Médica de bonecas
Meu nome de batismo é Ana Cláudia de Lima Quintana. Eu nasci em São Paulo no dia 12 de agosto de 1968.
Eu decidi virar médica quando era criança, com a minha avó gritando de dor. Minha avó perdeu as pernas por conta de uma doença arterial, ela entupiu, ela tinha feridas nas pernas que davam necrose e teve gangrena da perna . Quando ela tinha crises de dor nas madrugadas, eu ouvia minha avó pedindo a Deus para morrer.
Quando a minha avó amputou as pernas, eu cortei a perna de todas as minhas bonecas. E montei uma enfermaria. Então, eu cuidava das bonecas e eu falava pra minha avó: “Vó, eu vou ser médica e eu vou cuidar de você. Você não vai mais ter dor”.
Minha mãe era uma mulher muito quieta, muito serena. Ela cuidava da minha avó. E sempre fez isso sem reclamar. Ela era uma mulher buscadora. Então, meu pai tinha muito ciúme dela. Mas a minha mãe queria muito estudar. Ela gostava de fazer cursos, então a gente fazia cursos de meditação, fez cursos de parapsicologia, teve um tempo em que a gente estudou muito as pirâmides do Egito. Ela ia fazendo esses cursos e a condição era eu ir junto. Então, com 11, 12 anos, eu estava nesses cursos todos.
Quando eu estava com 9 anos, meu pai perdeu tudo, por conta do alcoolismo. A gente foi viver na casa da minha tia. Morávamos nós cinco no quarto do meu primo, que era um quartinho. Eu lembro que meu pai chorava muito. A primeira vez que eu vi meu pai chorar foi um choque. Nessa hora, comecei a distrair as minhas irmãs. Você descobre uma coisa que ninguém mais pode saber. Então, assumi um pouco o papel de protegê-las das coisas mais difíceis de lidar.
A minha religião é a compaixão.
Eu tinha uma irmã doente, a outra tinha problemas com drogas e problemas de comportamento, ela não estudava. A minha mãe se converteu na época em que estava começando a renovação carismática. Ela entendeu que aquilo tinha aparecido na vida dela para curar a minha...
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Médica de bonecas
Meu nome de batismo é Ana Cláudia de Lima Quintana. Eu nasci em São Paulo no dia 12 de agosto de 1968.
Eu decidi virar médica quando era criança, com a minha avó gritando de dor. Minha avó perdeu as pernas por conta de uma doença arterial, ela entupiu, ela tinha feridas nas pernas que davam necrose e teve gangrena da perna . Quando ela tinha crises de dor nas madrugadas, eu ouvia minha avó pedindo a Deus para morrer.
Quando a minha avó amputou as pernas, eu cortei a perna de todas as minhas bonecas. E montei uma enfermaria. Então, eu cuidava das bonecas e eu falava pra minha avó: “Vó, eu vou ser médica e eu vou cuidar de você. Você não vai mais ter dor”.
Minha mãe era uma mulher muito quieta, muito serena. Ela cuidava da minha avó. E sempre fez isso sem reclamar. Ela era uma mulher buscadora. Então, meu pai tinha muito ciúme dela. Mas a minha mãe queria muito estudar. Ela gostava de fazer cursos, então a gente fazia cursos de meditação, fez cursos de parapsicologia, teve um tempo em que a gente estudou muito as pirâmides do Egito. Ela ia fazendo esses cursos e a condição era eu ir junto. Então, com 11, 12 anos, eu estava nesses cursos todos.
Quando eu estava com 9 anos, meu pai perdeu tudo, por conta do alcoolismo. A gente foi viver na casa da minha tia. Morávamos nós cinco no quarto do meu primo, que era um quartinho. Eu lembro que meu pai chorava muito. A primeira vez que eu vi meu pai chorar foi um choque. Nessa hora, comecei a distrair as minhas irmãs. Você descobre uma coisa que ninguém mais pode saber. Então, assumi um pouco o papel de protegê-las das coisas mais difíceis de lidar.
A minha religião é a compaixão.
Eu tinha uma irmã doente, a outra tinha problemas com drogas e problemas de comportamento, ela não estudava. A minha mãe se converteu na época em que estava começando a renovação carismática. Ela entendeu que aquilo tinha aparecido na vida dela para curar a minha irmã. O meu pai tinha uma imagem de preto velho, eu olhava para aquela imagem e falava que era meu avô, que era o marido da minha avó. Minha mãe jogou fora isso, ela jogou fora tudo que a gente tinha de imagem bonita, os livros maravilhosos que a gente lia juntas, jogou tudo fora. Ela ficou muito amarga porque se prendeu nisso como uma condicional para a cura da minha irmã. Foi um tempo em que eu me afastei muito da minha mãe, porque ela queria que eu fosse por esse caminho e eu não consegui.
Eu comecei a perceber que no catolicismo existia muita limitação para aquilo que eu sentia. Acabei me aproximando de várias outras experiências nesse caminho de estruturar a minha espiritualidade. Catolicismo, espiritismo e budismo. Comecei a perceber que as religiões têm uma necessidade muito grande de compreender o pensamento de Deus, todas são um pouco assim. Como é que você vai entender o pensamento de Deus, amado? Cai na real. Acho que, às vezes, a religião afasta o humano do divino, no lugar de aproximar. A minha religião é a compaixão, é integrar o amor dentro do sofrimento. Para mim, essa é a religião, não importa qual o nome que você dê para isso.
Branco não morre não?
Com 14 anos, fui estudar no Arquidiocesano, que era um colégio de padres. Lá a gente tinha aula de religião com um padre que achava que a gente tinha que estar no mundo. Ele levava a gente para trabalhar na favela, e a gente ia, no primeiro colegial, fazer alfabetização de adultos na comunidade. A gente chegava lá, tinha uma escolta interna do poder da favela esperando a gente para escoltar a gente até o centro da comunidade. Lá tinha um barracão de zinco onde a gente dava aula. Durante todo o colegial eu dei aula nessa comunidade.
Passei na USP em 20º lugar. Na primeira semana a gente teve aula de anatomia. Eu lembro de olhar aqueles corpos todos, de ver que eram todos corpos pretos, eu falava assim: “Nossa, branco não morre, né?”
Quando eu estava no quarto ano da faculdade, a gente começou a ter interação com pacientes. O primeiro paciente que eu fui tirar a história era um paciente que tinha uma cirrose hepática por alcoolismo, ele estava sozinho e muito emagrecido, com ascite, parecia uma aranha. Entrei no quarto e ele não conseguia conversar comigo, ele estava com dor. Fui falar com o professor, o professor falou assim: “Não, esse paciente não tem nada para fazer, não dá para dar remédio”. Eu falei: “não, por quê?”. “Não, porque o remédio pode ser tóxico para o fígado”. Eu falei: “Ah, mas se ele vai morrer, qual o problema? Não é melhor ele ficar sem dor?”. Ele respondeu assim: “Não, esse paciente a gente não pode fazer, não tem nada para fazer”.
Eu olhava para ele e pensava: “Gente, é meu pai daqui alguns anos. Quando meu pai ficar assim, não vai ter mais remédio para ele. Eu estou fazendo faculdade de Medicina, teoricamente a melhor faculdade que existe e ninguém me ensina e falam que não tem nada a fazer.\". Entrei num looping de o que que eu estava fazendo aqui, e meu pai me pressionando para eu ajudar nas contas de casa. Foi quando eu decidi parar a faculdade. Fui trabalhar, ser caixa na Sears. Trabalhei pouco tempo, porque eu comecei a me dar conta de que, se eu não voltasse para a faculdade, eu não ia poder ajudar meu pai mais para frente. Dei a notícia para o meu pai e ele falou: “Faculdade de medicina não é para você, a gente não tem condições, você não tem dinheiro, você tem que encarar a sua realidade, você precisa me ajudar a pagar as contas porque não dá, porque olha sua irmã do jeito que está”.
Eu voltei para a faculdade. Ele ficou muito tempo de mal falando comigo, brigamos muito. Ele não me deu mais dinheiro, nenhum. Eu comia quando alguém pagava um lanche para mim. Então, o meu quarto ano foi terrível. Eu passava as madrugadas costurando, fazendo bolsinha, pulseira de fita, para vender para as minhas colegas.
Já na residência, eu comecei a ganhar mais. Então, comecei a pagar o aluguel e pagar o convênio, pagar as contas básicas, a comida, os remédios da minha irmã. Então, eu comecei a realmente dar a sustentabilidade que eu tinha avisado ao meu pai.
Morrer bem
Na residência de Geriatria, eu entrei em contato com o conceito de cuidado paliativo, quando eu ganhei de presente de uma enfermeira o livro da Elizabeth Kübler-Ross, “Sobre a morte e o morrer”. Eu falei, é isso que eu quero. Eu li o livro numa noite e falei “eu sei fazer isso aqui, conversar com os pacientes. Eu quero fazer isso. Então, vou cuidar de pacientes no final da vida”.
Fui trabalhar no Einstein, que me contratou para desenvolver as políticas assistenciais de cuidados paliativos. Eu estava trabalhando no grupo da oncologia e via muito sofrimento. Eu estava vivendo a fadiga da empatia. É uma síndrome pós-traumática de um sofrimento vicariante, não é o teu sofrimento, mas o sofrimento que você assistiu. Falei “Tem tanta gente que sofre isso também. Eu tenho que ensinar como cuidar para não sofrerem como eu sofri.”
Foi quando escrevi o estatuto da Casa do Cuidar, mais três profissionais entraram nessa comigo, e a gente fez a Casa do Cuidar em março de 2007. A gente começou a dar os cursos de formação e a ter a chance de fazer o cuidado desses pacientes com os alunos que se tornavam voluntários para fazer essa assistência. Depois, eu abri “A Casa Humana\", que é uma empresa de assistência domiciliar específica para cuidado paliativo, ou seja, tem esse propósito de fazer cuidado paliativo em casa. A grande maioria das pessoas quer morrer em casa, mas acaba não morrendo porque não tem condição de ser cuidado em casa.
A morte é minha melhor amiga
Talvez se eu trabalhasse como plantonista, eu não fosse viver tantas mortes bonitas. Talvez eu visse mortes muito difíceis, porque as pessoas morrem com medo. Essa experiência do medo te priva de viver. Quando você está morrendo de medo, você não está vivendo, você está morrendo de medo de morrer. Se você for conversar com as pessoas que têm medo de morrer, pergunte o que elas fizeram nos últimos dias. Beberam loucamente, fumaram loucamente, dirigiram loucamente, transaram loucamente, comeram loucamente. Elas querem morrer. Elas estão em uma busca alucinada para morrer. Elas estão com relações tóxicas, estão em trabalhos horrorosos, estão com pensamentos ansiosos, têm uma péssima qualidade de existência. Dizem que morremos de medo de morrer, porque quem tem medo de morrer respeita a vida. Mas, a maior parte das pessoas que diz ter medo de morrer, tudo o que elas não têm, é respeito pela vida.
Eu aprendi que a vida só se viabiliza através do cuidado. Eu consigo hoje ver uma morte de forma serena porque a pessoa está cuidada. A pessoa, ela passa por um período que ela tem medo, mas com cuidado você consegue trocar o medo por respeito. É um jeito de não viver com medo. O cuidado, para mim, é o que viabiliza você ser capaz de estar presente na tua vida, mesmo nas fases de maior sofrimento. Se você se sentiu cuidado, seja por um outro ser humano, seja por Deus, ou pelos animais que estão contigo, você dá conta de atravessar o teu sofrimento de um jeito presente, sem desejar estar em outro lugar. O alívio não te distancia do fim. O alívio permite que você continue caminhando em direção a esse fim. Mas, quando você recebe um cuidado, isso é um processo muito bonito. A beleza viabiliza a presença. Então, você é obrigada a estar na sua dor. Toda dor é um estado de presença plena. Você aprende a estar com a sua cabeça, com o seu corpo, o teu sentimento, a tua voz, tudo está alinhado ao mesmo tempo, agora.
Eu falo que a morte é a minha melhor amiga. Ela me dá uma noção de discernimento e sabedoria. A morte é o que acontece no último dia da sua vida. É o ponto final da sua biografia. Tendo essa consciência, você fica com um pouco mais de sensatez para escolher o que você escreve nos capítulos de cada dia. O que você faz com o tempo que você tem agora?
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