E: Eu ia pedir que se identificasse, que nos dissesse o seu nome, idade, local de nascimento. Pronto, local de nascimento...
e: Cabo Verde. Ilha de Santiago. Praia, cidade capital. Nascido numa localidade de Achada Leitão. Em 1957, portanto, faz exatamente este ano sessenta e seis anos. O falecido pai da minha falecida mãe era português, nascido no continente. Eu também era português, embora nascido em África, mas aqui era um continente português. E ele passou para Cabo Verde. Nasceu a minha mãe, casou com o meu pai, que também era de lá. Nessa altura, quando eu nasci, esse falecido avô... então, eu era o neto querido dele. Portanto, quando eu nasci, ele gostava muito de mim. E depois, ia-me buscar a casa dos meus pais, eu lá com ele, para passar alguns dias em casa dele. Eu ia fazer traquinices, escondia-me, e ele ia-me andar à minha procura, ia para a casa da minha mãe, ia-me procurar-me: “Olha, ele não chegou, não está cá, não sei o quê”. Só fazia traquinices com ele, e ele gostava disso. Eu, quando cresci, e fui para a escola, ele gostava muito de mim. Quando faleceu, eu tive um choque muito grande. Mas, tudo passou. Depois, a idade de escola... tenho a quarta classe, que fiz lá, em Cabo Verde. Depois, aos 16 anos, embarquei para cá, para Portugal, para trabalhar. Porque Cabo Verde é um país pobre, toda a gente sabe. Nós vivemos lá de turismo e para a pesca, não há mais nada. Passam-se meses sem chover, em Cabo Verde. Então, eu vim para Lisboa, cheguei lá, comecei a trabalhar, à beira do meu irmão mais velho. Mas eu... passados uns tempos, fiquei sem trabalho em Lisboa. Deu 25 de Abril, pronto. Fiquei sem trabalho. E o meu irmão estava a trabalhar, vivia na casa do meu irmão, com a minha cunhada e os filhos. E, no entanto, disse que aquilo não era a vida para mim. Deixei o meu irmão a trabalhar. A minha cunhada foi levar os miúdos ao infantário. Eu peguei da minha mala as minhas coisas, cheguei a Santa Apolónia, o primeiro comboio que partia era para o Porto. Pronto, eu vim para o Porto. E cheguei em 74. Depois que chegou o dia 25 de Abril, havia dificuldades em arranjar emprego. Então, eu comprei o jornal, fui ao serviço de anúncios e vi que se precisava de um rapaz para lavar louça num restaurante. Comecei a trabalhar, a lavar louça no restaurante. Desenvolvido depressa, cheguei a ajudante de cozinha, saí da louça. Fui para ajudante de cozinha, ajudar o chefe a trabalhar na cozinha. E aprendi a cozinhar até chegar ao chefe de cozinha também. E foi a minha vida. Conheci a mãe dos meus filhos. Tivemos três meninos giros, duas gémeas e um rapaz mais velho. Faz este ano 37 e elas têm 29 anos. As gémeas são enfermeiras, estão lá para a Inglaterra. Soube pelos outros, não é por eles. Porque quando nos separámos, eu e a mãe deles, tive uma fase infeliz. Eu disse: “se vocês forem com a vossa mãe, nunca mais vos quero ver”. E pronto… aquilo se calhar ficou gravado. Eles não procuravam por mim, eu também não procurei por eles. E ele acho que é professor de educação física, tem um salão onde dá aulas. Não sei aonde também, não quero saber. E é assim a minha vida. Nós chegámos a ter um apartamento, com três quartos.
E: Nessa primeira casa onde vivia com a sua ex-mulher?
e: Sim. E depois quando nos separámos, fiquei sozinho. Também perdi o emprego, porque bebia muito. E eu não conseguia pagar a prestação da casa. Chegámos a acordo, vendemos a casa, cada um foi para o seu lado. E de bebidas em bebidas até vir parar aqui.
E: Vou voltar um bocadinho atrás, voltar à sua infância, falou que tinha um irmão, esse é o único...
e: Não, eu tenho onze irmãos!
E: Então, como é que era crescer numa casa com onze irmãos? Tudo de Cabo Verde? É. Como é que foi? A sua infância com esses irmãos todos?
e: Tivemos uma vida... desafogada, porque o meu pai era ferreiro. Tinha uma oficina, onde ele tratava as coisas, fazia umas coisas... Eu e a minha mãe íamos para o mercado, às quartas e aos sábados. Íamos vender as coisas que o meu pai fazia e assim sobrevivíamos com isso.
E: Que costumes é que tinham em família? Além de ir vender com a sua mãe, que mais costumes, o que é que costumavam fazer em família, todos juntos?
e: Olha… Cada um tinha o seu animalzinho para governar. Eu, por exemplo, tinha uma cabra e um bode. O meu irmão tinha um boi. O outro meu irmão tinha uma vaca para dar de beber, para dar palha, e buscar palha, não sei onde, mas íamos buscar. Tínhamos de governar os animais que tínhamos. Uns governavam galinhas, outros porcos. E as meninas eram para ajudar a mãe a tratar da roupa. Se não houvesse água na torneira do chafariz, porque cada zona tinha os seus chafarizes, iam buscar água e ajudar a mãe a tratar da casa. Nós, os rapazes, éramos para tratar dos animais que havia. Ir a um ribeiro, não sei aonde, estava muito longe. Para arranjar a água, para ir dar de beber aos animais. E tratar das galinhas, dos porcos, dos animais. Uns ajudavam o pai na oficina, outros ajudavam a dar comida aos animais. Foi assim a vida que a gente teve.
E: Como é que era a casa onde cresceu?
e: Nós tínhamos duas casas. Tínhamos uma oficina, onde alguns pernoitavam na oficina. Mas chegava de manhã, tudo fora. E tínhamos mais duas casas. Uma para as meninas e para os meus pais e outra para os rapazes.
E: Então como é que foi crescer nessa casa, com os seus irmãos rapazes?
e: Roupa para o chão e para todo o lado. Calçado era só para os domingos para missa. Quando para uma festa, ou coisa assim, no resto era sempre descalço.
E: Como é que era o bairro? Tinha muitas crianças nesse bairro? Como é que era?
e: O meu pai tinha um chicote atrás da porta. Ou o cinto, tirava o cinto, ou o que tivesse à mão. Quem falhasse com as ordens dadas, com as habituais ordens que nós tínhamos, que era tratar os animais e fazer as coisas que tínhamos de fazer, se tivéssemos que ir para a escola, tínhamos que estudar a lição, e era isso.
E: Quais eram as suas brincadeiras favoritas? Brincava com os seus irmãos ou também tinha amigos no bairro, ali na zona?
e: Treinava-me a jogar carambola no chão, a jogar pião, saltar o eixo, baloiçar nas cordas, era isso, o passatempo que a gente tinha. E os estudos também, que eu ia para a escola, quem não soubesse, eu consegui fazer a quarta classe lá.
E: Então, qual é a primeira lembrança que têm da escola, quando foi para a escola? Lembra-se de alguma coisa que o tenha marcado, de ir para a escola?
e: O marco maior é jogar a bola, quando estávamos no recreio. E a convivência, pronto. Mas não tenho assim grandes recordações.
E: Como é que era o professor ou a professora?
e: O nosso professor era exigente, muito mau. Dava porrada por tudo e por nada. Bolachadas, castigos… Depois tinha uma vara de marmeleiro, que aquilo bate e dobra. Se bate em cima do ombro, dobra para as costas. A roupa era só uma camisinha qualquer, aquilo faz calor lá em Cabo Verde, é 30 graus para cima. É muito quente. E nós lá, passávamos uma vida difícil em Cabo Verde.
E: O senhor Rui, tinha boas notas ou portava-se mal na escola?
e: Quando chegasse a altura dos exames, aí tínhamos de saber porque senão levávamos porrada e palmatória… bolachadas nas mãos, Deus me livre…. O professor apertava muito connosco. Eu tenho um irmão que nunca aprendeu a escrever o nome dele. Ele levava porrada todos os dias, mas não aprendia. Já não havia hipótese. Agora, tenho um irmão que é de excelência. Ele é empreiteiro, vive na Suíça. Tem empregados com ele. Faz a ladrilhagem daquelas pedras pequeninas para espalhar no chão. E ele vive bem, graças a Deus. Houve uma altura que eu já cá estava no Porto, e ele fez-me uma oferta para ir lá. Mas eu como estava bem na altura, não quis, mas se fosse, talvez seria melhor.
E: Então, estava a falar que ia para a escola com os seus irmãos e com os meninos que também eram daquela zona. Como é que iam para a escola? A escola era perto de casa?
e: Não, era como, por exemplo, daqui a Paranhos. Ainda um bocado mais. E sempre a pé, descalços. Íamos e vínhamos. Às dez horas tínhamos de estar todos na escola, senão era... o fim do mundo. Às vezes apareciam brincadeiras no caminho, subir umas árvores para roubar mangas ao vizinho. E para mais, se chegássemos atrasado, eram bolachadas logo. Depois, o professor, na viagem para casa, que ele tinha uma motoreta, chegava e fazia queixa aos pais e levávamos mais.
E: E depois começou a crescer… Nessa juventude, lembra-se quando é que começou a sair sozinho ou com os amigos?
e: Sair sozinho é muito difícil lá, porque nós, quando saímos, nós estávamos quase sempre em grupo. Vizinhanças e… nós tínhamos três casais que eram nossos vizinhos, todos tinham filhos. Lá filhos, eram carradas de gente! Nós saíamos quando íamos para os lagos tomar banho, éramos quase sempre em grupo.
E: Alguém lhe contava histórias? Como? Alguém lhe contava histórias?
e: Sim, há sempre histórias que se contavam, dos mais antigos, que é que se fazia, que se dava a fazer, mas agora também.
E: Gostava de ouvir essas histórias que lhe contavam?
e: Sim, toda a gente gosta de ouvir, toda criança gostava de ouvir histórias. Mas a história se contava, eu já nem me lembro. Mas sempre contavam, claro.
E: Eram histórias da família, histórias do trabalho?
e: Histórias de lobos, de lobos maus também.
E: Também de fantasia, não é?
e: Exatamente.
E: Como é que era então o grupo de amigos? Eram esses vizinhos…
e: Os amigos eram quase sempre para fazer brincadeiras, que eram estúpidas, não é? E foi um lado ou foi o outro, e quando tínhamos um pouquinho de liberdade, juntávamo-nos e íamos para os vizinhos roubar coisas. Roubar mangas, roubar bananas, ou cana-de-açúcar. Quem tinha regadio, tinha plantação de canas, tinha banana, e tinha também manga. O coqueiro também subia. Olha, uma história, o irmão mais novo que eu, o Nano, subiu lá em cima no coqueiro, agarrou um galé seco, arrancou e ele veio para baixo. Nós tínhamos sempre, no chão onde está o coqueiro, a palha de cana-de-açúcar que amortecia a queda. Se caiu, se partiu o pescoço, ia para o carago. Mas caiu no lombo, caiu e não teve nada. Lá em cima do coqueiro. Mas eu também ganhei o medo, nunca mais subi ao coco! A vida é engraçada. O que a gente passava muita fominha, passava lá em Cabo Verde. Quem vivia ali do mar e ia para pesca, tinha sempre peixe fresco. Tinha sempre. Lá a fartura que temos de alimentos era peixe fresco. Ou quem tem um regadio…. Aliás, quando cheguei a Lisboa, eu e o meu irmão, o meu pai tinha um poço grande, onde tirava água para fazer... A gente tirava numa lata, subia a corda, fazia regadio. Depois chegámos cá, eu e o meu irmão comprámos um motor e mandámos para lá para puxar água para fazer regadio. Ele ficou contente. O meu falecido pai fez obra com aquilo.
E: Então veio para Portugal com o seu irmão, nessa altura, muito jovem…
e: Mas meu irmão já cá estava, já estava no lugar. O meu irmão está com 67 para 68.
E: Ele veio então primeiro?
e: Primeiro, pois. Depois mandou o dinheiro para a viagem para mim. Na altura, em 73, custou 2 contos e 700 para a viagem de avião.
E: Como é que foi chegar a Portugal? Lembra-se qual foi a imagem que teve?
e: Eu lembro-me que quando cheguei no aeroporto estava o meu irmão à minha espera. Aliás, o meu irmão tinha vindo para cá com o tio meu, também. Então fui viver na casa dele. E arranjou-me de trabalho, na construção civil. Foi a partir daí que eu... quando se deu o 25 de Abril, perdi o emprego. Então foi quando eu vim para o Porto.
E: Mas assim, quando chegou, lembra-se da primeira impressão que teve de Lisboa? Era muito diferente?
e: Foi, fogo! Não tem comparação! Muita gente, com muita confusão. E eu disse ao meu irmão que ia embora. “Se tiveres dinheiro para pagar a viagem, vai” (risos). Porque cheguei cá, ainda estava a chuviscar na altura e estava frio. Mas comecei-me a ambientar e tal…
E: Então o seu primeiro trabalho foi na construção civil?
e: Foi na construção civil. Eu tinha um primo também que estava cá também. E ele passou lá nos Correios, e viu a inscrição para quem tiver a quarta classe… então eu fui lá fazer a inscrição. Passados 15 dias a chamaram-nos para prestar provas. Fui lá e fomos aceites, graças a Deus. Depois era trabalhar de bicicleta, a distribuir telegramas. Ganhava pouco. Na altura ganhava dois contos. E se fazia o desconto, recebia 1 conto e 750. E... Claro, o meu irmão trabalhava na Doca e ele então fazia horas extras, chegava a casa com 30 e tal contos por mês. Na altura, em 73, era muito dinheiro. E aí então, eu perguntei-lhe se não me arranjava lá à beira dele… E então fui trabalhar para a beira do meu irmão, mas deixei os correios. Mas depois deu-se o 25 de Abril, 74, e o pessoal que lá estava mais novo… começou a faltar barcos e foram todos despedidos. E eu então, o que ia fazer? Fui fazer inscrição outra vez para os CTT ‘s, mas... Já não havia vaga, não fui chamada. Então foi quando eu peguei as minhas coisas e o resto veio para cá, para o Porto. E isto porque o primeiro comboio era para o Porto! Se fosse para o outro lado, eu ia para o outro lado.
E: Então chegou aqui, foi ao jornal, viu que havia essa vaga para lavar pratos... Onde é que era que estava a trabalhar.
e: Chamava-se o restaurante Trave Negra. Na Rua Antero de Quental.
E: Foi sempre no mesmo restaurante que esteve a subir nos vários postos, como estava a contar há bocado?
e: Foi na mesma casa que eu... Desde lavar loiça, até ajudante de cozinha. Mas como o ajudante de cozinha que estava lá na altura, foi para chefe de cozinha em Matosinhos. E então, como nós éramos mais ou menos da mesma idade, ele gostou de trabalhar comigo e... Chamou-me, que eu estava ali na Trave Negra, chamou-me para a beira dele. Fui para ajudante dele. Ele como foi para chefe, eu fui para ajudante. Pronto. Fui trabalhar para a beira dele. Arranjou-me a ganhar mais, pronto. Um dia virou-se para mim e disse: “Rui, tu és capaz de ficar aqui à frente da cozinha? E eu digo-te mais ou menos, eu vou falar com o patrão e tu ficas aqui. Porque eu vou ganhar muito mais. Vou trabalhar num restaurante ali na Alfândega. E tu vais ficar aqui. Vais ficar de chefe.”. E eu disse-lhe “ó Carlos, não sou capaz de fazer isso.” Ao que ele respondeu “Vou-te explicar, e se tiveres dificuldades, ligas para mim, ou vais ter comigo, no intervalo e tal, eu explico-te.” Pronto, e assim fiquei. E o patrão começou a gostar. E eu, pronto, fiquei já de chefe da cozinha, quando ele foi trabalhar para o outro lado. Então, pronto. E passados os tempos, olha, torna-me a chamar. Diz-me assim que eu ia ganhar mais. “Anda aqui, eu arranjo-te aqui para a minha beira. E tu vais ganhar mais. Na altura já ganhava 7 contos e 500. Era bom! E então, fui trabalhar para a beira dele outra vez. Deixei ficar o restaurante, que é um restaurante muito conhecido lá em... Ainda hoje é. Mantém-se, que é o Restaurante Mauritânia. Acho que é na Rua Brito de Capelo, lá em Matosinhos. Então, eu trabalhei na Alfândega à beira dele. Num restaurante com casa de fado, que se chama Casa de fado Malcozinhado. Não sei se recordas, mas era uma grande casa de fado, onde atuavam grandes fadistas que vinham de Lisboa e grandes artistas que vinham do Brasil, também iam lá cantar. Só trabalhava de noite, até às quatro da manhã. E eu fui lá já ganhar dez contos. De sete contos e quinhentos para dez contos… era uma diferença muito grande, na altura! E então, passado uns tempos… Ele também arranjou um trabalho em Vila do Conde, um restaurante em Vila do Conde, já nem me lembro como é que se chama, que ele ia ganhar muito mais e deixava-me ficar a chefe de cozinha - "Oh este gajo vai me dar cabo da cabeça". Mas comecei a puxar muito e desenvolvi bem. E, no entanto, fiquei lá também como chefe da cozinha. Fiquei já a ganhar, já como chefe da cozinha lá na altura. Passei para dez contos. Dez contos. É muito bom. Pronto. Fiquei de chefe da cozinha. E um fadista que era um... lá... que era quase gerente, era gerente mesmo, que estava à frente da casa, gostava muito de mim, pronto. Chamava-se Gil de Vilhena, tinha uma voz que era um grande fadista. Comecei a ter conhecimentos com fadistas. Iam para a cozinha, fazer festa, "Está tudo muito bom. Tu és uma maravilha", e tal e o carago e pronto esse Gil de Vilhena, que estava gerente à frente da casa, também deu-lhe na cabeça para abrir uma casa na ribeira de Gaia, na Avenida Diogo Leite, da parte de Gaia. Depois... tinha lá uma casa chamada Solar das Caves, agora mudou de nome. E ele, então, foi lá abrir uma casa e levou-me com ele. Levou-me com ele e já fui ganhar 15 contos. É, eu disse tá bem, pronto. Fui para chefe da cozinha. Ele quase que levou os empregados todos de lá e deixou ficar o homem sem empregados. Bom, era uma aventura, fui trabalhar para a beira dele. E ele vivia em... tinha muitos cavalos, alugava cavalos, tinha uma quinta em Granja, bem perto de Espinho. Comecei a conhecer grandes fadistas, como o Carlos do Carmo, só a Amália Rodrigues é que nunca veio cá cantar na casa dele, mas o Carlos do Carmo, os grandes nomes do fado nacional, conheci-os todos lá. E era uma festa, carago, essa gente... Mas são uns borrachões, carago, que bebiam whisky, que era uma coisa... Eu aprendi a beber whisky...foi com eles, com essa gente. Assim, se isso é para dar voz, não sei que mais... para melhorar a voz, tinham que beber, e comer à beira do lume e bebiam, que era uma coisa... Mas também comiam boas comidas. A comida era do bom e do melhor, de lombo, bons robalos grelhados, bons linguados, bons rodovalhos, arrozinhos de tamboril com gambas, ui, fazia grandes pratos lá para eles. Tinha mesas grandes, cheias de gente, de famosos, que vinham de Lisboa, do Brasil. Grandes nomes, como a Maria Bethânia, ainda a vi uma vez a Maria Bethânia lá... E o outro grande cantor brasileiro, como é que ele se chama?
E: O Caetano?
e: Sim, o Caetano Veloso. E mais um nome também muito famoso, lá do Brasil. Não me lembro também agora do nome. Não me lembro o nome.
E: Iam lá todos, iam lá todos jantar.
e: Sim, iam lá muita, muita gente famosa. Cantores... acho que foi Fafá de Belém. Fafá de Belém, exatamente. Também lá esteve uma vez. E foi dali. Ora... Também... frequentava lá também um dos donos do restaurante Cidade. O restaurante Cidade quando abriu, foi com o Alferes Pereira, que era o dono da Mucaba lá em Gaia, também. Não sei se vocês conhecem, da Avenida da República, o restaurante Mucaba. E era o Alferes Pereira, Fernandes Fernandes e um outro que já não me lembro o nome, mas esse Alferes Pereira, que era o dono dele, também chegou a frequentar a casa de fado. E ele reuniu com mais dois e abriram o Cidade. Abriram o Cidade e chamou-me ali para o Cidade. Mas o Cidade era uma casa muito grande, depois tinha um chefe de cozinha e eu fui lá como ajudante. Mas este chefe de cozinha também foi para um hotel em Gaia e deixou-me lá ficar de chefe de cozinha [risos] do restaurante Cidade, e eu "oh que caraças, já vou", arranjou-me um ajudante e eu fiquei de chefe da cozinha ali do Cidade, ui rais parta a minha sorte. Não é que passado uns tempos, aparece um industrial que é lá de... era de uma terra de vinho famoso, do lado de cima, do Minho, de vinho alvarinho. Monção! Monção que fica à fronteira com a Espanha, com Vigo. E esse homem ia abrir uma churrasqueira ali na Praça do Marquês e eu gostava, fui cliente lá e gostava da comida que ele fazia e fui abrir o restaurante. O Restaurante Churrasqueira Galinhola, não sei se vocês ouviram falar, na Praça do Marquês, aquela churrasqueira que fica ali mesmo na frente aos Correios, na Praça do Marquês, era esse. Agora acabou a churrasqueira, passou a outro nome. Foi-me chamar ao... ao restaurante Cidade para trabalhar com ele. E eu cheguei... porque já estava a trabalhar, estava quase no fim do mês e já estava quase a chegar ao fim do ano, tinha um mês de trabalho, um mês de subsídio, de férias, e ele disse assim "Tu vens trabalhar comigo e eu dou-te X para vires trabalhar comigo" e eu disse epá, muito dinheiro na altura caramba, e eu chego à beira do patrão que estava lá, o gerente, e disse assim "olha, vou-me embora trabalhar para ali porque dão-me mais dinheiro" e ele "Nem penses! Nem penses, carago, nós dámos esse dinheiro também!". E eu cheguei à beira dos outros, assim... "Olha dão-me o ordenado que vocês me dão e eu vou ficar... Não posso sair. Tenho preferência de ficar que eu tenho conhecimento que..." e eles "Não, não, não. Tu nem vais sair daqui!" e fechou-me lá dentro e disse-me "Pago-te o que tens lá a receber. Pago-te tudo e dou-te 150 contos e tu vais já ficar aqui". 150 contos, isso em 83, 84 mais ou menos, sim "dou-te 150 contos e tu vais já ficar aqui. E vais já comigo fazer as compras". Fomos ali ao Tremendão, na Rua Bom Jardim, ao Tremendão, não, aquela casa de... de comércio de indústria que tem lá toda a ferramenta para a indústria. Vamos lá fazer as compras e tu vais já começar a trabalhar comigo. Ele não me deixou ir, raptou-me, pronto. E eu... Ele pagou-me tudo. Pagou-me tudo e abrimos a Galinhola Churrasqueira e foi lá que eu trabalhei durante 28 anos, até 98. Até 98 com ele ali, mas... estava viciado em bebidas, álcool, e o caraças... Chamou-me bêbado, chamou-me bêbado, até aí eu admitia. Bêbado e incapacitado. Quando ele me chamou de incapacitado, estragou tudo. Eu deixei ficar tudo. Deixei ficar o ordenado que tinha para receber. Deixei ficar subsídio de férias, subsídio de Natal, deixei ficar tudo. Ele tinha praticamente, ó... deu-me... tinha-me dado um televisor, a cores. Tinha-me dado... tinha-me sido padrinho na compra de casa, foi ele que ficou fiador no BCP. Comprei a casa. Foi a minha vida. Tudo por água abaixo.
E: Então depois ficou desempregado nessa altura. E teve mais algum emprego depois?
e: Depois andei a saltear por aí. Já não tinha cabeça para trabalhar. Estava tudo... A minha vida... estrondou. Veio a separação. Ficou tudo.
E: Disse que tinha uma ex-mulher, não é? Como é que conheceu a sua ex-mulher?
e: Foi no restaurante Cidade, onde nos conhecemos. Ela ficou logo grávida do filho mais velho, que agora faz... que agora fez, em janeiro, fez 30 anos.
E: Como é que foi ser pai?
e: Babado, claro. Primeiro filho. Foi triste, ainda hoje é triste. Mas, olha... não há volta atrás. Quem cantava essa? O tempo volta para trás. Foi assim a minha vida. Fui até parar aqui no... no Albergue.
E: Mas teve mais duas meninas, depois umas gêmeas. Ainda viveu com a sua ex-mulher com os meninos todos?
e: Sim, ele já tinha 13 anos e elas tinham 6.
E: E como é que foi com as meninas? Nasceram as meninas, as duas gêmeas.
e: As duas gêmeas foi... um espetáculo. Enfim...
E: E casou?
e: Não, não cheguei a casar.
E: E então, continuou sempre a viver cá na cidade do Porto? Ou, entretanto, mudou-se? Nesse período em que andava nos vários restaurantes, ficou sempre no Porto ou andou em Gaia, Matosinhos...?
e: Não foi em Gaia, mas foi... na Avenida Marechal Gomes da Costa, lá em baixo tinha um restaurante Serralves, também trabalhei ali, também trabalhei aqui no Pedro dos Frangos. E trabalhei também no... Bonanza. Também trabalhei ali no Bonanza. Depois andei assim.
E: Em vários sítios, não é? Já percebi que conhece muito bem a cidade do Porto, que descreve muito bem as ruas e tudo isso.
e: Conheço muito bem as ruas, porque eu caminho muito a pé.
E: Como é que descreve a sua vida hoje na cidade? O que é que gosta de fazer na cidade? Como já disse, gosta muito de andar a pé e andar muito a pé...
e: Exato, é isso que eu faço aqui na cidade. Caminho muito a pé. E conheço muitas ruas aí do Porto, conheço. E é isso, foi a minha vida.
E: E como é que é estar agora aqui no Alberto? Tem coisas boas? Gostas de estar aqui?
e: Gostar de estar aqui, isso eu gosto porque o ambiente também favorece, mas eu gostava antes de viver na minha casa. Gostava também que me saísse o Euromilhões. Tenho esse sonho e se calhar, a partir do mês que vem, já acho que vou meter a minha reforma. Já fui lá saber, no dia que eu completo um mês e um dia, depois dos 66 anos, posso meter a minha forma, que eu fui lá saber disseram-me sim. E metendo a reforma, passado 3, 4 meses deve vir e eu, entretanto a partir daí, vou abandonar isto e vou arranjar um quarto. É isso que eu estou à espera.
E: Então é o seu objetivo agora, a curto prazo, que vai conseguir concretizar.
e: É.
E: E tem mais sonhos? Tem algum objetivo que queira concretizar no futuro?
e: Profissionalmente, não. Com 66 anos, eu ando à procura. Eu caminho muito a pé e passo num restaurante, perguntam-me que idade é que tenho, 66? 66... Quem é que me quer a trabalhar aos 66 anos?
E: Mas não parece nada que tenha 66 anos.
e: É o que me dizem. Mas o espírito já sente. O corpo também.
E: São muitos anos de trabalho, também. Desde muito jovem a trabalhar.
e: E muitos trambolhões que eu já dei. Mas claro, gostava de estar ativo, se houvesse uma coisa que eu pudesse fazer, na cozinha, ainda sou capaz de fazer. Ainda me sinto capaz. Mas também a memória está fraca. Está muito esquecido. Sabe que o álcool castiga muito. E eu não posso dizer ao contrário, porque eu sinto isso. Dá um filme.
E: O que é que espera do futuro?
e: No futuro tenho a esperança que um dia me saia o Euromilhões. Que vou agarrar a asa de um avião, vou voar.
E: Gostava de mudar de sítio?
e: Não. Gostava de conhecer outros sítios. Agora ir para outro sítio, cá no Porto, estou bem. Gosto muito de estar cá no Porto. E tenho muitos amigos, muitos conhecimentos, também.
E: Então acha que, de certa forma, o facto de não ter a sua habitação neste momento afeta as suas experiências e a forma como está a viver a cidade, e como está a viver a sua vida, não é?
e: Como está a viver a cidade? Gosto de viver cá no Porto. Eu vivi uns tempos em Lisboa. Não me dei lá muito bem. Cheguei cá ao Porto, dei-me bem. Gostei muito. Gosto. Gosto muito de viver cá no Porto.
E: E acha que o facto de agora não ter a sua casa, acha que isso influencia a sua vida e a possibilidade de alcançar esses objetivos ou outras coisas que...?
e: Não, o que... influenciar não, mas eu digo que, se fosse a viver atrás, eu teria uma casa com a mesma dimensão, onde possa cozinhar para mim e conviver com outras pessoas, amigos, ou coisa assim. Cozinhar para os amigos ir lá comer. E gostava. Eu fazia bons paparocas. Eu, quando estava, por exemplo, no apartamento, os meus filhos, quando eu estava de folga, estava em casa, os meus filhos não comiam nas cantinas. Não, vão comer comida do pai. Eu tinha que fazer comida para eles. Eles iam para lá, para casa, comer. E quando estava de férias, ai que alegria, todos os dias comia em casa e até a mãe gostava muito, porque ela chegava a casa, ela era enfermeira no Hospital São António, ela chegava a casa e só se sentava para comer, que maravilha! Com os filhos, tudo à volta. Tenho saudades desse tempo. Mas, como já disse, não volta para trás.
E: É olhar para a frente, manter os nossos olhos objetivos. O que é que é mais importante para si hoje? É uma pergunta difícil, eu sei...
e: É, muito difícil... O mais importante, como já disse, era uma pessoa ter... ter sorte de sair um Euromilhões pronto, se calhar, eu fazia uma marcha atrás, e reunia a família toda. Fazia isso.
E: Gostou de contar a sua história?
e: Às vezes, sabe bem.
E: Quer contar mais alguma coisa?
e: Não, não tenho mais nada.
E: Alguma história que tenha surgido agora assim a pensar na sua vida, num todo?
e: Acho que não. Não tenho, assim, grandes sonhos. O sonho que eu tenho, por exemplo, se me saísse o Euromilhões, pronto, se me saísse assim um prémio bom... pudesse ter uma casa, e reunir, de vez em quando, uns amigos lá em casa, fazer um cozinhar bom...
Eu gostava. Do resto, já não sonho com mais nada. Pronto.
E: Muito obrigada, Sr. Rui. Foi muito bom ouvir a sua história.
e: De nada. Eu é que agradeço que gostei de desabafar um bocadinho.
E: Que bom! E, efetivamente, tinha uma história para dar um filme.
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