P/1 – Vou pedir pra você começar de uma maneira bem básica que é pedir pra você me dizer seu nome completo, o local e a data de nascimento. R – Bem, Maria Cecília Cordeiro Dellatorre, nasci em Lins, no interior, na região noroeste do estado de São Paulo, em 13 de dezembro de 49. P/1 – Eu vou começar de uma maneira muito diferente: eu queria que você me contasse como foi a sua chegada aqui no Vale da Ribeira, estrada mesmo...? R – Então, eu vim pra cá sem ter muita noção pra que lado era isso, que lado era esse Vale do Ribeira. E eu vim como residente de medicina do departamento preventivo da USP, tinha um convênio com a Secretaria da Saúde da época, e os residentes de preventiva e pediatria vinham pra cá. E eu era residente de medicina preventiva e eu vim, peguei um ônibus, não tinha noção de tempo, de nada... E eu fui me apaixonando, assim, na viagem, porque era dezembro, época do jacatirão, que é aquela flor daqui do vale, que ela nasce branca, fica rosa, depois fica roxa. Então, é um colorido, em tons de rosa, assim... E a estrada não era duplicada, ela era pequenininha, os galhos das árvores batiam na janela do ônibus... Então, era, assim, parecia um mergulho no paraíso, num lugar lindo demais Então essa primeira imagem do Vale do Ribeiro... Meus planos eram terminar a residência, voltar pra minha faculdade, que era a de Marília, ser professora lá, era esse o convite que eu já tinha: “Olha, termina, tal, volta pra cá”. Mas, sabe, foi uma sensação, assim, boa demais De beleza, de muito verde, muita cor Então aquilo lá foi um encantamento P/1 – E aí você chegou em que cidade? R – Eu cheguei aqui em Registro. O David Capistrano, que era o nosso preceptor, ele tinha chegado em novembro, também era novinho. Eu era a primeira residente que tava vindo depois que ele foi designado preceptor. Daí cheguei aqui em Registro e o David me pos dentro de – naquela época...
Continuar leituraP/1 – Vou pedir pra você começar de uma maneira bem básica que é pedir pra você me dizer seu nome completo, o local e a data de nascimento. R – Bem, Maria Cecília Cordeiro Dellatorre, nasci em Lins, no interior, na região noroeste do estado de São Paulo, em 13 de dezembro de 49. P/1 – Eu vou começar de uma maneira muito diferente: eu queria que você me contasse como foi a sua chegada aqui no Vale da Ribeira, estrada mesmo...? R – Então, eu vim pra cá sem ter muita noção pra que lado era isso, que lado era esse Vale do Ribeira. E eu vim como residente de medicina do departamento preventivo da USP, tinha um convênio com a Secretaria da Saúde da época, e os residentes de preventiva e pediatria vinham pra cá. E eu era residente de medicina preventiva e eu vim, peguei um ônibus, não tinha noção de tempo, de nada... E eu fui me apaixonando, assim, na viagem, porque era dezembro, época do jacatirão, que é aquela flor daqui do vale, que ela nasce branca, fica rosa, depois fica roxa. Então, é um colorido, em tons de rosa, assim... E a estrada não era duplicada, ela era pequenininha, os galhos das árvores batiam na janela do ônibus... Então, era, assim, parecia um mergulho no paraíso, num lugar lindo demais Então essa primeira imagem do Vale do Ribeiro... Meus planos eram terminar a residência, voltar pra minha faculdade, que era a de Marília, ser professora lá, era esse o convite que eu já tinha: “Olha, termina, tal, volta pra cá”. Mas, sabe, foi uma sensação, assim, boa demais De beleza, de muito verde, muita cor Então aquilo lá foi um encantamento P/1 – E aí você chegou em que cidade? R – Eu cheguei aqui em Registro. O David Capistrano, que era o nosso preceptor, ele tinha chegado em novembro, também era novinho. Eu era a primeira residente que tava vindo depois que ele foi designado preceptor. Daí cheguei aqui em Registro e o David me pos dentro de – naquela época era uma Rural Willys. E correu, não lembro que cidades ele levou. Levou pra cá, levou pra lá, levou pra um monte de lugares1 Aí a gente chegou em Juquiá e tinha uma placa na porta do centro de saúde: “Não tem médico por tempo indefinido”. E os funcionários todos ali na varanda, fazendo tricô, crochê, tal. Tava todo mundo ali, paciente mesmo não tinha ninguém Aquela turma de funcionários, aquela coisa abandonada... Aí eu falei: “Tira a placa, a médica chegou”. Nossa, eu quis matar o David. Eu era uma R1, eu era militante, eu era vice-presidente da Associação Nacional dos Médicos Residentes, a gente não admitia você largar um R1, assim, em qualquer lugar. É claro que eu protestei: “Como é que eu vou ficar aqui sozinha?”. No fim era medo mesmo de ficar numa cidade sozinha, mas usei de todos os protestos, o David ó, fez assim ouvidos surdos. Aí eu dormi em Pariquera, porque em Pariquera tinha a casa dos residentes. Mas era super complicado, eu vinha de manhã e voltava à noite. P/1 – ...Você vinha como...? R – De ônibus Então eu perdia muito tempo, eu ficava pouco tempo no fim atendendo. Aí eu falei pro David que isso era complicado, ele falou: “Vai lá pro prefeito e pede uma casa pra ele, um lugar pra você morar”. Eu falei: “Mas, David, como é que eu chego, assim, na casa do prefeito?”. “Ué, fala que você é uma residente, que a cidade vai ter médico... Ó que legal Ele arruma um hotel, uma pensão pra você morar...”. Ele achava tudo simples, tudo fácil de resolver. Aí acho que ele foi comigo, ou eu fui sozinha, falar com o prefeito da época. Aí eu fiquei morando na Pensão dos Viajantes, que acho que era a única em Juquiá mesmo. Ficava a três quilômetros do posto de saúde, mas isso pra mim na época andar três quilômetros era bico. Aí eu fui morar na Pensão dos Viajantes. Aí quando começaram... Eu passei pro segundo ano de residência e tal, começaram a vir outros internos, aí alunos do sexto ano, pra fazer estágio e ficarem comigo lá em Juquiá, aí o prefeito arranjou uma casiquinha bem pequeninha de dois quartos, mas bem simplezinha, não tinha nem pia no banheiro... Daquelas bem simplezinhas... Daí eu morava eu, os internos, que todo mês trocavam os internos, trocavam os residentes a cada dois ou três meses. E daí eu fiquei em Juquiá quase cinco anos. E depois que eu vim pra Registro. P/1 – Só nessa época de Juquiá, por exemplo, a parte de remédios... Como é que você fazia...? R – Olha, tinha o que a Secretaria mandava, tá? Eu tinha uma boa relação com o prefeito, apesar dele ser – como eles diziam: eu era uma boa médica, o que estragava eram os pensamentos. Então apesar de eu ser sabida de esquerda, de me envolver com os movimentos dos posseiros. Tinham uns padres progressistas aqui também na época, e tal, também tinham alguns professores... De eu andar com essa turma, que não era bem vista, mas todo mundo eram meus clientes. Porque eu só trabalhava no Centro de Saúde, era tempo integral, dedicação exclusiva. Então as mulheres, os filhos dos oficiais, eram meus clientes; a mulher do prefeito era minha cliente; as filhas; então eles pediam que eu abrisse um consultório particular, eu dizia que não, que de jeito nenhum, mas que se quisesse ir pro Posto eu atendia E isso foi um negócio que eu achei super legal: que foi a mistura. Porque Posto de Saúde era uma coisa pra povo, pobre, parará, aquela coisa assim, tal. E ele passou a ser frequentado pelo povo e pelas pessoas, vamos dizer, pela esposa do prefeito, pelos filhos do prefeito... Então eles entravam na fila, parará, como todo mundo... E isso eu achei fantástico Então isso me protegia um pouco na cidade, o fato de eu ser considerada uma boa médica e todo mundo querer ser meu cliente. Então isso desculpava um pouco as outras coisas de militância política e de outras coisas que eu fazia. Eu organizei, por exemplo, o primeiro comício MDB em Juquiá. Tinha meia dúzia de pessoas, mas foi “Ah”. A maior parte eram curiosos do que militantes. Mas eu era meio perdoada na cidade por conta disso... P/1 – Então eu queria te perguntar um pouco como é que era o contexto político dessa época, do Vale da Ribeira, um pouco aquela história que você me contou do Lamarca e como isso caracterizou...? R – ...É, a questão, assim, primeiro que o que você tinha aqui era Arena, Arena, Arena. E quando tinha algum diretório do PMDB, ele era algum diretório que a Arena pegava, tá? Com exceção de Eldorado, o prefeito de Eldorado era MDB mesmo O de Eldorado... E foi por lá que o Lamarca andou... Ele era um senhor simples, mas ele era MDB. Mas só ele Aqui em Registro mesmo, o diretório do MDB tava na mão da Arena, e assim eles faziam em todos os lugares. Eu considero... E as pessoas.... Lógico que a gente tinha uma curiosidade de saber do Lamarca, a gente sabia as histórias lá de São Paulo... Quando você perguntava as pessoas te contavam muito pouco Porque elas tinham medo Elas passaram um período de muito medo aqui Porque o Lamarca não veio pra fazer guerrilha aqui no Vale, ele era um cara que treinava, já era o papel dele antes no Exército. Então ele arranjou terras lá em Eldorado, lá pra aquele lado, e lá era um campo de treinamento. E nem interessava a ele ser visto, nem pra população, e nem ele tentava cooptar a população e ganhar gente pra militância, nem nada. Não. Os militantes vinham de fora pra serem treinados, no uso de arma. No sítio que ele comprou. Então era uma cidade... É, 70, por aí... E ele frequentava Eldorado, frequentava aqui, frequentava as festas... Ele conhecia os donos das mercerarias, onde ele comprava... Fazia compras... Dos bailes... Por exemplo, o filho do Rubem Paiva... Como é que chama? O Marcelo... Mas aí é diferente, porque o avô dele era tido como um latifundiário lá em Eldorado, mas ele passava as férias aqui. Tem um dos livros dele que ele comenta isso. Como você tem os livros históricos que contam mais da militância do Lamarca. Então ele se misturou ao povo como sitiante, e ninguém desconfiava do que ele fazia... Aqui era tão fim de mundo, tão largado, que deu a menos de 200 quilômetros da capital – de São Paulo e Curitiba, olha a loucura Não é Araguaia, sei lá onde... É de São Paulo e Curitiba Você ter um lugar onde você treina guerrilheiros e ninguém descobre Só foi descoberto porque um cara caiu em São Paulo, acharam os mapas, e ainda demoraram um tempão pra juntar uma coisa com a outra, tá? Então isso aqui era o fim do mundo Então eu divido a história – eu, assim, na minha pretensão – em pré e pós Lamarca. Porque quando eles perceberam, a ditadura percebeu, que tinha um campo de treinamento, que existia uma região, que você podia montar um campo de treinamento de guerrilha, e ninguém descobria, num eixo importante desses, aí começaram os investimentos aqui. Aí vem Eduvale – que é um departamento de educação com escolas comunitárias. As pessoas faziam o mapa do bairro todo, as casinhas... Se o João mudava, vinha o Seu José, ela ia lá, anotava o nome, da onde ele veio... Quer dizer, no fundo, tinha um projeto pedagógico interessante, porque a coordenadora era uma pessoa de esquerda e tudo mais, mas elas também, ao mesmo tempo, existiam um papel de controle, que elas não percebiam. Isso eu encontrei em 76. Quando eu vim pra cá já tinha isso. A Saúde, o departamento, a Devale... P/1 – ... Você chegou aqui em 76...? R – 76. O Departamento de Saúde, por exemplo. Não existia Departamento de Saúde. A Sudelpa - Superintendência de Desenvolvimento do Litoral Paulista. E você ainda teve duplicação. Então a Sudelpa, por exemplo, ela atuava na Saúde também. E ela pagava muito melhor do que pra gente, que era da Secretaria de Estado. Ser médico da Sudelpa, por exemplo, você vinha três meses por ano, não precisava ser seguidinho, e você ganhava os 12 meses Uau E o salário que era o dobro da gente, do que a gente ganhava pra ser de carreira da Secretaria. Então muita gente, do Brasil inteiro, vinha pra ser médico da Sudelpa. Por conta, principalmente, quem fazia pós-graduação. Quer ver um cara que veio pra cá? O Eduardo Jorge, que hoje é o Secretario do Verde de São Paulo. O Eduardo Jorge trabalhou em Barra do Turvo. Um monte de gente... Do Rio de Janeiro, por exemplo, vinha um monte de gente que fazia pós graduação, não sei o que... Vinha porque eram três meses, não precisava ser seguido... Então você pegava as férias da pós, não sei o que... Então muito pós graduando do Brasil inteiro, de tudo quanto era canto. Vinha, ficava aqui... Quer dizer, era um serviço completamente maluco, sem continuidade, sem nada... E construíram essas Unidades, e às vezes você tinha um Posto de Saúde do Estado aqui, em frente, do outro lado da calçada. Era da Sudelpa. Que a Sudelpa foi essa coisa de emergência, de oferecer essa coisa, de fugir das regras. Porque a Secretaria não podia contratar alguém pra vir pra cá três meses, de emergência... Pra dizer que o Estado tá aqui, o Estado tá presente. Uma forma de controle, de movimento, de... Vai que inventem de novo... Porque Lamarca saiu ileso, ele e sua turma, ninguém foi pego. O louco do Erasmo Dias com seis mil homens E isso significou muito sofrimento pra população do Vale. Muita gente foi presa, muita gente apanhou... Apesar de não ter ninguém envolvido Naquela ponte sobre o Ribeira, quem não estivesse com documentos ia preso. Daí eu ouvi de funcionários meus, que às vezes vinha aqui pra estudar em Registro e na correria esquecia o documento, aí era aquele pânico: “Como é que eu volto pra Jequiá, eu tô sem documento”. Você provar quem era e quem não era... P/1 – E as pessoas tinham uma consciência...? R – Não Não As pessoas não sabiam porque é que estavam apanhando, e nem porque é que estavam descendo... Porque ele não se misturou à população como um militante político, ele não se misturou. Ele se misturou como um sitiante. E de repente eles tinham até uma certa bronca desse cara, eles estavam apanhando por um cara que eles nem sabiam quem era. Era uma coisa assim... E elas tinham medo de falar... Você ia perguntar pra as pessoas, as pessoas tinham muito medo de comentar sobre esse período. Mas pro Vale, eu brinco sempre, devia ter uma estátua do Lamarca, porque ele, com isso, um monte lembraram que existia o Vale do Ribeira Olha, tem uma região no Estado... P/1 – Na sua visão o Vale do Ribeira é uma região tão fora de...? R – Olha, eu já li um bocado, o primeiro livro que eu li foi do Geraldo Muller, porque é um negócio tão maluco na cabeça da gente, que se eu pensar a história começou aqui, do Brasil. Cananéia e São Vicente disputam quem é a cidade mais antiga do Brasil. A história do Brasil, uns dizem, tem a Pedra Fundamental. Mendes Sá veio aqui ver, Cananéia... O Barão de Cananéia que veio talvez, dizem, que antes de Pedro Alvares Cabral, com aquelas expedições que teriam havido dos espanhóis... Bem, esse período da história. Quer dizer, um período histórico, uma região histórica... E na época, principalmente do Dom Pedro Segundo, Segundo Império. E durante o tráfico de escravos, ela foi importantíssima A primeira Casa da Moeda foi em Iguape. É uma coisa maluca Em termos de história... O Porto de Iguape, a exportação de arroz, você ter um canal ali, que hoje é o Valo Grande, porque o Ribeira dava muita volta pra chegar lá no mar, então tinha um pedacinho que ele passava bem pertinho do mar, mas ele continuava serpeteando lá, assim, aí Dom Pedro autorizou abrir dois metros... Hoje tem mais de cem metros Então o Ribeira hoje tem dois caminhos, um que ele encontra o mar facinho, porque daí foi abrindo... E o outro caminho do Ribeira velho que vai lá na barra do Ribeira. Então o Vale teve uma importância lá em 1500, 1500 e pouco. Depois ele vai ter um certo... No século XIX, tá? Na época dos escravos. Depois ele vai ter no plantio do arroz, ele vai ser importantíssimo na alimentação, tá? Mais recentemente, depois, assim, tiveram algumas tentativas ainda durante o Dom Pedro Segundo de grupos poloneses, europeus e da Guerra da Secessão Americana. Aí depois quando começa a imigração japonesa, aqui ela é diferente de outras regiões, porque aqui foi uma colonização, tinha uma Companhia. É interessante ver isso, porque é diferente de outros pontos de imigração japonesa. Eles vieram, quebraram a cara várias vezes, porque tentaram gado e coisas que eles não tinham experiência... Tentaram até o café... Geraldo Müller diz que o Vale não foi pra frente na época em que São Paulo se abriu pro café, começou no Vale do Paraíba, daí vai pra Alta Mogiana, vai entrando... O café não deu aqui. Essa é a teoria do Geraldo Müller, que foi por isso. Não deu certo o café, ela ficou de lado Tem, e eu acho uma certa lógica. Porque se passou por um ciclo de riquezas foi o ciclo do café... Em São Paulo foi o café Depois veio indústria, mas que indústria veio aqui? Porque precisava combinar a questão bancária, a questão da indústria, todo mundo junto... A estrada ela parou em Juquiá... A estrada de ferro. Só com Juscelino... Quer dizer, a BR116 tá fazendo 50 anos. Muito nova É pouco tempo que você tem uma estrada, que ligou São Paulo a Curitiba. 50 anos não é muito, em termos de história não é nada. Então eu acho que... Daí tinha, quando eu cheguei aqui, tinha umas histórias que aqui ainda tinha ouro – porque teve ouro aqui Antes de Minas teve ouro ali no Alto Vale... Tinha um ouro meio superficial. Aí tinham umas conversas aqui, o pessoal dizia que tinham grandes reservas e que o Estado – quer dizer, na época ainda era ditadura, não interessava – que aqui era a grande reserva de ouro, então não sei o que, não sei o que lá... Não, o que teve foi lá antes da mineração em Minas, e uns veios aí, superficial, como eu acho que tinha no Brasil inteiro. Então aí que você tem cidades antigas lindas, como Iporanga, por exemplo, que era onde tinha mineração, tá? Então você tem um pedacinho desse aí. Mas aí ela ficou esquecida, ela ficou um caminho... Com a vinda da BR, há 50 anos atrás, aí o que é que se achou? Que essas terras iam ser valorizadas Essas terras eram do Estado, aí você começa um outro pedaço... Você tinha os caiçaras, você tinha os quilombolas que estavam aqui, os índios que sempre estiveram aqui, os japoneses que vieram, tá? E daí você começa a ter os grileiros, começa o período do fim dos anos 70, e até 83 tinha muita violência Isso aqui era muito violento P/1 – ...Como você viveu isso...? R – Começou no Centro de Saúde, vários casos Um deles, por exemplo, foram me chamar logo que eu cheguei, eu ia atender uma senhora que ela tava louca e precisava ser internada, precisava ser sedada, porque ela tava louca. E eu fui, era de noite, eu cheguei lá e não era louca coisa nenhuma, era desespero. Os grileiros tinham soltado porcos na plantação dela e tinham comido tudo, ela era viúva, tinha uma penca de filhos, ela tava era desesperada E aí a gente no Centro de Saúdes, eu conversava muito com meus pacientes: “O que é que você faz?”, “O que é que você trabalha?”... No começo eu mandava que eles fossem ao Sindicato, daí eu descobri que o Sindicato estava sobre intervenção, daí eu fui atrás do Seu Bonifácio, que tinha sido o último presidente, ele é um quilombola...Tá vivo, ah, é um cara que tem que conversar com ele As histórias... O que eu briguei na época, fui atrás de TV Cultura, fui atrás de tudo... Porque além do Vale, ele tem uma cultura, ele conta umas histórias que ele diz que o pai dele contava, então quando você tá numa reunião e a coisa tá pegando fogo, ele tirava umas histórias, parecia de conto de fadas, tá? Lendas, assim... E contava aquela história e tudo se acalmava Eu lembro uma vez numa reunião de posseiros, alguém falou que isso, que nós estamos fazendo e que isso e que tal... Aí ele virou e falou assim: “Eu vou contar uma história que meu pai contava: que tinha um príncipe que se importava muito com o que as pessoas falavam, muito Ele era preocupadíssimo com o que as pessoas falavam, e o rei queria corrigir aquilo no filho, mas não tinha jeito. Meu filho, não fica dando ouvido pra isso, pra aquilo. Mas não tinha jeito. Aí um dia ele mandou vestir o filho dele com a roupa mais feia possível, suja, andrajosa, assim.. E falou: Você vai atravessar a rua principal do reino levando uma taça cheia de líquido até a boca, se cair uma gota, vai ter um homem de cada lado de você com uma espada e vai cortar o seu pescoço. Aí diz que o cara atravessou a cidade inteira com a taça e não derrubou nenhuma gota, aí o pai perguntou assim: O que é que as pessoas falaram?. Não sei, eu tava preocupado com a minha vida.” Aí ele falava assim: “Tá vendo gente, vamos preocupar com a nossa vida, vamos deixar...”. Aí ele desarmava a reunião, assim, aquele clima. Mas ele tem histórias, gente É, assim, olha, adorava ouvir essas histórias do Seu Bonifácio Não só do ponto de vista histórico, mas esse lado que ele deve trazer lá dos ancestrais dele, da história e tal... Eles até hoje vivem a cultura coletiva, é um quilombo em Juquiá. É Iguape, mas a gente entra por Juquiá. P/1 – Ah, então eu vou ter que ir lá... R – ...Ah, tem que ir Tem que ir, tem que ir P/1 –.Mas vamos voltar: então na verdade você fazia reunião com ele...? R – Aí o Seu Bonifácio era uma liderança e daí quando eu fui conversar a primeira vez com ele, ele falou assim: “O que é que você, uma médica, tá interessada em saber de sindicato, saber de trabalhador rural...?”. Eu falei: “Seu Bonifácio, não adianta eu ficar trabalhando no Posto de Saúde e dando remédio, as pessoas não tem o que comer, não tem onde trabalhar, não tem onde morar, não vai ser com remédio que eu vou dar jeito. Elas precisam ter essas coisas, porque eu faço um pedaço, mas sem o resto não vai.”. Aí a gente conversou, conversou, conversou, e eu ganhei a confiança dele, a gente estabeleceu uma amizade que a gente tem até hoje, e daí o… Como é que se diz? Ele começou a reunir as lideranças. Um padre que tinha lá em Juquiá era um padre progressista, o bispo, Dom Aparecido, aqui em Registro também era. A gente sofria muita ameaça, tinha muito... Como é que chama? Os que... Apoiavam os grileiros, que eram os jagunços. Tinha o João Facão que era terrível E ele esfaqueava mesmo. E tinha o Araribá, que era mais da região de Sete Barras... E eram jagunços famosos, jagunços, jagunços no sentido... P/1 – iviam pela cidade? R – Não, viviam pelos cantos e tiravam as pessoas da posse da terra, pra passar a terra pra os grileiros, que eram pessoas de São Paulo que queriam ter terra aqui. Porque com a BR eles acharam que ia ter uma valorização rápida dessas terras. Porque as terras não tinham documentos, elas eram todas do Estado. Então quem teria direito era o posseiro, se ele comprovasse a prova. Então o que é que eles faziam? Eles faziam documentos falsos, de que lá de mil não sei onde, não sei o que, essa terra foi da família... Os grileiros tinham advogados, advogados de sindicatos, que fechavam com esses grileiros, como advogado de grileiros... E os posseiros não tinham advogados. Foi aí que a gente foi... A primeira vez foi um interno, o David, que era interno da USP e que ficou lá em casa, e eu contei pra ele tudo isso, ele falou: “Eu vou falar com a menina do XI de Agosto, ela é minha amiga”. E o Davidfoi falar com a menina dele do XI de Agosto. Aí ela veio e falou: “Isso não é coisa pra XI de Agosto, pra estudante” - que é o Centro Acadêmico, de estudante lá. “Eu vou falar com meu professor, porque isso nós não damos conta de dar apoio pra vocês”. (…) Aí ela falou: “Meu professor achou que a faculdade não tinha estrutura...” Aqui era longe, a estrada era pior... Aí o que é que aconteceu? Aí foi-se ao Dom Aparecido, bispo daqui, levou a gente pra conversar com a Comissão, que era o Zé Carlos Dias, Gregori, Dom Paulo Evaristo Arns... Aí esses caras foram atrás de ex-presidentes do XI, foi um grupo de ex-presidentes do XI de Agosto que passaram a dar apoio e serem advogados de posseiros. Aí a coisa começou a andar, porque tinha respeito, porque não eram, assim, advogados, eram pessoas formadas na São Francisco, então tinham uma formação, tinham uma militância política... Tinha gente do PCB, tinha gente de isso... Tinham várias tendências, mas isso não importava... E então os posseiros começaram a ficar fortes e a violência começa a diminuir. E a gente conseguiu ainda uma comissão de inquérito, uma CPI. E foi dessa forma que a gente foi cercando a violência, foi dessa forma... P/1 – Vocês que estavam fazendo isso não chegaram a ser ameaçados? R – Vixe Vixe, a gente vivia, assim, recebendo recado, isso a gente recebia... Eu tinha muito medo, mas é que nem eu digo: hoje eu não admito ter medo. Mas naquele tempo a gente fazia mas tinha medo. Dia em qu ficava sozinha em casa eu morria de medo. Em Juquié eu me sentia mais segura, porque como os policiais, eu tratava das esposas deles, mas eu tinha medo de jagunço, dessas coisas todas. A gente tinha medo. Mas a gente tinha pouca idade também . E acreditava naquilo em que tava fazendo. P/1 – Agora houve algum embate específico entre os grileiros e os posseiros já com esses advogados mediando? R – Teve Teve. Teve um que, meu Deus, isso daí até um amigo terminou escrevendo uma peça de teatro e ele resistia, era um posseiro que resistiu, eu ia lá, eu tinha que gritar desde lá debaixo que era eu, porque ele tinha uma espingardinha de matar passarinho... Aí ele resistiu à ordem... Porque os juízes mandavam eles saírem, porque o outro vinha com uma papelada falsa, mas tinha papel, e o outro só tinha que ele tava na posse da terra há um tempão, tá? Outro dia me ligou um de Miracatu que agora que saiu que ele é dono da terra, é uma briga, que começou lá nos anos, que eu tô aqui, no fim dos anos 70, e agora que saiu o papel dele. Ele me ligou: “Olha, vai ter uma festa, eu quero que você venha, que agora que saiu”... Olha, 30 e poucos anos depois, como essas coisas são demoradas... Mas essa daí eu lembro que eu liguei pro deputado, dizendo que a polícia ia tirar ele porque o posseiro diz que dali ele morria ali, mas aquilo ele tinha construído, ele tinha plantado e ele não ia perder aquelas coisas todas... Aí a polícia veio, mandou vir reforço de Santos, aí eu liguei pro deputado, pedi pra ele falar pro delegado e que me desse uma hora que eu ia tentar negociar. Aí a polícia parou lá uns quilômetros antes e marcou comigo: “Você tem uma hora”. Foi uma hora mais linda da minha vida, eu consegui convencer, tiramos todas as coisas dele, pusemos num outro canto, tá? Tiramos, limpamos, guardamos tudo... Uma professora escondeu ele na escola, ele tava com ordem de prisão, a gente sabia. Aí eu voltei com a maior cara limpa pra polícia e falei: “Ele não tava mais lá – uma hora depois – ele foi embora”. Aí entraram, viram que ele tinha ido embora, tudo bem . Isso depois a professora teve que depor pra falar se ela tinha escondido, eu fui depois se eu tinha escondido alguém com ordem de polícia, a gente: “Não, imagina E tal e tal”. E a gente tinha esses advogados que orientavam a gente. Mas, vixe Maria, foi a professora, fui eu... P/1 – E nesse momento como é que era a relação com a polícia local do estado, das prefeituras, como era...? R – Olha, em Juquiá, era aquele pedaço, eu era médica de todo mundo, então tinha esse lado que me garantia, tá? A gente era vista como uma nova geração de guerrilheiros que estavam chegando aqui. Chegaram a dizer no jornal, saiu que a gente veio pra fazer guerrilha de novo, veio pra fazer guerrilha e não sei o que... Nós não éramos muitos, mas a gente fazia muito agito... Nós éramos umas 20 e poucas pessoas de vários partidos e várias tendências e tal, mas a gente conseguia, por exemplo, teve um evento aqui em Registro que a gente reuniu mais de 200 posseiros. E nesse evento foi fantástico, aí pediu que cada escola conseguisse uma galinha, entre as pessoas e conseguimos arroz, então a gente serviu uma galinhada, ia ser o dia inteiro de discussão da questão de posse da terra. Aí à noite a gente tava picando as galinhas, fazendo comida, aquele bando de gente, aí chega um senhor de cabelo branco: “Ah, onde é que vai ser o evento amanhã?”. A gente falou: “Ah, vai ser aqui mesmo”. Era alguma coisa da igreja, claro, era onde tinha espaço que era oferecido. “Ah, tá, é que eu vim ver, tal, muito prazer”. E a gente com aquela mão suja. Eu lembro desse senhor estender a mão e caiu o prato. Gente do Céu, quase tive um treco, ele veio pra assistir, ele já tava bem velhinho e ele veio assistir o evento daqui da discussão dos posseiros, da posse da terra... Isso foi lindo Então são coisinhas assim... P/1 – Então isso a gente tá fazendo do final dos anos 70. R – E início dos 80. P/1 – ...E o que aconteceu depois disso...? R – Não, daí com a eleição do Montoro quer dizer, você começa um processo de redemocratização, o comecinho de fato, com a eleição do governador, foram criados organismos pra ver a questão da posse da terra. Começou, teve uma fase de regularização da posse da terra, daí você já não tinha uma polícia que era conivente com grileiro. A coisa se pacificou. E eles mostraram muita união os posseiros, mas se juntavam mesmo, assim, de muita gente A gente fazia encontros em Juquiá, Miracatu, Pariquera, Registro, e tudo quanto é coisa ele ia, sabe, assim? Foi lindo, viu? Fomos até Capão Bonito que também tinha problema, certo? E foi um movimento grande P/1 – Bom, então a gente tava nessa época de redemocratização e nesse grupo...? De que partido? R – Era um grupo, tinha assim um povo, que era assim: tinha o pessoal que eram ligados aos ambientalistas, porque já tinha o pessoal que brigava muito pela preservação das cavernas, do Petar, que hoje é a região do Petar, que é o Alto Vale do Ribeira. Tinha, quem era grande e de liderança era o Cleiton Ferreira Lima, que tem aí uma série de livros publicados e é um grande ambientalista, um espelhológo, acho que o maior espelhólogo brasileiro. O Cleiton circulava por aqui com a turma dele de ambientalistas, de biólogos, estudantes de biologia ainda... Eles estavam por aqui por causa da questão do meio-ambiente, porque no Alto Vale tinha uma fábrica de chumbo, que tinha todo um risco de poluir, então tinha esse pessoal que veio por causa da questão ambiental. Teve gente que veio por causa da saúde. Tinha professsores... Tinha professores, por exemplo, em Jacupiranga tinha um núcleo do PC do B que se formaram não sei como, mas eles apareceram. Tinham agrônomos, jovens. Era todo mundo jovem 20 e poucos anos, ninguém tinha chegado aos 30, tá? Naquela época. Eram todos de esquerda. Então... P/1 – ...E não eram daqui? R - E não eram daqui. E independente da militância que se tinha lá fora, aqui pra sobreviver ou todo mundo andava junto ou não fazia nada. Então o que era marca era ser de esquerda e não ser desse grupo ou daquele grupo... Isso daí... Então tinha a questão... Nós criamos com o Cleiton o Museu de Iporanga pra preservar as coisas daqui. Então a gente se misturava, era muita gente misturada Não éramos muitos, éramos umas 20 e pouca pessoas, mas de vários... Então era saúde, educação, tinha os ambientalistas, os agrônomos – veio uma leva de agrônomos jovens, tá? Um bando de meninos jovens que também eram ambientalistas. Por exemplo: deu pra trabalhar bastante a questão do agrotóxico na época, que matava gente pra burro aqui o agrotóxico. Então a gente juntava saúde com os agrônomos jovens, então a gente fazia várias parcerias. A saúde com os professores. O Cleiton com a questão ambiental com todo mundo... Então, assim, foi um momento do Vale, que, assim, era um grupo e todo mundo ia nas brigas um do outro juntos, entendeu? A gente comprava as brigas todas: a briga ambiental, a briga de uma questão de educação, de saúde, de agrotóxico, de preservação, de história... Certo? Então foi um momento, assim, que, vamos dizer, eu acho que os momentos de esquerda eles estavam mais concentrados nas grandes cidades. A gente acho que era um povo que gostava de mato, certo? Que gostava mais de... E também tinha o que fazer aqui P/1 – ...E como é que era a população local? R – Ela era rural. As cidades eram muito pequenas... P/1 – ...E os japoneses? R – Olha, era muito pequena. Se você for ver lá os anuários a maior parte da população era rural, então a gente trabalhava com uma população rural. P/1 – E eles enxergavam vocês como? R – No começo meio assustados, mas depois a gente virou uma turma deles, porque a gente ia lá nos cafundó. E, por exemplo, na saúde, a gente começou como agentes comunitários de saúde, antes de ter tudo isso. A minha primeira agente comunitária de saúde é de depois da Semana Santa de 77. Eu cheguei da Semana Santa e recebi uma cartinha, era de uma pessoa me mandando uma cartinha: “Olha, estou encaminhando a Catarina com a filha dela, a Fafá, que tá muito inchada, então eu acho que é problema de rim, e eu tirei o sal da comida, mandei ela controlar o xixi, não sei o que, tal e tal...” Assinado Dona... Ai que branco Já, já vem. Mas aí eu falei: “Quem?...”. Tava certinho. Ela tava com uma nefrite, a Fafá, a Fátima. Aí eu fui atrás da Dona Nilda, Dona Nilda A primeira chance que deu pra fugir do Centro de Saúde, fomos lá de jipe atrás dessa mulher. Eu perguntei pra Catarina: “Catarina, quem é ela?”. “É a parteira do bairro”. Aí eu fui. Aí eu vi que metade da cidade ela tratava, aqueles fundões eram dela e aqui pra cá era meu. Aí eu falei: “Dona Nilda, a senhora não quer aprender mais umas coisinhas, não? Fazer um estágio comigo lá no Posto?”. Ela topou e foi. Aí eu ensinei vacina, parará, um monte de coisa. Agora a parte de obstetrícia ela sabia mais do que eu. A hora em que ela apalpava um abdômen e falava: “Esse menino tá encaixado, esse menino vai pra cesaria”... Eu não ousava Ela era muito mais fera do que eu Aí tinha um postinho lá, um postinho... Tinha um predinho lá... Aí eu falei com o David, que também não tinha todos os parafusos na cabeça... P/1 – ...E o David tava sempre por aqui...? R – Não, ele ficou pouco tempo, ele foi embora logo. Mas nessa época de 77 ele ainda tava. Ele foi embora acho que no comecinho de 78, por aí... Aí eu falei: “Vamos montar um lugarzinho pra ela?”. E daí montei, eu falei: “Poxa, o povo não vai se vacinar lá, era uma viagem, a estrada era horrorosa”. Montei uma geladeira com vacina, ela aprendeu, parará, tal. Ensinei um monte de coisas O que é que era tuberculose, como descobria, como desconfiava de que a pessoa tinha tuberculose, como desconfiava que tinha hanseniase, pré-natal o que é que precisava acompanhar, a pressão da gestante, ela aprendeu a medir pressão. Daí montei esse postinho pra Dona Nilda. Ah, aí correu bem A cidade, os bairros rurais inteiros ficaram sabendo: “A gente quer também um postinho da Dona Nilda”. Aí eu falei: “Ai, meu Deus, mas ela eu achei meio pronta”. Porque ela era parteira, quer dizer, meio pronta. Aí: “A gente quer”. Aí me chamavam, todos os bairros rurais que eu fazia reunião nos bairros rurais com as professoras. Todas as professoras da zona rural uma vez por mês. Eu comecei com dez minutos e virou no fim: a parte da manhã minha e a parte da tarde pra educação. Eu fui conquistando isso. Então, daí era gente me chamando: “A gente quer também postinho”. Eu falei: “Gente do céu, tô perdida. A Dona Nilda já tinha um prédio lá no bairro, a Dona Nilda já era parteira, já entendia alguma coisa, como é que eu faço?”. E a barra tava muito pesada pra gente que trabalhava atendendo as pessoas, porque você atendia, atendia e não chegava a lugar nenhum. Aí a gente resolveu escrever um projetinho. Eu nunca tinha escrito um projeto na vida. Aí escrevemos lá um papelinho assim e levamos lá pra São Paulo. O chefe lá de São Paulo não entendeu nada: “O que é que é isso aqui...?”. Mas aí o Ministério da Saúde que tinha um pessoal: Mozart (?), Isabel Santos, Hortência Holanda – tinha um povo de resistência lá dentro, que vieram oferecer um dinheiro do PIASS – Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento – que era pro Nordeste. São Paulo nunca ligou muito pro Ministério, sempre se achou acima do Ministério da Saúde. Aí esse cara virou e falou: “Ó, tem um pessoal do Vale do Ribeira e querem lá fazer umas coisas”. Eles vieram e ficaram apaixonados E daí o Ministério financiou a gente diretamente. E depois o próprio Inamps nos financiou e a gente construiu postinho no Vale do Ribeira inteiro. Agora, como é que eram as regras? Eram assim: a gente passava três listas, o prefeito falava quais eram os bairros mais carentes, os professores e o pessoal do posto de saúde. Quando tinha três xizinhos juntos, ele era escolhido. Aí era um consenso. Eram visões diferentes, mas se os três... Aí a gente fazia reuniões no bairro, o agente era eleito. As regras eleitorais eram estabelecidas, cada bairro estabelecia quem vota, aí geralmente era assim quem trabalha. Aí era quem tem mais de 15 anos que trabalha. Aí eleitor é quem tem mais de 15 anos e trabalha. “Aí vota quem sabe escrever...”. Não, não, não precisa saber escrever – naquela época não tinha voto pra analfabeto. Aí por número. Aí listava as qualidade que a pessoa devia ter e quais os defeitos que não poderiam ter. Tá sem candidato. Aí: “Quem aqui no bairro tem essas qualidade e não tem esses defeitos?”. “Fulaninho, fulaninho, fulaninho”. Tá, então vamos lá. “E como que é que vai ser o voto?”. “É melhor no papelinho, sabe por que? Porque às vezes você é minha amiga, eu gosto de você, mas eu acho que você não tem jeito pra cuidar da saúde e vai ficar chato. Então é melhor no papelinho”. Aí a gente punha número: um, dois, três, quatro. E aí a gente pegava gente que sabia escrever, pra aqueles que não conseguiam nem... Que tinham essa dificuldade com número, aí punha no papelinho quem ele queria votar. A gente ficava que nem uns confessionários nos cantinhos, a pessoa dizia no ouvido da gente e a gente escrevia. Teve gente que teve mais voto que o Figueiredo pra presidente da república. Aí a gente criou toda essa rede de postinhos rurais. P/1 – … E o agente chegava a ganhar dinheiro? R – Ganhava. Ah, essa foi outra briga que a gente conseguiu: eles ganhavam um salário mínimo, conseguimos isso, carteira assinada e tudo P/1 – E isso teve um impacto de fato...? R – ...Teve Teve. Uma diminuição da mortalidade por diarréia, a vacinação... A gente era muito louca, porque a gente fez coisas que hoje... Mas naquela época eram eles ou eram eles Eu ia nos congresso eu apanhava muito, porque a gente fez isso, e eu falei: “Olha, você quer ir pro Vale, eu tô contratando agora, você que é médico e enfermeira, quando eu descer aqui, do congresso de saúde pública, pode me encontrar lá embaixo, que a gente contrata médico pra ir pra lá”. Mas não aparecia... Aparecia, vinha muita gente, veio muita gente da Paraíba, que era gente boa pra burro Que eu tinha amigos que eram professores lá da Faculdade da Paraíba, que eram do Rio e foram pra Faculdade da Paraíba. Eles ficaram muito tempo lá na Paraíba. Daí eles avisavam quando eles tinham bons alunos, porque lá era só, não era por concurso, era só indicação política, então o povo que era de esquerda não tinha a menor chance, daí eles davam a dica e esse povo vinha pra cá. Então a gente tinha vários paraibanos excelentes que trabalhavam aqui no Vale. P/1 – … Vocês foram construindo uma rede. E socialmente, como é que era isso, vocês iam ao bar, vocês tinham uma vida social, esse grupo...? R – Mas ela era mais... Tinha, a gente participava das festas populares muito O que eu dancei de quadrilha, pelo amor de Deus A gente participava de festas populares, de reisado... A gente não perdia uma festa “Ah, tem festa lá, aniversário de tal cidade, aniversário disso...”. A gente ia muito nas festas populares, e fazia festas nas casas da gente, tinha muito esse hábito de juntar na casa da gente: de fazer uma comida, de fazer uma coisa... Tinha muito esse hábito de reunir.. Era muito legal Tinham os medos, tudo... Tinha hora que... Eu, por exemplo, no último mês do governo antes do Montoro, eu fui chamada em São Paulo, no meio do caminho eu sofri um acidente fui atropelada, quebrei esse joelho e tal. E eu tive que tirar licença e tal, essa coisa toda, porque foi meio sério. E daí nas vésperas do Montoro tomar posse, eu fui chamada no Departamento Médico do Estado. “Ih, deve ser encrenca ainda daquela licença”. Catei minhas radiografias de joelho, de não sei o que, de tudo, e fui pra São Paulo, pro Departamento Médico do Estado. E quando cheguei lá: “Não, é na psiquiatria”. Eu: “Não, não, é na ortopedia”. Cheguei lá, chego e mostro pro médico, ele viu as radiografias e tal. E aí era psiquiatria mesmo, porque o diretor regional escreveu uma carta dizendo que eu era louca e aí seria fantástico se... Aí eu devo ter caído na mão de psiquiatra errado, aí o psiquiatra leu a carta que tava no prontuário, aí ele virou assim: “Você tem problemas políticos?”. Aí aquele medo: “Abro ou não abro?”. Daí resolvi – ele tinha uma cara confiável, eu falei: “Tenho”. “O que é que você faz?”. “Eu faço agentes comunitários, eles são eleitos pelo povo, isso, isso, isso”. Aí ele leu a carta pra mim: eu tenho essa denúncia, que você é louca. Aí ele falou: “Vai, filha, vai lá cuidar dos seus postinhos, vai embora”. Eu saí daquela Rua Maria Paula chorando feito uma louca Assim, chorando, assim, doído Mas, quer dizer, tinha repressão, a gente sofria muito Tiraram... Eu fiquei três meses de gancho na Secretaria sem ser enquadrada em artigo nenhum, fui suspensa sem ser enquadrada. P/1 – ...Isso foi antes do Montoro...? R – ...Antes do Montoro Depois não. Aí eu fui diretora regional, aí o Nunes queria que eu fosse pra São Paulo, mas o pessoal daqui: “De jeito nenhum”. Acho que foi a única vez que teve uma posse de diretor que encheu o salão lá da Regional e a rua todinha Todos os trabalhadores rurais, todo mundo veio pra posse Nossa, foi lindo Aí eu lembro que eu usei o tempo todo aquela música do Chico: “Apesar de Você”. Foi assim um dos momentos comoventes da minha vida. Sabe, assim, aqueles trabalhadores todos na posse, todos os bairros rurais do Vale Foi uma coisa de louco Porque posse de diretor não tem, nem tem posse e tal... E daí outra coisa que só, assim, sei lá, acho que já tá estourado o tempo... Que eu tenho muito orgulho é da biblioteca, que foi de um movimento de solidariedade que a gente sentiu durante as enchentes de 83, a gente recebeu muita coisa de muito lugar, e isso mexeu comigo Mexeu comigo ler o livro do Umberto Eco, da rosa... “O Nome da Rosa”. E eu com uma casa cheia de livros até o teto, daí eu falei: “Meu Deus do Céu, que coisa horrível”. Aí montei a biblioteca no fundo da Regional e via as criancinhas indo fazer tarefa lá na Regional, tá? Essa biblioteca ela foi crescendo, teve que sair de lá e foi pra uma casa enorme da agricultura. Teve que sair de lá porque não cabia mais livro... Um monte de gente da década de 80, 90, estudou nesses livros... Eu escrevi pra Brasiliense, pro filho do Caio Prado (…), ele falou assim: “Mas eu vivo de vender livro, mas a sua carta me comoveu muito”. Mandou aquela coleção Primeiros Passos, mandou tudo, tudo, tudo. Mandou aqueles livros todos Era de qualidade, não eram aqueles livros que ninguém quer mais Então agora tá construindo o prédio, então agora vou ver os livros de novo, que é um monte de livro, de vez em quando perguntavam: “Você tem tal livro?”. “Ah, tenho. Ah, não”. Porque eu achava que eu ia ficar eternamente aqui, a hora em que eu precisava eu ia lá e pegava o livro na biblioteca, agora eu vou poder pegar de novo (riso). P/1 – Então vamos só recuperar essa sua trajetória: em um dado momento então você saiu...? R – Eu saí em 87 pra ajudar na reforma da Secretaria em São Paulo, aí eu fiquei até janeiro de 89, não me compatibilizei com o governo Quércia, nem com a administração Pinotti. Aí eu pedi pra sair, fiz a carta de demissão, deixei prontinha, aí voltar pra cá a Cristina tava na direção regional e eu achei que era o momento dela... Isso eu nunca disse antes, mas eu achava que era o momento da Cristina Turazzi, uma grande sanitarista Uma pessoa que é uma pena que você não vá poder entrevistar porque ela tá doente, mas muito grave. Ela teria mil coisas pra contar também. E a Cristina Turazzi tava na direção e eu achei que eu não devia voltar, que talvez eu atrapalhasse porque eu sou meio elefante numa sala de cristal. E a Cristina era super zen, é super zen Então eu prestei concurso pra Faculdade de Medicina de Marília, estadual, fiquei lá 20 anos dando aula. 2007 eu vim pra uma festa aqui em Registro. A Sandra falou: “Eu vou sair candidata de novo, se eu ganhar você vem?”. Eu falei: “Venho”. Aí ela mandou um e-mail: “Fiz a minha parte, venha fazer a sua”. E eu tô aqui tentando. Mas apaixonada É que nem a música do Chico, Sabiá: “Vou voltar, sei que ainda vou voltar”. Eu sempre dizia que o Vale era minha paixão não resolvida. Eu tava lá em Marília e minha paixão não resolvida era o Vale do Ribeira. Agora eu tô resolvendo. Tá resolvida . É que nem Sabiá: “Vou voltar, sei que ainda vou voltar pro meu lugar”. É aqui o meu lugar, eu acho, não sei, tem uma química, alguma coisa aqui mágica Certo? Valeu Obrigada
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