O Silêncio Do Meu Canto
Quando vim trabalhar em São Tiago, foi com o Miguel, o prefeito na época. Vim sem planos grandes, sem mapas traçados, sem imaginar o que o destino estava preparando para mim. Vim como quem vem cumprir um chamado, mas sem saber direito o que buscava. Trazia comigo a pressa dos compromissos, a cabeça cheia de obrigações, e o coração ainda fincado em Belo Horizonte — minha terra natal, onde deixei raízes, histórias e um tanto de mim mesmo.
Eu era mais novo, mais inquieto, mais cheio de certezas do que de sabedoria. Acreditava que o lar era um só — aquele onde nascemos, crescemos, e aprendemos a reconhecer o som dos passos da família pelo corredor. Mas a vida, com sua delicadeza disfarçada de acaso, foi me mostrando que a gente pode criar novos lares. E que às vezes, longe de onde nasceu, a alma encontra o verdadeiro abrigo.
Foi São Tiago quem me ensinou isso.
No começo, confesso, eu a via apenas como mais uma cidade no mapa. Pequena, pacata, quase silenciosa demais para o ritmo que eu trazia de Belo Horizonte. Mas a cidade, com seu jeito sereno e seu povo de alma boa, foi me conquistando sem pressa — como quem se aproxima de mansinho, com um sorriso que não pede nada, apenas oferece.
As manhãs eram de uma doçura simples: o sino da igreja pontuando o tempo, o cheiro de pão fresco, o café fumegando nas padarias, e o canto dos pássaros anunciando o dia. Aos poucos, fui percebendo que o silêncio dali não era vazio — era paz. E essa paz começou a me preencher, a ocupar os espaços onde antes só cabia pressa.
Na prefeitura, vivi anos que não se apagam da memória. Vi prefeitos entrarem e saírem, cada um com seu jeito, com suas marcas, e com todos mantive respeito e amizade. Mas o que mais me tocou foi a equipe que me acompanhou. Gente honesta, simples, dedicada. Gente que acredita que servir é mais bonito do que aparecer. Ali, entre risadas, papéis, café coado e conversas que terminavam em histórias,...
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O Silêncio Do Meu Canto
Quando vim trabalhar em São Tiago, foi com o Miguel, o prefeito na época. Vim sem planos grandes, sem mapas traçados, sem imaginar o que o destino estava preparando para mim. Vim como quem vem cumprir um chamado, mas sem saber direito o que buscava. Trazia comigo a pressa dos compromissos, a cabeça cheia de obrigações, e o coração ainda fincado em Belo Horizonte — minha terra natal, onde deixei raízes, histórias e um tanto de mim mesmo.
Eu era mais novo, mais inquieto, mais cheio de certezas do que de sabedoria. Acreditava que o lar era um só — aquele onde nascemos, crescemos, e aprendemos a reconhecer o som dos passos da família pelo corredor. Mas a vida, com sua delicadeza disfarçada de acaso, foi me mostrando que a gente pode criar novos lares. E que às vezes, longe de onde nasceu, a alma encontra o verdadeiro abrigo.
Foi São Tiago quem me ensinou isso.
No começo, confesso, eu a via apenas como mais uma cidade no mapa. Pequena, pacata, quase silenciosa demais para o ritmo que eu trazia de Belo Horizonte. Mas a cidade, com seu jeito sereno e seu povo de alma boa, foi me conquistando sem pressa — como quem se aproxima de mansinho, com um sorriso que não pede nada, apenas oferece.
As manhãs eram de uma doçura simples: o sino da igreja pontuando o tempo, o cheiro de pão fresco, o café fumegando nas padarias, e o canto dos pássaros anunciando o dia. Aos poucos, fui percebendo que o silêncio dali não era vazio — era paz. E essa paz começou a me preencher, a ocupar os espaços onde antes só cabia pressa.
Na prefeitura, vivi anos que não se apagam da memória. Vi prefeitos entrarem e saírem, cada um com seu jeito, com suas marcas, e com todos mantive respeito e amizade. Mas o que mais me tocou foi a equipe que me acompanhou. Gente honesta, simples, dedicada. Gente que acredita que servir é mais bonito do que aparecer. Ali, entre risadas, papéis, café coado e conversas que terminavam em histórias, criei amizades verdadeiras — daquelas que o tempo não apaga, só fortalece.
E enquanto a vida seguia seu curso, São Tiago foi me adotando. Sem contrato, sem promessa. Me envolveu com o carinho silencioso das suas ruas, com o olhar acolhedor do seu povo, com o cheiro de terra molhada depois da chuva. E eu, sem perceber, comecei a me sentir parte.
Certo dia, minha irmã Beth, curiosa como sempre, me perguntou:
— “Você ainda quer ser enterrado em Belo Horizonte?”
Demorei a responder. Olhei pro horizonte, onde o sol se despedia atrás das montanhas. Respirei fundo, deixei o silêncio dizer o que as palavras custavam a sair, e enfim respondi:
— “Não, Beth. Eu quero ficar aqui. Pra quê voltar, se aqui eu fui aceito de verdade?”
Não é que eu tenha deixado de amar minha cidade natal. Amo-a profundamente. Mas o amor, às vezes, não é um convite de volta — é uma lembrança boa que mora dentro da gente. O que me prende aqui não é o esquecimento do que vivi lá, é o reconhecimento do que encontrei aqui: paz.
E quando a paz chega, a alma agradece.
Com o passar dos anos, fui redescobrindo coisas que estavam adormecidas em mim. A música, por exemplo, sempre me acompanhou, mesmo quando o trabalho e as obrigações me faziam deixá-la de lado. Agora, com o tempo mais brando e o coração mais manso, voltei a compor. Letras nascem de lembranças, de saudades, de olhares e silêncios. Falam de caminhos, de despedidas, de reencontros — e, principalmente, de recomeços.
Cada canção é uma conversa comigo mesmo.
Escrevo como quem reza, como quem agradece.
Não busco sucesso, não espero aplauso. Quero apenas que minhas músicas vivam. Que alguém, em algum canto, as ouça e se reconheça nelas.
E, junto da música, veio outra paixão que sempre me acompanhou em silêncio: a escrita.
Comecei a colocar no papel as histórias que carrego comigo — histórias de gente simples, de amores que o tempo não apaga, de cidades pequenas onde a vida ainda anda no ritmo do coração. Escrevo livros como quem planta árvores: sem pressa, sem pretensão, apenas com o desejo de deixar sombra para quem vier depois.
A escrita e a música se misturam dentro de mim.
São duas vozes que, juntas, me ajudam a entender o que vivi e o que ainda vivo. Cada palavra, cada verso, é um pedaço da minha gratidão por ter encontrado um lugar que me acolheu de braços abertos.
Hoje, quando caminho pelas ruas de São Tiago, cada rosto conhecido é um capítulo da minha história. Cada aceno é uma lembrança viva. Cada entardecer é um verso que o tempo escreve devagar, com tinta dourada.
Aqui, a vida se fez calma, mas nunca parada.
Aqui aprendi que o silêncio também canta, que a solidão pode ser companhia, e que o amor verdadeiro nem sempre grita — às vezes, ele apenas fica.
Por isso, se um dia perguntarem onde quero descansar, direi sem hesitar:
— “Aqui, onde a vida me sorriu de volta.”
E até lá, seguirei vivendo, escrevendo e compondo — porque São Tiago não é só o lugar onde eu moro.
É o lugar onde eu renasci.
São Tiago tem alma, tem cheiro, tem cor.
Tem o som doce da paz e o abraço silencioso da gratidão.
E agora, tem também minha voz, minhas palavras e meu coração inteiro.
Achillis Cheib
A Presença na Saudade
Muitas vezes me pego em silêncio, olhando para o nada, e a pergunta volta como uma onda: por que fiquei eu? Meus irmãos mais velhos partiram, os mais novos também, e hoje restamos apenas eu e minha irmã caçula Beth. Fico no meio dessa história como uma ponte: tenho atrás de mim aqueles que abriram caminho, e à frente os que não chegaram a percorrê-lo por inteiro. E no meio, entre o começo e o fim, fiquei eu — carregando um pouco de todos.
A saudade é um mistério. Ela aperta o peito de um jeito que quase sufoca. É como se o corpo se lembrasse da ausência antes mesmo da mente entender. Vem um vazio, um silêncio pesado, um nó na garganta. Mas, ao mesmo tempo, junto com essa dor, surge também uma presença. É como se cada lembrança fosse um reencontro: as vozes voltam, as risadas ecoam, as imagens se formam na minha frente como se fosse ontem. Eles não estão mais aqui, mas de alguma forma ainda me acompanham em cada passo.
Quando penso nos meus irmãos mais velhos, lembro deles como verdadeiras fortalezas. Eles foram meus exemplos, os que me mostraram como o mundo funciona. Eram protetores, às vezes duros, mas sempre com aquele cuidado que só um irmão e irmã mais velho tem. Lembro de um deles me levando pela mão quando eu era pequeno, me defendendo quando algum menino maior queria me intimidar. Lembro também de conselhos dados meio no improviso, frases simples que hoje ecoam com um peso enorme: “vai com calma, não se apresse, tudo tem seu tempo”. Eles me ensinaram que ser homem é também saber proteger, é carregar junto o peso dos outros.
Recordo-me das manhãs de domingo, quando acordávamos com o cheiro de café fresco e pão saindo do forno. Papai lia o jornal na sala, e eu ficava observando a forma como ele franzia a testa quando algo não fazia sentido. Mamãe chamava todos para a mesa com uma voz firme, mas cheia de carinho: “Vem, menino, o café tá esfriando!”. Eu corria para não perder o lugar ao lado dos meus irmãos mais velhos. E mesmo nos pequenos detalhes — o jeito que cada um colocava o guardanapo no colo, as migalhas que caíam no chão e eram recolhidas às pressas — havia vida, havia presença.
aquele brilho da juventude, cheios de sonhos e energia. Lembro-me de tardes inteiras de brincadeiras no quintal, perseguindo uns aos outros, jogando bola ou inventando histórias com gravetos que viravam espadas e escudos. Eles riam com um som tão leve que parecia não caber dentro da casa, e eu me perguntava se algum dia eu poderia guardar essas risadas para sempre. Quando partiram, levaram junto uma parte de mim que não volta mais. Mas, de certo modo, também me deram um presente: a lembrança deles me faz valorizar cada instante, porque sei que a vida pode ser interrompida de repente.
E então vem a memória de papai e mamãe. Eles foram raízes, porto seguro, terra firme. De mamãe, guardo o cheiro da comida saindo da cozinha, a panela borbulhando no fogão, o avental sempre amarrado na cintura. Lembro da mesa farta, porque havia amor em cada prato. Recordo dela passando a mão na minha cabeça quando eu chegava da escola cansado, ou quando me dava conselhos que eu só entendia muito tempo depois. De papai, guardo a firmeza. Ele não era de muitas palavras, mas cada gesto seu ensinava. Lembro dele chegando cansado do trabalho, mas ainda assim arrumando tempo para perguntar como estávamos, para ouvir nossas histórias, para corrigir quando precisava. Ele tinha aquele jeito de ensinar pelo exemplo: trabalhar sem reclamar, enfrentar a vida de frente, não se entregar às dificuldades. Às vezes o silêncio dele falava mais alto do que qualquer discurso.
E hoje, no meio de todas essas memórias, restamos eu e minha irmã caçula. Dois guardiões do que sobrou, duas testemunhas que carregam nas costas o peso e o privilégio de manter vivos todos os outros. Quando conversamos, não é só entre nós dois: é como se falássemos também com os que partiram. Uma palavra puxa outra, e de repente estamos lembrando de uma história, de uma festa, de uma frase engraçada. Lembro de uma noite em que ficamos até tarde, iluminando o quintal com pequenas lanternas, contando histórias de cada irmão e de papai e mamãe, como se eles estivessem ali sentados ao nosso lado, rindo e participando. Cada lembrança é como se acendêssemos uma vela no escuro — e assim, pouco a pouco, vamos iluminando de novo a presença deles.
Às vezes penso que esse é o motivo de eu ter ficado: contar, registrar, lembrar. Talvez minha vida seja o livro onde todos eles continuam existindo. Eu sou a voz que ainda pode falar por eles, o coração que bate em nome deles, a memória que insiste em não deixar o tempo apagar. Transformo a ausência em presença, o silêncio em palavra, a saudade em eternidade.
E assim sigo. Cada passo meu carrega um pedaço de cada um deles. Não quero que se percam. Quero que, enquanto eu viver, eles vivam comigo. Que, enquanto eu falar, suas vozes continuem sendo ouvidas. Que, enquanto eu escrever, seus nomes jamais se apaguem. A saudade dói, sim. Mas também é prova de amor. É lembrança de que existiu algo tão grande, tão verdadeiro, que nem a morte conseguiu apagar. A saudade me mostra que o amor não acaba, que a presença continua, que os que partiram ainda me acompanham, invisíveis, mas intensos.
Eu fiquei. E se fiquei, é porque carrego essa missão. Fiquei para que eles não desapareçam, fiquei para manter viva a chama da memória. Eles estão aqui, comigo: meus irmãos, meu pai, minha mãe. Cada lágrima que escorre é sinal de que continuam vivos em mim. Cada sorriso que surge ao lembrar de uma história é prova de que ainda estão presentes. E assim sigo, como homem, como irmão, como filho, como guardião da memória da minha família. Entre dor e ternura, entre perdas e esperanças, vou vivendo com todos eles dentro de mim. E enquanto eu viver, eles também viverão.
Achillis Cheib
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