em todo lugar que você passa nessa currutela você vê um velhinho com a camisa da Vale, você vê um adolescente, você vê uma criança, vestindo e fazendo propaganda da Vale. Então, hoje ela paga para a comunidade ficar calada. Dá um emprego, bota um sonzinho, bota os cabras para ficar lá na rua levantando e fazendo… Como é o nome? É, não, mas tem um nome que eles dizem aí, que eu ouço eles falarem. Zumba. É um tal de zumba. Velho, mulher, menino, nessa zumba, vai pra lá, faz exercício, vira aquela brincadeira toda. Enquanto isso, eles estão tirando minério lá despreocupado. Ninguém sabe se tem algum túnel por baixo entrando e tirando. Se a Colossus fez um túnel aqui, sei lá, do outro lado. Eles podem muito bem estar com um túnel vindo de lá e saindo cá, sem que ninguém perceba. E a comunidade está calando, achando bonito, porque tem uns aí que recebe um salário, dois salários, três salários. E tá de boa, tá calado, tá tranquilo. Eles estão felizes.
P/1 - A cava em si, a lagoa, está em jurisdição de quem hoje?
R - Na verdade, sempre foi do Estado, porque todo subsolo é do Estado, é Federal. Mas estava fora da concessão da Vale. A concessão da Vale, que a concessão do decreto 74.509/74, elas são uma junção de dois alvarás de pesquisa. Um alvará que pertencia a Anglo American, e um outro alvará que pertencia à Mineração Xingu. E depois o governo, a Vale do Rio Doce, via governo do estado, comprou essas duas áreas. Eram duas áreas de cinco mil hectares. Separadas. E eles compraram e o DNPM, na época, conseguiu juntar essas duas áreas em um só bloco, que formou esse decreto 74.509, em um só bloco. Que não era um só bloco. Porém, Serra Pelada estava fora. O Morro da Babilônia, a Grota Rica, nunca esteve dentro do decreto. Eles de forma idiota e achando que o povo ia continuar também idiota, eles ao invés de fazer um requerimento. E a Vale podia fazer, como fez vários outros depois daquilo ali. Eles optaram por incluir a área de Serra Pelada dentro deste decreto. Enquanto isso deu tempo da gente despertar, conhecer. O governo ditatorial acabou, veio uma nova Constituição, Constituição de 1988. E ali nós conseguimos, com as influências de alguns senadores de Roraima, do senador, na época, deputado federal, Ademir Andrade, PSB, Tucuruí, Pará. Luiz Inácio. Doutor Luiz Eduardo Green House, de São Paulo, entre outros. Doutor Ernani, alguma coisa, de Roraima. Enfim, nós conseguimos colocar no capítulo, no artigo 21, inciso 23º. Um artigo que diz mais ou menos assim: “É obrigação do Estado criar áreas e dar condições ao trabalhador garimpeiro que tiver organizados em associações ou cooperativas”. Se você for lá no artigo 21, inciso 20º, 25, acho. Ou é artigo 25, inciso 21. E lá no artigo 174 vai encontrar, no parágrafo segundo e terceiro, parágrafo segundo, inciso quarto: “É obrigação do Estado dar prioridade aos garimpeiros que estiverem organizados em associação e cooperativa. É obrigação do Estado, não sei o que, não sei o quê”. Coisa que esse estado nunca cumpriu. Mas isso também impediu que a Vale avançasse nessas áreas onde é prioridade.
P/1 - A história do telão foi por conta disso?
R - E a história do telão, a Vale queria tirar todo mundo daqui, e não conseguindo o intento, comprando as casas, derrubando. Comprando os terrenos e derrubando as casas, eles foram e fizeram um telão para poder fazer esse processo que a Colossus fez. Aquele shaft onde a Colossus fez o túnel. Quem fez ele foi a Vale do Rio Doce. Quando fez o telão, eles fizeram aquele shaft para começar a fazer esse mesmo procedimento que a Colossus fez. Como os garimpeiros se rebelaram e não permitiram, dado a uma série de circunstâncias, eles abandonaram esse projeto, subiram a serra, foram cuidar do projeto de lá. E depois a Colossus veio e concluiu o mesmo projeto que a Vale tinha planejado. No mesmo lugar, de maneira parecida. [pausa]
P/1 - Vamos voltar, então. Vamos falar do telão. Aconteceu a derrubada, mas como é que foi? [intervenção]
R - O telão, eles fizeram ele aí, quase um ano fazendo, com a polícia, fazendo segurança, para eles montarem esse telão. Guardas. E eles passaram a vigiar o telão. Eles tinham uma estrada por dentro do telão e por fora, e eles vigiavam de moto a noite toda, dia e noite passando em volta, de um lado e outro do telão. Eles passavam ali por fora, passavam aqui por trás, por cima ali, descia, passava beirando o açude ali, o balneário, descia pelo outro lado. Então, assim, quando dava no inverno, que não subia moto nesses morros, eles compraram uma tropa de burro. E eles, os guardas, ficavam de burro vigiando essa estrada aí, esse telão. E aí, a galera foi se injuriando com aquilo, as pessoas estavam bem ali na Grota Rica, para poder atravessar para o outro lado para comprar o pão, o café. Ele olhando a padaria a cem metros, ele tinha que andar dois quilômetros, para dar a volta, para ir lá comprar o pão. A padaria tá aqui, ele estava aqui, ele tinha que fazer todo o retorno para ir lá. E foi se criando, até que um determinado… E eu morava aqui, andava a cavalo, então eu tinha toda a possibilidade de fazer o levantamento de como era a coisa. Eu, o Jorge e o Amarildo, o Raul Seixas, ou seja, morava aqui comigo, sempre morou com a gente, o Raul. Meu pai e o pai dele… Ele veio pra cá também criança, o Amarildo veio pra cá adolescente, e aí a gente se conheceu no garimpo lá, e ele ficava muito mais com a gente, do que com o pai dele. Até porque lá em casa tinha muvuca, tinha uma cachaça escondida, e tinha toda uma folia lá. “E aí, o que fazer agora? Como fazer para tirar o telão?” Muita polícia aqui, os guardas. Como fazer para desmontar esse telão? Bom, fogo! Eles também faziam o papel de guardas florestais. Não deixa ninguém derrubar uma vara, nem plantar uma mandioca, nada, nada. Não era permitido nada. Aí montamos o sistema da seguinte forma: Vamos fazer três fogos. Aí, o Amarildo ficou responsável por botar fogo num canto, o Maurício, Maurício da Serrinha, ficou responsável de botar fogo em outro canto. E o outro indivíduo, não sei se foi o Jorge, não lembro mais quem foi, ficou de botar fogo. Então qual a ideia, assim? O cara botou fogo num canto, os guardas correram para apagar aquele fogo. Aí, daí um pouco surgiu um fogo lá no outro extremo, aí esses guardas se dividiram para ir para aquele outro local. E quando eles estavam ali, aí surgiu o terceiro fogo. Então, o grupo de defender o setor se dividiu em três. Aí, o povo entrou e começou a derrubar o telão, e foi derrubando, derrubando. E como era no morro, aquilo formou tipo um efeito dominó. Você derrubava um pilar, e ele saia derrubando os outros. Aí, quando enganchava lá, ia lá com uma marretinha de novo, quebrava outra vez, daí caia mais vinte, trinta, cinquenta lá embaixo. Até que, quando assustaram, não tinha mais telão. Aí, tentaram invadir aqui, que era a base da Vale, para poder destruir, tirar os sinais da Vale daqui de dentro. Aí, a polícia se armou naquela entrada ali. Eu lembro muito bem que era uma picape branca, uma Willis Branca, de carroceria de madeira branca, com tripé, uma metralhadora, em cima de um tripé, e três indivíduos, três soldados. Um segurando o tripé, equilibrando o tripé em cima da carroceria da camionete, outro segurando o pente de bala no braço, umas balinhas deste tamanhozinho, e o outro manobrando a metralhadora. Aí, o pessoal… Aí, tinha uns container, ali debaixo da mangueira, está no mato hoje, mas tinha uns containers deles, da época da construção. E aí, esse povo juntou aqui tudo em volta para entrar ali, eu puxei a mangueira daqui, botei lá embaixo, para o pessoal beber água. Mas eu não estava no meio, eu estava montada a cavalo, só tive o trabalho de conferir onde estavam os guardas, quantos soldados tinha, mas não fui para o embate. E aí, fiquei montado no cavalo, escorado ali no container, e o pessoal tentando invadir aquilo ali, vai, não vai. Na hora que as pessoas se aproximavam, aquele cara da da metralhadora, ele rodava aquela metralhadora assim, aí o povo, opa! “Afasta!” Afasta assim. A discutir o coronel, o coronel, esse coronel, acho que é o pai de um dos filhos da Márcia. Ou pelo menos era namorado da Márcia, da irmã do Carneiro. Não lembro o nome dele, mas se perguntar para outros, eles vão lembrar o nome dele. Aí, aquela discussão, conversa, faz acordo, não faz, e tal, e vai, e não vai. Na hora que o pessoal dava uma de que ia para cima para poder ultrapassar, acaba que a metralhadora. Cara, se aquela metralhadora, se ele aperto o dedo, tinha matado muita gente. Aquilo ia ser um massacre assim, fora do comum, porque uma bala daquela atravessa 10 indivíduos. Aí, estava aquele monte embolado, então, assim, teria sido uma carnificina naquele dia. Resultado, ao perceber que aquilo não estava certo, aí apareceu umas vozes: “Aí, gente, recuar todo mundo. Não tem como não!” Aí, recuaram e deixaram eles aí. Depois a própria a Vale mandou derrubar. A Vale é do mal, né! Quando eles abandonaram isso aí, nós pedimos isso para fazer um ponto de encontro da igreja católica. Eles preferiram deixar, derrubar, deu para a turma do marreco, basicamente, foi quem destruiu isso aí tudo. Eles preferiram deixar destruir tudo do que dá para a igreja fazer um setor de encontro da igreja. Mandamos, fizemos ofício, encaminhamos para eles, eles não aceitaram. Deram lá embaixo o Caracol pro pastor, mas não deram isso aqui para a igreja católica. Aí, destruíram esse trem todo. Então, assim, foi um momento aqui… Por isso, eu digo assim: foi um momento de muita tensão. Por um triz, por um triz, aquilo não se tornou numa carnificina. Tipo… Aí, depois na Colossus, quando o professor João de Deus morreu, que os garimpeiros interceptaram a estrada, não deixaram ninguém vir. E aí, apareceu o Valmir Ribeiro, e um outro oficial de justiça. Isso era um sábado, eu fui numa reunião na Câmara, e o pessoal estava ali. “O professor morreu” Pararam as estradas, não deixaram o carro passar, nem nada. Aí, tinha uma sessão na Câmara, não sei o que era, se era uma audiência pública. Eu sei que eu estava na Câmara dos Vereadores, então eu vim de lá para cá de sapato social, camisa branca de manga. Aí, cheguei, paro no meio daquele povo ali, e fiquei por lá. E os meninos, “Vamos ou não vamos?” “Não, eu vou ficar aqui, pode ir embora!” O Toninho, o Almir. Digo: “Não, pode ir embora, quando for mais tarde vem me buscar” Fiquei lá no meio do povo. Quando chegaram, o oficial de justiça. “Não, não vai vir ninguém, não!” O prefeito era o Anderson Chamon. Hoje deputado. Aí, “não vai vim?” “Vai, não vai”. Disse: “Não, você pode ficar aí”, em pleno sábado, né! Quando assusto! Lá vem o batalhão de polícia. Aí, a polícia… Aí, o Valmir, Valmir Ribeiro, e o outro menino que depois virou oficial, desapareceram. Quando eu olho pro lado, lá vem o comandante Gledson, com uns 50 policiais. E eu estava lá no meio, ele olhou pra mim. O Gledson: “Etevaldo, nós recebemos ordem para desobstruir a estrada, e vamos cumprir, ordem é para se cumprir”. Aí, eu digo: “Ok comandante, ordem é para cumprir. Mas se você me der 10 minutos, a gente evita um banho de sangue. Vamos evitar o conflito”. Aí, conversaram entre eles. “Só 10, só 10!” Digo: “Não é mais.” Aí, voltei pro pessoal, conversei, conversei. “Até você, Etevaldo? Tá se vendendo! Pô, você, que a gente…” Digo: “Cara, nós não vamos morrer. Esse povo tá aí e eles vão vim no meu…” Eu digo: “Ó, eles não vieram para ficar. Eles vão embora amanhã. Então, eles indo embora, precisam de uma outra ordem judicial para eles virem aqui de novo. Então, a gente está em casa. A gente vai para casa, eles desmontam o trem aí, amanhã eles vão embora. Amanhã a gente vem e monta de novo”. E aí, a Lucinha Queimadinha, estava lá, e aí já estava rolando uma cachaça, aquela turma toda, aquele barulho. Ali devia ter umas 500, 600 pessoas. E aquele trem pegou. Até que eu convenci todo mundo e vim embora. E aí, o Gledson gritou de lá assim: “Etevaldo, já que vocês vão voltar de novo, porque mesmo vocês não desmancham para aproveitar a madeira?” Digo: “Comandante, nós estamos na Amazônia, madeira não é o problema. A função de vocês é desmanchar. A do povo é fazer”. Aí, ele ficou puto, né? Ele não queria ter o trabalho. Aí, fui lá, puxou uma parte do barracão, estava no meio da estrada, só um desvio, aí aquilo caiu fácil. Aí, o restante de cá, o soldado balançou aqui com a mão, o bicho nem moveu. Aí, ele encostou o fuzil, puxou com as duas, aí nem moveu, um buraco desse tamanho no meio da piçarra, da estrada, 4, 5 dias, não é só assim para tirar. Aí, na hora que ele botou o fuzil, que sacudiu… Isso o povo cantando o hino nacional, palavra de ordem, aquele trem. E eu lá de longe olhando. Aí, na hora que ele não conseguiu, o povo vaiou ele, o policial. Aí, aquilo foi como se fosse um comando. Aí, ele meteu o spray de pimenta. O povo enfileirados, assim, assistindo. Ele já meteu o spray de pimenta. Aí, começou a jogar bomba de efeito moral, bomba de gás lacrimogêneo. E esse povo se espalhou para um lado, pro outro, virou aquele trem louco. Eu estava um pouco… Daqui para lá, a gente está do lado esquerdo, tinha uma cancela, aí já corremos para o meio do mato. Aí, começaram a jogar bomba. Era mês de agosto, então tudo muito seco, começou a pegar fogo no capim, e a gente louco, correndo para apagar o fogo, porque se não ia queimar aquele monte de gente no meio do mato, e tal. Conseguimos apagar. Aí, alguém lá no meio gritou assim: “Etevaldo, balearam o Lascado”. Digo: “Porra! E agora?”. O ensinamento é que você não deve voltar para resgatar ninguém. Você já perdeu um, se volta dois, você perde três. Mas eu resolvi voltar para ver o que tinha acontecido. Aí, quando eles me viram, pararam aquelas ações ali. “Pode vir todo mundo, pode passar!”. Aí, o povo foi passando, e a polícia ficou do lado esquerdo, sendo a beira do lado, tinha um… Que acabou, hoje aquele piçarrado que tem lá, na grota assim, eles ficaram do lado assim. Aí, eu vim de cá, assim, vim descendo, andando rápido, andando rápido. Eles foram fechando, até que… o camarada estava aqui por trás, saiu na bicicleta. Eles pegaram o cara assim, puxaram, levantaram a bicicleta e puxaram. Ele caiu de cabeça no chão, se machucou todo. Aí dois policiais caíram batendo nele, dando pancada. E eu vim correndo, aí eu embalei mesmo, tinha um barranco, eu bati o pé no barranco e pulei por cima da bicicleta, dos 2 policiais, e do companheiro, bati lá do outro lado. Aí, o Gledson gritou pra mim assim: “Etevaldo, covarde, vem buscar teu companheiro. Venha acudir!” Eu digo: “Covarde é você filho da puta!” Eu falei coisa que eu não lembro, não consigo… Meu vocabulário hoje não é tão extenso, para aquilo que saiu naquele dia. E eles tem tudo isso gravado. Depois um amigo meu contou assim… Lá no Parauapebas, que eles têm detalhes das coisas. Aí, beleza! Aí, ele disse: “Vou te pegar!” “Pega porra nenhuma, filho da puta!” Aí, falei mais um monte de coisas, eles vieram na minha direção, eu entrei no meio da multidão. Apareceu alguém que eu não sei, disse: “Seu Etevaldo, sobe aqui!” Na garupa da moto. Eu montei na garupa da moto, vim até o Aldemir. E eles ficaram lá. Aí, o povo veio, e eles ficaram lá. Aí, cortaram pneu de bicicleta, de moto, baterem em gente. Vieram o povo andando na estrada, de lá para cá, e eles passando de carro e jogando bomba em cima do povo. Bomba de gás lacrimogêneo, bomba de efeito moral. Mas o Lascado tinha levado um tiro de borracha, nas costas, bem no meio do ombro. Ficou uma marca assim, da altura de dois dedos assim, nas costas dele. Aí, eu fiquei no Demi. Aí, lá vem eles soltando bomba, aquele trem, e as mulheres desesperadas. “E agora, Etevaldo?” Agora é o seguinte, senhora, eles vão vir, vão querer me pegar. Tem duas situações: “Se eu correr e eles virem nessa direção. Se eu correr, eles vão correr atrás de mim, não vão correr atrás de vocês. E se eu perceber que não dá de correr, eu vou me entregar e eles vão me levar preso, e acabou o problema. Não vai ter problema com vocês!”. Mas eles não foram para lá. E a gente saiu pelo fundo ali no Demi, já vim sair cá naquela rua, quase em frente o Lascado. Aí, quando eu cheguei lá, ele estava… Ele mostrou as costas lá, com aquele calombo de todo tamanho nas costas. Eu digo: “Bom, já que você está vivo mesmo, o risco maior já passou, bora tomar uma cachaça! Que eu vou tomar uma para poder dar uma incorporada aqui”. Aí, tomei quase um copo de cachaça, e já chegou alguém. “Estão te chamando lá na Quatro Bocas.” Aí, quando cheguei lá, estava o doutor Rodrigo, e a turma toda ali no Pau da Mentira. E aquele monte de gente. O comércio tinha fechado, as casas da rua principal haviam fechado. Aí, apareceu a notícia que esse rapaz da bicicleta havia morrido. Mas ele não tinha morrido. Mas estava com a cara toda quebrada de pancada, de ter batido a cara. Ele ficou cego, perdeu uma vista. Perdeu um olho aqui nessa brincadeira. E aquilo… Daí um pouco mais, vem o carro da polícia com ele, e o pessoal já foi para cima, e pancada dali, pedrada, pedrada, quebrou o carro da polícia. Aí, foi um carro da polícia, saiu daqui da Colossus e foi para lá, já chegando ali, no beco que vai para o Beto. Ele foi até ali perto, aí quando chegou ali, o povo já foi ao encontro. Aí, eles fizeram uma manobra rápida ali, voltaram e fugiram. Aí, o povo tomou conta da cidade. Aí, o Ataliba passou a comandar o grupo de revoltosos. Aí, conduziu o povo lá em direção à via… Aí, aquilo tudo foi obra do Ataliba. Aí, botou fogo em carro, em contêiner, invadiu aqueles trem tudo. Aí, voltou de lá para cá, aí ele veio de volta, foi lá… Foi lá na delegacia… Quebrou a porta do sindicato, ali no Raimundinho do Leite, próximo ali. Quebrou a porta do sindicato, pegou material da associação. Numa época era juntos, Associação de Moradores e Sindicatos. Pegou a papelada, jogou de rua afora, fez o maior escarcéu. Foi em direção à delegacia, enfrentou a polícia. Foi a partir dali que a delegacia de polícia saiu dali e foi lá pra cima, pra onde é hoje. A polícia saiu de dentro da cidade e foi para o mato, ao invés de proteger a comunidade, foram proteger a si próprio. Então, assim, a polícia daqui hoje não protege a comunidade, protege a eles. Se tiver algum mal rápido aqui, até chegar lá, o camarada a pé, que a polícia chegar, o ladrão, o assassino, seja quem for, já está muito longe. Aí eu cheguei, chamei o pessoal, o Agnaldo… A Luana estava me procurando: “Etevaldo está todo mundo te procurando.” Eu digo: “E onde está a turma aí?” Disse: “Está no Bill.” Aí, o Bill estava fechado, as portas, e os meninos, uma turma lá dentro tomando cerveja. Aí, entrei lá! Entrei, tinha uns quatro. Digo: “Olha, gente, aqui é o seguinte: aproveite agora que está claro, e junta todo mundo. Quem estava no movimento, quem participou, quem teve à frente, quem conversou, desapareça! Todo mundo tem até quatro horas da manhã para sumir, que a partir de quatro horas da manhã a polícia toma conta da Vila e ninguém sai mais”. Aí, todo mundo… “Quem não tiver para onde ir, fica comigo que a gente sai. Mas é melhor sair de 2 em 2, 1 e 1. Quanto menos juntos, menos preso vai ter. “Se sair dez, pega dez, dez presos. Se dez indivíduos saí cada um para um canto, vai pegar dois, três. Sete, cinco, seis, vai embora, mais da metade vai embora”. Beleza! Aí, quando foi na madrugada, a maioria desapareceu. Eu não fui! Eu mandei todo mundo ir, mas não fui. Então, ficou eu e o Malebra. Fomos para um certo lugar, e de lá nós ficamos monitorando. Isso foi num sábado, né! Aquele dia num sábado, e ficamos monitorando o que aconteceu. O primeiro a ser preso foi o Doutor Rodrigo, no domingo de manhã, o advogado. E aí, foram pegando. Pegaram o João Corinthiano. Pegaram mais um bocado. Foram pegando. Prenderam nove daquele dia. E eu lá assistindo, acompanhando, as informações chegando. “Prendeu fulano, prendeu não sei quem, e tal”. Pra dormir essa noite. Voltando assim. Para dormir, quando eu fui lá para esse ponto. Eu mandei comprar um litro de cachaça, aí tinha uma caixa d`água, eu banhei que molhei, tinha um pé de laranja carregado, aí eu e o Malebra, nós tomamos meio litro de cachaça e chupamos, comemos, mais umas duas dúzias de laranja ali. Para conseguir dormir. Aí dormimos. Uma tensão muito grande, né! Aí, amanheceu o dia, aí começou a chegar notícias. “Prender o fulano, prendeu o cicrano, prendeu não sei quem, prendeu não sei quem”. E ficamos lá. Quando deu umas… Passamos o dia, aí levaram o almoço pra a gente, quando foi a noite, levaram a janta. A gente no mato. Aí, vim pra casa à noite, para assistir o fantástico. Tinha um morador perto de onde a gente estava, que era um dos apoiadores, aí ele… “Não vai vim ninguém não, assisti o fantástico!” Mas eu mandei informação para o Toninho onde eu estava. Quando foi lá para às dez horas da noite, o carro encostou. Aí, o parceiro saiu. “Cuidado, tem um carro!” Eu digo: “Não, é o carro dos meninos, eu conheço o barulho, pode deixar! Pode atender lá que é nosso!” Aí, o Toninho chegou, eu disse: “E aí, o que houve?” “Prisão preventiva decretada. Tem que sumir!” Digo: “E agora, por onde? Aonde que vamos?” Aí, entramos nesse carro, na caminhonete, rasgamos aqui nos Miranda, Palmares 2. Eu fui pra casa do Miguel, mandei avisar o Totô e o Charles. Charles Trocadis. Eu acho que vocês vão fazer um trabalho com eles lá, uma das pessoas a ser entrevistadas é o Charles Trocadis, Tito. Aí eu contei para ele a história. Ele disse: “E aí, e agora Etevaldo?” “Agora eu preciso de abrigo” “Não, espera aí, espera aí.” Aí, foi num lugar, foi lá, voltou na rua, no açougue, trouxe um monte de carne, arroz, feijão, fez um rancho, botou a gente num carro, e soltou no mundo de novo. Aí tornamos a ficar moitados. Aí, a senhorinha que estava lá da casa, disse: “Não, se Etevaldo vai, eu vou pra lá, vou cozinhar, vou ser a cozinheira deles e pescar, lá tem um lago, tem não sei o que”. Aí, ficamos nós três, a senhora, Dona…. Morreu, minha amiga, não fui nem visitar, não pude ir. A Rita e o Miguel. Aí ficamos lá três dias. Aí lá a porra do Malebra dá uma crise de coluna, ele não aguentava nem andar, todo duro. E o helicóptero da Vale passando por cima, caçando a gente. Os caras tem um poder de localização. Aí, começou carro andar perto do aparelho da gente, e o carro vem, e o helicóptero passa por cima. Aí, eu digo: “Malebra, é o seguinte, cara, vamos ser presos aqui nesse mato não, porque se a gente for preso nesse mato, os caras matam a gente. Vamos para a cidade, que no meio do povo eles podem prender, mas não matam”. Aí, de lá nós montamos uma estratégia, mandamos um carro ir buscar, fomos para Parauapebas, passamos dois dias no Parauapebas. Daí lá eu mandei comprar uma passagem, o Malebra ficou no... Lá a gente separou, no Paraupebas. Aí, mandei comprar uma passagem, furei o sistema de segurança da Rodoviária, entrei numa van, quando o motorista entrou no carro, nem sabia qual carro que ia sair, quando ele abriu a porta, eu já estava lá dentro. “E, aí?” “Você largou a porta aberta, entrei, tô te esperando, passagem já está na mão. Bora!” “Bora!”. Aí, entrou mais passageiros, Marabá. Quando cheguei na Rodoviária do 6, sai pelo fundo, eu vou passando devagar, aí tem um hotel, do lado esquerdo, que é do meu irmão. E aí, já tinha um sobrinho meu me esperando lá para poder me levar embora. Aí, com quem eu dou de cara? Com o Cicinho. O Cicinho me olhou assim: “Tu tá doido? O que que você faz aqui, rapaz? Estão te procurando aí pra tudo que é canto. Tu quer ficar aonde? Quer ficar aonde?” Digo: “Me botando…” “Entra no carro, entra no carro”. Ele tinha uma F1000 preta. Aí, entrei. “Me deixa no hotel.” Quando nós encostamos em frente ao hotel, meu sobrinho já chegou no outro carro. Só mudei de um carro para o outro. Que aí eu atravessei Tocantins, fui para a Morada Nova, fiquei dois dias lá, deu duas entrevistas, contando a história, como é que era, para o pessoal ter noção de como é que estava a coisa. Sempre tem os parceiros que vão lá para fazer o trabalho. E aí, mudei a barba, cortei o cabelo. Estava barbudo, diminui a barba. Aí, eu estou lá, mandei o barbeiro ir lá onde eu estava, o barbeiro da minha confiança, para fazer o trabalho. Quando termina o trem. “Não, está decretada a preventiva, vasa, já souberam que você está por aqui”. E aí, um amigo meu tinha matado um jacu. Não posso sair sem comer a porra desse jacu. Os caras lá tem toda uma rede de parceria, né! Aí, eu fui lá, comi esse esse jacu. Eu digo: “Quem me tira?” Aí, o Rogério disse: “É comigo Etevaldo, vou levar, onde quer ficar?” Apontei o lugar, e ele foi me deixar. Esse bicho, ele é fodido, ele é evangélico, mas ele era o cara que… Ele passava aquela ponte toda do Tocantins numa moto numa roda só, do jeito que ele entrava, fazia o L ali, aquela….. Ia sair lá do outro lado. Sem tomar uma… “Aquilo deve estar doido, maconhado, embriagado”. Não, ele nunca fumou, nunca bebeu. E ele ainda é protestante, mas ele é o bicho, tanto em carro, quanto em moto.
P/1 - Vou voltar para sua fuga, você estava em Morada Nova?
R - Pronto? Não, aí, estava em Morada Nova, pedi que alguém me levasse, me tirasse, o Rogério se propôs, e nós fomos para uma fazenda de um amigo meu próximo à Mata dos Índios, município de Nova Ipixuna, Bom Jesus. E lá eu fiquei uns 40 dias. Até que… O doutor Rodrigo estava preso e ele acabou sendo dado, ele estava cumprindo o direito dele de exercer a profissão de advogado. Aí, nós mobilizamos o Frei Henri, mobilizamos muita gente, o movimento muito importante, que foi um parceiro, é sempre um parceiro muito grande. E aí mobilizou o Frei Henri, o Frei Henri entrou em contato com a OAB de São Paulo, que entrou em contato com a OAB do Pará, conseguiram tirar o doutor. Doutor Rodrigo Maia, Ribeiro Maia. E aí, saiu ele, saiu os demais. Aí, vim embora! Vim de volta para cá. Mas isso durou muito tempo, essa perseguição. Aí, fizemos entrevistas. Aí, depois foi acontecendo uma série de coisas. Isso acabou levando a um grupo de pessoas virem pra cá, ocupar a frente da Colossus, mobilizar, veio o Deputado Arnaldo Jordy, Wander Cocke Gonçalves, deputado federal do Pará. O Arnaldo Jordy, também é do Pará. E um deputado federal do Maranhão, Domingos Dutra, do Maranhão. Isso acabou encorajando também os garimpeiros, que já percebendo que a Colossus estava enganando, era um engodo aquilo. Eles acabaram se juntando, se reunindo, e tiraram a Colossus. A Colossus acabou indo embora, na verdade. Ninguém tirou a Colossus. Eles, imagino eu, que eles alcançaram o objetivo econômico deles, e bateram em retirada sem levar nada, largaram toda a estrutura montada e foram embora.
P/1 - Esse processo da revolta com a morte do Professor João de Deus, e a saída da Colossus, foi em que período?
R - A morte do professor aconteceu em 2013. Qual o problema? O que ocasionou? Os moradores, tanto os moradores de Serra Pelada, quanto os proprietários de terra no entorno da estrada de Serra Pelada ao 16, não estavam mais suportando a poeira, a nuvem de poeira. O excesso de carro, a poeira em casa, a poeira para os animais, o capim todo empoeirado, os animais comendo o capim, mais terra do que capim. E ninguém conseguia andar à vontade. E aí, foram vários ofícios para a Vale, para a prefeitura, para asfaltar a estrada. Ou no mínimo, colocarem um carro pipa para ir molhando, para evitar aquela poeira. E eles não fizeram. Acabou acontecendo esse acidente com o Professor João de Deus, e isso levou a comunidade a se revoltar e fechar as estradas, e não permitir que os carros da Vale e da Colossus passassem. Então, naquele período só passavam os carros de moradores, dos fazendeiros. Mas carro de empresa não passava. Foi quando veio a polícia, teve uma ordem, o comandante, comandante Gledson veio para desobstruir, fez um combinado com os garimpeiros. Depois ele desrespeitou esse combinado, bateu em pessoas, prendeu, machucou pessoas, levou gente preso. Daí houve uma revolta, em que o Ataliba acabou comandando essa revolta, levou os garimpeiros para Via, destruíram basicamente tudo que tinha na via, que era uma empresa empreiteira da Vale. E de lá ele saiu também, quebrou a porta do sindicato e da associação de moradores, e foi enfrentar a polícia militar na delegacia. No dia seguinte, a polícia veio, prendeu o advogado, prenderam mais oito pessoas, que ficaram provavelmente aí, uns 40 dias presos. E isso aí foi aumentando a revolta das pessoas contra a Colossus, e Vale, mas acabou que só a Colossus sofreu as consequências. Revolta dos garimpeiros, mas era com a Vale. Embora essa mobilização, que ocasionou esses danos na via, ela foi causada basicamente pelos moradores, e não pelos garimpeiros, que vivem fora da comunidade. Então, foi uma ação basicamente dos moradores. Lá tinha mulher, tinha crianças, idosos. Enfim. Tinha comerciantes, tinha proprietários de terra. Então, essa foi uma revolta popular.
P/1 - A Colossus saiu que ano daqui?
R - A Colossus saiu em 2014.
P/1 - Agora assim, essas duas ações que você contou, a derrubada do telão e essa revolta, você e os seus companheiros consideram como uma vitória ou como um episódio marcante da política daqui?
R - Não, episódio marcante, mas é uma vitória. Por que a vitória? Porque esse telão prendia um grupo de moradores onde os outros não poderiam acessar. Para acessar teriam que se identificar, o compadre para visitar o afilhado, a comadre. Ele tinha que passar por uma guarita, onde ali era identificado pelos servidores da Vale, pelos guardas da Vale, e tinha hora marcada para ir, período determinado para voltar. Então, com a derrubada desse telão, e para nós aqui é como se fosse para os franceses a derrubada da Bastilha. Onde as coisas voltaram a funcionar de forma mais democrática. Então as pessoas passaram a ter o direito de ir e vir na hora que quisessem. A paralisação da estrada, por mais que demorou de 2013 a 2024, mas acabou vindo a conquista da estrada, do asfaltamento da estrada onde hoje as pessoas trafegam com mais liberdade, com mais facilidade, independente de sol ou chuva. Então, para os moradores acabou a poeira e acabou a chuva, e para os fazendeiros acabou a poluição dos seus pastos, onde acabava adoecendo as famílias dos trabalhadores, os próprios donos de fazenda, mas principalmente os animais, que acabavam se alimentando do capim que tinha mais poeira, mais terra, do que propriamente alimento. Então, foi uma conquista para o povo, para o povo da região.
P/1 - Me conta uma coisa: a gente não vai conseguir entrar muito em detalhes de tudo, mas assim, hoje, em 2024, como é que você pensa, você vê a situação de Serra Pelada com relação a Vale, ao poder público? Os garimpeiros, as cooperativas ou a cooperativa, como é que está o estado das coisas hoje, como você vê?
R - Eu vejo três etapas, três momentos aqui para o momento atual. É o primeiro momento da comunidade, hoje moradores em si, é o melhor momento deles, asfalto na estrada para eles irem e virem, ruas asfaltadas ou concretadas, escolas de melhor qualidade. Que é algo contrário, porque a Vale mudou a estratégia. Em 1996 a Vale propôs derrubar as casas e as escolas. A Vale chegou a derrubar três escolas aqui, então foi o único lugar no mundo que eu conheço derrubando escolas. Até na Faixa de Gaza, quando derruba uma escola, o mundo todo se revolta, questiona. Aqui em Serra Pelada era o Estado que derrubava as escolas e as casas? Então, para a comunidade hoje, para os moradores, a comunidade hoje vive o melhor momento da história. Para o garimpeiro em si, esse é o pior momento, o garimpeiro está perdendo a sua identidade, a Vale está cooptando parte dos garimpeiros, os filhos dos garimpeiros, os netos do garimpeiros. Isso é chamada cooptação branca, que é quando o sujeito dá emprego, oferece algumas facilidades, alguns questionamentos, para facilitar a vida deles. Isso no nosso entendimento é chamada cooptação branca, onde compra de forma bem sutil a liberdade e o direito dessa pessoa se expressar contra à empresa. Então, esse é o pior momento para os garimpeiros, para as cooperativas, porque as cooperativas se os garimpeiros se renderem a Vale do Rio Doce, as cooperativas, basicamente, vão ficar sem opção de funcionamento. É politicamente péssimo, o pior momento político. Por que? O segundo prefeito da cidade foi o João Chamon Neto, ele doou Serra Pelada durante 20 anos para a Vale do Rio Doce. Essa doação do João Chamon, acabou ocasionando a chegada do exército aqui dentro, da polícia federal, tomou de assalto Serra Pelada em 1996, baseado nessa doação que o então prefeito João Chamon Neto, fez parceria com a Vale e o estado para tirar o garimpo dos moradores daqui. Aquilo acabou acontecendo na marra. Hoje eles fizeram o contrário. O prefeito, 12 anos depois, foi o filho dele, o Anderson Chamon, e o Anderson Chamon fez uma parceria com a Vale, e Serra Leste veio a funcionar, conseguiram cooptar parte dos garimpeiros, e Serra Leste veio funcionando. Com o funcionamento da Serra Leste, a cooptação passou dos garimpeiros para os filhos e netos dos garimpeiros, que são os serviçais da Vale hoje. Esses serviçais defendem muito mais a Vale do que a própria família. Então, isso é péssimo! E piorando ainda veio o Chamon, o Anderson Chamon, que fez essa parceria, ficou 4 anos fora do governo, a esposa dele, a Mariana, assumiu, tem feito um trabalho para a comunidade excepcional. Não pode se questionar. Melhorou a escola, criou-se o asfalto, melhorou as vielas da rua, que era um buraco e lama e poeira, hoje já mudou. Mas ao mesmo tempo criou um feltro, uma… O que poderíamos dizer que criou um vínculo familiar dominante. Quem passou primeiro foi o pai, 4 anos, foi o pior de todos. Aí, depois veio o filho, Anderson Chamon, péssimo para a comunidade garimpeira. E agora a Mariana, que tem feito bastante coisa para os moradores, para a comunidade garimpeira, não. Esse é o fechamento… Eu costumo dizer assim, é o enterro. A Mariana de forma muito sutil, está tapando a cova que o João Chamon abriu, que o Anderson Chamon, jogou, os garimpeiros, e ela de forma muito sutil, está colocando a lápide em cima. Então, pra mim, politicamente, esse é o pior momento de Serra Pelada, e da região também, porque quando a gente vai avaliar, a maioria dessas cidades surgiram através de Serra Pelada. Eldorado, Curionópolis, o próprio Parauapebas se desenvolveu com a chegada do garimpeiro. Os movimentos sociais se encorparam via garimpeiro. Então, tudo isso, com essa pá de cal que está sendo jogada de forma muito sutil, e aí, tomaram corpo político, politicamente. Tanto que o Anderson Chamon está indo virar prefeito em Marabá, e provavelmente vai ganhar, vai ser eleito. É bom para o povo de Marabá? Talvez! Tenho minhas dúvidas. Tenho minhas dúvidas. Até porque essa é a divulgação e o crescimento da mineração clandestina, da oligarquia familiar dentro da mineração. Então, é um feltro, uma coisa da família, que vem para cá pelo garimpo. Se a gente for avaliar os antigos de Marabá, a família Mutran, uma das piores famílias que já teve nessa região, que mais matou gente. Veio atrás dos diamantes do Rio Tocantins. Os gringos, a família do Chamon, veio atrás dos diamantes da Cachoeira do Lourenção. Então esse povo, eles já vieram para cá, os antepassados, já matando e roubando os garimpeiros. E agora isso está se fechando com essa nova geração dos herdeiros da miséria.
P/1 - Nessa perspectiva, o que você pensa para esses três pontos que você dividiu? O que você pensa que daqui 20 anos vai estar a comunidade garimpeira, poder público, a Vale, e colocaria como quarto elemento também?
R - É bem interessante pensar nesse futuro. Eu acho que é um futuro sem futuro para a comunidade. É um futuro muito próspero para os donos do poder. Então, o poder público está sendo dominado por algumas famílias, algumas oligarquias, bem poucos, que estão dominando a mineração, dominando a política, o poder público está todo na mão deles. Então, fica até difícil de se imaginar. O povo vai se rebelar em algum momento? Talvez! Mas com o trabalho de cooptação feito pela Vale e pelos representantes do poder público, que são hoje os chefes de família da oligarquia da mineração. O poder está todo na mão deles, dificilmente eles vão perder esse poder. Ele, talvez daqui a 20 anos perda, mas daqui até lá, esse povo aqui, em sua maioria já não existe mais. [intervenção] Então, fica assim, algo difícil de prever. O que vai ocorrer com esse povo daqui 20 anos. Mas não vejo muita coisa boa não. A não ser que haja uma mudança que a gente não vê. É um túnel que a gente não vê a luz lá no fim. Tipo o túnel que a Colossus deixou. É um túnel sem luz, um buraco que você não vê a saída do outro lado. Só porta de entrada, você tem que ir e voltar pelo mesmo lugar, você não vê uma saída no fim do túnel.
P/1 - A gente falou de um momento que eu foi quando eu conheci o senhor, no seminário. Havendo alguma forma de guardar uma memória, e comunicar essa memória de Serra Pelada para fora, para o Brasil, pro mundo, como é que o senhor acharia que deveria ser feito esse processo, esse museu? Que história seria contada? Quem iria contar isso?
R - Em todos os lugares, cada um é uma história, independente de onde esse indivíduo esteja, cada uma é uma história. E a história de Serra Pelada, ela será contada, ela está sendo contada de várias formas. Existem aqueles que acham que é uma mil maravilhas, que sempre foi maravilhoso. E existem aqueles que questionam toda essa situação, da maneira como ela se procedeu, como ela deu, como ele está se dando, e onde vai chegar isso. Então, eu vejo em cada um uma história. Qual seria a maneira exata, é buscar informações de várias pessoas. Fazer entrevista com várias pessoas. Cada um juntar, contar uma história, e depois tentar juntar todas essas histórias em um roteiro único. As verdades de cada um, fazer o contraponto com cada um. Porque dependendo de como cada um conta a história, você vai perceber para que lado está mais tendencioso a verdade, pra que lado está mais tendenciosa a mentira, ou enganação. Porque às vezes o povo, às vezes, o povo não está mentindo, ele está só enganado, pra ele, a verdade que ele conhece, a verdade que ele tem, não é a verdadeira verdade. É a verdade manipulada, oculta. Então, é interessante que se busque vários indivíduos, com várias… com opiniões diferentes, divergente pra que a gente possa fazer uma opinião de tudo isso aqui e tentar buscar uma história que equivale a realidade.
P/1 - Então, diversos pontos de vista e vamos ver o que…
R - Onde chega um denominador mais aproximado à verdade. E falta muita gente que conhece muito, pra poder ser entrevistado. E pra mim um dos indivíduos que precisa ser entrevistado, e eu deixei marcado naquele dia. É o Fernando Marcolino. Se vocês conseguirem uma entrevista com Fernando Marcolino, ele sabe muito, muito, porque ele é o cara que montou o Sindicato dos Garimpeiros, ele o cara que ajudou a montar a Associação de Moradores. A Associação de Moradores já foi montada com a chegada das mulheres. Mas para essas mulheres virem para cá, foi uma ação muito forte do sindicato. Então, o Fernando, Fernando Marcolino, tenho minhas divergências com ele, é meu amigo, mas daqueles amigos que aqui, acolá, você está batendo de frente, e é necessário isso. Mas ele é um cara que tem uma história muito grande. Ele participou de tudo aqui. Já foi ameaçado de morte, já esteve preso, cumpriu pena, em 1996, quando Aurino foi preso, quando o carioca foi preso. Quando o exército invadiu Serra Pelada, em 1996, prenderam várias pessoas. Ele conseguiu fugir, mas foi preso posteriormente, então dada essa prisão dele é que os demais foram soltos. Tipo, prenderam advogado, soltaram advogado, tiveram que soltar os outras. Prenderam o Fernando Marcolino, já tinha um monte, ele foi o último a ser preso, mas depois que prenderam ele, por causa dele houve uma mobilização nacional, e para soltar ele, tiveram que soltar também os demais. Então, ele é uma pessoa que tem muita, muita história. História de verdade. E era uma adversário natural do Sebastião, o famigerado Curió.
P/1 - Aproveitando o ensejo, que o senhor falou da Associação de Moradores, das Cooperativas. Conta pra mim um pouco, qual é a história das Cooperativas aqui? É uma história que pouca gente consegue entender, porque tem muitos episódios. Tem muitas cooperativas, né? Como que se deu essa história para o senhor? E quais foram as ações principais que as cooperativas tiveram na história? Para o bem e para o mal?
R - Pra gente tentar entender isso, nós vamos ter que voltar lá na lei do cooperativismo. A lei do cooperativismo, a lei 5764, ela foi criada em 1971, ainda na ditadura militar. E Serra Pelada foi controlada pelo SNI, sob o jugo do Sebastião Curió, Sebastião Rodrigues de Moura, Doutor Fachin, Doutor Lucini, um monte de nomes que não dá de saber exatamente o nome verdadeiro dele. Quando o SNI saiu, percebendo o fim, começando chegar o fim da ditadura militar no país, naturalmente que o exército, o SNI, iam largar, perder o comando disso. E eles imaginaram que a forma de se saber quem era, como controlar isso, seria via uma cooperativa. A COOGAR, que é a primeira cooperativa criada, surgida em Serra Pelada, talvez ela seja uma cooperativa única no mundo que foi criada tipo um projeto de lei. Não foi uma cooperativa que o garimpeiro criou. Foi uma cooperativa que criaram para o garimpeiro e botaram lá o cabra para tomar de conta. O Sebastião foi quem criou, ele que cuidou. E com um detalhe, naquela época, o Incra é que era responsável pelo cooperativismo. Então, se criava uma cooperativa, você tinha obrigação de fazer uma relação de pessoas e dar para o Incra, o Incra que dava a última palavra para poder isso acontecer. Então, Serra Pelada, é algo assim, que foi acontecido desta maneira. Aí, criou-se a COOGAR, e aí passaram todas as mazelas deixadas pelo exército, tipo, o assoreamento da região, o envenenamento da Grota Rica e do Rio Sereno. Todo esse processo aconteceu na época do governo militar. Com a retirada deles, a cooperativa assumiu também, assumiu a culpa. Não sobrou ativo para a Cooperativa, sobrou passivo. Mas mesmo assim, essa cooperativa foi dada como gestor o senhor Geraldo Dantas, que foi o primeiro presidente da cooperativa. E tirou, o Geraldo percebeu que não era uma cooperativa de verdade, era de fachada, o Geraldo Dantas abriu mão, e no lugar dele assumiu Marquinhos, que era chamado de Doutor Marcos, que também não era doutor coisa nenhuma. Era mais um bate-pau do Curió. E ele tocou essa cooperativa até bem adiante, depois foi para o Doutor Alexandre, que também não era doutor, era dos homens… Então, essa cooperativa foi controlada pelo Curió a vida toda. Aí, depois veio o João Batista, veio o Zequinha Rocha. E aí, esses indivíduos quando assumiram, já não tinha mais condição, já estavam duros. Eles já não tinham mais condições, o controle, e nem como fazer as coisas, porque já não tinha o dinheiro da cooperativa, já tinha acabado a maior parte, então não tinha mais capital para fazer um movimento. Aí, foi quando eles montaram a cooperativa, usaram o dinheiro que tinha, depois abandonaram a cooperativa e abandonaram o garimpo. Em 1989, surgiu a segunda cooperativa. Essa que nós estamos falando, a COOGAR, surgiu em 1984, final de 1983 para 1984. Em 1989, surgiu a COOMPRO, Cooperativa dos Garimpeiros Proprietários de Catas de Serra Pelada (Cooperativa de Mineração e Agromineral dos Garimpeiros Proprietários de Catas De Serra Pelada). Essa cooperativa entrou com requerimento, fez alguns requerimentos. Alguns requerimentos só vieram a ser concedidos já… Foi criado em 1989, primeira concessão de lavra garimpeira foi feita em 2006. Então, você vai imaginar aí que 1990, 2000, 30 anos, quase, 20 e tantos anos depois. Então, assim, tem como alguma categoria sobreviver 30 anos aguardando? Mesmo assim, essas concessões acabam entrando em desuso, dada a falta de financiamento do Estado. Mas por que foi bom? Depois da COOMPRO, surgiu a COOMASE (Cooperativa Mista Agro Mineral Do Rio Sereno), fundada pelo Luisão. Daí depois surgiu COOMISPE (Cooperativa dos Garimpeiros dos Minérios de Serra Pelada), depois surgiu, COOMIC (Cooperativa Mista do Garimpo da Cutia), da Cutia, Cooperserra, Cooperserrado (Cooperativa Agromineral dos Garimpeiros do Serrado). Qual a vantagem dessas cooperativas? Porque juntas elas acabaram fazendo um enfrentamento e um debate junto ao governo federal, junto ao DNPM, onde foi possível que o governo passasse algumas concessões de lavra garimpeira, e também concessões de extração mineral. Então, a criação dessas cooperativas foi muito importante para poder fortalecer e dar dinamismo às lutas que haviam aqui dentro. Sempre respaldado também pelo sindicato. O Sindicato dos Garimpeiros foi muito importante nesses processos. Tanto que os Curiolanos não gostam do Sindicato. Curiolanos não gostam nem desse, nem de sindicato nenhum.
P/1 - A COOMIGASP está nessa história?
R - Aí, a COOGAR virou COOMGASP, que depois virou COOMIGASP. Com uma diferença, que a COOMIGASP foi criada pelo Curió, e ele acabou não fazendo o processo legal de sucessão, e isso acabou criando uma demanda que perdura ainda hoje, entre quem é o dono desse CNPJ, se é a COOGAR, se é a COOMIGASP. Enfim, acabou ampliando a confusão que na verdade é o que eles gostam. Quanto mais demanda, quanto mais divergência, melhor para o Estado.
P/1 - Como está a administração da cava em si? Ela está na mão de quem? Só para a gente entender.
R - COOMIGASP. Que está em briga com a COOGAR para poder assumir o comando.
P/1 - Entendi! Então, há uma divergência grande entre os próprios garimpeiros?
R - Sim!
P/1 - Questão da Colossus tem a ver com isso também?
R - Sim! A Colossus ampliou essa briga aí. Porque quando a Colossus veio, o nome era COOMIGASP, a concessão foi passada para o COOMIGASP. E um grupo que não se filiou à COOMIGASP, passou a divergir, permaneceu na COOGAR, passou a divergir com a COOMIGASP. Isso tem criado essas intrigas que amplia no dia a dia.
P/1 - Então, em tese haveria a possibilidade dos garimpeiros em seus diversos grupos organizarem alguma extração, ou não, hoje?
R - Sim! É possível. Inclusive…
P/1 - Passa pela Vale ou não passa?
R - Não. Porque como funcionam as cooperativas? As cooperativas elas não estão na mesma área, é como se fosse um grande, uma vila, uma cidade, com seus quarteirões, seus bairros, cada um tem o seu domínio. Então, a área da COOMIGASP é uma, a área da COOMISPE é outra, a área da COOMPRO é outra, e cada uma tem a sua concessão e vai tentar buscar, fazer o seu trabalho.
P/1 - Naquela área?
R - Naquela área pré-estabelecida pela concessão.
P/1 - Entendi! E a da cava, que é um lago hoje em dia…
R - Está sob o comando da COOMIGASP. Aquilo ali pertence a cooperativa mais antiga, COOMIGASP, COOGAR, uma ou outra, o direito pertence a uma delas.
P/1 - Entendi! E há o que você acha que se deve essa divisão que acontece o desentendimento, enfim?
R - Quando o Curió veio, quando o estado ocupou o controle da mina, a ideia deles era não manter o garimpeiro, era tirar o garimpeiro daqui. Então, eles implantaram a divisão, porque as duas cooperativas foram criadas pelo Curió, tanto a COOGAR, como a COOMIGASP. Hora, se ele criou uma e depois criou a outra no meio, eles não eram os caras donos de tudo?
P/1 - Vamos tentar finalizar. Voltando um pouco no tempo agora. Me fala um pouquinho de pessoas que você acha que devem ser registradas, a memória que você tem dessas pessoas. Gostaria de falar um pouquinho dos seus companheiros que você conheceu ao longo dessa estrada toda. Quais são os seus melhores amigos que você fez aqui nesse período todo, as pessoas?
R - Cara, meus melhores amigos é a minha família, meus irmãos. Tenho bons amigos aqui, que se ampliou pra vida também, mas os melhores e os confiáveis, os mais confiáveis, são os meus irmãos. Mas dado a história de Serra Pelada, eu tenho amigos, tenho parceiros espalhados no Brasil inteiro, se eu voar São Paulo, eu tenho, se eu estou no Rio de Janeiro, se eu for para Roraima, Rondônia. Enfim, para qualquer lado que for a gente tem parceiros. Fica difícil citar algumas pessoas específicas. Por isso eu prefiro dizer que é a família, nós somos quatro irmãos, mas o meu pai também, que faleceu, faleceu mas também era garimpeiro. Aí, tem o outro mais velho que é garimpeiro, não se envolve na questão, mas também é sócio, cooperado. Então, tem toda essa história aí, que fica difícil dizer quem são os principais. Voto a dizer assim: “Minha família é o sustentáculo, que tem mantido a gente, colabora para a gente estar vivo”.
P/1 - Agora eu queria perguntar algumas coisas que são curiosidade de muita gente, eu acho, assim, o senhor pode me contar. Com relação a vida do garimpeiro aqui, durante o auge da mineração, e logo depois também. Você falou dos barracões, você falou um pouquinho de se divertir. O que vocês faziam nessa época para relaxar? Que entretenimento tinha aqui?
R - Aqui não tinha mulheres, não tinha crianças. O entretenimento aqui era o telão, que passava filmes, e o jogo de dominó. Porque o baralho era proibido, jogo de azar, entre aspas, era proibido. Então, aqui à tarde, a ideia era assistir filmes, que era posto, era na praça pública, e durante aquele período ali do filme, no início, havia também algo que era muito interessante pra gente. Pra mim que gostava de ler, era a troca de livros. Então, a gente ia, quem gostava da leitura, ia mais cedo, sentava num cantinho, levava seus livros, e ali a gente acabava trocando livros. Isso foi uma forma de consumir o tempo, de ocupar o tempo. Mas diversão mesmo… Futebol, mas era dois campos, uma quadra, para todo mundo. E a quadra era específica da Polícia Federal, você só jogava depois que eles cansavam. A polícia federal, a polícia militar, então o comando era que usava aquela quadra ali.
P/1 - E quais livros você leu? Você já falou um pouquinho. Mas quais livros você leu durante o garimpo, que você acha que foram importantes pra você?
R - Ah, difícil lembrar! Mas Allan Poe, Nicolau Maquiavel, Platão, Nicolau Bakunin, olha que trem interessante, pouca gente lê Bakunin, mas Bakunin é um livro assim, super show, muito bom, eu li ele aqui, depois eu tornei ler ele lá fora. Então, assim… Li Marx, eu li… Tento lembrar…
P/1 - Tudo aqui, durante…
R - Durante esse período aqui. Então, durante todo aquele período… Foram várias coisas. Mas tento lembrar aqui de uma coleção, uma coletânea, que eu li ela praticamente toda aqui, que foi… Francês rapaz, escreveu quase uma enciclopédia, vários…. Enfim, acho assim, a melhor coisa que tinha aqui era o tempo de sobra para ler, embora eu não consiga recordar os livros, mas basicamente era… Eu gosto muito de filosofia, de sociologia, então li muito sobre isso. Mas li Dante, li Santo Agostinho. Enfim, alguns desses. Mas o que mais se lia era o bolsa livros, isso era fato, bolsa livros.
P/1 - Tem então só mais duas perguntas, dado a hora, o tempo. A primeira é assim, penúltima. Você tem algum sonho hoje em dia? Tem alguma ambição, objetivo?
R - O grande sonho é ver isso funcionando para o benefício do garimpeiro. Esse é o sonho. O outro sonho, esse está acontecendo, é estar vivo. Passar por uma série de coisas que nós passamos, e estarmos todos vivos, todos os irmãos, todos os amigos mais próximos. Sobreviver a todas essas crises, então isso é o mais importante de tudo que aconteceu. Mas algo que nós não falamos aqui, que foi o massacre da ponte. O massacre da ponte ocorreu em 1987, e foi algo inédito, que ele foi conduzido e coordenado por um policial federal. Primeira vez na história que eu ouço dizer que um policial federal coordena uma mobilização pública contra o Estado. Porque na verdade ele armou uma arapuca para o povo, foi a partir daquilo ali que o garimpo de Serra Pelada parou. Pós-Natal, ele convocou o povo, organizou o povo, e levou para cabeceira da ponte no Rio Tocantins, e ali acumulou uma quantidade enorme de pessoas, no dia 29 de dezembro de 1987, a polícia chegou para desmobilizar, e matou muita gente, prendeu muita gente. E a partir daí, ninguém sabe o que aconteceu, mas o garimpo parou ali. O garimpo acabou fechando. Já foi fechar em 1989, mas a partir daquele ano, a partir de 1987, o garimpo nunca mais teve qualidade. Então, assim, foi uma grande armadilha feita pelo próprio Estado, pela Polícia Federal, para poder motivar a criação, o fechamento do garimpo. Mas isso, a pá de cal, foi exatamente o governo Collor de Mello, quando transformou Serra Pelada em Patrimônio Histórico Nacional. Então, aquilo ali foi exatamente esse momento crucial, onde acabou com tudo.
P/1 - O que o senhor achou de contar um pouco da sua história hoje pra gente?
R - Interessante. A gente recordar, sempre recordar, porque aqui também tem coisas que eu falei com vocês que eu nunca falei com ninguém. Tem perguntas que foram feitas por vocês que não foram feitas antes. Aí, no começo eu disse: o importante da resposta é a pergunta, dada a pergunta, vem a resposta, se busca essa resposta da melhor maneira possível. Então, o interessante mesmo foram as perguntas pra que eu pudesse buscar essas respostas.
P/1 - Maravilha! O senhor gostaria de falar mais alguma coisa, uma mensagem para o futuro? Alguma coisa que você não falou? Que eu não perguntei também?
R - Gostaria talvez de deixar uma mensagem, seria interessante, principalmente para as crianças que estão acompanhando você nesse trabalho. O mundo só se transforma através da educação. Então, que todos tomem muita sopa de letrinhas. O que poderá consertar o mundo é essa comida aí, chamada sopa de letrinhas. Sabe o que é sopa de letrinhas? Mas se você tomar… Sabe? Ler! Você lê. É sopa de letrinhas. Quanto mais você lê, mais você aprende, mais você descobre um mundo diferente, coisas diferentes. Então, que leiam! Que largue um pouquinho o Zap Zap, que também gosto. Mas já li bastante, portanto aprendi. Não tenho faculdade, não me formei em nada, mas os livros me deram a oportunidade de conhecer o mundo sem sair basicamente de casa. Então, é importante que todos leiam. A leitura transforma a cabeça das pessoas.
P/1 - Obrigada, Senhor Etevaldo! A gente finaliza aqui!
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