P - Estamos na sala do Dr. Ramires, no InCor. Bom, Dr. Ramires, vamos começar. (risos) Você pode falar o seu nome completo, data e local de nascimento? R - José Antonio Franquine Ramires, nasci em nove de outubro de 1946 em São Paulo, capital. P - Seus pais são de São Paulo também? R - Meus pais são. Minha mãe é de São Paulo, meu pai era naturalizado brasileiro, bem na verdade ele era espanhol e veio para o Brasil com quatro anos de idade, se naturalizou brasileiro e sempre residiu em São Paulo também. Ah, eu tenho um irmão que também é paulista, tem dois anos a menos do que eu, Sérgio Ramires, que é empresário ligado à área de seguros. P - A origem da família do senhor, o senhor sabe desde... R - Sei, eu sei a origem do lado Franquine, eu conheço mais do que a do lado Ramires, não que eu não conheça os meus ancestrais, até os meus tataravós eu conheci. Mas é que daí para trás onde começou a família Ramires é muito difícil, porque Ramires são vários e tem várias procedências, tem pelo menos oito procedências que eu já consegui descobrir. Eu não sei qual dessas oito eu pertenço, mas até os meus tataravós conheci, sei de onde eles vieram, de qual a região da Espanha, do lado do meu pai. Do lado da minha mãe, a família Franquine ela remonta a quatro séculos atrás, cinco séculos atrás e eu recebi uma vez de um embaixador da Itália, nome das famílias italianas onde conta a origem da família Franquine, então eu conheci um pouco mais a raiz desse lado do que do outro lado, mas enfim é uma origem da Península Itálica, e uma origem da Península Ibérica (risos). São duas procedências européias que vieram para o Brasil no início do século e a partir daí começaram a gerar novas famílias, como a maior parte daqueles que residem em São Paulo que são descendentes de imigrantes. Vocês mesmo também devem ser descendentes de imigrantes. (risos) P - Qual que era a atividade do seus avós? R - Bom,...
Continuar leituraP - Estamos na sala do Dr. Ramires, no InCor. Bom, Dr. Ramires, vamos começar. (risos) Você pode falar o seu nome completo, data e local de nascimento? R - José Antonio Franquine Ramires, nasci em nove de outubro de 1946 em São Paulo, capital. P - Seus pais são de São Paulo também? R - Meus pais são. Minha mãe é de São Paulo, meu pai era naturalizado brasileiro, bem na verdade ele era espanhol e veio para o Brasil com quatro anos de idade, se naturalizou brasileiro e sempre residiu em São Paulo também. Ah, eu tenho um irmão que também é paulista, tem dois anos a menos do que eu, Sérgio Ramires, que é empresário ligado à área de seguros. P - A origem da família do senhor, o senhor sabe desde... R - Sei, eu sei a origem do lado Franquine, eu conheço mais do que a do lado Ramires, não que eu não conheça os meus ancestrais, até os meus tataravós eu conheci. Mas é que daí para trás onde começou a família Ramires é muito difícil, porque Ramires são vários e tem várias procedências, tem pelo menos oito procedências que eu já consegui descobrir. Eu não sei qual dessas oito eu pertenço, mas até os meus tataravós conheci, sei de onde eles vieram, de qual a região da Espanha, do lado do meu pai. Do lado da minha mãe, a família Franquine ela remonta a quatro séculos atrás, cinco séculos atrás e eu recebi uma vez de um embaixador da Itália, nome das famílias italianas onde conta a origem da família Franquine, então eu conheci um pouco mais a raiz desse lado do que do outro lado, mas enfim é uma origem da Península Itálica, e uma origem da Península Ibérica (risos). São duas procedências européias que vieram para o Brasil no início do século e a partir daí começaram a gerar novas famílias, como a maior parte daqueles que residem em São Paulo que são descendentes de imigrantes. Vocês mesmo também devem ser descendentes de imigrantes. (risos) P - Qual que era a atividade do seus avós? R - Bom, meus avós, tanto da parte do meu pai como da parte da minha mãe, quando eles imigraram, imigraram por causa daquele caos da Europa do final do século passado, onde os europeus imigraram para todos os lados para conseguir vencer na vida. A Europa estava o fim do mundo e eles vieram para o Brasil com este propósito, do lado da minha mãe eles foram empresários, do lado do meu pai também fizeram, constituíram no Brasil grandes empresas, a partir de comércios pequenos de coisas pequenas, o avô do meu pai, meu bisavô, ele já era um comerciante na Europa e no Brasil. P - Ele já tinha uma ponte aqui? R - Ele já tinha, ele morava praticamente seis meses no Brasil e seis meses na Europa. Ele tinha uma casa de comércio na época no Rio de Janeiro, Buenos Aires e a outra na Espanha, então ele ficava de navio andando entre as três, para administrar, vamos dizer assim, as três. Com a vinda dele desse lado do mundo, ele acabou trazendo irmãos dele para ajudarem na administração das coisas aqui. Ele faleceu numa dessas viagens e os irmãos acabaram assumindo os negócios dele. Esses negócios eram pequenos. Na época poderiam até ser importantes, mas eram coisas de comércio pequeno, acabaram se desenvolvendo e se tornaram até grandes conglomerados empresariais, que alguns anos atrás eles foram vendidos, desfeitos, enfim, não existe mais em relação ao original, hoje estão na mão de outras empresas. E do lado da minha mãe é a mesma coisa, quando meu bisavô veio da Itália pro Brasil, ele já veio com o propósito de ganhar a vida, de fazer a América, como ele sempre falava, e veio e fez a América, porque ele começou a trabalhar e montou uma casa de café, era torrefação de café, e isso era lá no Anhangabaú P - No Anhangabaú? R - No Anhangabaú. Ele começou a desenvolver essa casa lá, cresceu, ficou uma casa grande que era próximo onde tinha aquela casa do Chopp da Brahma lá, que era na esquina da São João. P - Ipiranga com a São João... P - A Brahma... R - É, e ele tinha no Anhangabaú, um pouquinho mais pra frente onde era o Chopp. Era uma casa grande de torrefação de café que ficou depois com meu avô, o meu bisavô passou pro meu avô, e o meu avô nessa época morava no Bexiga, imagina o Bexiga o bairro dos italianos, na Rua Major Diogo, aí foi morar no Jardim Paulista, foi a primeira casa do Jardim Paulista na Rua Guarará 103, até hoje tem, não mais a casa mas tem um prédio no lugar que meu pai construiu e que tem o nome da minha avó. P - O edifício está no nome da sua avó... R - O edifício tem o nome da minha avó. P - Como que é? R - Teresa Franquine. Essa casa que estava nesse lugar foi a primeira casa do Jardim Paulista. P - Tinha acabado de fazer loteamento e tudo? R - É, não tinha... Só tinha a rua, não tinha asfalto, não tinha nada. Ele, para você ter idéia, quando comprou um carro, ele ia de carro do Anhangabaú até a Avenida Paulista, onde tem aquele prédio do Banespa na esquina da Paulista era um terreno lá, uma casa de alguém, lá sei eu, uma chácara. Ele deixava o carro na chácara e aí passava pra charrete dele e ia de charrete até a casa dele porque não tinha como o carro chegar lá embaixo na Rua Guarará. Então ele descia a Brigadeiro, onde hoje é a Brigadeiro... P - Deixava o carro lá... R - Deixava o carro na Paulista e descia a Brigadeiro de charrete... P - Tinha uma charretinha esperando ele lá... R - Era a charrete dele P - Dele mesmo R - Quando ele subia deixava a charrete na garagem, passava pro carro e ia de carro para o Anhangabaú, era uma viagem. (risos) P - Essa história é ótima. R - Ele saia do Jardim Paulista para ir pro Anhangabaú, era uma viagem Da mesma forma, como quando eu era pequeno você sair de São Paulo para ir pra Santo Amaro, era uma viagem Chamava a Estrada de Santo Amaro. É, hoje você vai de um canto pra outro, nem dá bola pra distância, as avenidas são melhores, apesar do tráfego você anda muito fácil. Naquela época era tudo uma viagem, então era uma viagem sair do Jardim Paulista pra ir pro centro da cidade. E ele fez isso durante muitos anos, o bairro cresceu, se desenvolveu, a segunda casa do Jardim Paulista foi feita do lado da casa dele, a terceira casa do Jardim Paulista foi feita na frente da casa dele, então eram casas que tinham estilos muito característicos da época, enfim, eram casas muito grandes... Com vários andares, terrenos monstruosos, o terreno do meu avô tinha um alqueire, ia de uma rua até a outra. O terenno do lado a mesma coisa, o da frente igual, as casas pareciam até meio palácios pela forma pela constituição dela e os três eram italianos... P - As três primeiras casas eram italianas... R - As três primeiras casas e a do meu avô ainda conservava aquele aspecto bem italiano como existe até hoje em alguns lugares da Itália. Cada andar era de um filho, à medida que os filhos foram casando ele passava o andar para o filho. Então o filho morava na mesma casa, mas aí independente, cada andar tinha tudo, tinha quarto, banheiro, sala de estar, visita, enfim era uma casa. Então tinha uma parte comum embaixo e nos andares de cima, cada andar era uma casa e morava um filho com a família. P - E quantos eram? R - Eu morei nesta casa desde que eu nasci até os seis anos de idade, e aí com seis anos de idade meu pai construiu uma outra casa dentro do Jardim Paulista mesmo. Nós mudamos, aí morei nesta outra casa até os 11 anos, aos 11 anos o meu pai construiu uma outra casa na mesma rua que eu tinha nascido, na Rua Guarará. Quase em frente da casa do meu avô, aí nós voltamos pra Rua Guarará, eu tinha 11 anos de idade e morei lá até entrar na faculdade e depois entrei na faculdade, casei quando eu estava no terceiro ano da faculdade, aí nessa época o meu pai já havia construído, lá onde era a casa do meu avô, um prédio de apartamentos, cada andar tinha um apartamento e cada andar era de uma pessoa da família. P - Da família. Era só a família que morava no prédio? R - Praticamente. Só tinham três pessoas que não eram da família no prédio. E eu morava no sexto andar. Eu morava no sexto, meu irmão no quinto, o meu pai acho que no segundo, uma outra tia no quarto. P - Que ótimo, que nem na origem, né? R - Voltou à origem Só que aí que era interessante que tinha membros da família do meu pai e da minha mãe. Tinha dos dois lados e o prédio inteiro era só familiares, então não tinha praticamente reunião de síndico, nada disso... (risos) Que era uma família só...Eu fiquei aí até me formar, quer dizer, morei aí o que? Quatro anos, cinco anos, aí me formei aí fui morar no Morumbi, o meu irmão, um mês ou dois meses depois também foi morar no Morumbi, o meu pai também, os nossos...(risos) P - Aí a família foi se desencontrando... R - É. A família foi cada um para um lado. Primos e os tios que moravam lá também mudaram de casa, outros morreram, faleceram lá pela idade, acho que só sobra nesse prédio um... P - Ainda tem parente? R - Uma tia que ela é esposa de um irmão da minha mãe, que seria na verdade o filho do antigo dono da casa onde foi construído este prédio. Ela ainda mora lá, é a última da família que mora naquele prédio e ela já tem uma certa idade, logo, logo, só sobrará o nome da minha avó e mais nada. E durante anos neste prédio ficou em exposição na entrada, um par de estátuas de cobre extremamente lindas que ficavam num chafariz da frente da casa do meu avô, e que foi feito por um artista italiano no início do século, era um artista muito importante na Itália e que meu avô havia comprado este par de estátuas, imagina que uma estátua de cobre, um negócio maravilhoso, não sei, aí minha avó resolveu deixar para o prédio para por no patrimônio do prédio que tinha o nome dela e um dia alguém vai lá e não era ninguém da família, isso já era depois que muitos da família haviam saído do prédio e vai alguém e pinta a estátua, imagina você pintar uma estátua de cobre, vai alguém e pinta a estátua pra ficar com uma cor parecida com a da parede. (risos) Estragou a estátua. E o meu sonho era um dia comprar aquela estátua, falei: "não é possível como é que alguém vai pintar isso aí." Mas eu não podia tirar do prédio a estátua, eu já não morava nem mais lá no prédio, aí o síndico da época resolve se desfazer daquela porcaria que estava lá, que ele não via nenhum sentido para aquela duas estátuas e se desfaz, e se desfez por um preço assim na época vagabundo, dois mil dólares, cada estátua daquela avaliada varia em torno de 25 mil dólares, ele vendeu por 2 mil dólares o par. Eu fui lá e comprei na hora, mas aí na minha casa não cabia e tal e deixei no jardim da casa de meu irmão... P - Mas esta pintada? R - Não, tirou tinta inteira, está perfeito, está como se tivesse novinha e é uma das peças, vamos dizer, que são resquício do que era o Jardim Paulista no início dele. P - E onde elas estão? R - Está no jardim da casa do meu irmão, que é um jardim bem grande, então elas estão em posições da entrada do jardim são muito bonitos. São duas... Uma delas é uma mulher romana carregando uma tocha da vitória de uma determinada batalha, que é onde fica lâmpada e a outra é uma mulher siciliana que é na época que a Sicília não era governada pelos romanos, que é uma mulher siciliana segurando uma imagem que representava adoração de um deus para aquela época que é onde que também tem a outra lâmpada. Esse é um par de estátuas extremamente interessante que conta uma fase da história. Pena que se perdeu muito desta história com a evolução de São Paulo, você anda pela Avenida Paulista e Avenida Brasil, você não vê mais a história do que era São Paulo, que isso se perdeu com o tempo e até pelo crescimento não planejado da cidade, mas essa faz parte de uma pequena história da cidade de São Paulo. P - É interessantíssimo. (riso) R - Não pelo menos eu vivi, então para mim ela foi interessante porque foi vivida por mim. P - O senhor sabe como que o pai do senhor conheceu sua mãe e como que foi essa história? R - Sei, sei, eles estudaram e moraram no mesmo bairro. Minha mãe morava na Rua Guarará, meu pai morava na Rua Tutóia e eles estudavam no mesmo colégio, eles estudavam no Colégio Rodrigues Alves, que é na Avenida Paulista, que era o único colégio da região na época, e o meu pai já havia morado na Praça Buenos Aires logo que ele chegou da Espanha com a minha avó, depois ele morou na Eugênio de Lima uma época, foi... Desculpa, ele conheceu minha mãe quando morava na Eugênio de Lima que eles estudaram no mesmo colégio, depois ele mudou para a Rua Tutóia e eles se conheceram no colégio. Ela tinha uns 14 anos, por aí, ele tinha 16, 17 anos. E segundo o que eles contavam... O namoro era muito difícil porque imagina, um pai italiano (risos) deixar namorar, entrar em casa, matava Então era muito difícil até para se encontrar, às vezes encontrava quando meu pai sabia que minha mãe ia acompanhar minha avó que ia a feira, aí ele ia a feira e ficava andando na feira para ver se encontrava ela e passava e só acenava com a mão de longe (risos) e a minha avó não podia nem perceber que ele estava lá para ver minha mãe especificamente e isso ficou assim, esse namorico, de se encontrar na escola com toda a vigilância possível. No caminho nunca, não tinha jeito, durante uns três anos, quatro anos até que posteriormente o namoro foi logo se fortalecendo mesmo porque as famílias tinham coisas em comum, os pais se conheciam porque eles faziam negócios em comum, o pai do meu pai com o pai da minha mãe e isso acabou trazendo uma certa aproximação que foi se fortalecendo até que eles resolveram oficializar o namoro, noivar e casar. Casaram jovens, meu pai tinha acho que uns 21, 22, minha mãe 19 anos, e o meu pai até essa época, é, ele era um folgado, vamos dizer assim, trabalhava porque meu avô obrigava ele a trabalhar, não queria saber nem de estudar, entrava na escola saia, não tinha se formado em nada, aí quando ele se casou ele viu que ele não teria futuro se não estudasse, aí ele pegou e fez quatro faculdades. P - Quatro? P - É mesmo R - Aí ele fez quatro faculdades, entrou em Ciências Autuarias, fez Economia, fez Administração de Empresa e fez Direito, mas sempre exerceu atividade como administrador de empresa e empresário de seguro ligado à companhia de seguro, foi o que ele sempre gostou, mas ele fez depois de casado o que ele não tinha feito a vida inteira, como estudante ou como aluno e isso foi importante porque ficou de exemplo tanto pra mim como pro meu irmão. Quando nós éramos pequenos muitas vezes à noite, minha mãe ia buscar meu pai na faculdade e nós éramos pequenos e minha mãe nos levava junto no carro para buscar o pai, então, era 11 horas da noite a gente já estava meio dormindo, eu tinha três, quatro anos de idade quando eu me lembro nas primeiras vezes, então seria sonado: "Ah, olha lá o papai vai chegar" Aí você acordava, e eu me lembro dele saindo da faculdade vindo pro carro, então essa imagem de você ter o pai como estudante, era uma imagem que fixou muito em nós e isso deu, vamos dizer, um certo estímulo. Não que tenhamos sido alunos brilhantes, nunca fomos nem eu nem meu irmão, mas um estímulo para mostrar que nunca era tarde pra você começar algo e tanto que eu até hoje vivo uma vida não sei de estudante ou de profissional em relação a tudo que eu faço, e o meu irmão também seguiu a vida dele, manteve a vida dele e isso acho que deve ter se transferido para os netos que geralmente os netos na época da escola não faz tudo o que tem que fazer, depois que acaba eles começam fazer escola. (risos) P - E o senhor entrou com quantos anos na escola? R - Eu entrei eu tinha 20 anos, eu fiz o colegial no Dante Aleghieri. Depois, desculpa fiz todo o colégio no Dante Alighieri desde o primário até parte do ginásio. No ginásio fui para o colégio Paes Leme, fui ser semi-interno, aí estudei semi-internato lá parte do que era o ginásio na época e parte do colegial, aí naquela oportunidade era muito difícil você sair do colegial e entrar na faculdade sem um cursinho... Eu fui pro colégio das Bandeiras à noite pra ficar bem livre de compromissos da escola e fazer de manhã o cursinho, fiz isso no segundo e no terceiro científico da época e quando eu prestei aí que eu entrei na faculdade, tendo o cursinho, terminei o científico, prestei, entrei inicialmente na faculdade de Ciência Médicas de Santos, eu cursei lá três anos, depois de três anos prestei um outro exame, vim pra São Paulo, aí entrei aqui na faculdade de Medicina da USP e completei o curso aqui. Daí para frente minha vida ficou restrita a este quadrilátero aqui. Fiz residência, fiz a minha especialização em cardiologia, fiz o mestrado, fiz o doutorado, eu fiz o concurso de livre-docência até chegar a professor titular de cardiologia da faculdade. P - Dos tempos de escola que lembrança que o senhor tem? Do Dante? R - Ah, tenho bastante. Foram fases muito distintas. Do Dante era uma fase infantil que eu fiz o primário e o ginásio, parte do ginásio era fase bem infantil, era fase dos amores platônicos, aquela fase da infância. Então eu me lembro de uma menina... Que eu estava no quarto, quinto ano primário, eu a achava um bibelô, a coisa mais maravilhosa dali, e um dia...Você vê como é engraçado... Eu sabia o nome dela, mas não sabia inteiro, e eu queria saber onde ela morava e o nome dela inteiro, então na hora de saída a gente tinha que sair em fila, primeira fila, segunda fila e assim por diante, eu passei na frente da mesa da professora e as cadernetas ficavam em cima, que a professora entregava a caderneta de cada um. Na hora que eu passei pra pegar a minha caderneta e olhei, estava a caderneta da menina, eu olhei e nunca mais esqueci o que li, assim numa fração de segundo, Regina Célia Milano Miranda, Alameda Gabriel Monteiro da Silva 770, (risos) eu gravei isso que nunca mais saiu da minha cabeça, certo? E eu ficava todo dia: "Regina Célia Milano Miranda, Alameda Gabriel Monteiro da Silva 770 (murmurando), como é que vou falar com ela?" P - Você nunca precisou escrever né? R - Nunca precisei escrever, só de olhar aquilo ficou gravado e ela nem dava bola pra mim, lógico Ela tinha o que? nove anos, 10 anos, eu tinha mesma coisa, ela dava bola para os mais velhos (risos). E eu não era nada, eu tinha a mesma idade do que ela, então acho que ela nem lembrava, nem lembra que eu existi naquela classe, então aquele amor platônico de quando você é moleque. Mas sabe que você não esquece a imagem, os anos se passaram, eu já era médico, um dia eu fui numa reunião no centro da cidade, fui numa reunião, fui encontrar o meu cunhado no centro da cidade e deixei o meu carro na garagem América, nem sei se existe ainda naquela ladeira atrás da Faculdade de São Francisco, aí subi a ladeirinha em direção ao Largo São Francisco, estou indo no Largo São Francisco tal, quando eu volto olho uma moça andando assim, eu estou atrás, tinha duas senhoras na minha frente, "só pode ser ela" Eu andei, apressei o passo, aí era ela: Regina Célia Milano Miranda. P - Alameda Gabriel Monteiro da Silva. (riso) P - Você falou com ela? R - Não, não faça isso. Ela nem ia lembrar. Se eu abordasse ela... Capaz até de levar uma cacetada no meio da rua. Aí eu olhei, é lógico que ela não era mais a mesma, mas a face, lembrava dela direitinho, aí eu até presumi que como ela tinha alguns livros na mão, ela fosse advogada, tivesse feito direito e estava lá do lado da faculdade de São Francisco, então essa foi uma das coisas interessantes. A outra aquela... Vocês já devem ter visto a Nívea Maria, aquela atriz da TV Globo, ela estudou no Dante Alighieri. Ela e a irmã, e a Nívea é mais velha do que eu um pouco e a irmã é mais nova, e a irmã é muito bonita e elas acham que tinham aparecido uma vez no programa de televisão uma coisa assim, desses programas infantis, então elas eram as estrelas da escola, todo mundo ficava vidrado olhando as duas lá no recreio, porque as duas realmente eram muito bonitas e a Nívea Maria é bonita até hoje, então ficava aquela molecadinha toda no pátio do colégio: "olha, olha lá, olha ela passando lá agora." (risos) É essa foi a fase do Dante Alighieri, uma fase rígida, dura, que era um colégio extremamente paternalista, com princípios extremamente rígidos de família italiana, você ia no banheiro o vigilante ia vigiar, o que você ia fazer, você ia no corredor o vigilante ia te vigiar, então era uma época que existiam os vigilantes e você não tinha liberdade, existiam motivos, é lógico, de vez em quando você escutava bomba no banheiro e tal, aquelas bombas, bum Então os vigilantes ficavam atrás de todo mundo, mas não eram nós os moleques que colocavam, eram os mais velhos, aqueles que estavam no científico, eles que colocavam, mas a vigilância era para todo mundo e lá eu tive professores que marcaram e que gostavam de mim na época que eu era aluno e criança e fui reencontrá-los depois como médico, vários deles, e que guardavam em relação a mim sempre uma imagem daquele aluno bonzinho na classe e tal, tal. Pelo menos eu deixei uma boa imagem. Depois do Paes Lemes já foi a outra fase: adolescência, imagina um colégio esquina da Rua Augusta com a Paulista? No auge da Rua Augusta, era você estudar no paraíso, no auge da Rua Augusta, pô Era estudar no paraíso, então pra você sair do colégio era difícil, semi-interno não podia sair, só com autorização especial tinha que ter escrito na caderneta, você precisava ser bom aluno, mas o sonho de todo aluno que estudava lá era ter folgas no meio do dia que a escola autorizasse você a passear na Rua Augusta. No auge da Rua Augusta você saia uns cinco minutos na Rua Augusta já era o máximo. E isso eu estudei lá cinco anos e nesses cinco anos foi muito interessante, foi uma outra fase já em que você vai amadurecendo, vai aprendendo uma série de responsabilidades num colégio diferente do Dante Aleghieri, cada um com a sua característica um pouco mais liberal, o outro mais rígido, ambos atendendo os mesmos objetivos e a terceira fase do colégio das Bandeiras, aí já a fase totalmente em que você já pensa no seu futuro, vamos dizer, o que me interessava era o cursinho Nove de Julho que eu fazia pela manhã e não o colégio que eu fazia a noite. O colégio na verdade era só para passear, ia lá assinava, ia encontrar os amigos, fumava um cigarro, batia um papo, depois saia correndo para ir pra casa dormir ou estudar porque no dia seguinte tinha o cursinho, e nessa época conheci muita gente que fui rever depois, anos depois na faculdade ou já como médico, em que estudava com colegas que já estavam mais adiantados do que eu, que fizeram vestibular e entraram na faculdade antes de mim inclusive, e que depois fui reencontrá-los na faculdade. Alguns que eram os meus professores do cursinho que depois fui reencontrá-los ou como professores meus na faculdade, ou colegas na faculdade ou colegas de profissão mais tarde. E era uma fase já em que aí o que interessava era, ou seja, fazer o seu futuro. P - Era o cursinho Nove de Julho? R - Cursinho Nove de Julho visando faculdade. P - Era mais freqüentada por quem pretendia fazer medicina, então? R - Ah, Medicina, não já era... Desde que eu era pequeno eu sempre quis fazer medicina, nem pergunta por quê, porque eu também não sei. P - Eu ia perguntar. (riso) R - Eu não sei. Na minha família não tinha médico então eu não tinha ninguém que me exemplificar ou pegar, enfim, assumir como exemplo: "quero imitá-lo". Não tinha médico, mas desde pequeno é uma coisa que sempre ficava em mim: "quero fazer medicina, quero fazer medicina". Não que eu desgoste das outras profissões, eu não tenho assim nenhum preconceito contra profissões e nenhum fanatismo pela medicina, eu acho que toda a profissão é boa, basta você se dedicar, você fazendo o que você gosta e tendo responsabilidade no que você faz e se dedicando, qualquer profissão é boa. Eu sempre digo isso para os meus filhos, você pode ser um jornaleiro, vai ser o melhor jornaleiro, se destaque como um grande jornaleiro, se você vai ser lixeiro seja o melhor lixeiro, não interessa a profissão, o que interessa é que você faça com dedicação, mas o fato é que desde de criança eu pensava em ser médico, fiz o cursinho pra medicina. P - O senhor tinha uma imagem da medicina, assim ? R - Não, talvez seja porque desde pequeno eu sempre tive uma característica própria, muita sensibilidade. Primeiro em observar os outros e observar as coisas, segundo entender muito as pessoas; a paciência é uma das minhas virtudes e no meio de tantos defeitos, essa virtude pro médico é muito importante. Você ter paciência para ouvir, sensibilidade para compreender, sensibilidade para entender muitas vezes o que a pessoa não diz, mas está nas entrelinhas, ela te transmite, e você tem que perceber, porque ela não percebe, e talvez a medicina fosse a única que me aproximasse disto que já era uma coisa que eu tinha facilidade em desenvolver, e em outras profissões eu provavelmente não pudesse fazer isso. Talvez um pouco em Direito, dentro do Direito algumas especialidades, o Direito aproxima muito do cliente porque você acaba vendo ele como ser humano, lógico não Direito Comercial, Direito Trabalhista, aí você não tem este tipo de contato, mas a Medicina me proporcionava essa aproximação com as pessoas, então acho que isso acabou sendo uma coisa automática. P - Tinha alguma expectativa de seus pais para que seguisse alguma carreira? R - Não. Eles nunca exerceram nenhuma pressão, pelo contrário, acho que o meu pai no fundo... Ele nunca me disse isso, mas no fundo independente do orgulho que ele tinha de me ver crescendo como aluno e como médico, posteriormente como professor universitário, no fundo eu acho que ele gostaria até que eu seguisse os passos dele, que eu fosse um administrador, trabalhasse nas empresas dele, ajudasse a desenvolver as empresas dele. Ele, apesar de nunca ter dito, isso é uma coisa que eu senti, que ele talvez até gostasse mais, apesar dele ter sempre se manifestado e dado apoio integral a minha decisão de fazer medicina, mas é uma sensação. Pode ser que eu esteja errado, mas a família nunca pressionou nem a favor nem contra, me deixou livre para fazer a escolha e eles sempre deram apoio integral depois que eu decidi, apoio integral para que eu completasse a faculdade, que fizesse a faculdade, para que pudesse me tornar um bom profissional mais tarde. P - O senhor entrou primeiro na faculdade foi em Santos... R - Primeiro entrei em Santos, fiz lá os três primeiros anos, foram três anos maravilhosos porque você morar três anos fora de casa, olha, às vezes eu sempre brinco e falo pra minha mulher: "ainda bem que eu casei porque se eu não tivesse casado na faculdade estaria até hoje fazendo faculdade." (riso) Não teria saído. Foram dois anos, que o terceiro ano eu já estava casado, foram dois anos, olha, dois dos melhores anos. Não vou dizer o melhor, que a gente sempre tem algum que é o melhor, mas dois dos melhores anos da minha vida, tanto no convívio da faculdade, como no convívio da turma, como aquilo que você fazia em torno dele, e olha, foram dois anos inesquecíveis. Quando eu paro e fico lembrando do que a gente fazia... Eu era louco, impossível como eu fazia isso, às vezes nem eu me conformo, mas isso mostra fases naturais da vida que você tem e você tem que fazer cada coisa numa determinada fase e, olha, valeu muito a pena. Aí quando eu casei. P - Você mudou, foi pra Santos? R - É, eu entrei na faculdade, aí, nesses dois anos, três anos, eu morei lá. Depois eu voltei e fui para aquele apartamento que era no prédio que meu pai tinha construído lá casa da minha avó. P - Como você conheceu a sua esposa? R - A minha esposa, na verdade, o pai dela era médico da família há muito tempo, o avô dela também já era médico, italiano, morava metade do ano na Itália, metade do ano no Brasil, então ele tinha consultório na Itália e tinha consultório no Brasil. E ele já era médico do meu avô, pai da minha mãe, e quando minha mãe ficou grávida quem fez todo o pré-natal até o parto foi o meu sogro, que era filho do médico do meu avô e que se tornou médico do meu avô e no final médico de família. Ele fez o parto e daí para frente qualquer coisa na família, de doença se fosse em mim, no meu irmão, na minha mãe, no meu pai, era ele o médico ou ele ia em casa ou nós íamos no consultório dele, e ele gostava muito do meu pai, ele tinha uma confiança muito grande no meu pai, inclusive quando ele estava para morrer, esse meu sogro, ele deixou meu pai como procurador de todas as coisas dele, pra ajudar a organizar as coisas pra família e eu já conhecia a minha futura esposa quando ela era criança, ela, o meu cunhado, minha cunhada, já havia conhecido eles na casa do meu próprio sogro. E uma vez, quando meu sogro foi na inauguração da minha casa, da casa do meu pai, quando nós voltamos para aquela Rua Guarará... P - Ele construiu a casa... R - Ele construiu a casa, mas eu nunca tinha tido nada com ela, ela era criança, eu também era criança. Aí você vê como é o destino. No velório do meu sogro... Meu sogro morreu quando eu tinha quinze anos, quinze para dezesseis e a minha esposa tinha treze para quatorze anos, e no velório é que eu fiquei olhando para ela, ela também olhou pra mim algumas vezes tal, aí começou um interesse mútuo e a partir do velório nós voltamos a conversar algumas vezes, nos encontramos, saímos e namoramos um ano, e aí depois de um ano brigamos, ficamos um ano longe um do outro e tal, eu fazendo minhas coisas, ela as dela, e depois de um ano voltamos a namorar e aí namoramos, ficamos noivos e casamos em dezembro de 1968. P - E por isso você saiu de Santos foi pra São Paulo? R - Não, não. Na verdade eu gostava muito da faculdade de Santos e das pessoas, dos colegas, dos professores da faculdade de Santos e eu, na verdade, vim pra São Paulo por acidente da vida. Eu não queria vir. Não que eu não quisesse vir para a cidade de São Paulo, que eu sou paulista e adoro a cidade de São Paulo. Eu voltaria pra cá para exercer a minha profissão, mas eu não queria sair de Santos, da faculdade, pelo convívio das pessoas e pela vida que eu levava lá. Imagina? Eu morava num apartamento de frente para o mar, eu saia para a faculdade e voltava, chegava 5,30, seis horas... Quando a minha filha nasceu, pegava minha filha e ia com ela até a praia no finalzinho da tarde, brincava com ela, sábado e domingo ficava na areia com ela brincando. P - Ah, por que você casou e foi morar em Santos? R - Não, já estava em Santos... P - Já estava lá. R - Casei e fiquei em Santos. Aí, no final do terceiro para o quarto ano é que eu vim para cá. E por que eu vim? Eu estava um dia na praia com a minha mulher, minha filha engatinhava, aí os meus amigos da faculdade chegaram: "Olha Vai ter exame em São Paulo, nós fomos lá e te inscrevemos". "Não posso. Vocês estão malucos Por que me inscreveram? Eu não quero Não". "Nós te inscrevemos porque você tem que nos ajudar a fazer a prova. Você vai lá no dia da prova e passa cola pra gente". "Vocês estão malucos Eu não quero ir, não vou." Aquele bate-papo lá, tal. Ah, no final eu vim, o exame foi... Acho que uma semana ou dez dias depois. P - Mas era o que? Vestibular? R - Não. Era exame de transferência pra faculdade de Medicina, porque aqui havia ocorrido naquela época, próximo da época do terrorismo, da operação Bandeirantes, alguns alunos da minha turma que foram perseguidos pela policia, enfim, alguns até morreram, então abriram-se três vagas na faculdade, na minha turma, e a faculdade depois de muito tempo sem fazer nenhum exame desse, resolveu fazer um. Abriu um exame para completar a turma, então foi um outro vestibular, porque vieram alunos de todos os cantos para prestar o... P - As três vagas. R - E eu fui inscrito. P - Para ajudar os amigos. R - E eu vim para dar cola para eles e aí, no dia do exame, da cola, eles me puseram lá num lugar estratégico e me cercaram, em volta de mim ficaram todos, então me lembro que foram cinco dissertações e conforme o professor ia escrevendo na lousa o nome das dissertações, aí em cinco minutos estava escrito, "Ih Isso aí é muito fácil." Falei: "Pô, isso é exame que se faça, esse é fácil demais" E peguei e comecei a escrever. E eu ditando: ba,ba,ba,ba. Aí o professor me pegou ditando: "Não, o senhor vai sair daqui, o senhor vai sentar sozinho lá na frente." Aí ele me pôs lá sozinho. Falei: "Já que estou aqui, deixa-me fazer a prova né?". Eu não queria, já que estou aqui, peguei e fiz. Fiz, acabei logo a prova, e fui embora. P - Voltou para Santos... R - Peguei o carro e voltei para Santos correndo, fui lá encontrar minha mulher, minha filha. P - E os amigos lá fazendo a prova. (riso) R - E eles ficaram fazendo a prova. (riso) E eu fui embora, isso era uma terça ou quarta-feira, uma coisa assim. Na semana seguinte eu fui para faculdade. Quando eu volto, tem um recado, minha mulher: "Olha, para você ligar urgente para São Paulo. Telefone tal, que ligaram pra você." Peguei, liguei: "Olha, o senhor precisa fazer um artigo, o senhor tem dois dias para fazer um artigo, que o senhor foi aprovado em primeiro lugar na prova". "Que prova?" "Prova assim, assim". "Fui aprovado? É? Ah, não sei se vou, não vai, tudo bem, obrigado". Aí, desliguei o telefone e a minha mulher: "O que foi?" "Não, é que eu passei naquele exame". Ela ficou feliz, porque ela não gostava muito de Santos, porque ela ficava muito sozinha, a família era toda de São Paulo. P - Ela fazia faculdade de Medicina? R - Não. A sociedade da cidade de Santos era muito fechada e ela se sentia muito isolada, então quando eu entrei, aí para ela se tornou uma solução e eu não queria vê-la, falei: "Não, eu não vou, deixa para quem quiser a vaga, o que eu vou fazer lá?" Aí, ela passou a fazer pressão para vir e eu acabei vindo. P - Nesses dois dias. R - Dois dias. Aí eu vim por causa disso. Porque não era para ter vindo para cá. Aí eu vim por causa dessa pressão dela. Está entendendo? Que é natural, a família dela aqui, e toda minha família daqui, e ela sozinha lá, que de fato isto não era a melhor coisa e aí acabei vindo, vim embora para São Paulo. P - E algum amigo daqueles lá. R - Deixa-me ver. Não. Entrou um, entrou uma moça, porque nós entramos em três, o outro que entrou comigo era da faculdade de Medicina de Marília ou de Taubaté, e em terceiro lugar entrou essa moça que também estudava em Santos, ela até já faleceu, ela fez Neurologia aqui na faculdade e se formou em Neuropediatria e etc. Faleceu acho que a uns dois ou três anos atrás. Ah E os outros que mais queriam entrar e hoje eles estão em vários outros lugares, são grandes médicos, mas esse é o destino. Para você ver, não era o meu sonho, não era uma coisa que eu queria fazer e acabei fazendo por circunstâncias, isso deve ter ajudado a mudar muito a minha vida, que abriu muitas portas, depois que eu já estava aqui e as coisas foram se abrindo. Em 72 eu me formei e entrei na residência, fiz residência, acabei a residência e já fui pro mestrado, acabei o mestrado já fiz o doutorado, fiz livre-docência. P - Na graduação você tinha alguma idéia de fazer cursos de especialização. R - Não. Na verdade o que eu mais gostava era de gastroenterologia, aí quando eu fui pra residência de clínica médica, o que eu não gostava era cardiologia. P - Não gostava de cardiologia? R - Não gostava de cardiologia. P - Mas era clínica ou cirurgia? R - Não. Cirurgia eu não gostava, não é que eu não gostava de cirurgia, a idéia que eu tinha de cirurgia na época era uma idéia meio difícil de você colocar em prática, porque eu via o médico assim, como um super médico, ele tem que fazer cirurgia clínica, isso hoje é inviável pela dimensão ou grau do conhecimento médico, é muito difícil para você poder fazer, então me ative em clínica e dentro da clínica, eu estava mais propenso a fazer gastroenterologia, que é que eu gostava ou achava que gostava. Quando eu estava terminando a residência de clínica médica eu gostava muito de UTI e trabalhava muito dentro da UTI, quase a metade do nosso período da residência era ligado a UTI, aí eu fui fazer UTI e no final da residência eu tinha que optar o que eu queria fazer no ano seguinte. Aí aconteceram coisas interessantes, porque eu estava muito ligado ao pessoal da nefrologia e da UTI, e o professor da nefrologia me convidando: "Vem para a nefrologia, você vai fazer residência, depois vou te contratar, você vai ficar aqui conosco e etc." O da reumatologia fazia as mesmas promessas: "Não você vai vim trabalhar na reumatologia comigo, vou te contratar, né?" Aí eu ficava olhando e falei: "Pô Todo mundo quer me contratar, mas eu nem sei o que quero" Mas dentro da UTI eu sabia que eu não ia me desenvolver lá se eu não soubesse hemodinâmica. E hemodinâmica, o único lugar que você poderia aprender, era na cardiologia. Então no último minuto da decisão eu optei por cardiologia: "eu vou aprender hemodinâmica, assim vou aprender interpretar esses dados no paciente grave de UTI, e depois eu faço UTI". E aí acabou acontecendo que fiz cardiologia inteira para aprender hemodinâmica e acabei me envolvendo e gostando, enfim, fiquei na cardiologia e nunca mais saí da cardiologia. P - O senhor fez residência no Hospital das Clínicas? R - É, aí a minha vida ficou toda aqui, na faculdade, na universidade, quando eu terminei o mestrado, aconteceu uma coisa interessante, que essa foi uma outra coisa que marcou a minha vida. Ver na época o Dr. Ezra Armsterdã, que era um cardiologista muito proeminente nos Estados Unidos, da Universidade da Califórnia, em Davids. Ele ficou aqui conosco alguns dias e viu tudo o que eu fazia aqui na Unidade Coronária, na época do H.C. ainda, e queria me contratar para ir para a universidade dele, e ele me mandou um contrato da universidade, pra eu ir pra lá como Assistant Professor, aí cheguei em casa todo animado, a minha filha mais velha tinha sete anos, eu cheguei com o contrato e falei: "Olha, tem um contrato assim". Minha filha disse: "Eu não vou". P - A de sete. R - A de sete, a minha mulher: "Eu também não vou" Falei: "Pronto, já perdi, dois a um, sou minoria". Aí falei: "Mas é importante, nós vamos morar nos Estados Unidos e tal, vou ficar lá como docente da universidade". Não quiseram. Aí eu tomei a seguinte decisão: "Tudo bem, eu não vou. Mas eu só vou ter certeza que estou certo, se eu não for, continuar trabalhando aqui, mas passar a ser convidado para dar aula lá. Se isso acontecer, é porque eu fui reconhecido de que mesmo estando aqui eu fiz a coisa certa". E assim foi, não fui, passei a trabalhar mais ainda do que eu já fazia para testar se essa opção tinha sido realmente boa, e graças a Deus eu acertei. E eu sempre brinco. Uma certa vez me falaram: "Pô, você é contra as pessoas irem pro exterior, você nunca foi". "Não sou contra, eu só não fui porque minha família não quis ir e eu não ia abandonar a família pra ir pra lá só porque eu queria." Mas eu só ia ter certeza que essa decisão era correta, na medida que eu fosse convidado para ir pro exterior, e eu vi que acertei, porque muita gente que morou lá fora, estudou lá fora, ficou lá fora, volta pro Brasil, nunca mais é lembrado e nem é convidado pra voltar e dar aula ou fazer qualquer trabalho. Eu nunca fui, nunca morei, fiquei aqui e sou sempre lembrado para ir, então deve ter tido alguma compensação e algum valor nisso. Então, acho que foi uma decisão correta apesar do aspecto emocional, onde é que envolvia a decisão, não foi racional, mas são circunstâncias que acontecem na vida da gente, são desafios que nós precisamos enfrentar, esse foi mais um e acho que valeu a pena, porque acabou me facilitando neste convívio aqui, ajudar a vim para o InCor, instituir o InCor, fazer o InCor crescer, quer dizer, sou mais uma daquelas pessoas, dentre tantas dentro do InCor, que ajudou a fazer o InCor, e se hoje estou no posto máximo dentro do InCor foi por ter conhecido junto com todos eles, todos estes caminhos que o InCor desenvolveu a cardiologia, em especial a cardiologia da faculdade de Medicina que trouxe para o Brasil uma posição de vanguarda. Hoje é a principal instituição de assistência cardiológica, a título de América Latina disparado e competindo com as principais mundiais, um grande centro de formação científica de excelência no mundo inteiro e um grande centro de medicina. Seguramente, como fonte de ensino, é o maior centro de ensino que existe no mundo, pelo número de pessoas que passam aqui para aprender cardiologia. Então, isso acaba sendo extremamente, vamos dizer, compensador de você ter ficado, ter trabalhado, ter se dedicado junto com todos os outros e poder ter tido condição de disputar um concurso para professor titular, uma posição dentro da universidade. P - Como foi a entrada do senhor no InCor, como é que se deu? R - Não. A entrada era praticamente automática. Quando o InCor começou a funcionar em 77, todos nós que estávamos na cardiologia do H.C. Viemos transferidos para cá. E eu nessa época era preceptor, não era médico assistente ainda. Eu era preceptor da clínica médica onde ficava a cardiologia, aí teve um concurso para médico assistente do InCor, eu prestei o concurso, passei em primeiro lugar, aí vim para o InCor. Como médico assistente, fui o primeiro a trabalhar no InCor. Primeiro em 1977, o primeiro lugar a internar pacientes foi na unidade coronária onde eu trabalhava e eu era o único que ficava dentro do InCor, até que os outros foram se transferindo gradativamente, e nessa época eu trabalhava quase que só dentro do InCor. Em 1979, criaram o médico de tempo integral e eu fui o primeiro a ficar em tempo integral dentro do InCor, quando comecei a atender pacientes privados aqui, eu vendi o meu consultório que era na Rua Itapeva e a maioria não acreditava que o InCor fosse dar certo. "Não, não põe suas fichas num saco só, que você vai perder tudo, o Brasil é um país muito desorganizado para que isso dê certo." Ou acredito ou não acredito, o dia que eu deixar de acreditar em alguma coisa e não lutar por aquilo está na hora de eu morrer, porque não tem sentido viver sem você lutar, eu acho que não foi em vão, porque deu certo e todos os outros que até criticaram, hoje estão fazendo a mesma coisa que eu faço, se dedicam ao InCor, trabalham dentro do InCor e aqui fazem as suas vidas, tanto acadêmica, científica e profissional. P - Dedicando integralmente ao InCor. R - Dedicando só ao InCor. P - O senhor conheceu, com certeza, trabalhou com Decourt e tudo mais, como é que foi? R - Sim, o professor Decourt foi o meu professor na clínica médica, depois em particular na cardiologia. O professor Zerbini foi meu professor também na faculdade de cirurgia e depois meu professor no convívio da residência e todos estes anos até ele vir a falecer. Meu professor Decourt também, um grande mestre e pessoa a qual sou muito ligado até hoje. Reverencio-o por todos os méritos que ele sempre reuniu, como mestre, como homem, como ser humano; ele hoje é uma dessas pessoas que se a gente pudesse embalsamar, preservar e falar: "Esse é assim eternamente". Ele deveria ser preservado eternamente. Ele, a despeito da idade, tem uma lucidez tremenda, escreve todos os meses na Revista do InCor, na página do Decourt lá, com as idéias dele, expondo de uma forma clara e magnífica, e espero que ele continue assim por mais 85 anos. E sempre foi um convívio maravilhoso, foi uma pessoa que sempre deu muito exemplo de hombridade, de comportamento, de humanidade, de uma cultura humanística e cultura geral muito grande, dando o exemplo exato como professor e como as coisas tem que ser e de uma forma um pouco diferente do Zerbini. O Zerbini era uma pessoa mais aguerrida, que é o próprio perfil do cirurgião, uma pessoa mais aguerrida, mais batalhadora, não via obstáculos na frente. Eles se completavam, por isso que a cardiologia cresceu, eles sempre trabalhavam juntos apesar de não pensarem igual, mas um completava o outro, um era mais a voz da razão e o outro era a voz da emoção e da luta, e por eles se completarem é que o InCor saiu. Se o Zerbini fez o InCor, o Decourt ajudou a consolidar, estabelecer o InCor, fazer as primeiras bases do InCor, então eu aprendi muito com os dois, tanto no convívio como aluno, como discípulo de ambos, como amigo dos dois e vendo o comportamento dos dois, a luta dos dois, os objetivos dos dois, e até trazendo pra mim, incorporando pra mim, algumas das coisa básicas deles. Eu sempre segui uma filosofia própria que é o seguinte: "Se você quer saber o que vai acontecer com você amanhã, veja nos outros." Então eu sempre olhava nos outros, que me cercavam, o que iria acontecer comigo amanhã. Já me precavia. Por isso eu aprendi muito com os dois. Eu não só via naqueles que tinham a mesma faixa etária minha, o que estava acontecendo com eles, o que poderia acontecer comigo ou via através dos mais velhos, então isso acabou permitindo você corrigir antecipadamente erros que você poderia cometer amanhã e isso sempre me ajudou muito na minha vida, para levá-la de uma forma de que tanto na vida acadêmica como profissional ela acabasse atendendo vários pré-requisitos ou requisitos que me ajudaram muito, um desenvolvimento da minha atividade dentro da universidade, dentro da InCor propriamente dito. P - Quando o senhor veio para cá, o senhor prestou esse concurso de médico assistente e foi para coronária? R - Fiquei no andar de coronária. Foi meu primeiro lugar, que já era o lugar que eu estava. P - Que ano que foi isso? R - 1977. Foi em junho de 1977. De lá pra cá, eu estava aqui e fui rodando em várias áreas aqui dentro. Então, como assistente da coronária eu ajudei a implantar vários andares do InCor pra funcionar. P - Quais andares? R - O oitavo andar, o sétimo andar, depois ajudei... Criei o Pronto Socorro, eu fiz o Pronto Socorro existir e funcionar, as UTIs do hospital passaram a funcionar de uma forma organizada nessa época, depois fui para o grupo de coronária. No grupo de coronárias, que já eram crônicos, fiquei aí 13, 14 anos, uma coisa assim, até chegar a professor titular. Nessas andanças em grupos você ajuda a criar coisas, ajuda a desenvolver coisas, novos métodos, vai ajudando a formar novos valores que vão seguindo outros caminhos, aí você vai trilhando o seu caminho. Então, dentro do InCor, não há coisa que eu não tenha me metido em alguma fase, de alguma forma eu me meti em alguma fase. P - Nesse começo, quer dizer, como que era essa questão do multiprofissionalismo aqui? Essa discussão? R - Não tinha discussão porque você aceitava. No Brasil em particular, existe dentro do hospital, uma presença muito marcante do médico. Na verdade, pelas outras profissões na área de saúde não terem se desenvolvido na mesma altura, no mesmo nível que a profissão médica, o que acabou acontecendo é que invariavelmente nos hospitais, os médicos ocupam quase tudo. Então, o multiprofissional nunca foi muito aceito pelos médicos, hoje ele é muito mais aceito do que já foi antes, mas está longe do ideal, de integração ideal. No InCor nós já estamos mais adiantados porque esse convívio ao longo dos anos ele existe, também não é o ideal, mas ele existe e funciona. Em outros hospitais nem se passa pela cabeça de que possa ocorrer um convívio maior integrado com a equipe multiprofissional. No InCor, no começo, era só no papel, no papel a integração multiprofissional era muito bonita, na prática, não funcionava de jeito nenhum. Hoje, com o passar do tempo, convívio constante dos outros profissionais com os médicos, o crescimento dos outros profissionais do ponto de vista científico, está permitindo que esta integração seja cada vez maior. Na psicologia, o exemplo típico, que o psicólogo de uma forma geral ele sempre foi visto como... Ele não é psiquiatra, não é médico e não tem muito que ajudar o médico, ensinar o médico, então o médico mesmo esquecia de ver o lado do psicólogo, algumas interpretações importantes que poderiam ajudá-lo em conhecer melhor o seu paciente, em relação da doença. E as psicólogas aqui tiveram, no começo, muita dificuldade até em transmitir para os médicos informações dos doentes, que os médicos ou não davam valor ou não perguntavam. Hoje já existe essa integração maior, que as próprias psicólogas já tem os seus ambulatórios, elas marcam seus pacientes, elas vêem os pacientes internados independente do médico chamar ou não. Antes nós passamos por uma fase que tinha que ser chamada... Se elas ficassem sentadas esperando, elas provavelmente estariam esperando até hoje ser chamadas. Hoje não, elas estão ativas, elas trabalham primariamente com o doente e já levam informação direta: "Olha doutor, do ponto de vista este paciente tem isto." E isto independente do aspecto do médico e o médico interpreta dentro da condição geral daquele caso, aquela informação do perfil psicológico para ver até que ponto aquilo tem ou não influência importante na evolução ou na sintomatologia do paciente, e muitas vezes nós utilizamos os psicólogos para tentar decidir uma cirurgia: "Pôxa Eu não entendo esse caso, esse caso não condiz tudo o que eu vejo com o sintoma do paciente. Será que esse sintoma é verdadeiro ou não?" Muitos desses casos só a abordagem psicológica vai nos ajudar a tomar uma decisão mais apropriada, e não é raro você cancelar cirurgia desses pacientes ou não indicar cirurgia, quando até previamente havia sido indicada, por indicação do psicólogo ou do perfil psicológico. A mesma coisa do transplante. Sem o perfil psicológico você não pode decidir um transplante. Vamos fazer um transplante? Não. Se não tiver uma avaliação psicológica adequada e uma informação adequada e uma decisão do psicólogo adequado, você não pode indicar cirurgia, então esse convívio vem num progresso muito grande e está cada vez melhor. O que é mais interessante, os psicólogos já encontraram um espaço seu dentro do hospital e dentro do InCor, isto é muito claro. Como os outros profissionais também foram crescendo, fisioterapeutas, as nutricionistas... Que nem eram consultadas, ninguém perguntava para um nutricionista algo sobre dieta, hoje não, elas já dão normas que os médicos têm que seguir então... P - As nutricionistas também? R - Cresceu muito. Ela era mais esquecida do que a própria psicóloga. P - É mesmo Mesmo levando em consideração a dieta de... R - O médico sempre achava que ele sabia muito da dieta, que a nutricionista não deixava de ser "uma cozinheira" para saber colocar no fogo. P - Ele que prescrevia o cardápio... R - Aquilo que ele tinha prescrito. Foi a dieta tipo gordurosa? Bom, você tem que saber o que quero dizer. Você entendeu? Não, hoje ela já impõe regras. P - Assistente Social então? R - Cresceu também, era desprezada. A Assistente Social era para resolver problema social, hoje a Assistente Social tem um peso maior, um levantamento para conhecer o paciente de um outro lado que o médico não vai conhecer. Como o farmacêutico. O farmacêutico, dentro do hospital, ele era ignorado, quer dizer, é um guardador de remédios, é a pessoa que toma conta do remédio, então tem uma sala que está cheia de remédio e tem uma pessoa que toma conta, esse é o farmacêutico. Não. Com o tempo isso tem mudado muito e a nossa farmácia, os farmacêuticos, não só tem os seus trabalhos de pesquisa, como eles têm regras próprias para dar medicação, que acabam influenciando o hospital inteiro e os médicos seguem, não há mais aquele embate constante. Isto acabou porque cada um já ocupa o seu espaço e já sabe até onde cada um tem que ir, então não há imposição de nenhum dos lados, já existe um respeito maior pelo que o outro pode fazer. Daquilo que você me perguntou, bom, e o aspecto multiprofissional, se antes ele era muito pobre porque o médico se autodenominava "senhor absoluto" e auto-suficiente, sobretudo, hoje ele já não se vê com a mesma segurança, pelo menos. Ele ainda ocupa uma posição de liderança dentro do hospital, que é lógico que trata do doente, ele é o responsável pelo tratamento da doença, mas ele já não é o auto-suficiente completo, ele já tem um montão de insuficiências que tem que ser completadas pelos outros profissionais, que competem a eles na área deles. P - Essa flexibilidade que o senhor está pondo no InCor, por exemplo, na universidade isto também está acontecendo ou... R - Também acontece num passo muito menor, porque a integração na universidade ela existe só no papel como em outros hospitais também. Nem todos os hospitais acompanham essa integração multiprofissional de uma forma mais constante, de um convívio mais direto. Aqui isso existe em grande parte porque os médicos estão o dia inteiro, então eles convivem o dia inteiro com os psicólogos, com os fisioterapeutas, com os farmacêuticos, com a assistente social, tanto que se você for na hora do almoço ver o restaurante lá, na lanchonete do InCor, você vê as mesas misturadas, as enfermeiras sentadas com os médicos, com os psicólogos, com os nutricionistas, com os não sei o que, então está todo mundo misturado e isso acaba trazendo um convívio entre esses profissionais maior, eles passam a se conhecer e a se respeitar. Se você tivesse cada um na sua, os profissionais acabam não se conhecendo e um não sabendo o potencial do outro para lhe ajudar, e nesse convívio constante existe essa troca de experiência, essa troca de conversa, aquele bate-papo, que um acaba ajudando o outro, então as pessoas acabam se procurando por causa disso, o que não é muito comum em outros hospitais, onde geralmente os médicos trabalham pouco tempo, eles só internam o paciente, então ele vai lá ver o paciente dele e vai embora. Ele não vive no hospital e não convive com as pessoas do hospital, então ele não pode ter um convívio com psicólogo, com a bibliotecária, com a assistente social e assim por diante, mais íntima, porque também ele não conhece. Então, qual é a melhor forma de você se defender, se proteger? Quando você não conhece você é maior que todos, e os outros estão lá embaixo. (risos) E o convívio acaba sendo menor e a integração do multiprofissional muito pequena nesses outros lugares. P - Mas são essas amarras em relação ao médico em relação aos outros profissionais da área de saúde. Mas e na relação, vamos supor, fisioterapeuta, psicologia, como é que acontece isso antes em outros departamentos? R - Entre os outros também existia. E é fácil de entender, porque abaixo do médico, no hospital, por exemplo, a profissão que sempre se desenvolveu mais próxima do médico foi a enfermagem e a enfermeira sempre achou que ela é a segunda, que a fisioterapia, a enfermeira, psicóloga, assistente social eram quarto, quinto, oitavo, décimo, não tem nada que estar do lado do segundo, então... P - O senhor tinha mais esse controle... R - Era outra barreira, os outros profissionais não só tinham que enfrentar os médicos para serem absorvidos num hospital, como tinha que enfrentar a enfermagem. Tinha barreira da enfermagem antes de chegar no médico. (risos) E isso também está sendo desfeito ao longo do tempo, não foi completamente desfeito... E, além de tudo, existe aquela situação "quem é o terceiro?" Só informarem o segundo quem é o terceiro? Então existe a disputa para ver quem é o terceiro. Quando na verdade não existe o primeiro, o segundo, o terceiro, existe um grupo onde todos têm a sua participação e um tem que tomar a decisão porque cabe ao médico a responsabilidade sobre o tratamento, é ele que será acusado de qualquer erro na evolução do tratamento, então ele seria, vamos dizer, o líder natural da equipe, mas todos têm sua importância, sua responsabilidade. O psicólogo pode ser acusado do ponto de vista ético por ter ferido algum princípio da ética da psicologia, como a enfermagem também tem suas regras, suas leis, as fisioterapeutas, enfim, cada um dos profissionais, então existe uma responsabilidade global que é do médico, além da responsabilidade dele médica, a global liderando uma equipe que está tratando alguém, mas cada profissional tem a sua responsabilidade particular e isto se desenvolveu muito ao longo desses anos, quer dizer, nesses 22 anos desde que o InCor começou, em 77 a 99, esta capacidade de trabalho multiprofissional ela veio melhorando progressivamente. Hoje ela está num nível muitas vezes superior aquilo que ela era no começo, aquém do ideal, mas nós já estamos muito mais próximos do ideal do que próximo daquele caos do início. P - Parece-me que foi a cardiologia mesmo que abriu um espaço pra que a psicologia se firmasse na área hospitalar, você tem alguma... R - Olha, na verdade, isso nunca havia se criado... Vamos dizer, a psicologia hospitalar propriamente dita, ou oficial, foi na cardiologia através das psicólogas aqui do InCor. Mas já existiam outras especialidades em que esse convívio já estava próximo, é que nunca se desenvolveram, mas o psiquiatra e o psicólogo, apesar de eles se verem como inimigos, em último lugar eles já trabalhavam juntos até dentro dos hospitais, mas é que não se desenvolviam. O psicólogo não se desenvolvia, na área infantil, por exemplo...Na área infantil alguns hospitais de pediatria, o próprio Instituto da Criança aqui, já tinham o convívio com um psicólogo anterior a nós da cardiologia. É que nunca se firmou a tal ponto de se criar psicologia hospitalar propriamente dita. Na verdade, a psicologia hospitalar... A característica dela é em relação a pacientes que fizeram procedimentos de tratamento hospitalar, mas no fundo ela tem muita semelhança, dados comuns à psicologia clínica clássica, que esse paciente não vai viver no hospital a vida inteira, ele vai sair. Ele estava fora antes e você pode prepará-lo, no caso de uma cirurgia, no caso de uma angioplastia, não de uma emergência porque aí você não sabe se vai ocorrer ou não. Bom, você já trabalha com o paciente antes e vai trabalhar com ele depois que ele sair do hospital. A característica mais específica da psicologia hospitalar, foi trabalhar com o paciente dentro do hospital, claros procedimentos que só podem ser feitos dentro do hospital e nisso as psicólogas do hospital, do InCor, souberam desenvolver muito bem, mostrando que esta atividade era uma atividade um pouco distinta daquela só do consultório, porque você tinha que pegar uma fase mais amarga do paciente, da vida dele, onde ele está isolado da família, do meio ambiente dele, está num ambiente agressivo que é o hospital. Acaba sendo meio agressor, e que elas demonstravam algumas dificuldades de integração do paciente com o meio e até mudança de comportamento em relação à agressão do meio, e o papel delas se torna muito importante. Enfim, o papel de proporcionar uma ambientação melhor e uma aceitação melhor do paciente em relação a tudo que cerca da doença e do tratamento em si. Então esse é um grande mérito que a Dra. Bellkiss e todas as outras psicólogas que estão com ela, tiveram na criação da psicologia hospitalar. P - Para o senhor, pessoalmente, como é que foi o primeiro contato com esse universo da psicologia ainda no H.C? Ou foi só na InCor? R - Não. No H.C. Com a psicologia no H.C. Eu não me recordo de ter tido. Eu tive mais com o pessoal que fazia fisioterapia... Mas, eu acho que ela foi natural, foi uma questão de você desenvolver aquele convívio de profissional. Você sabe o que o profissional é capaz e só o convívio do dia a dia é que acaba trazendo uma amplitude da sua visão sobre a profissão dele, porque nem sempre você tem amplitude suficiente para entender o que o outro profissional pode fazer, então você precisa aprender sobre aquela profissão pra aprender o que ele pode fazer por você e todos nós temos que aprender isso. Eu aprendi muito no convívio com eles. Um professor de Educação Física... Você imagina O que vai fazer um professor de Educação Física dentro de um Instituto do Coração? Alguns anos atrás você falar que um professor de Educação Física poderia ser o responsável pelo programa de reabilitação ou fisiologia de exercício em cardiologia era, assim, uma afronta à medicina e a cardiologia. Hoje não, o nosso chefe de serviço é um professor de Educação Física, ele é o responsável pelo projeto e pelo programa de reabilitação cardiovascular e todos já o respeitam. Porquê? Porque ele não é um professor de Educação Física, ele é um professor cientista, ele faz trabalhos, ele tem trabalhos do mesmo nível que os trabalhos dos médicos, que os publica em revistas tão importantes quanto a dos médicos, vai em congressos médicos e apresenta os seus trabalhos, quer dizer, isso confere a ele uma condição de igualdade. Ele só não é médico para dizer o que pode tomar de remédio ou fazer, não conhece a doença no seu conteúdo básico, mas ele conhece a doença nas manifestações do exercício e convive com médicos que trabalham com ele para fazer um planejamento de reabilitação e de fisiologia de exercício adequado. Isso, há anos atrás, seria enforcado quem falasse. Hoje não, hoje está aqui, está ai, trabalha conosco, é a pessoa de mais alto respeito. Então, em relação aos outros profissionais é a mesma coisa, é um passar de anos de convívio e aprendizado mútuo aonde nós temos mais a aprender do que eles, porque eles de uma forma geral já sabem o que o médico faz, nós é que não sabemos de tudo o que eles podem fazer, e o que nós ganhamos ao longo desses anos foi conhecer melhor a capacidade deles de nos ajudar, por isso que o convívio tem aumentado por esse âmbito. P - Qual a perspectiva dentro da área médica dessa junção entre clínica e cirurgia, como é que foi esse... R - Pra nós isso é uma condição natural, porque nós aprendemos, todos nós com o convívio Decourt e Zerbini. Aquilo que eu disse pra vocês, duas pessoas tão diferentes, mas que se complementavam. Eles nos ensinaram que este convívio era força de todos. Esta união Decourt e Zerbini mudou o perfil da cardiologia no Brasil e trouxe pra São Paulo a grande força da cardiologia do Brasil e da própria América Latina. A partir daí, os seus discípulos na verdade, o que fizeram, foi imitar os passos deles. Nós, no InCor, simplesmente mantivemos este convívio. Depois saiu Decourt e Zerbini, nós tivemos Fúlvio Pileggi e Adib Jatene, também duas personalidades diferentes, duas pessoas diferentes, mas que se complementavam e ajudaram o InCor a se desenvolver muito. Depois uma pequena fase minha com Adib, o Adib se aposentou por força dos estatutos e regimentos da própria universidade, 70 anos compulsório, eu estou sozinho, o ano que vem vai ter o concurso para o outro professor titular de cirurgia cardíaca. Ele virá e esse casamento vai continuar que na verdade, nenhum de nós é mais importante, os dois são importantes para que todos tenham força, se eu me torno um adversário dele ou vice-versa, os dois se enfraquecem e a instituição rui, então a única forma de mantermos essa força é esse convívio e esta união constante, então as nossas regras foram estabelecidas a 30 anos atrás pelo professor Decourt e pelo professor Zerbini. O que nós fizemos é só continuá-las, aperfeiçoá-las e adaptá-las ao tempo atual, mas as regras são aquelas e os cirurgiões compreendem muito bem isso e vivem adequadamente conosco, não existe rivalidades maléficas, existe uma competição sadia entre clínicos e cirurgiões, até amigável, com brincadeiras, piadas de uns pro outros e vice-versa, mas com um respeito mútuo muito grande e um reconhecimento de ambas as partes, da capacidade do que cada um pode fazer para os pacientes e não existe choque de vaidades, de que, não, manda mais de um lado, manda mais de outro no hospital, não, os dois dividem tudo. Estamos juntos independente de números se existe mais clínicos ou mais cirurgiões, não é o número que determina a força, é o convívio que dá força a todos. P - E quando que o senhor entrou neste concurso de médico assistente e como começou sua carreira no setor administrativo? R - Não, administrativo ele era pequeno, porque quando eu entrei médico assistente, tomava conta da unidade e a unidade tinha um diretor que era o Giovani Belotti. Eu era um dos médicos assistente, na ausência dele eu é que tomava conta da unidade, mas o meu tempo maior não era gasto em administração, meu tempo maior era gasto na parte científica e assistencial e de ensino. Com o passar do tempo a medida que você vai ocupando cargos maiores, o seu cargo administrativo, a sua parte administrativa vai aumentando porque a sua responsabilidade passa a ser mais abrangente e foi o que aconteceu comigo progressivamente, a medida que eu fui adquirindo cargos maiores eu tive uma parcela ligada a administração também maior. Em 1997, tivemos um concurso para professor titular de cardiologia, então nesse concurso a partir daí, que as minhas obrigações administrativas aumentaram muito mais, eu não deixei de ser médico nem deixarei porque esse é o meu motivo básico de tudo o que eu faço aqui dentro, mas não há dúvida que a minha obrigação do ponto de vista administrativo é muito maior hoje do que era a cinco, oito anos atrás. Então a minha vida hoje, ela tem uma responsabilidade maior porque hoje eu tenho o próprio Instituto como minha responsabilidade, e antes eu não tinha nada que ver com o Instituto, eu era um mero instrumento no meio de vários, eu tinha uma parcela de importância, mas numa cascata de responsabilidades. Quer dizer, várias pessoas e eu era um ponto. Hoje não, hoje eu sou a ponta da pirâmide, então a minha responsabilidade passa a ser maior porque eu tenho que ter todos organizados embaixo. Cabe a você fazer a união dessas pessoas a contornar vaidades, contornar briga, disputas pessoais, individuais, briguinhas de família, quer dizer tudo o que seja problemas num lugar que tem 2.600 pessoas trabalhando, cabe a você ficar acertando essas peçinhas, então lógico, eu hoje tenho que destinar, não é gastar, destinar mais tempo a esse tipo de atividade do que eu destinava antes. E a minha vida profissional ela se mantêm a mesma, todas às tardes eu vou lá para o andar térreo, consultório, atendo a todos os pacientes que me procuram e saio daqui 10, 11 horas da noite todos os dias. P - É agora quero perguntar dos fatos históricos, o senhor é, como é que foi a época do Tancredo aqui? R - Conturbado, como toda vez que tem grandes personalidades aqui. Desde que o InCor passou a ser reconhecido como centro de excelência, ele é hoje procurado por todas as pessoas que querem se tratar, independente de ter só moléstia do coração ou não, então com isto você acaba se tornando alvo de toda a mídia, cada vez que vem uma personalidade dessa. Na época do Tancredo não podia ser diferente. Você imagina, aquela esperança, mudança no Brasil e o presidente doente, então todo aquele quadro emocional envolvendo a doença dele, uma doença que era fatal desde o começo, pela característica das complicações dela na evolução, então você já sabia que ele não tinha muita chance e não podia dizer nada pra ninguém. E todos os dias eu via uma série no jornal: "Passa mal de novo." Não é passar mal, ele nunca teve bem Então ele continua mal, mas enfim... Você ter que acompanhar, participar e ver aquela vida conturbada do hospital porque todas as vezes que tem personalidades, é repórter, acampa lá embaixo, você é cercado na saída ou na entrada para dar entrevista ou o repórter que te procura: "Não, que o senhor tem alguma informação que não está sendo dada." Isso existe, foi assim com ele, foi assim com Nilo Coelho, foi assim com Antonio Carlos Magalhães, foi assim com o Covas, foi assim com o Sarney e com todos que procuram o InCor e cada vez que vem um deles é um período de conturbação, apesar que já aprendemos ao longo do tempo conviver com essa conturbação. Hoje perturbam muito menos do que antes porque hoje nós estamos mais descolados, mais estruturados para que isso seja feito de uma forma mais profissional, conturbando muito menos do que acontecia no passado. Mas esses marcos históricos eles, dessas personalidades que se internaram, eles só serviram pra consolidar a posição do InCor, que na verdade a medida que o InCor ia desenvolvendo sua capacitação técnica e tecnológica, ele acabou transbordando para a comunidade médica e a comunidade em geral, uma sensação de eficiência, então esse reconhecimento como centro de excelência e de eficiência acabou incrustado nas pessoas. Tanto que hoje o InCor é quase um substantivo, quando você fala em InCor você já está falando um nome próprio, é a mesma coisa quando fala Pelé, aquele cara é o Pelé, é que Pelé já é um símbolo de qualidade, quando você fala "Pelé"; é o mesmo que dizer "aquele é o melhor jogador, ele é muito bom." E o InCor está quase se tornando a mesma coisa. Quando você fala em InCor você está falando em centro de excelência, centro de reconhecimento, um centro de eficiência e muitas das pessoas não querem saber do que elas estão doente, elas querem ir pro InCor e não dá para resolvermos todos os problemas, gostaríamos, mas não podemos. É, você vê, às vezes nós temos pacientes cardiopatas, que já são pacientes do InCor, que tem problema de vesícula, que tem que operar, que: "eu opero, mas quero operar no InCor". "Mas não precisa." "Não, só opero se for no InCor." Veio aqui um outro dia, está até internado, ele tem problema de vesícula, resolvemos o problema de vesícula, era um quadro agudo que corria risco de infecção, foi resolvido aí desenvolveu pancreatite, como complicação da vesícula, e pancreatite é uma doença séria e gravíssima, mais grave do que as doenças do coração, ela acontece em poucos pacientes mas quando acontece ela mata 70%. Você ia mandar o homem pra onde? Fica ai. É responsabilidade nossa, temos que tratar, taí, está tratado, já está salvo, daqui uns cinco ou seis dias ele já vai embora pra casa mas acabou sendo internado aqui, tratado aqui por esse motivo e não é raro a gente receber pedidos do exterior. Certa vez tinha um senhor americano, uma pessoa que foi muito importante em termos de apoio à candidatura do Clinton para a presidência dos Estados Unidos, ele está em Montevidéu, teve uma dor no peito, passou mal e ele tem um irmão que é médico, então ele ligou pros Estados Unidos e disse pro irmão e o irmão disse: "Vai direto pro Instituto do Coração em São Paulo." Então ele pegou o avião em Montevidéu e veio pra São Paulo, aí me ligaram dos Estados Unidos, não há problema pode vir, veio, tratou e etc. aí ficou bom e foi embora. A quinze dias atrás a mesma coisa, um dos membros da Força de Paz Americana, do governo americano, que estava aqui em Assunção em missão oficial de trabalho também, teve infarto no avião vindo de Assunção pra São Paulo, aí o governo americano pediu que viesse direto pro InCor, veio pro InCor, se tratou e já foi embora para os Estados Unidos, ótimo etc. Mas isso acaba trazendo uma série de outras responsabilidades, eu citei dois casos que tiveram doenças das coronárias, mas tem vários outros que não tem nada com o coração e que acabam sendo encaminhados de diferentes lugares, ou a gente recebe pedidos de governos estrangeiros, ou de governos estaduais do Brasil ou municipais... P - Esses pedidos devem ser... R - É olha, eu preciso que resolva tal, dá pra resolver e toda vez que pode a gente tenta resolver, eu pelo menos sigo um lema, eu acho que a minha obrigação é sempre resolver os problemas que me forem pedidos, ou aqui ou fora, vamos dizer se é uma coisa que é ligada ao coração, vem que a gente resolve, se não é uma coisa ligada ao coração, eu mostro aonde que tem a solução e ajudo a solucionar, vai em tal lugar que o fulano de tal vai resolver isso e vai pra lá. P - Essa visibilidade também traz uma cobrança maior, não traz? Da sociedade da imprensa... R - Mas é natural. Eu acho que isso é uma conseqüência natural, a cobrança ela vem mesmo. Você sabe que é... O ser humano é assim, quer dizer, você em 100 lutas você ganha 99, na centésima você perde, é então: "Ele já estava começando a ficar ruim mesmo". (risos) Depois que você ganha 99 se mata a centésima e perdeu, aí vem o defeito, então aí todo mundo olha o seu defeito, não olharam as suas virtudes pelos 99. Pelas 99 vitórias, pelos 99 nocautes que você pôs o indivíduo na luta, não, aquela que você foi derrotado é que mostra os seus defeitos, aí todo mundo lembra dos defeitos e não das virtudes, isso faz parte do ser humano, então não adianta contestar, brigar, é uma injustiça, a sociedade é assim mesmo, se nós quisermos manter aquele aspecto exterior da eficiência, da excelência, nós continuaremos a ser cobrados. O dia que você deixa de fazer: "Pô, mas que cara sem vontade, tem uma má vontade, não quis resolver." Você resolveu um milhão, no milhão e um, você é um ineficiente, incompetente; faz parte, então a única coisa que tem que fazer é trabalhar, não tem jeito, não adianta ficar lamentando o leite derramado ou aquilo o que você não gostaria de não fazer, tem que fazer. P - Que momentos da história do InCor que o senhor considera momentos que foram essenciais pra constituição do que se tornou, enfim, fatos e... R - Não. Tem. Olha acho que o ponto número um é a própria criação do InCor, que é uma história importante. O professor Zerbini ele sempre vislumbrava o InCor. Em 58, foi quando ele começou a luta do InCor. De 58 a 77, foram 19 anos para ele conseguir fazer valer a idéia dele, mas ele começou a criar o InCor em 58. O decreto saiu em 63 criando o InCor. Quando o Sodré em 68, depois do transplante, pôs a pedra fundamental e assinou o decreto do InCor, na verdade já existia um decreto em 63, mas aí foi vamos dizer o passo derradeiro, decisivo. Você vê, foram 10 anos, de 58 a 68, até a pedra fundamental com o decreto no meio, 77 para a obra pronta começar a funcionar, mal e porcamente, mas começou. Esta foi a primeira fase, primeira grande fase, a determinação do professor Zerbini, sem luta não se conseguiria isso, ele lutou e conseguiu, esse mérito é dele e ele aqui vislumbrou que podia existir o InCor, ele que fez de tudo para que o InCor surgisse, ele fez o transplante porque ele já estava preparado pra fazer o transplante e o transplante foi a grande alavanca política para que ele consolidasse a idéia e começasse a fazer o InCor. Não que ele tenha feito o transplante para ter o InCor, eu li em algum jornal nesses dias alguém dando uma notícia assim, que havia um acordo do Sodré com ele, que se São Paulo fizesse o primeiro transplante ganharia o InCor, isso é mentira, o InCor já estava criado antes disso mas foi uma alavanca lógico, chamou tanta atenção que fortaleceu a imagem dele, de São Paulo, do Sodré e aí saiu o Instituto do Coração, então esse é o primeiro e grande marco, o professor Zerbini. Outro marco importante foi a visão de abrir o InCor a outras áreas pra que eles fossem fortalecidos do ponto de vista científico e essa é uma participação do Fúlvio Pileggi que foi importante, porque o InCor sempre foi forte em clínica e forte em cirurgia, mas ele em ciências básicas, em pesquisa básica nunca foi muito reconhecido, e o fato do professor Fúlvio na época como diretor do hospital ter trazido reforço pra fisiologia, reforço pra hipertensão, trazendo o professor Krieg, professor Maurício da Silva, isso fortaleceu-nos bastante do ponto de vista de pesquisa básica, pesquisa experimental, depois de trazer outros profissionais paras as áreas de diagnóstico fortaleceu-nos mais ainda. Então essa foi uma outra fase marcante, que nós vivemos e que ela não é muito reconhecida porque ela foi diluída ao longo do tempo, mas que foi uma mudança de idéias de não ficar só na mão do clínico, na mão do cirurgião o hospital em si, mas sim num conglomerado de pessoas que pensam e que fazem. Agora nós vivemos uma terceira fase, vamos dizer assim. O que quer dizer essa terceira fase? O hospital foi instituído na primeira fase, foi consolidado, ou melhor, foi desenvolvido na segunda fase, a primeira fase ela instituiu, na segunda ela desenvolveu, agora a terceira tem uma obrigação importante: é consolidar tudo o que foi feito e criar bases para a nova fase. Porque o novo milênio e a nova medicina é um novo desafio, que se nós ficarmos galgados nos princípios de 30 anos atrás, nós não vamos conseguir vencer, nós vamos ter que pegar aquilo, reformular, fortalecer para enfrentar os próximos 30 anos. Então esta nova fase é a conclusão do nosso novo prédio, termos a ampliação do sistema InCor, como nós chamamos, e a diversificação das atividades do InCor, inclusive levando mais o InCor para comunidade, desde de todas as pessoas virem aqui ao InCor, e mais ali, criando postos pra atendimento das pessoas fora do prédio central e só trazê-las para amparo no prédio central quando elas têm necessidade de exames sofisticados ou de internação. Fora isso, elas tem que ser vistas e tratadas fora do InCor, então esta é uma decisão da terceira fase que envolve a consolidação e a criação dos novos mecanismos para os próximos 30 anos em que o InCor tem que atingir...(pausa) Eu sempre brinco com as pessoas que trabalham no InCor, mas é o "top of the world". A obrigação nossa, se nós já conseguimos nos tornarmos a primeira do Brasil, como instituição médica, a primeira da América Latina como reconhecimento e como instituição médica, agora nós temos que ser o primeiro do mundo. É utópico? Não é utópico. É fácil? Não. É muito difícil, mas se nós não almejarmos isso, nós não chegamos nem próximo disso, então a nossa próxima meta é nos tornarmos o primeiro do mundo, com toda luta que nós tivemos que ter. Hoje nós já estamos entre as cinco primeiras instituições dentro de cardiologia do mundo, mas a nossa idéia é sermos o primeiro e vamos lutar pra isso. P - O papel da Fundação Zerbini nesse processo é... R - É fundamental, porque foi uma nova... Foi uma idéia que o professor Zerbini teve extremamente feliz de você ter numa gestão pública, num hospital público, um apoio de uma gestão privada. E isso é muito importante, é um apoio, é um processo de gestão de apoio. Não é um processo de intervenção, de interferência e a importância está em que ela arrecada fundos que são gerados pelo próprio InCor, em termos de serviço, ela alavanca fundos que são extra InCor e esses fundos todos são trazidos para dentro do InCor, então tanto pra desenvolvimento do Instituto, crescimento do Instituto na área física, como em equipamentos tecnológicos, como nos recursos humanos, melhorando o pagamento dos recursos humanos pra que eles fiquem fixos dentro do InCor e não fiquem saindo a toda hora, perdendo as grandes cabeças para outras instituições. Então o apoio da Fundação Zerbini foi um ponto crucial, muitas vezes as pessoas acham que a solução é ter uma fundação, não é verdade. Ter fundação não ajuda em nada, a fundação só funciona se existe mudança de filosofia da instituição, que foi o que aconteceu no InCor. Ela só valeu a pena porque os nossos profissionais passaram a viver o InCor. P - Daí não teria indicação, uma vez que seus salários são melhores não precisava... R - Lógico. E aí vale a pena ter fundação porque você está trazendo para a instituição recursos, à medida que você atrai pacientes, você atrai pra cá. São pacientes que pagam e geram recursos para a instituição que vai devolver para própria instituição. P - Vai alimentar a cadeia... R - Então é uma retro-alimentação constante. É diferente de você ter uma fundação... Você trabalha aqui de manhã e depois do almoço você vai para outro hospital; ué, que recurso aquela fundação vai administrar? Só o que você gerou de manhã, o que você gerou a tarde é zero, então ela vai receber recurso zero, então muito hospital que tem fundação não consegue usufruir de todo o benefício porque não tem mudança de filosofia. Eles acham que a fundação é o clique de que tudo vai mudar, fundação não muda nada. P - Essa mudança de filosofia, na verdade, ela agiliza esse dinheiro. Senão ele cai numa caixa comum e não volta pra cá. R - Lógico. Você imagina o seguinte: o hospital público trabalha com que paciente? P - SUS. R - Se você só trabalha com pacientes SUS, você vai ter uma fundação para quê? Para gerenciar o recurso do SUS. Que poderia ser gerenciado pelo diretor do hospital, não precisa de uma fundação para gerenciar o recurso do SUS. Qual é a vantagem de você ter o médico só no InCor? Quem quiser se tratar com o Dr. Ramires tem que vir no InCor, não adianta se internar no Einstein e falar: "Ah, o senhor pode vir aqui?" Eu não vou. Eu não vou ao Sírio Libanês e não vou a nenhum outro hospital, porque eu sou exclusivo do InCor, sob contrato. Igual a mim têm vários outros no hospital. Quer dizer, cada vez que alguém vem se tratar comigo ou vem me procurar, só pode ser tratada no InCor, então ela está trazendo recursos para o InCor, se ela for se internar no Einstein, ela leva recurso pro Einstein e assim pra qualquer outro hospital. Da mesma forma que isto acontece comigo, acontece com vários médicos. Para você se tratar com esses médicos você tem que vir ao InCor, então o recurso vem junto. Veja só, de cada 100 leitos, nós atendemos 76 SUS e 24 privados. Privados têm o seu lado seguro saúde ou privado propriamente dito, esses 24 geram 68% da receita serviços e os 76 geram 32%, só que os recursos que nós obtemos com aqueles 24 dão investimento para todo o hospital, de alta tecnologia, que todos usufruem independente se é SUS, se é convênio, se é particular: Tanto faz. O benefício é para todos, então os pacientes do SUS aqui eles tem a sua disposição equipamentos que só em alguns hospitais americanos têm, a maioria dos hospitais latino-americano não possuem e só alguns americanos possuem e o nosso paciente SUS faz o exame não pagando nada. Agora, porque? Porque a mudança da mentalidade fixou o profissional dentro do InCor. Agora você imagina se eu trabalhasse à tarde em outros lugares, o paciente vem procurar o Dr. Ramires, sim, não o InCor, o Dr. Ramires. Eu vou interná-lo onde? No Einstein, no Sírio, na Beneficência, na Nove de Julho, enfim, qualquer hospital privado, vou ganhar todo aquele dinheiro, que eu vou ganhar com honorário médico, e o hospital vai ganhar o que? O hospital vai ganhar o que ele vai gastar no hospital. E o InCor ganha o que? Zero. Só vai ganhar do SUS aquilo que ele gera naturalmente, então o que adiantou ter fundação assim? Não adianta, a do InCor adianta porque ela tem todas essas fontes que é gerada pelos próprios médicos que estão no InCor, então o interesse é só um: InCor em primeiro lugar, e é essa diferença de nós com as outras instituições; os outros muitas vezes tem ciúmes, inveja, acham que a gente faz... Que nós somos expansionistas. Nós só nos dedicamos aqui, é essa diferença que nós temos. Porque eles não se dedicam só a instituição deles? Vão usufruir a mesma coisa. Mas não, eles querem trabalhar em cinco lugares para usufruir de cinco lugares. Você não pode ter cinco mulheres ao mesmo tempo, oficialmente. Você, seguramente, você casado com cinco está perdendo cinco, porque nenhuma vai ficar com você. Você casou com InCor, fica com o InCor. Se você casar com outro hospital vai pro outro hospital, não fica no InCor, não temos nada contra quem está em outro lugar mas se vai lá, exerce bem sua medicina lá e não mal aqui e mal lá. P - Dr. Ramires, e esse programa de qualidade PIC? R - Esse programa é uma injeção na consciência da modernização do InCor. Porque na consciência? O programa de qualidade na verdade é uma coisa natural que toda empresa tem que fazer, você se rever periodicamente. Só que você fazer uma revisão global é muito difícil, é um negócio tão grande, tão complexo... se todos setorialmente fizerem a sua revisão periódico, você encontra defeitos e pra essa revisão, as pessoas têm que olhar com despreendimento, sem ter diferença entre o chefe e o chefiado. A medida que um grupo daquela área sente pra rever todas as suas estruturas na sua área de atuação, a forma de atuação, eles vão encontrar os defeitos, e as soluções têm que ser apontadas em comum. Essa é a grande importância do programa de qualidade, em que você possa aperfeiçoar o sistema fazendo revisões de micro lugares, e não de macro lugares, senão é muito difícil de você mexer em tudo. Agora, se você vai mexer em micro você vai mexer em todos os micros ao mesmo tempo, o trabalho é pequeno, e todos acabam se encaixando em determinado momento. Mas a importância do programa de qualidade é você ir revendo os processos da instituição, aperfeiçoando-os e modificando-os a medida que a instituição se desenvolva e tenha necessidade de mudanças periódicas, essa é a importância do programa de qualidade. Não atingimos ainda uma maturidade, um programa de qualidade, ainda estamos na fase de aprendizado, apesar do programa de qualidade já ter seis ou sete anos uma coisa assim, ele ainda não atingiu a maturidade porque ele começou um pouco errado, querendo consertar tudo, e querendo consertar tudo por macro, você não chega em coisa nenhuma, então nós tivemos uma parte do tempo, algum tempo estacionário o programa de qualidade, em função de querer trabalhar com macro e não com micro, agora de um ano pra cá é que a coisa está se modificando. Ele saiu do macro pra trabalhar só no micro e tentar atingir o macro debaixo pra cima, não de cima pra baixo, então com isso o processo do próprio PIC está mudando e ele deve atingir a maturidade como programa de qualidade, só daqui um ano e meio, dois anos, a medida que todos os programas micro comecem a despertar o interesse e a confiança das pessoas que participam dele, é uma outra fase de aprendizagem as pessoas tem que aprender a fazer, quem é chefe tem que aprender a se despir da vaidade de ser chefe, sentar numa mesa com os outros, para discutir em igualdade de condição aquilo que são os erros de todos daquela área, e isso é difícil, as pessoas nem sempre se despem dessa vaidade, quem tem "chefite", puxa, precisa tomar antibiótico pra curar essa infecção.(risos) P - Dr. Ramires, como é o seu cotidiano, o senhor falou que de manhã o senhor atende até... R - Segundo minha mulher, eu moro no InCor e durmo na pensão. (risos) Porque eu venho pro InCor às sete horas da manhã, sete e pouquinho estou aqui. Eu chego venho direto pra cá, pra minha sala, mas geralmente já tem gente me esperando. P - Como nós hoje... R - Não... É muito pior (risos). Tem gente que mesmo sem marcar fica me esperando sete, 7,15 da manhã, então eu chego: "Posso entrar, só um pouquinho." Só um pouquinho vira meia hora, 40 minutos, aí atrasa a manhã inteira, as outras reuniões, enfim... Pela manhã a minha secretária já deixa programado todas as reuniões, então é uma programação já previamente estabelecida com semanas de antecedência, em que ela vai encaixando as mini conversas entre uma coisa e outra de acordo com a importância e profundidade do tema. Em geral, no final da manhã eu encerro, aí no final da manhã eu vejo os meus pacientes internados, tomo um lanche, aí eu recebo os meus pós-graduandos, vejo as pesquisas que eles estão fazendo comigo, em que pé as coisas estão ou como estão, o que a gente tem que mudar, revejo algum texto, revejo protocolos, vejo cartas para responder, teses pra corrigir geralmente eu faço a noite ou sábado e Domingo, eu levo para casa e faço em casa. À tarde, às três, 3,30 eu desço pro consultório e vou até 11 da noite. P - Todos os dias... R - Todos os dias. Todo o sábado e domingo eu venho aqui no hospital, geralmente eu chego nove, nove e meia, fico aqui até 1:30, duas horas da tarde. Vejo os pacientes, converso com as pessoas que vem aqui me procurar, escrevo cartas, respondo e-mails, fico fuçando alguma coisa no computador, fico escutando minha música, e escrevo tudo que for necessário. Eu estando em São Paulo, estou no InCor todos os dias, não estando em São Paulo é só por telefone, "by telephone". É que tem com freqüência viagem pro exterior, pra outros estados para dar aula, então quando eu saio para dar aula, aí a minha secretária me informa de novidades, que eu corro naquele período que eu estive ausente, então ela vai me telefonando me pondo a par do que está acontecendo. P - O senhor tem filhos, o senhor falou que havia... R - Três filhos. Nenhum quis ser médico, pelo mau exemplo do pai (riso). Quando viram a vida do pai... Porque só conheceram o pai assim, apesar de quando eu era mais jovem, no começo da medicina, eu ainda chegava em casa mais cedo, seis horas da tarde, sete quando dava tempo... P - Ainda ia a praia (riso) R - Primeiro, no comecinho, andava por aí. Quando eu era residente ainda dava, minha mulher ia para o Pinheiros, levava eles para a piscina, em vez de almoçar eu ia pro Pinheiros e ficava com eles na piscina, aí eu voltava, as duas horas da tarde eu tinha que estar no hospital de novo, voltava e minha mulher ficava com eles lá, depois ia pra casa, então nos dois anos de residência, com freqüência vai, duas, três vezes por semana eu ia encontrar com eles no Pinheiros e ficava na piscina com eles e às vezes à noite, então dias muito quentes, a noite eu ficava com eles na piscina, aí lá no prédio mesmo, brincava com eles. Aí terminada a residência, daí pra frente ficou muito difícil. Eu sempre chegava tarde, saia muito cedo, viajava muito, quase todo fim de semana, viajava para dar aula fora, então estava em outra cidade, outro estado, outro país, então eu os via muito menos. P - Quantos anos eles tem? R - Ah, são adultos. A mais velha está casada, o do meio também está casado e a mais nova tem 25 anos, nem sei se está casada, nem sei se está namorando, porque hoje é tudo meio diferente, mas é algo por aí. (riso) P - E as profissões deles? R - A mais velha começou fazer enfermagem desistiu, foi fazer estética e é artista hoje, ela faz pintura em madeira que é o que ela gosta. O do meio faz Marketing, e a mais nova entrou em Economia, não gostou, aí prestou Administração também não gostou, acabou não fazendo faculdade nenhuma, e também faz pintura em cerâmica, e as duas de vez em quando vão pros Estados Unidos, fazem cursos lá, e pinturas e dão aulas lá, e uma faz constante e a outra só quando está inspirada, ela espera ver um fluido espacial e pinta três, cinco dias seguidos e depois pára um mês, dois meses. (riso) Como todo artista tem seu gênio. (riso) P - Lazer o senhor tem... R - O meu lazer é quando... Quando estou livre gosto muito de ficar em casa, em casa gosto de curtir lá meu jardim e eu ligo o meu sistema lá, meu home-theater, eu gosto de assistir ópera, eu gosto muito de ópera, então fico assistindo ópera ou shows que eu tenho em laser disc, aí é o relax, eu fico lá no jardim, gosto de fazer churrasco, me divirto. É pouco. Leitura... Eu gosto de ler, não tenho nenhum autor preferido e gosto de ler aquilo que eu tiver gostando na hora. "Gosto disso"; pego e leio. Não tenho nenhuma linha específica e gosto muito de criar as minhas coisas, desenvolver as minhas idéias, algumas teorias, algumas formas de análise, de pessoas, para escrever um livro sobre como vejo o mundo, em particular e em geral, e um dia eu vou escrever esse livro, não sei quando, um dia escrevo, que até agora só escrevo livro médico.(riso) P - Qual é um desafio assim, dentro da sua área de atuação? R - Olha, desafios nós temos sempre. P - Um grande. R - Olha, são vários, se você... Vamos pegar hoje, desafio hoje, desafio como profissional, desafio pessoal ou desafio médico? P - Desafio médico, dentro da sua área de atuação? R - Acho que um grande desafio é você desenvolver uma nova tecnologia para facilitar o tratamento de muitos pacientes com a tecnologia inovadora e acho que isso é terapêutica genética, isso é um grande desafio. O grande desafio que eu vejo hoje é mudar certos princípios que existe na universidade e fazer com que haja um casamento entre a universidade e a empresa, universidade e a comunidade para fazer o Brasil crescer, que nós vivemos muito separados. As empresas no Brasil em geral não têm departamento científico, que é aquele que cria novas coisas pra empresa depois tornar viável, palatável, e vender para comunidade. A universidade tem um departamento científico, mas não tem a objetividade pra levar pra indústria que vai tornar palatável, industrializar e vender pras pessoas, então vivem como duas entidades separadas divorciadas. Uma nem sabe que a outra existe e acho que esse é um grande desafio, trazer pra dentro do InCor e é um processo que nós já iniciamos, empresas privadas que co-participem dos nossos projetos científicos, financiando, porque a medida que ele se transforma em realidade não é o InCor que vai explorar ele comercialmente, aí é a empresa que faz, e esse é um grande desafio. Já temos trazido algumas empresas que já estão em negociação com o InCor, numa das nossas pesquisas numa área nossa, na imunologia, nós estamos a um passo da vacina anti-estreptocócica que é uma vacina que não existe e já que estamos a um passo, estamos tentando desenvolver com apoio de alguns laboratórios nacionais, um projeto em que eles sejam um co-participante disso. Na hora que se chegar ao final, descoberta a vacina, comprovada sua eficácia, ué, eles que explorem comercialmente, aí não é um problema nosso, é problema deles, mas eles usarem a nossa atividade para fim deles. Imagine-os quando criarem um departamento científico, um centro de pesquisa, eles vão ter que gastar no mínimo uns 15, 20 milhões de dólares pra equipar, pra ter prédio etc. e depois contratar recursos humanos, não vai ter nunca, usa o que tem, não precisa gastar tanto, com menos do que isso você desenvolve naquilo que já existe e esse é um grande desafio que nós estamos tentando trazer pra dentro do InCor e fazer um casamento feliz, se Deus quiser vamos conseguir. P - Dr. Ramires, se o senhor pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, o senhor mudaria? R - (pausa) Não. Não mudaria. Tudo que aconteceu comigo e tudo que onde eu trabalhei, desenvolvi, eu não vejo de forma diferente. Poderia ser melhor? Acho que não. Eu acho que do jeito que aconteceu foi ótimo. Na época certa, nas condições corretas, com as pessoas ideais. Eu não vejo uma forma de ser melhor. Eu mudaria isso? Não, não mudaria. Eu só tenho aquela visão igual que te disse no início: "E se eu não fosse médico? Fosse o que fosse, eu ia ser o mesmo trabalhando em outra atividade?" Tem tantas coisas que eu gosto, gostaria de fazer, mas não dá pra se fazer tudo ao mesmo tempo, mas se você me visse como embaixador, ou trabalhando nas relações exteriores, você ia me ver do mesmo jeito, eu ia estar mexendo em 500 lugares ao mesmo tempo, tentando arranjar mil coisas em algum canto. Se eu trabalhasse na indústria e fosse, lá sei eu, um operário da indústria, provavelmente eu seria um líder sindical, hoje eu estaria na CUT, Força Sindical, lá sei eu, alguma dessas grandes entidades sindicais porque eu acho que as instituições têm que existir, e as instituições elas tem que estar presentes na nossa vida, no nosso dia-a-dia e só uma sociedade organizada vai poder levar o Brasil pra frente, enquanto nós não tivermos uma organização como sociedade adequada, nós vamos viver aos trancos e barrancos, na esperança de vir um grande paizão que um dia vai dirigir este país, como isso não vai acontecer nunca, porque essa pessoa não existe e jamais existirá... Quem faz o país somos nós e para que ele exista como país nós precisamos estar organizados, enquanto nós não estivermos organizados vamos continuar sendo ludibriados por muitas pessoas, porque você acaba confiando numa pessoa e não numa instituição e quanto mais instituições houver, mais organização na sociedade, mais difícil alguém te enganar porque ela tem que enganar instituições, que fazem parte pessoas, e aí não é fácil que isso ocorra a menos que a própria sociedade organizada se envolva num processo político que isso acaba ocorrendo naturalmente. A minha visão é essa, eu acho que não devia ser nada diferente do que já foi, tudo que ocorreu na minha vida ocorreu da melhor forma, e eu acho que foi muito boa... A única coisa que eu gostaria de mudar é talvez fosse não ter perdido os entes queridos que a gente vai perdendo ao longo da vida, porque toda as vezes que você perde alguém querido, pode ser um familiar, pode ser um amigo, você perde parte de você e essa é uma parte que não é reposta. Perdeu, zerou, se você perdeu aquela parte de você e isso é uma coisa que você não muda, porque não depende de você. Se eu pudesse mexer no passado, pra mudar alguma coisa na minha vida, a única coisa que eu faria é isso, puxa, não perder os entes queridos porque aquilo é perder parte de você mesmo e você sabe que perdeu, vai continuar perder, como você vai se perder para alguém também, cest la vie, mas enquanto tiver vivo aproveita muito bem. (riso) P - Tem uma pergunta que eu queria fazer pro senhor, o senhor foi presidente da Sociedade Brasileira de cardiologia, não é? Como é que foi, comentando essa coisa de instituição, o senhor estava comentando... R - Não, não foi tudo bem. Dentro do natural, porque olha, como eu sou muito institucional, eu fui secretário da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo. Quando o presidente da época ia sair ele me indicou como presidente candidato a presidente futuro. No estado de São Paulo, a indicação do presidente futuro é uma coisa quase automática, que a própria comunidade da cardiologia paulista recebe quando o outro vai ser indicado. Quando eu entrei na diretoria eu não era pessoa inicialmente pensada para ser indicada, porque existiam pessoas muito mais velhas do que eu, eu era novinho... Tinha o quê? 39 anos. E um cardiologista de 39 anos presidir uma sociedade que tem Zerbini, Decourt, Adib Jatene, Fúlvio Pileggi... Eu era moleque, mas, no entanto eu fui indicado, aí fui presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo. Como eu vivo instituição, toda quarta-feira eu não vinha no InCor, eu só ficava na Sociedade, então quarta eu tirava o dia pra ficar na Sociedade e com todos os projetos que eu tinha pra época, a Sociedade deu uma mudança assim brutal. Quando eu entrei tinha 350 sócios, já quando eu saí tinha 1.700, quando eu entrei ela só fazia um congresso por ano quando eu sai ela fez os dois maiores congressos que a Sociedade já teve em número de participantes, e tinha cursos o ano inteiro em dez regionais do estado. Ainda criei mais duas outras regionais, mas, quer dizer, ai eu não criei, criamos, eu e a diretoria, e a Sociedade cresceu demais e foi um marco, que a Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo sempre foi pequenininha, foi a última a ser feita, pro cúmulo que possa parecer, mas era uma sociedade pequena, pouco ativa, ela não se desenvolvia e com o passar do tempo, o que ocorreu foi que ela cresceu, desenvolveu demais, atingiu assim uma expressão nacional e até fora do Brasil muito grande por ter crescido e chegado daquele tamanho. P - Em que ano que isso era? . Eu fui secretário de 85 a 87, fui presidente de 87 a 89, aí eu fui indicado pra ser... Fui disputar a presidência da Fundação do Funcor, seria assim a Fundação Brasileira de Cardiologia da Sociedade Brasileira de Cardiologia, isso foi de 91 a 93 e aí também foi muito interessante porque o Funcor era uma entidade dentro da S.B.C. que a maioria dos cardiologistas nem sabia que existia, ela não tinha atividade, ela não tinha importância e naqueles dois anos ela deu um bruta salto se tornou um órgão importante da sociedade. Passou a arrecadar fundos para a sociedade, uma mudança de espírito muito grande, que ela nunca arrecadou fundos pra sociedade, ela passou a desenvolver semana do coração, semana do colesterol, esta aí em vários lugares, já existia a semana do coração ha muitos anos, mas passou a ter uma amplitude maior, participação de muito mais cardiologistas, enfim o Funcor passou a ser uma entidade que existiu e isto me levou naturalmente... Como eu conheci o Brasil inteiro, dava aula em todos os estados do Brasil, conhecia todos os cardiologistas, já tinha ocupado esses cargos e trabalhado com os colegas que me acompanharam na diretoria em todos esses cargos, ser o presidente do S.B.C. era uma coisa quase natural, eu não precisava querer ser, eu já percebia que isso era uma coisa natural, sabe, o que é do homem o bicho não come, eu sabia que eu iria ser, eu só não seria se eu falasse: "Não quero." Porque todos já me conheciam e me aceitavam, é diferente quando você vai disputar alguma coisa e as pessoas não te conhecem, não tem cardiologista de norte a sul, leste e oeste do Brasil que não saiba quem eu sou, o que eu penso, que não tenha conversado comigo, falado comigo, todos já tinham falado comigo e todas as aulas onde vou dar, eu sento com eles, como com eles, bato-papo com eles, então isso abriu muitas portas. A nossa eleição é feita em duas fases, a primeira fase todos votam pelo correio nos nomes que quiserem e os três primeiros classificados vão pra segunda fase, que é no Congresso a eleição, quando terminou a primeira fase eu nem me lancei candidato, mas o meu nome estava lá, junto com todos os sócios da sociedade, eu tive 99,7% dos votos, o segundo colocado tinha dois votos e o terceiro tinha um voto, depois um montão de gente com um voto. Bom, eles convidaram os três primeiros, lógico que os três primeiros outros não quiseram nem fazer chapa, com dois votos ia fazer chapa, concorrer comigo que tinha milhares de voto, aí eu fui pra terceira fase e constitui a diretoria, fui pra terceira fase da eleição e nessa fase não tinha concorrência, porque não tinha outro candidato, aí eu tive 99,8% dos votos, dos votos que não tive e os que faltaram no congresso, então foi quase assim uma unanimidade, foi uma coisa que nunca aconteceu na Sociedade Brasileira de Cardiologia, enfim, nunca aconteceu de você ter alguém votado com essa expressão de votos, esse apoio de todos os cardiologistas. Isso foi importante porque ajudou numa nova fase da Sociedade Brasileira de Cardiologia, uma fase de profissionalização da sociedade, ela era uma sociedade muito importante e acanhada, ela se tornou uma sociedade importante e marcante, ela passou a ter duas sedes, uma no Rio e outra em São Paulo e com tudo disponível, no Rio é um prédio inteiro, em São Paulo é um andar de um prédio próximo no final da Avenida Bandeirantes, com toda estrutura nos dois prédios nos dois locais. É uma sociedade profissionalizada, com profissionais contratados pra atuar na própria sociedade, uma sociedade que tinha um congresso que ou dava prejuízo ou zerava, passou a ter congressos com rendimentos de 400, 500 mil dólares por ano só do congresso, com sócios pagantes e não mais sócios que não pagavam e assim por diante, então ela passou a ser uma sociedade rica, autônoma, não dependerem de outras instituições, darem verbas para ela sobreviver, ela mesmo comanda as atividades dela com os próprios recursos e ela passou a ter voz ativa porque ela comandava o processo e de lá pra cá, ela vem numa continuidade desse crescimento profissional e marcante como sociedade de cardiologia e todos os presidentes que me sucederam mantiveram essa nova visão da Sociedade de Cardiologia e acrescentaram sempre novas coisas. Ela vem crescendo continuamente, então essa foi a minha vida associativa vamos dizer assim, que não me interessa mais, porque acho que cada coisa tem sua fase, me interessou nessa fase porque era uma fase que eu estava crescendo e eu tinha uma vontade de construir coisas etc. cheguei até vice-presidente da Sociedade Interamericana de Cardiologia, mas aí eu já havia prometido pra mim mesmo que eu encerrava a minha atividade associativa como dirigente. Como membro não, sou sócio da Sociedade ou voto, critico ou... Mas não quero mais ter nenhuma participação de diretoria em si, porque eu sou contra as pessoas se perpetuarem nos cargos ou as pessoas terem a ambição de querer se profissionalizar no cargo. Não. Eu acho que o pessoal na área médica, o médico é médico e tem que ser médico, ele vai ser dirigente pra prestar a obrigação que ele tem para a sociedade dele em prestar serviços para engrandecimento dele, acabou o serviço volta pra casa, deixa outro fazer, é impossível que em 8.000 sócios só tenha você pra fazer isso. Não tem mais ninguém pra fazer? Os outros têm as mesmas chances, as mesmas condições de fazer a sociedade crescer, então agora a minha vida é dentro do InCor, ligado à universidade, ligado ao InCor e tudo aquilo que através do InCor eu posso fazer para o meio que me cerca, na área médica propriamente dita, na área médica social, médica científica e a parte de ensino. P - O senhor tem um grande sonho? R - Olha. P - Ou vários? R - São tantos que seguramente eu não vou realizá-los, mas eu não tenho nenhum sonho, eu acho que os sonhos você concretiza e eles são naturais, não existe sonho utópico, o sonho utópico é porque você não lutou para ter condições de realizá-lo. O fato de eu estar aqui hoje poderia ser um sonho utópico lá trás, mas não era utópico, era uma condição quase decorrente da minha história natural. Lógico que num concurso você vai concorrer com outros e o outro poderia ter ganho, tinha tantos méritos como eu e se eu perdesse não fosse eu o professor de cardiologia clínica, eu deixei de atingir um grau na minha vida acadêmica mas não morri nem vou deixar de ser o que eu era por não ter ganho. Ganhei, outra etapa, um outro sonho que se realiza e uma condição natural, mas tem coisas que eu já sei que eu não quero, acho mais importante saber o que eu não quero do que o que eu quero. Querer ser reitor da universidade já é uma coisa que não me atrai, sem demérito ao cargo que sem dúvida é um cargo magnífico, mas não é uma coisa que eu gosto, diretor da faculdade, não é uma coisa que eu gosto, secretário de saúde não é uma coisa que eu gosto, ministro não é uma coisa que eu gosto, isso eu sei que não quero. (riso) Então isso eu já tirei do baralho. P - É bom essa perspectiva do senhor contrária. (riso) É ótimo. R - É lógico, porque se você alimenta que aquilo você pode querer, de repente você se vê numa enrascada que você não pode voltar atrás e isso eu não quero, inclusive eu já fui convidado, uma certa vez, pra ser Secretário de Saúde. Pode tirar o cavalo da chuva, não vou, agradeço o convite. É uma honra, mas eu não vou. Então eu elimino o que eu não quero, o resto tudo eu posso querer. Tem alguma coisa que eu gostaria mais? Olha, neste momento assim não tem nada assim que eu fale: "Pô, isso é o grande sonho da minha vida." Não, agora não, é fazer dentro da própria instituição, ela atingir aquilo que eu já disse pra vocês e ajudar outras instituições a crescer junto, como nós temos feito, acho que isso é minha obrigação dentro da instituição, eu sempre brinco e disse pro próprio secretário da Saúde: "Eu posso fazer mais pra saúde hoje como diretor do InCor, do que como secretário da saúde, então eu prefiro ficar onde eu estou do que ser o secretário da saúde." Então qual é o grande sonho? Não tenho nenhum grande sonho, eu acho que todos os meus sonhos são coisas que eu vou realizar na época certa, no momento certo, é só chegar na hora certa que eu vou realizar, é lógico que, em 100, talvez eu não realize 100, mas eu também não preciso realizar 100 pra me sentir satisfeito, se eu realizar dez, oito, muito bem realizado, fica maravilhoso, porque a imaginação é muito mais ampla do que sua capacidade de execução, então se você sonha passa um bilhão de coisas, mas você não consegue fazer tudo aquilo, então é bom fazer aquilo que tiver na minha mão. Se eu tiver só oito, 10% do que eu vier a ter em sonho está maravilhoso, deixa-me fazer bem esses 10%. Já pensou você morar no Pacífico, numa ilha daquelas maravilhosas, pô, seria uma maravilha, mas como eu nunca fui então eu não sonho. (riso) Morar em São Paulo, cheio de chaminés, com essa poluição desgraçada, então esse sonho eu não curto. P - Bom pra encerrar, que o senhor achou dessa experiência de ter dado esse depoimento pro Projeto de Memória dos 25 anos de Serviço de Psicologia? R - Ah, eu acho extremamente importante se todos nós tivéssemos guardado através de memórias arquivadas, do jeito que for, depoimentos de pessoas que participaram de diferentes fases da nossa história, da história contemporânea, da história de instituições, da história de profissões seja lá do que for, nós entenderíamos muito melhor o mundo que nós estamos, as pessoas que nós convivemos, as instituições que nós trabalhamos direta ou indiretamente e o mundo que nos cerca, como esses museus são muito poucos, enfim... Nós vivemos ainda muito distantes de muito disso tudo que eu acabei de dizer, por isso as pessoas mal se conhecem, às vezes elas estão muito próximas uma da outra e não sabem quem é que está do seu lado, talvez vocês incentivem que vários museus existam igual ao de vocês pra que esse mundo possa estreitar mais as relações entre os seres humanos, pra que a gente possa construir um mundo melhor pra todos nós e o que precisarem de mim estarei sempre a disposição de vocês. P - Entrevista bonita. Obrigado, e a gente queria agradecer. R - Não, eu é que agradeço.
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