Ler é uma atividade complexa. Constitui o movimento de construção do ser do sujeito, pelos seus modos de se apropriar do que vê, ouve, sente. Por isso, ler é o exercício responsável pelos saberes e conhecimentos deste mesmo sujeito. Por esta díade - saberes e conhecimento- são tecidas as histórias de vida. Estas são, deste modo, traçados para conhecer, outrossim, o sujeito e sua forma de lidar com a aprendizagem e seu desenvolvimento humano. Este modo de compreender a leitura ao ser lançado para os gêneros relativos às histórias de vida concorrem para o sentido de que “nada do que fazemos é trivial, porque somos um tempo presente em mudança” (Maturana, 2000, p. 95).
As histórias de vida trazem consigo uma refração do sujeito, fenômeno material e imaterial do compreender e do tornar-se sujeito nas interações. No trabalho organizado por Moraes, Navas e Mendes (2014), as histórias de vida são assumidas como caminho tanto para entender o modo como o sujeito aprende quanto para subsidiar fatos e instrumentos de aprendizagem. Assim tratadas, corroboram com um ensino e aprendizado tecido nos fios da teoria da complexidade, mostrando parte de um amplo espaço para dialogar com e sobre o sujeito, conhecer como ele entende e participa das relações com o mundo.
Com este olhar, este memorial em tecido bem como os desdobramentos dele nesta pesquisa abraçam algo que comparece de mais íntimo à minha existência que é o desejo, o gosto, o afeto por saber, por conhecer, por buscar me transcender nas descobertas advindas da teimosia pela curiosidade. Ao resgatar memórias dos saberes que me trouxeram até aqui, misturam-se tantas imagens, sons, luzes, perfumes, cores e sabores dos matizes culturais que vieram me constituindo. E que, por isso, também foram constituindo outras pessoas, outros seres e coisas com os quais convivi e pude ajudar a (des)construir, ao passo que fui sendo (des)construída por eles. A educação tem esta capacidade de...
Continuar leituraLer é uma atividade complexa. Constitui o movimento de construção do ser do sujeito, pelos seus modos de se apropriar do que vê, ouve, sente. Por isso, ler é o exercício responsável pelos saberes e conhecimentos deste mesmo sujeito. Por esta díade - saberes e conhecimento- são tecidas as histórias de vida. Estas são, deste modo, traçados para conhecer, outrossim, o sujeito e sua forma de lidar com a aprendizagem e seu desenvolvimento humano. Este modo de compreender a leitura ao ser lançado para os gêneros relativos às histórias de vida concorrem para o sentido de que “nada do que fazemos é trivial, porque somos um tempo presente em mudança” (Maturana, 2000, p. 95).
As histórias de vida trazem consigo uma refração do sujeito, fenômeno material e imaterial do compreender e do tornar-se sujeito nas interações. No trabalho organizado por Moraes, Navas e Mendes (2014), as histórias de vida são assumidas como caminho tanto para entender o modo como o sujeito aprende quanto para subsidiar fatos e instrumentos de aprendizagem. Assim tratadas, corroboram com um ensino e aprendizado tecido nos fios da teoria da complexidade, mostrando parte de um amplo espaço para dialogar com e sobre o sujeito, conhecer como ele entende e participa das relações com o mundo.
Com este olhar, este memorial em tecido bem como os desdobramentos dele nesta pesquisa abraçam algo que comparece de mais íntimo à minha existência que é o desejo, o gosto, o afeto por saber, por conhecer, por buscar me transcender nas descobertas advindas da teimosia pela curiosidade. Ao resgatar memórias dos saberes que me trouxeram até aqui, misturam-se tantas imagens, sons, luzes, perfumes, cores e sabores dos matizes culturais que vieram me constituindo. E que, por isso, também foram constituindo outras pessoas, outros seres e coisas com os quais convivi e pude ajudar a (des)construir, ao passo que fui sendo (des)construída por eles. A educação tem esta capacidade de modificação e de transformação mútua das pessoas.
Quando conheci a Estética da criação verbal de Bakhtin, a obra de Edgar Morin, e mergulhei nos escritos de Paulo Freire, o compromisso ético comigo me fez o convite de compartilhar o que aprendi na vida. Ao dar as mãos a Freire, senti a segurança que se ausentou de mim por muito tempo. A criança que me fazia brincar com tudo a adolescente inconformada com as injustiças ao povo humilde do interior de Minas Gerais, povo trabalhador que de sol a sol lutava para garantir o sustento de suas famílias e pessoas próximas.
Ao rememorar estes espectros da minha história de vida, remontam-me os ensinamentos de Paulo Freire de que a educação pode transformar essas realidades. Lançadas às luzes de Freire, consigo compreender que os acontecimentos da minha história vieram sendo motivos para eu buscar uma formação educativa mais séria, mais sistemática. Uma convocação para concluir os primeiros anos da educação básica e do ensino médio, bem como a graduação em Letras e os desdobramentos delas tanto na minha pesquisa de mestrado quanto neste doutoramento.
Para realizar a educação básica, eu e muitas outras crianças e adolescentes fazíamos juntos um percurso diário de resiliência de brincar com as coisas no caminho para que o corpo não se queixasse da distância, do sol quente, da poeira intensa no inverno, da chuva forte e dos seus raios e trovões no verão. Às vezes, podia contar com o cuidado de um guarda-chuva ou de um guarda-sol. Mas nem sempre.
Minha família era bem numerosa e nem todos nós tínhamos um deste. O jeito era, mesmo, contar com o abraço da natureza: no refúgio debaixo de árvores no meu caminho e/ou fazendo uma visita forçada às casas à beira da estrada até que a chuva se acalmasse e a natureza desse passagem àqueles pequenos peregrinos do saber e do conhecimento.
Era distante da minha casa até a escola: quatro quilômetros a pé para cursar os anos iniciais. Outros doze quilômetros de caminhada para dar sequência aos estudos nos anos finais e ensino médio. Tanto os anos iniciais quanto os anos finais e o primeiro ano do ensino médio foram realizados no vespertino e no matutino.
O segundo e o terceiro anos do ensino médio no noturno. Diante disso, hoje posso compreender que a distância no espaço relutava para que fosse também uma distância, da história na qual eu estava me formando naquele tempo com aquela que eu buscava e busco construir.
Na época do ensino médio, mais precisamente, quando cursei o terceiro ano, do dia de trabalho até a noite de estudos, era em si uma longa história. Durante o dia, ou trabalhava na roça de café ou como doméstica na casa da minha madrinha de batismo, alguém que sempre me estimulou a estudar mais. E, de fato, o trabalho de doméstica, o pouquinho da roça de café eram apenas passagens, memórias para eu buscar outras oportunidades de acesso à cidadania.
Algo que é da competência da escola: criar oportunidade para galgar novas histórias, validando e respeitando as memórias de vida à utopia distópica (Freire, 2016) como compromisso civilizatório. Por isso, os lugares onde estive não eram os lugares nos quais me via por toda a vida. Eu precisava ir além dali. Isso me exigiria esforço, transcendência, ruptura de paradigmas.
Convivi com crianças e adolescentes de garra, de resistência por uma vida mais digna. Resistência tão intensa que nos movia a quinze quilômetros a pé até a escola, todos os dias letivos. A quatro quilômetros até a igreja para participarmos da vida catequética onde podíamos apresentar teatros, brincar de roda e aprender a meditar enquanto fazíamos as orações da tradição católica.
Dada a distância de casa até a escola, saíamos bem cedo de casa para as aulas na educação básica. Meus irmãos de idades próximas à minha relutavam contra os estudos. Preferiram o trabalho à escola? Aliás, qual cérebro tem tanta energia para suportar a tarefa de estudar diuturnamente e trabalhar de sol a sol no campo? Logo, seria anti freireana a afirmação de que isso teria sido uma escolha deles?
Tinham tarefas marcadas na lida da roça e não podiam recusar a fazê-lo. Estavam ali os seus estudos, o espaço e os livros feitos de solos, enxadas e matas – daninhas ou não-, sementes e fertilizantes – naturais ou manipulados- para lerem e tirarem os seus, os nossos sustentos. Por isso, não conseguiam conciliar estudo escolarizado e a vida dura da leitura árdua do trabalho braçal.
Não por acaso, aprenderam a cuidar do campo, a plantar, a colher e a sobreviver do cultivo ali. Suas habilidades de linguagem matemática foram aprendidas na prática, negociando e jogando com as palavras para vender, comprar e cuidar de onde vivem para continuarem vivendo do que colhem no campo. Deste modo, suas criações de multissemioses também vieram dali, lançando mão de, selecionando e jogando com linguagens, modos de se comportar para viverem.
Viver é jogar com a linguagem, como, de certo modo, pensava Wittgenstein (1999). É, ainda que arriscado, talvez ousado, relacionar histórias, narrativas, elementos destas narrativas. Articular, equacionar fatores das leituras de mundo, com as leituras de obras – literárias ou não- do cotidiano e da lida dura – ou não. De tudo isso, a minha família e as minhas raízes mais tiveram acesso à leitura de mundo.
A escola, porém, não nos acolheu assim. Mas, a vida continua assistindo e se nutrindo do espetáculo que eles dão todos os dias nos palcos de terra e de mata. E para estar nestes palcos, às vezes lançam mão de agrotóxicos, porque plantar sozinho sem saber a quem recorrer é tarefa quase impossível.
Aqui falta a escola. Aqui falta aquela aula de levar o menino do campo na sala de aula e entender porque seu campo não pode ser regado com agrotóxico, porque ganhar dinheiro para sobreviver exige cuidado. Cuidado com este menino e cuidado com a terra. Usar recursos para a qualidade de vida na terra para manter a qualidade de vida do menino.
Aqui faltou a escola para ler com este menino um livro como “Vidas secas” de Graciliano Ramos (2013) e lhe permitir refletir no Fabiano desta história, refletir que é uma situação, um conjunto de acontecimentos ou até mesmo de pessoas com seus interesses que lhe impedem e lhe impediram de romper com a limitação cultural. Um conjunto de fatores que estariam sendo associados para lhe manter ainda mais distante de outras histórias de resistência e de ruptura do seu cenário de distância da escola.
E, assim, meus irmãos acabaram sendo motivados ao aprendizado do campo, não ao da sala de aula. Com este aprendizado, mantêm suas famílias, filhos que podem estudar na cidadezinha próxima ao lugarejo onde moram. Ou seja, se meus irmãos pudessem de fato ter feito uma escolha, muito possivelmente teriam escolhido a escola, como então o fazem para seus filhos. Muitos deles, inclusive, foram companhias que eu tive para também ir à escola.
O que impactou para que meus irmãos abandonassem a escola advém de muitos fatores, incluindo-se o desgaste de energia no trabalho braçal no campo. Seja por este motivo ou por tantos outros, mais de trinta anos depois dos eventos destas memórias, o abandono escolar ainda comparece no âmbito educacional brasileiro. A realidade que vem impactando meus familiares há mais de 30 trinta anos, ainda faz parte do cenário educacional Brasil afora.
Em 2022, eram mais de dois milhões de crianças e adolescentes fora da escola por imperativo também do trabalho infantil (UNICEF, 2022). Uma (i) lógica cruel: para que manter escolas e bibliotecas nestas escolas se as crianças estão nas roças de café, de cana, de tantos outros plantios? Esta ainda é uma realidade no país. Para que ensinar a ler outra coisa se o que essas crianças fazem é ler a roça, as ferramentas e como usá-las na roça? Esta ainda é uma ditadura da crueldade e do massacre do desenvolvimento de crianças em muitos municípios brasileiros.
Tal como aconteceu com meus irmãos, muitas crianças ainda hoje ficam sem acesso à escola. Ou porque precisam atravessar um rio, e não têm condição para isso; ou porque não contam com transporte escolar ou tantos outros fatores. Em virtude de tudo isso, que ainda perdura pelo Brasil, como não podia contar sempre com a companhia dos meus irmãos até a escola, eu costumava ficar na casa de algumas das minhas irmãs mais velhas para ir sob a companhia das minhas sobrinhas e sobrinhos. Éramos de idades bem próximas e nos dávamos muito bem. El e (as) iam todos os dias. E eu não gostava de faltar à aula.
Quando estava sol, levava pelo menos dois chinelos na sacola de material escolar, ou quando se tinha, levava um sapato. Um para chegar, todo empoeirado - mamãe não me deixava e nem a meus irmãos (ãs) andarmos descalços. Outro para calçar, bem limpinho, depois de lavarmos os pés na caixa d’água dos bovinos da pastagem, onde fazíamos um atalho para chegarmos à escola.
E chegávamos à escola de pés limpos e roupas secas sem odor de suor colorido pela poeira. Nem parecíamos ter cumprido uma romaria ou aos mais adeptos do esporte, uma maratona, até chegarmos à escola. Íamos de blusa do dia a dia até a caixa d’água. Dentro da mochila, uma blusa – quando havia mochila- a de uniforme bem limpa e passada na madrugada mesmo, antes de romariar ou de maratonar os quinze quilômetros.
Nos dias chuvosos, não era muito diferente. Entre a poeira de fazer lavar os pés na caixa d’água e de trocar uma blusa molhada de suor por outra de uniforme seca; e a chuva que ornamentava os pés com lama, quase não havia diferença.
Minha família, minhas irmãs sempre trabalharam muito no plantio e colheita no campo. Talvez fosse essa a cultura que me esperava também. Mas não era com ela que eu traçava planos de futuro. A curiosidade por outros mundos me movia e me move junto dos livros e da pesquisa. Meu desejo era o de saber ler, pesquisar. “Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte” (Rosa, 1994, p. 4).
Na roça, tive uma vida educativa permeada de curiosidades antes da escolarização, ainda que muito simples e humilde e de muitos limites para muita coisa, menos para a minha curiosidade e para a arte de buscar saber, que sempre me faz companhia. Onde não havia recurso financeiro, havia fartura de criatividade para criar brinquedos e material de estudo com o que a natureza oferecia ali na vida simples do interior.
Embora o chão de terra, a mata, a lida na roça sejam solo onde estou sustentada; não me continha de ficar por ali apenas. Havia, apropriando-me das palavras de Guimarães Rosa, outra parte do sertão por onde eu desejava e quero passar, outros linguajares onde eu desejava e desejo me banhar. Do freixo do Rosa, tomei a rosa, lancei mão dos seus espinhos e me banhei nos perfumes das pétalas. No sertão também é possível ver e plantar rosas.
Pois bem, Paulo Freire me mostrou que, naquele tempo de poucos livros lá no interior de Minas, de brincar no chão de terra e com plantas eu já estava lendo. Muito embora um longo tempo tenha passado, a realidade das escolas onde estudei e as demais escolas da vizinhança, ou não contam com uma biblioteca, ou aquelas escolas que tinham e têm uma pequena biblioteca resistem por conta própria para não perderem a biblioteca que têm.
Graças à gestão de freiras gracianas, com sua disciplina, a escola Estadual Padre Júlio Maria, em Raul Soares, interior de Minas, onde cursei os anos finais e o ensino médio relutava, resistia a muitas mazelas e sempre contou com uma biblioteca bem nutrida de livros. E ali eu de fato comecei a ler a literatura dos livros.
A semiótica social (Kress, 2003) teoria dos letramentos múltiplos (Rojo, 2009) e da complexidade (Morin, 2015) também me deram a oportunidade de conhecer que a escola me ensinou um modo de ler como alicerce da minha formação e que é preciso ir além disso. E que a vida, minha história de vida, fez parte deste alicerce assim como alicerça o olhar de muitos autores com esta mesma crença (Moraes, Batalloso ; Mendes, 2014). Dessa forma, antes mesmo de ir à escola, de ler o primeiro livro escrito, ilustrado com imagens e cores eu já lia e interpretava as coisas no peregrinar brincando pela estrada de chão, no brincar no campo, na terra, debaixo das árvores, com as brincadeiras e jogos que criava.
Ademais, minhas escolhas teóricas, ideológicas e vivenciais aqui neste estudo em qualquer outra situação da vida não são ocasionais. Elas têm uma motivação histórica, calcada na minha historicidade, nas linhas pelas quais eu e tantas outras pessoas comigo vieram tecendo a minha história. Não há como, portanto, desvincular o que sou, o que faço, minhas ações e reflexões da minha constituição subjetiva e coletivamente histórica, política, sociológica. Por isso, a semiótica social (Kress, 2003) mostra-se tão oportuna aqui.
Os signos, as semioses e multissemioses da minha constituição são histórica e socialmente situados. Ou seja, as várias formas de construir e de representar os sentidos de parte das minhas memórias estão atravessadas por uma série de outras tantas situações sociais e histórias que participaram e participam da vida comigo. Até mesmo aquelas situações que, porventura, eu não tenha participado ou me envolvido diretamente, em algum ponto da minha constituição me tocam, impactam a minha existência e a ressignifica de certa forma.
Sob estas luzes, minha história que nasceu lá no campo, minha árvore da vida que lá está, a luta no sol, na chuva, a distância entre a casa e a escola, a resistência e a resiliência participam social e politicamente das minhas escolhas. E, então, ainda que resistisse ir além da roça, ela estaria sempre comigo porque lá estão pessoas que hoje precisam do que eu aprendi a fazer além desta parte de mim, graças à curiosidade, a querer ler mais e mais, fazendo da educação o lugar onde a leitura deve ser exercício fundamental.
Conhecer um pouco da infância e da adolescência de Paulo Freire À sombra desta mangueira, sob a narrativa de sua história na parte introdutória em A importância do ato de ler, da sua resistência à opressão e Pedagogia do oprimido e como toda esta luta o ensinou a ensinar a autonomia, a arte de buscar saber pela pergunta, foi como me ver de mãos à minha própria história. Aos irmãos a quem desejo o que eu hoje galgo: lutarmos juntos por uma educação digna, democrática, de resistência à opressão. A educação é um caminho para a igualdade de acessos e usufruto dos direitos para todos (as).
Antes de Freire, conheci, na formação inicial em Letras, um de seus amigos de leitura, uma materialista também histórico, ícone da polifonia da linguagem, Mikhail Mikhailovich Bakhtin, filólogo, grande conhecedor e defensor das artes, dentre elas a arte da polifonia. Para quem a vida é dialógica por ter que ser viva, movimento, por ser interação e relação de e entre histórias, na arte, no movimento da criação cultural. Minha identificação intelectual nasceu também ali, conversando com as obras do mestre Bakhtin.
Bakhtin (2006; 1997) proporciona a interpretação de que somos reflexos de outrem, das relações dos nossos discursos, portanto, a materialidade mais viva destes discursos gestados nas relações de linguagem. A linguagem, os textos, são por assim dizer, dialógicos, atravessados por tantas histórias e relações sociais e políticas, por culturas das mais diferentes matrizes, algumas, inclusive, indefinidas. E, pelas ordens do poder imanente aos discursos, culturas também negligenciadas, amalgamadas pela luta pelo embate de poder natural à linguagem. Por isso, embate natural na relação entre sujeitos.
Há histórias, há materialidades a serem estudadas porque há interação, integração entre estas culturas. A subjetividade e a alteridade – eu-outro- são, ainda que tratadas em si mesmas, dialógicas, emergem de relações anteriores e concomitantes a seu próprio tempo. O ser humano é visto deste modo como ser de interações, de integrações, de diálogos. Fato que torna as relações humanas tão complexas e difusas. Propícias, emergentes e necessárias de encontro, também do desencontro. Fato convidativo a sempre estudar, conversar com as ideologias e as polifonias que atravessam fenômenos de tamanha complexidade.
Tudo isso, tão logo, remetia-me ao desejo de ir além das capacidades impostas pelos limites das relações históricas e galgar melhores condições de vida pelo estudo, pela pesquisa, pela formação continuada, por este doutoramento e por cada uma das formações e publicações que me empenho a lutar por fazer. E que a materialidade que constituía era em si a história do modo como aprendi a ler e a interpretar o mundo bem como meus próprios modos de também reconhecer os modos de ler de outrem.
Bakhtin (2006; 1997) e Kress (2003) ensinam que o quê e como as pessoas leem, sentem e representam das coisas são também atravessamentos de suas (i) materialidades históricas. Outrossim, seus contatos com suas culturas, com os jeitos peculiares de fazê-los pelas influências em determinado tempo da existência, de modo políticos de organização da vida em sociedade também são materialidades leitoras para a formação de leitores.
E dessas e nessas relações culturais, políticas e históricas as pessoas constroem outras culturas e retroalimentam-se delas. Pode-se subentender das palavras de Bakhtin (1997), que a criação é uma necessidade humana, é um desdobramento ao longo do tempo, graças à capacidade dialógica, portanto, mutante da linguagem, do ser humano, da sua respectiva historicidade.
Com isso, a criação, a criatividade devem perpetuar, não podem ser cerceadas. O desejo e a necessidade de ir além do chão de terra, de conhecer outras culturas devem ser orientados, despertados, valorizados e motivados na formação escolarizada. Ao Estado cabe esta responsabilidade. Tais desejos e necessidade de se ampliar a outras culturas são parte da essência matricial da natureza humana. Cerceá-las pode corroborar o próprio cerceamento do ser do humano, a exemplo do Bakhtin.
A obra do autor foi escrita durante um período de guerras. Em virtude disso, ele vivia peregrinando entre cidades e até países circunvizinhos à Rússia. Teve, por este motivo, contato com várias línguas, tornando-se poliglota. Fato presente no seu modo de tratar a dialogia da linguagem. Embora criadas para serem distintas, as diferentes línguas também se encontram em determinado ponto (1997; 2006). Fato remissivo ao caráter complexo das línguas/gens. Sendo ela a base para as relações do humano com o mundo, estas relações também são pigmentadas pela complexidade.
Conversando, então, com Bakhtin e com tantos de seus adeptos, fui também apresentada a outro grande pensador cujo legado é de grande ensinamento, Edgar Morin. Forte combatente das forças armadas francesas. Um dos grandes resistentes pró Argélia na guerra da Argélia, defendendo o anticolonialismo e a liberdade do povo argelino.
Com seu olhar atento, comedido, sensível, sistemático e de grandes avanços pela e para a educação, dada sua importante história de vida, Morin (2005, p. 338) defende que “a arte é indispensável para a descoberta científica, visto que o sujeito, suas qualidades e estratégias terão nela papel muito maior e muito mais reconhecido”. A arte expressa e revela a vida em suas multidimensões. Pela est(ética) que é a própria arte, desde o plano da abstração – às vezes, estranho, duvidoso, característico da própria arte - ao plano da (in)concretude, com nuances ou expressões, às vezes claras - o que não lhe é de dever- , por outras, não tão claras da vida concreta de fato - à da espiritualidade de transcendências intrínsecas ao humano- e o mundo mais cativo da arte. Ali estaria o intangível, e, paradoxalmente, sensível, imaginável e invisível.
No decorrer do percurso com Morin (2015; 2014; 2011) ao lançar na aba de busca da internet as expressões: diálogo e presença, acabei me deparando com outro grande autor. Tal como Freire, marcou-me profundamente, Luiz Síveres. A primeira obra que li do professor Síveres foi Encontros e diálogos: Pedagogia da presença, da proximidade e da partida.
Esta leitura trouxe-me ecos dos cuidados maternais: de minha mãe e das minhas irmãs mais velhas que durante a minha jornada educativa escolar e não escolar estiveram próximas e presentes para que eu conseguisse estudar, chegar limpinha à escola, ter um lanche na hora certa, material para registrar os estudos e alguém que me esperasse todos os dias para me acolher após o horário da escola. Quanta entrega pelo outro! Em quantos prospectos que lanço além de mim? Elas, então, em mim, transcendem-me. Paradoxal e invisível. Intangível e sensível.
Grandes mulheres que me trouxeram aqui e trago comigo nas minhas transcendências, no retroalimentar dos saberes e conhecimentos que me motivam à pesquisa, a uma educação para todos e para um mundo mais justo e cidadão. Por uma educação onde pela arte de multissemioses sensíveis e intangíveis, as pessoas tenham a liberdade de ser quem são para aprenderem do seu modo, com a sua historicidade. Com certeza serão presenças e próximas para meus filhos e meu exercício docente, dados os ecos que de mim expandem no meu fazer educativo. E, com certeza, ecoam na educadora que venho galgando, inclusive, por meio desta pesquisa.
Ou seja, Bakhtin (2006; 1997) está, mesmo, na materialidade das minhas crenças e dos discursos ecoantes de minhas aprendizagens, bem como Freire em todas as suas obras. Afinal, como se nota até aqui, o que sou senão a construção de grandes homens e mulheres que fizeram-me e fazem-me com as suas ações e me cativaram a est(ética) de cuidar do mundo por terem cuidado de mim (MORIN, 2011)?
Pela condução de Freire, de Morin, de Bakhtin e de tantos outros grandes pensadores, Síveres (2019, p. 204) desperta à reflexão ampla e integradora da estética, como parte do processo de manifestação da arte como ressignificação da subjetividade:
A expressão estética, além de ser compreendida como uma energia com um perfil mais subjetivo e como um movimento com uma característica mais objetiva, pode ser percebida ainda, como uma dinâmica integradora entre a singularidade e a sociabilidade, entre a materialidade e a espiritualidade, e entre o tópico e o utópico.
Não o utópico do utopismo de mera contemplação inerte, mas de ação irrequieta por mudança, da distopia (Freire, 2016); por fazer a consciência crítica das coisas se materializar de maneira que se tornem o cotidiano de outras pessoas, histórias para tantos homens e mulheres que delas precisam para terem qualidade de vida.
A arte, a estética deles constitutivas são, desse modo, representações de conhecimentos fundamentais da vida, por isso, necessários de serem reverberados, explorados com vistas a buscar entender – ou não - parte dos fenômenos da própria existência. A integração de conhecimentos, portanto, tão complexos torna a arte livre o suficiente para, com a sua sutileza, envolver, cativar, seduzir e transformar a realidade partindo do que há de mais concreto e, concomitantemente, mais abstrato para fazer a sociedade melhor: o ser humano.
Nesse sentido, o que se aprende por meio da arte não só é objeto de estudo para ciência; elas são indissociáveis. A criatividade necessária à ciência é da matriz criativa da arte (Morin, 2005). A relação entre elas é, assim, dialética e a dialógica, a considerar um modo de fazer ciência sob o cuidado de contribuir com a qualidade da existência das espécies no universo, inclusive, e a começar, pelo cuidado com o humano. Daqui se podem notar tantos fenômenos da existência vital e de diálogos entre eles para fim das aprendizagens e do desenvolvimento das espécies no planeta, da construção dos saberes e conhecimentos.
Partindo-se deste movimento cuidadoso da arte como integrante necessária para se fazer ciência, convém que a estes mesmos fenômenos sejam aplicadas uma garimpagem e uma lapidagem na sua essência. Essas se mostram aqui condições fundamentais para uma compreensão substantiva da complexidade das relações humanas com o planeta Terra e de como elas comparecem na construção do conhecimento científico.
Ilustrando-se esta reflexão, baila aqui uma recordação de infância, hoje tão cara para o encontro com a arte científica de motivação para esta pesquisa. Quando criança, no interior das Minas Gerais, rodeada de matas e montes, meu lugar preferido para brincar era no meio da mata.
Saía, vagarosamente, da varanda de casa pelo quintal, colhendo uma plantinha ali, uma florzinha acolá, fazendo desenhos com os dedinhos na terra no terreiro de chão, chutando poeira, pegando gravetos pequenos de varas de plantas, saltando as cercas de arame farpado que estabeleciam limites entre a estrada de terra e plantação até me unir à mata. Na verdade, o modo de sair fazia parte do jogo de estratégias para eu chegar onde queria. Eu sabia que mamãe não me deixaria ir à mata sozinha se eu entregasse todos os planos que fazia para brincar.
Caminhava bem devagarinho no quintal, até que as vistas de mamãe se dispersassem de mim. Tomando um espaço e outro do quintal, da estrada de terra e, de repente, eis que, saltando me abriam as portas da mata. Era como abrir das cortinas de espetáculo onde eu era atuante e espectadora de mim e da dança da natureza.
Ela era receptiva, cuidadosa e tinha uma energia boa de muita luz, de ar puro, de vento suave no seu modo de ser e de cuidar, embora a estrutura fosse de mata fechada. Apenas parecia fechada. Era luminosa e acolhedora. A gente se entendia bem nesse sentido. Lá me sentia em casa. Nós nos abraçávamos. Era um abraço de verdade. Ela me deixava brincar à vontade a ponto de eu não perceber o limite entre dia e noite.
A mata me acolhia e eu a ela. Tínhamos uma grande afinidade. Afinal, ela me oferecia tudo o que eu precisava para fazer o que mais gostava: brincar. Como mamãe dizia: “fazer arte”. A mata mais me oferecia do que eu a ela. Eu explorava seu espaço e ela se abria, ampliava-se como que no milagre da multiplicação de espaços. Eu era mesmo a visita recebendo o lisonjeio do anfitrião.
Este sentido de acolhimento ensinava com tudo que a compunha. O Mundo estava ali para eu desenhar, cantar, brincar com todas as coisas, do modo como me ensinasse mais. Sentia-me como em um ateliê diverso de paletas de todas as cores, folhas de todas as texturas, pincéis de todos os tamanhos, lousas de todas as dimensões.
Esta criança, em ressonância com tantas infâncias que hoje trago me faz compreender a participação das emoções nos processos de aprendizagem (Damásio, 2011; 2004; 2000; 1996). Embora biologicamente marcada na subjetividade e na essência do comportamento, também é moldada pelas relações históricas, pela materialidade das interações com o meio.
A impressão que passa é de que minha mãe sabia de tudo isso. Coisa que só mãe sabe. Mamãe sempre alertava: “Num vai pro meio do mato. No mei do mato num é lugá de brincá. Ficô doida, minina?” Ela morria de medo de, de repente, os animais da mata aparecerem, eu me assustar e até mesmo ser atacada por eles. Como eu me identificava com mamãe! Aprazia-me ouvir suas variantes linguísticas. De uma palavra de duas sílabas, mamãe fazia um comunicado. Simples, objetiva e veloz na fala. Comunicação objetiva. Uma das maiores professoras que tive foi minha mãe. Talvez aqui eu e Freire (1997) discordemos, até certo ponto. Mamãe não teve oportunidade de formação acadêmica, mas todo dia me dava aulas de linguagem, de conduta.
Confesso que meu apreço pelos estudos da linguagem e seus fenômenos são heranças de mamãe também. De vez em quando ela me aparecia com um vocabulário peculiar e que de fato estava no dicionário. E, em outros momentos, ela lançava mão de sua criatividade linguística e criava um neologismo com os adereços da linguagem dali da nossa terra. Ela conhecia bem sobre jogar com as palavras, brincar com a linguagem. Vez ou outra se assentava no lastro do fogão e lá se iam algumas de suas histórias de quando criança. Uma mulher de palavras sábias, encantadora de histórias.
O que mamãe não sabia é que eu e a mata éramos muito amigas, que a mata era meu recanto, meu refúgio, meu ateliê e meu palco de interpretação. Em um ponto mamãe tinha mesmo razão. Eu fazia arte. Os gravetos de plantas secas eram meu lápis, minha caneta, meu pincel, minha aquarela e chão o meu papel, minha tela. Os galhos das árvores, as folhas, as flores, as gramíneas ornamentavam minhas histórias, os desenhos.
As flores das plantas eram ornamentos para o corpo e cabelo, junto de folhas na composição do figurino. Os cipós - às vezes erva daninha - Nisso também mamãe tinha razão nas orações. Era Deus que tomava conta junto das ancestralidades em encontro com a natureza - que se alastravam pela plantação e pela mata, ora eram colares, matérias-primas para coroas, cintos e tantos outros adereços. Os espaços entre uma planta e outra, o palco.
Tudo feito com o toque rústico da terra que aromatizava as cenas na companhia do perfume das plantas e de algumas florzinhas, às vezes do cafezal, quando à época da florada. Como bem diz Cyrulnik (Instituto Unitas Unisinos, 2022, s/p) “temos um grau de liberdade que podemos usar para agir favoravelmente sobre o ambiente que age sobre nós”.
Os assobios do vento sofisticavam a sonoplastia feita em harmonia com o canto dos passarinhos, dos insetos e os sons de rastros, ecos de animais nativos que moravam e trabalhavam por ali. Afinal de contas, eles também têm seu modo de organização de vida (Cyrulnik; G Morin, 2012). Somos apenas mais uma espécie junto deles. Cada um, com a sua privacidade, respeitava também a minha de degustar do espaço que compartilhavam comigo.
Tecíamos, a nosso modo, um diálogo para orquestrar nosso bem estar ali. Anfitriões que eram, os animais e as plantas deixavam-me a própria casa para me sentir em casa. Nobre atitude daqueles que julgamos, em nossa racionalidade, serem irracionais. Prova de que tudo aquilo que tratamos com amor nos devolve amor, cuidado. Ato genuinamente educativo. O ato de educar exige antes de tudo amorosidade e escuta atenta e sensível (Freire, 2015; 1997).
Hoje entendo que eu jogava com a natureza, fazia narrativas, cenas e poses. Criava histórias enquanto jogava, usando de uma gramática que eu e a natureza tecíamos juntas (Huizinga, 2014; Gee, 2009; Kress e Van Leeuwen, 2006). Não só a gramática da brincadeira, do jogo que criávamos juntas, também a gramática de como nos comportamos uma com a outra.
Penso que, de certo, a natureza, os bichos ouviam as orações de mamãe, já que, à luz de Cyrulnik, há a probabilidade de que as transcendências também dialoguem (Ihu, 2022, s/p). Quando mamãe sentia a minha falta, começava a gritar pelo meu nome, há pelo menos um quilômetro de distância, e a pedir a Deus que tomasse conta de mim. Falava alguns palavrões também. Era o modo dela se esvaziar da preocupação. Já nos ensina Morin (2015; 2011) que somos biológicos e o cérebro, o corpo, reagem aos estímulos externos, inicialmente, da maneira mais primitiva que é pela resposta imediata das emoções. Acontece isso mesmo porque as emoções são automáticas diante de situação de preocupação, desespero, medo e angústia (Damásio, 1996).
Então, quando eu chegava à mata, seus moradores me deixavam à vontade, acolhiam-me e me deixavam fazendo minha arte. Aos poucos, mamãe parava de me chamar. Eu me punha a criar na mata e ela lá em casa nos cuidados com todas as coisas.
Eles, como parte da terra, e a própria terra sabiam, sentiam o que uma mãe sente quando o filho se distancia de casa, ainda que momentaneamente. O que faziam comigo era o feito de um pai e uma mãe a seu filho: acolher, cuidar e me deixarem ser quem eu quisesse ser para voltar para casa, quando quisesse, sã e salva.
Enquanto isso, eles preparavam a casa para mim, faziam-me a sala, com a sutil cortesia de me deixarem fazer o que me fizesse sentir melhor: criar enquanto conversava, ao modo de criança, com a riqueza da mata, inclusive, com os insetos e animais. Eles abrilhantavam a arte que já, por si, deles mesmo, porque foi gerada ali no seu terreno e com a contribuição deles. Éramos uma equipe trabalhando em parceria.
E quem disse que criança não trabalha? Trabalha brincando na criação de coisas que a faz protagonista da sua história, ativa na vida. Enquanto cria seus próprios sentidos da vida nas histórias do que vê, do que sente com os seus pares, ela se assume autora de sua vida, dos modos de interagir e de se revelar aos pares (Corsaro, 2011). Neste compasso, a criança revela o mundo, ela se mostra sujeito ativo, criativo.
Mas, para mamãe, se aparecesse um animal, eu poderia me assustar, ser picada, atacada... Coisas das emoções de mãe. Mania de proteger os filhos dos desafios e perigos do mundo. Então, ela conversava com os animais em oração, mesmo que doida para falar um palavrão de tanta raiva e preocupação. Aliás, a raiva nem sempre é uma emoção ruim (Damásio, 1996). Ela ajuda a prevenir estresse, como uma válvula de escape.
No silêncio do vento em repouso, a natureza ouvia a mamãe. Como você pode notar, parece que eu também, hoje, adulta que estou, tenho certo receio da natureza. Coisa de adulto. As crianças têm a abertura da e para a mata, para os animais, para o novo, para a vida. Elas são desbravadoras do desconhecido, dos perigos. Afinal, elas gostam de ser heróis, heroínas, de ser amigas de tudo. Elas acreditam que é possível integrar e colocar todas as culturas para brincarem juntas.
Então, veja, embora com um pouco do medo que a adultice traz, ainda tem, aqui comigo, um pouco da minha criança que também sempre acredita que todas as culturas podem se assentar e conversar. Ver como elas tem suas convergências e se respeitarem nas suas divergências; desde que o desejo de unir e respeitar, não o de ter poder sobre o outro, de limitar, restringir e amordaçar até mesmo destruir o outro. O ser humano tem em suas mãos as peças dos jogos de linguagem da vida. Cabe-lhe definir como Graças à criança que habita em mim e à transcendência das orações e ações de mamãe, a minha infância foi aula sobre aula. Forte a oração de mãe. Forte a essência humana no ser de infância que há na criança (Corsaro, 2011).
Como os animais são sensitivos? Entendo que era o modo de fazerem com que, quando eu me cansasse de brincar, eu voltasse para casa sã e salva. Assim, enquanto me acolhiam, protegiam-me. Assim, me sentia segura na minha criança para conversar com a natureza. Ela cria, por isso tem afinidade com a criação.
A natureza se mostrava assim, como a presença que eu tanto precisava para que, ao retornar para casa, eu voltasse outra criança. Uma criança ainda mais destemida e com muito mais desejo de cuidar da vida, da natureza e de precisar tanto das orações de mamãe, porque elas alcançam o inatingível à matéria, por isso, são tão fortes (Van Capellen; Way; Isgett; Fredrickson, 2016; Kornreich; Aubin, 2012).
De tudo isso veio o cuidado e a acolhida que recebi. Professor Síveres (2019), acredita que as partidas são gestadas no seio de presença de diálogos que se entrelaçam em proximidades constantes na essência de ser dialógico do ser humano. Ser de relação com a natureza, essencialmente terrestre e terreno, de transcendências que o revelam e o reafirmam além de suas capacidades visíveis.
Um ser cuja natureza nutre-se da natureza da terra e com os seus conviventes. Uma riqueza que tudo sabe, tudo ensina. Tudo. Absolutamente tudo: da espiritualidade das coisas ao que, ao ser humano, pode despertar o conhecimento, surpreender-se pelas suas (in) capacidades. Daqui vem a acolhida que proponho pelo saber, pela paz de espírito de conhecimento, pela diversidade, pelo zelo às emoções que motivam a aprender, cuidado pela natureza, incluindo-se a humana, e o gosto pela riqueza multissemiótica das representações multissemióticas da vida.
A criança que vive em mim se formou pelas multissemioses que me atravessam. Brincar, jogar com o que a mata me oferecia me fazia brincar também com tempo e entender que o sentido da vida estava ali na troca que fazíamos. E, assim, mais a mata me oferecia do que eu a ela pedia. Afinal, ela me emprestava tudo o que a compunha para que eu brincasse enquanto estivesse lá.
Esta história de brincar com as coisas, de fazer mais histórias com elas sempre esteve comigo. Na adolescência, eu gostava muito de jogar: baralho, dominós, damas, bolinha de gude, futebol, brincar de roda, de fazer desenhos, de fazer tranças nas bonecas de milho. Quanta história não nascia de tudo isso? Muita! Apesar de ter lido o primeiro livro aos onze anos de idade, eu cheguei à antiga quinta série com boa fluidez leitora. A escola, onde estudei nas séries iniciais da educação básica, não contava com uma biblioteca. O acervo que tínhamos era a cartilha de cada um (a) de nós e a da nossa professora.
Minha família era bem numerosa. Meus pais não podiam comprar livros. Líamos tudo do que a natureza dispunha. Mas, livros de folhas de papel… ah este ficava mesmo no desejo, na imaginação de um dia poder ter.
Por outro lado, brincávamos muito. Os colegas levavam baralho, damas, bolinhas de gude, dominós para brincarmos no intervalo das aulas. Embora não tivéssemos livros paradidáticos, interagíamos e interpretávamos a cultura de cada um (a) durante o jogo.
Os livros impressos teriam uma rica participação para fomentar ainda mais a criatividade de todas aquelas crianças. O mundo era o livro com que contávamos naquele momento. Criamos do mundo o nosso modo estratégico de ler, de interpretar e de elaborar tantas outras formas interativas para nosso processo educativo.
Em virtude disso, a própria linguagem, as multissemioses apresentam-se com possibilidades para determinada forma de jogar, de trocar papéis, de interpretar as relações nestes papéis. O “jogo é uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria” (Huizinga, 2019, p. 10). Como acrescenta o próprio Huizinga, a linguagem tem esta característica de ser concreta, evasiva e transcendental, o que a torna uma matéria de jogo, porque ela em si exige seleção, estratégia, associação, combinação e tomada de decisão.
O jogo, por seu turno, exige “atenção, inteligência e resistência nervosa” (Caillois, 2017, p. 26). Por isso, a linguagem se revela matéria de jogo, de inter-relação de regras – ora evidentes, ora das próprias estratégias-, de funções e de execução de ações nestas funções. O diálogo que se faz pela linguagem por si incita a colocar estratégias em jogo, comedir atenção e emoção para lançar mão da estratégia mais apropriada no sentido de avançar no jogo, avançar na interação.
Afinal, existe vida porque existe, nas palavras de Bakhtin, dialogia da linguagem e como usar estrategicamente esta linguagem. Tal processo dialógico mostra-se espaço de jogo. Nas palavras de Freire, porque se faz a dialogicidade por esta dialogia da linguagem, podemos então entender as estratégias em jogo. Nas palavras de Morin (2015), a incerteza que esta própria dialogia pode provocar e por isso a necessidade do homem ter a consciência da integração necessária entre os mais diversos conhecimentos. Nas palavras de Rojo, à esteira do manifesto dos multiletramentos, a integração destes conhecimentos diversos para a inclusão de todos os aprendizes nos processos leitores críticos na hipermodernidade. São modos da linguagem, peças de jogos, jogos de linguagem.
Tudo isso, representado pela multissemiose, nas palavras Gunther Kress e Van Leeuwen (2006), que motivam, à reflexão, os sujeitos sociais. Sujeitos capazes de construírem sentidos substantivos para as coisas porque eles trazem consigo a liberdade de criar. Este mesmo sujeito que necessita se integrar à natureza tão rica que o cuida. O conhecimento, por assim dizer, o ser humano que o constrói, que o torna consciente, tem o compromisso de ser ponte entre o homem e a realidade complexa por ele incorporada (Morin, 2014).
A complexidade por essência não tem o compromisso de ser solução, mas de problematizar, de buscar saber, de questionar e de desconstruir verdades. Pontos cruciais para a formação de “cabeça bem feita” (Morin, 2015), com a consciência de que a relação da espécie humana com as demais espécies é marcada pela incerteza, pelo desconhecido.
E, ao fazê-lo, mergulha-se nas miudezas das coisas cotidianas, aquelas que de tão cotidianas parecem triviais. E exatamente pelo excesso de cotidiano, de insistência são fundamentais; a base para entender os fenômenos decorrentes das relações humanas com o meio, com as demais espécies, com os fatos da vida, a dar-lhes sentido pelas próprias vozes de quem aprende. E que, ao fazê-lo, ecoa também a voz de quem ensina. Não se está sozinha onde e quando quer que esteja. Há sempre outros em companhia.
Fenômenos que atravessam o aprender a ler a vida, o mundo (Freire, 2011). Aprender a ler a escrita, construção subjetiva, histórica, social, cultural e política das relações de vida entre sujeitos. Por estes motivos, fenômenos multissemióticos, multimodais, disseminados e disseminadores de muitos modos humanos de entender e de expressar sentidos.
Aquelas temporadas na casa dos bichos eram tempos de reconhecer que as coisas na vida não se fazem sozinhas, não têm sentido sozinhas, isoladamente, estão estrategicamente inter-relacionadas como em jogo de interpretações. Elas acontecem em diálogo com muitas outras coisas. O sentido, a grandeza delas acontece quando estão com outras coisas.
O chão da mata sem os rabiscos feitos de gravetos, sem as folhas das plantas e os insetos de cenário, é chão. A natureza humana, seu modo de ler e de intervir nas coisas traz a dialógica e o nosso modo de entendê-la e de fazer parte dela nos convida a aprendermos a dialogar mais, a partilhar, a colocar estratégias em jogo para que tantos outros seres possam também jogar, brincar, criar e reconstruir-se.
A relação “indivíduo –sociedade- espécie são não apenas inseparáveis, mas co-produtores um do outro” (Morin, 2011, p. 93). Uma tarefa que, embora seja da essência de ser humano (Síveres, 2019), é tão difícil de ser apropriada pelo próprio ser humano, na dinâmica convivente eu-outro, porque demanda não apenas estratégia, mas o como se apropriar dela criar uma relação de sentido, de encontro e diálogo.
Independentemente da idade é da natureza humana a ação de jogar, de associar, de pôr em diálogo, ideias e ações. O homem é, por isso, ser de jogo, o homo ludens (Huizinga, 2019). E jogar não é uma tarefa simples. Na arena, estão pessoas com subjetividades e alteridades marcadas por culturas distintas. Fato que torna as pessoas potenciais jogadoras – nunca se sabe qual estratégia e como será lançada.
Por modos de pensar e de representar entendimentos pensantes próprios, cada pessoa cria sua forma de jogar, de interpretar e de se apropriar de um conhecimento. Se tomarmos este trabalho em escrita como exemplo, podemos dizer que ele é organizado sob uma teia de conceitos. Eles estão apresentados por nomenclaturas diferentes, representando multissemioses, observações de objetos distintos no mundo para construir sobre eles determinada interpretação. Se a vista se lançou sobre pontos distintos, por pessoas de formações histórico-culturais também distintas, o tratamento dado ao conceito se difere por tudo isso. Em algum momento se encontram, apresentam semelhanças e despertam o diálogo.
O conhecimento não está posto, está disposto a novos rearranjos. Novas formas de interpretá-lo. As peculiaridades humanas, históricas, políticas, sociais e culturais incidem sobre o modo do olhar lançar luz sobre as coisas. Este é o fluxo do jogo de ler e interpretar a vida, da relação entre o sujeito e o outro.
Esta relação de subjetividade e alteridade requer o exercício da pedagogia da tolerância (Freire, 2014). Exercício de profunda reflexão e ação de consciência de si e de coletividade. Tolerar não é exercício de inocente e ingênua aceitação do outro. É exercício de trocas de compreensões, trocas de divergências, partilhas de respeito e de entendimento bilateral. É um jogo de aceitação e também de rejeição.
O que intersecciona as duas culturas envolvidas no jogo muito possivelmente provocará a aceitação; onde elas divergem, muito possivelmente identificarão e resistirão divergindo uma da outra (Callois, 2017). Nestas divergências, elas encontram sua autonomia, sua capacidade de construir um novo modo de jogar com as suas características peculiares, autênticas. Reconhecem em que medida podem ser livres. Uma das “(...) características fundamentais do jogo: o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade” (Huizinga, 2019, p. 10).
Ainda que prescrito por determinadas regras, determinadas gramáticas próprias, Huizinga aponta, portanto, para os processos de criação através do jogo. Ou seja, que o jogo é um lugar de liberdade de expressão e de criação. No jogo, estão as searas da autoria, da expertise subjetiva, da proficiência compreensiva.
Na liberdade, nasce a criação, a autoria de uma estratégia. Algo muito imanente ao ato de ler com criticidade, desprendido da obrigação ou da amarra de ter que concordar com que está posto, mas de seguir além dali. Neste ponto, que a leitura é “essencialmente construtiva, (...) de inter-relacionamento (...) de diversos níveis de conhecimento” (Kleiman, 2000, p. 31).
As crianças têm muito a ensinar para a humanidade sobre a essência de ler, da jogabilidade, ainda que muitas ainda não tenham sido alfabetizadas. Antes de lerem a palavra, elas leem o mundo e o modo como ele está organizado (Freire, 2011b). Elas se apropriam e se assumem essencialmente humanas, não fogem de sua essência. Eles garimpam a essência. Não se limitam a sentir, expressam o que sentem e como sentem. Buscam aprender a tolerar e se defenderem. Quando a tolerância transborda, sabem o que há de fundamental no jogo: a liberdade. E, nesta liberdade, criam e recriam.
O que pode parecer uma dificuldade para a expressividade de um adulto, para a criança e até para o adolescente é uma aventura, um modo de existir e de resistir. E, de fato, da mata para a vida e da vida para a mata, a vida é o entender e dialogar. Desde que intervindo sobre elas não as modifique a ponto de que elas também se descaracterizem de suas liberdades existenciais. Há de ser uma relação de integração de completude, amplitude, de inteireza (Morin, 2015; 2011).
A vida humana na terra existe graças à integração de saberes, de conhecimentos advindos destes saberes (Morin, 2011). Por isso, o conhecimento faz sentido quando tratado por interseções, integrações. É a leitura da vida colocada em prática com todos os desafios naturais das diversidades e adversidades das relações eu-outro e suas transcendências no mundo. A intangibilidade da transcendência ultrapassa tanto as capacidades do eu quanto as do outro. Não por acaso, desencontram-se.
Entendimento que se aplica, inclusive, e diria de maneira fundamental ao conhecimento científico. Se a ciência, por essência, tem a tarefa de sistematizar saberes e conhecimentos, os seus sentidos decorrem da integração, de colocar em diálogo os saberes e conhecimentos advindos das mais diferentes dimensões da vida, porque é neste sentido que a vida acontece (Morin, 2005). O inatingível se mostra, desta forma, fenômeno para uma nova ciência.
A historicidade das pessoas vai se mostrando ponto de partida para se criar um modo para entender o que elas de fato precisam do ensino. O legado de Paulo Freire ensina-nos bem isso. A relação do educador com o aprendiz deve partir da história que o constitui. Está recortado aqui, então, um pequeno espaço de tudo o que a vida fornece para refazer um pequeno passeio, como o proposto neste trabalho: ler - o mundo, a vida- é um jogo? Ou o que se faz quando se joga- com o mundo, com a vida- é leitura? Ler é executar e recriar estratégias? Ler é ressignificar coisas? Objetos? Ideias?
Os animais entendem bem isso, e os fenômenos da natureza também (Cirulnik e Morin, 2012). Ao homem resta aprender com eles para entender sua espécie (Morin, 2011). Não por acaso a ciência em todas as suas áreas têm esta tarefa de garimpar os fenômenos da vida para buscar entendê-los, criando caminhos para as espécies do ecossistema bem conviverem umas com as outras. Não se trata de uma utopia de inércia de sentimentos diante da contemplação das coisas. É uma distopia (Freire, 2016) necessária para que a vida seja garantida com qualidade (Morin, 2015).
Por isso, os processos de ensino e aprendizagem da leitura, do ler a vida requerem sensibilidade à realidade, sistematização, execução de estratégias, diálogo com a natureza e com o ser humano, das sutilezas que aproximam e distanciam culturas. Quando uma criança curiosa visita a mata e faz conversa com as coisas que estão no seu movimento natural, uma vista humana recria este movimento, ao seu modo de ver, de sentir, de ouvir e de degustar os sentidos daquele mundo.
A mesma menina que buscava a ternura da criatividade da brincadeira na mata, hoje entende que muitas outras meninas, meninos, jovens e adultos encontram-se e constroem sentidos para a vida a partir de suas terras, seus chãos, de suas culturas substanciais. Mas, pela natureza humana de descobrir e descobrir-se, eles precisam ir além das suas próprias culturas, precisam de contato com outras culturas, apreciá-las, conhecê-las. Assim, os chãos e culturas são de onde a educação leitora também precisa partir para manter o pertencimento cultural do aprendiz e expandi-lo para encontros e possíveis diálogos com tantas outras culturas.
Nesse curso, é que se galga espaço para um ensino leitor que se prime como democrático, crítico, que busque alcançar os direitos à cidadania e a execução deles a todos (as); não apenas privilegiosamente a uma parcela da sociedade. Neste sentido, o Censo da Educação Básica vem mostrando há um tempo, muito embora já se tenham alargado oportunidades educativas a mais pessoas no decorrer da história do Brasil (Brasil, 2022).
Da criança para a pesquisadora, abre-se aqui um espaço para buscar encontrar este povo pelas suas linguagens de representação multissemiótica, dde muitos comportamentos peculiares e plurais, de modos próprios de se fazerem sujeitos no mundo. E, por meio destas multissemioses, oportunizar a cada um deles e delas uma educação leitora que lhes envolva, faça-lhes sentido, que faça parte da transformação que desejam.
Para a chegada desta transformação, o aprendiz merece uma longa viagem, passeando por chãos distintos, diversos, plurais e multissemióticos, por isso (Kress, 2003). Chão pelos quais não se maltratem, não se excluam os seus, sua cultura. Que sejam chãos de terras tão fortes que se abram para acolher os seus, abraçá-los e expandi-los para outras linguagens que são exigências da hipermodernidade, linguagens das tecnologias digitais - não tão somente- e tantas outras.
O que a tantas pessoas, na maioria das vezes, é oferecido em escolas da rede privada, de classe média, na escola pública também o deve ser: acesso à cultura diversificada, à arte em suas diversidades. Se na escola particular, o aprendiz pode navegar por chão de internet banda larga, na rede pública não deve ser diferente.
Sabe-se que se trata de chãos nem sempre rodeados de mata e de terra viva, às vezes rodeados de violência, de vários modos de exclusão de oportunidades de aprendizagem significativa e de desenvolvimento humano, de replicação de opressão. Chãos, às vezes, sem saneamento básico, sem mãe, sem pai, sem casa, sem comida. Chão onde pisam pés desejosos de caminhar até onde se abra para ver o sonho ser distópico e ter qualidade de vida.
Diferentes matizes de cercamentos, de redução cultural e de necessidade de buscar fazer do ensino e aprendizado da leitura o lugar de encontro, de proximidade e de partida para uma vida cidadã.
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