Projeto: 50 Anos da Ponte Rio-Niterói
Entrevista de Ismênia de Lima Martins
Entrevistado por Paula Ribeiro
Niterói, 8 de março de 2024
Entrevista PRN_HV008
Revisão: Paula Ribeiro e Nataniel Torres
P - Ismênia, por favor, nome completo, local e data de nascimento?
R - Eu sou Ismênia de Lima Martins, nasci em Niterói, em 20/07/1942.
P - Nome dos seus pais e profissão, por favor?
R - A minha mãe, era Carmem Paiva Lima, brasileira. Ela só fez os estudos fundamentais, estudou música, piano, línguas, pintura e nunca se profissionalizou. E meu pai era Sebastião Lizardo de Lima, médico.
P - A origem do seu pai?
R - O meu pai era filho de brasileiros, neto de português de um lado e do lado paterno ele tinha um avô paraguaio, que a origem desse nome “Lizardo”, no caso dele, porque tem outros Lizardos de outra origem, que nós já pesquisamos, mas a dele é desse lado paraguaio. E a minha mãe era filha de portugueses, inclusive ela tinha uma lusitanidade muito forte, porque a minha avó era portuguesa também, nunca foi uma imigrante comum, ela era uma moça assim da pequena elite, o pai dela era o fidalgote da aldeia. Não, o tio dela era fidalgote da aldeia, que era o pai do meu avô. Meu avô era filho ilegítimo e ele se apaixonou por essa prima, então ele teve muitos problemas nessa condição de filho ilegítimo, na época, não podia nem registrar. E ele veio cedo para o Brasil. E eu que consultei o projeto, a base de imigrantes do Arquivo Nacional, nunca encontrei o meu avô, porque na verdade eu acho que ele veio clandestino, ele embarcou em Vigo e havia uma prática de clandestinidade, via Vigo. E esses rapazes com 15 anos, 16 anos, prestavam serviço a bordo em troca de passagem. E muitas vezes vinham sem passaporte, que eu acho que foi o caso do meu avô, porque eu não encontrei a documentação dele.
P - O nome dos avós paternos e maternos?
R - Era Lívia Araújo Paz e Antônio Augusto da Paz, que meu avô depois, eu não me...
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Entrevista de Ismênia de Lima Martins
Entrevistado por Paula Ribeiro
Niterói, 8 de março de 2024
Entrevista PRN_HV008
Revisão: Paula Ribeiro e Nataniel Torres
P - Ismênia, por favor, nome completo, local e data de nascimento?
R - Eu sou Ismênia de Lima Martins, nasci em Niterói, em 20/07/1942.
P - Nome dos seus pais e profissão, por favor?
R - A minha mãe, era Carmem Paiva Lima, brasileira. Ela só fez os estudos fundamentais, estudou música, piano, línguas, pintura e nunca se profissionalizou. E meu pai era Sebastião Lizardo de Lima, médico.
P - A origem do seu pai?
R - O meu pai era filho de brasileiros, neto de português de um lado e do lado paterno ele tinha um avô paraguaio, que a origem desse nome “Lizardo”, no caso dele, porque tem outros Lizardos de outra origem, que nós já pesquisamos, mas a dele é desse lado paraguaio. E a minha mãe era filha de portugueses, inclusive ela tinha uma lusitanidade muito forte, porque a minha avó era portuguesa também, nunca foi uma imigrante comum, ela era uma moça assim da pequena elite, o pai dela era o fidalgote da aldeia. Não, o tio dela era fidalgote da aldeia, que era o pai do meu avô. Meu avô era filho ilegítimo e ele se apaixonou por essa prima, então ele teve muitos problemas nessa condição de filho ilegítimo, na época, não podia nem registrar. E ele veio cedo para o Brasil. E eu que consultei o projeto, a base de imigrantes do Arquivo Nacional, nunca encontrei o meu avô, porque na verdade eu acho que ele veio clandestino, ele embarcou em Vigo e havia uma prática de clandestinidade, via Vigo. E esses rapazes com 15 anos, 16 anos, prestavam serviço a bordo em troca de passagem. E muitas vezes vinham sem passaporte, que eu acho que foi o caso do meu avô, porque eu não encontrei a documentação dele.
P - O nome dos avós paternos e maternos?
R - Era Lívia Araújo Paz e Antônio Augusto da Paz, que meu avô depois, eu não me lembro exatamente a idade, mas ele já era um adulto, com filho, já um homem rico aqui no Brasil, que ele foi adotado oficialmente pelo meu avô, depois que ele ficou viúvo, meu bisavô.
P - E os outros avós, o nome completo?
R - Jerônimo Lizardo Lima e Ismênia Lizardo Lima.
P - Pode falar um pouquinho dessa origem do seu nome Ismênia?
R - Ai, isso tem muito a ver… Isso é um trauma de infância, porque eu sou a filha do meio e eu acho, umas recentes memórias que eu publiquei, um livro publicado pela Associação Brasileira de História Econômica, eles pedem para falar muito sobre a primeira infância, família, etc., tudo que influenciou na profissionalização, e eu fiz uma coisa muito formal. Depois quando eu li, eu estava às vésperas de operar o coração, eu falei: “Acho que essa vai ser uma das últimas memórias, vou contar tudo”. E aí eu conto isso, que essa minha releitura me fez botar pra fora o que eu tinha arrumado na minha cabeça nos 15 anos de psicanálise, que eu fiz muitos anos. Na verdade toda minha profissionalização, desde menina eu vi que a minha… eu percebi a minha vocação intelectual como uma via de realização pessoal e sobretudo de me distinguir dentro da família. Os meus problemas começaram com o meu nome, eu era filha do meio, de uma irmã muito linda, chamada Maria ngela e de uma outra, que era loira, era a única pessoa loira da família, que já era uma distinção, chamada Fátima. Então era Fatinha e Maria ngela, e tinha essa Ismênia no meio. Hoje eu sou uma pessoa muito apaziguada com esse nome, primeiro porque eu sei que era o nome da minha avó, quer dizer, eu sabia apenas que era o nome de uma avó, mãe do meu pai, mas uma pessoa que eu não conheci. A Ismênia, minha avó, morreu com 35 anos, quando teve o décimo primeiro filho, mas era uma mulher à frente do seu tempo. O meu avô era um fazendeiro importante da região de Cantagalo, na região que hoje é o município do Carmo. E a minha avó, visitando uma irmã que era professora em Araruama.... Minha avó era de Niterói, fazia natação, era campeã de natação, isso nos anos 1920, que era uma coisa muito pouco usual, na época, as mulheres praticarem um esporte, se dedicarem a um esporte, se distinguir. Ela estudando para professora, foi visitar uma irmã. A mãe era parteira, a irmã professora, ela vai visitar a irmã, conhece o meu avô, que eu não me lembro porque estava lá, e os dois se apaixonaram e acabaram se casando. E a minha avó morreu aos 35 anos, depois de ter o décimo primeiro filho. E a memória dela na região, é de uma pessoa que curava as pessoas, ela não era parteira, mas ela curava as pessoas, ela fazia visitas, levava os remédios, aqueles remédios naturais. O meu bisavô tinha aquele livro sobre a medicina do fazendeiro, eu tenho até aí, o título não é exatamente isso, mas é um livro que todos os fazendeiros tinham, que ensinava a usar, a tratar das pessoas em casa mesmo, e o meu avô tinha isso. Então, minha avó se valia daquilo, segundo o meu pai, que era o filho mais velho, pra fazer isso. Quando a minha avó morreu, o meu pai estudava no (Colégio) Bittencourt Silva, em Niterói, porque o sonho dele era ser médico. E ele se tornou médico, com sacrifício, porque aí veio a crise do café, nos anos 20, e ele trabalhou para estudar. E os dois irmãos que vieram depois dele, não fizeram faculdade, só os outros depois, já com a ajuda do meu pai. Porque esses dois tiveram que ficar na fazenda ajudando, porque o meu avô, pai deles, nunca perdeu a pose de grande senhor, ele nunca jantava sem paletó, ele nunca deixou fazer as estações de água, todos os anos em Caxambu, mesmo depois da crise do café, e que eles começaram a ter problemas financeiros. A faculdade de Medicina no início tinha que se pagar e o meu pai, antes dela ser estadualizada e depois mais tarde, em 1960, federalizada, tinha que ter um pagamento, que eu não sei detalhes, mas era paga. E meu pai trabalhava como inspetor de alunos do Colégio Bittencourt Silva. Então ele tinha uma moradia com outros colegas, que revezavam nessa função, e pôde estudar e se tornou assistente do médico mais importante de Niterói. E a minha mãe, que era filha desse casal português… E a coisa era tão incrível, eu já falei que os meus avós eram primos de primeiro grau, lá em Portugal chama-se isso, primo carnal, primos carnais, eles eram primos carnais. E veio um primo deles, de primeiro grau, para casar com a minha tia mais velha, a famosa tia Quinhas, que foi uma pessoa muito importante na minha criação, porque eles queriam manter esse laço com a família, era muito típico do imigrante português, casar dentro do clã. E veio um segundo irmão para casar com a minha mãe. Mas a minha mãe foi operar o apêndice e o meu pai é o assistente do cirurgião. E o meu pai era muito lindo, depois eu posso mostrar um retrato dele, parecia o Stuart Angel, era uma coisa linda, linda. E minha mãe, acho que deu tanta sorte, que ela gostou tanto dele que conseguiu ter uma infecção, ficou quatro meses, naquela época, isso eu estou falando, sei lá, dos anos 30. Eu sou de 1942, dos anos 30. Não tinha antibióticos disponíveis, a minha mãe teve uma infecção, ficou quase um mês na antiga Beneficência Portuguesa, que na época tinha uns 10 anos de existência. E a minha mãe já saiu de lá namorando o meu pai, com apoio da minha avó, que ficou também seduzida por aquele rapaz muito educado, fino, inteligente, mas sobretudo, muito bonito.
P - Então, o seu nome Ismênia é uma homenagem a sua avó paterna?
R - Pois é! Aí, como eu disse, eu me reconciliei com esse nome, por conhecer essa história. E depois, quando eu comecei a estudar, não na Universidade, muito antes, já no colégio, que eu estudei no Rio no Sacré-Coeur, eu já estudei o Teatro Grego e eu, então, me identifiquei com aquela heroína, Ismênia, irmã de Antígona, filha de Édipo e Jocasta. Então, eu sou uma pessoa muito conciliada com meu nome, eu não sou conformada, eu gosto do meu nome. E é muito bom porque ninguém esquece, onde eu vou, porque se eu chamasse Ana Maria, é um nome lindo, mas tem muito. Ismênia é muito difícil.
P - Ismênia, vamos rememorar um pouco sua infância. Que bairro você nasceu e um pouco o ambiente da sua casa, como era, por favor?
R - Nasci no Ingá. Depois morei uma época na Moreira César, atual Paulo Gustavo, ali no terceiro quarteirão, na esquina tinha um casarão, na esquina, que era do meu avô. Então, meu pai e minha mãe, que moravam numa casa no Ingá, mudaram para lá. Na casa do Ingá, num jardim que tem na frente da Faculdade de Engenharia, tem ali umas casas, meu pai e minha mãe moraram ali. Nasci ali naquela região e depois mudei. Essa primeira infância eu fiz toda ali nesse lugar, estudei num colégio chamado Estela Trovão de Melo, que era uma sobrinha do Lopes Trovão, um colégio assim muito enlouquecido, que era o que mais formava bem. Eu tive colegas assim, toda elite estudava lá. Sem ser Celina Vargas, que estudou no British School, mas por exemplo, o Helinho Macedo Soares, todo mundo estudava lá. E era uma coisa louca, a gente saia de lá muito bem formado, eu sabia, eu vejo hoje o ensino, que hoje as crianças têm aula em fevereiro, entram dezembro tendo aula, tem aula em julho, meus netos. Nós tínhamos férias, primeira semana de dezembro entrava todo mundo em férias e só voltava na primeira semana de março. Julho inteiro de férias, a semana santa toda de férias. E a gente tinha muita informação. Eu saí do Curso de Admissão sabendo todas as capitais de todos os países do mundo, dos quatro continentes, eu sabia tudo. A minha mãe sempre conta, porque a prova de Admissão da quinta série, a prova final, era convidados professor de fora, que vinham do Liceu, fazer o exame, Dona Celeste, Professor Mário de matemática, me lembro que eram muito famosos. E na hora dos conhecimentos gerais, Matemática e História, Geografia e História, a gente ficava em pé, com uma vara de bambu e a Dona Estela, dizia:...
P - Você estava contando sobre suas lembranças da escola e de como vocês tinham que memorizar diferentes matérias cantando. Você lembra de uma dessas musiquinhas?
R - Eu estudei nesse colégio elite, e a Dona Estela Trovão, e eu fiz até o quinto ano, que chamavam de Exame de Admissão, e quando chegava no terceiro ano, a gente iniciava uma metodologia de trabalho da professora, que depois isso seguia para todos os anos, quarto e quinto ano, que já era a Dona Estela, a própria professora. Era uma grande sala onde ficava todo mundo da quarta série e do chamado Admissão, porque só fazia o quinto ano quem não tinha idade suficiente para entrar para o ginásio, porque naquela época tinha uma idade mínima, foi o meu caso. Por exemplo, quando eu fiz o Admissão, que era o quinto ano, éramos dez alunos e os outros todos eram da quarta série. Então nesse terceiro ano, a professora, Dona Débora, era muito neurótica e a gente tinha que cantar tudo, a Matemática então, que eu acho formidável. Um dia estava numa festa, encontrei com… Estávamos eu, minha irmã mais nova, que estudou dois anos depois de mim e estava o Ronaldo do Vale, que faleceu recentemente, que era filho de uma família importante aqui de Niterói, o avô dele foi chefe político, Gaudêncio do Vale, em Friburgo, o bisavô dele foi presidente da província, então a gente começou a cantar e ele emendou também, a musiquinha.
P - Como é que era um trechinho?
R - Por exemplo, transformar número misto em fração. Esse é o que todo mundo lembra, porque ela batia, era grande a musiquinha, ela batia a régua. “Está fora do ritmo! Multiplica-se o inteiro pelo denominador, o produto soma seu numerador e dá-se o mesmo denominador…” Quer dizer, havia um ritmo, uma musiquinha mesmo para você gravar. E o Presidente da República, Marechal Deodoro da Fonseca, Marechal Floriano Peixoto, Doutor Prudente Morais, Doutor Campos Sales, Doutor Rodrigo… E você guardava tudo. Tanto que tinha uma música para preposição, pra advérbio divulgado, advérbio de tempo, para contar a história do Rio Paraíba. Uma coisa doida. Então, eu acho que foi muita informação, mas eu acho importante porque eu tive muita erudição, quer dizer, quem tinha uma cabeça para pensar, conseguia elaborar essa massa de informação. Eu sabia todos os países do mundo, com todas as capitais. Hoje, por exemplo, eu preciso me atualizar sempre em relação a África, que eu tenho grandes amigos Africanistas.
P - Vocês estudavam História Fluminense, História Regional?
R - Na época não. História do Brasil, sabia o nome dos almirantes batavos. “Diga a frase que Angry Henryson disse antes da fragata naufragar”. Olha, que coisa! Quer dizer, então a frase era assim: “O oceano era a única sepultura digna de um almirante batavo”. Como é que o almirante ia ter tempo de dizer isso? Mas a gente repetia isso. Bom, mas eu acho que isso… eu sempre fui muito diferente dentro da minha casa, das minhas irmãs. Porque a minha irmã mais velha era a primeira filha, primeira neta, primeira sobrinha neta, era primeira tudo. E a minha irmã mais nova era loirinha, engraçadinha e pequenina. Então, eu não podia fazer as coisas que a mais velha fez, porque era pequena, não podia fazer as coisas que a mais nova fazia, porque era grande demais para isso. Todas as lembranças que eu tenho da minha primeira infância, são traumáticas, em relação a essa…
P - A me colocar no mundo, no ambiente familiar.
R - Eu me lembro que na casa dos meus avós, tinha mesa, que hoje está comigo, em uma das minhas fazendas, que cabiam dezoito pessoas sentadas. Meu avô tinha uma casa ali na esquina do Ingá com Tiradentes, que eram quase três mil metros de terreno, muito grande, que tinha um Santo Antônio de azulejos na fachada, muito bonita, bem estilo português. Eu tenho desenhada, pintada, fotografada, muito bonita.
P - Como era o ambiente da sua casa? Você vem de uma família grande, de uma origem portuguesa, mas vocês eram uma elite Niteroiense. Como era o ambiente, vocês comemoravam, por exemplo, algum festejo? Como era a questão da religiosidade, tinha Natal, Páscoa?
R - Nossa, tinha tudo.
P - Você pode rememorar uma dessas festas, por favor?
R - Por exemplo, todas essas festas e mais algumas, por exemplo… E era sempre na casa do patriarca, enquanto o meu avô viveu na casa do meu avô.
P - Do avô paterno?
R - Paterno. E quando ele morre e a minha avó, continua sendo na casa da avó. E quando a minha avó morre, que a minha tia Quinhas, que era Maria Messias, conhecida como Quinhas, que foi a minha tia, irmã mais velha da minha mãe, que eu como disse, casou-se com um primo português, que era primo em primeiro grau do sogro e da sogra, esquisitíssimo, mas é verdade, ele morre, minha tia ficou viúva. Mas, enquanto ela viveu, essas festas continuaram na casa dela. E quando ela morre, passaram a ser na casa da minha mãe. E quando a minha mãe morre, passou a ser na casa da minha irmã mais velha. Eu acho isso impressionante, a minha irmã mais velha, ela reproduzia tudo. E quando eu fiz uma entrevista com ela, eu não a entrevistei, mas a técnica da História Oral, quer dizer, mas eu que coordenei o projeto, que era para ela mostrar como se processa a transmissão das tradições nas famílias portuguesas, que era um projeto da mulher do Mário Soares, chamava a “Voz das Avós”, como as avós transmitiam isso de uma geração para outra. E eu entrevistei a minha irmã mais velha, que era a guardiã dessas tradições. E ela dizia assim: “Eu que sei tudo, porque eu era a neta mais velha”. O negócio da primogenitura é a primeira coisa que eu destaco nessas famílias portuguesas. O anseio da família portuguesa era ter um primogênito português, mas o meu avô só teve um primogênito português quando a sua neta mais velha estava com doze anos e eu com dez. Então, ela foi muito primogênita. Essa minha tia que não tinha filhos e a minha avó, moravam juntas nesse casarão, e a casa dos meus avós, eu tenho que escrever um artigo sobre isso, tenho que recuperar essa planta, que eu tenho os desenhos, ele compra um terreno de esquina e a casa dele vai descendo, vai descendo, até um ponto na Pereira Nunes, depois a casa dele continua só numa parte do terreno, como se fosse uma língua, onde a minha avó… Onde tinha quarto de criados, era assim que se chamava, não tinha garagem, o quarto das criadas embaixo, no fundo da garagem, dos criados homens em cima. E aí tinha um pomar onde tinha as limas-da-pérsia da minha avó, que era a fruta paixão dela e umas hortaliças, e depois tinha uma horta e no fundo um galinheiro, onde eu cacei muita rolinha lá. Hoje eu morro de pena, que elas entravam para comer a ração das galinhas, acabava a gente prendendo, nós crianças. Mas nessa língua do terreno, de lá pra cá, ele pegou trinta metros do terreno, que é uma grande distância, que o terreno dele tinha mais de cinquenta metros de frente a casa dele. Então, hoje está sendo construído um grande complexo lá. Então, esses trinta metros, ele construiu uma casa para cada filho, que dava exatamente. A minha avó podia entrar e o meu avô nunca fazia isso, porque os filhos que o visitavam, entendeu? Podiam entrar e sair por uma porta dos fundos, que passava pelo pomar e pela horta e entrava na casa dos três filhos. Então, tinha casa dos quatro filhos, a primeira era a tia Quinhas, que tinha casa que ela alugou. Aí, depois vinha a casa da minha mãe, do meu tio e da tia Carlota, cada filho tinha sua casa lá.
P - Mas conta pra gente um desses festejos, uma festa de Páscoa ou Natal, por exemplo?
R - Então, essas festas, além da Páscoa e do Natal, que o brasileiro, quer dizer, a influência, eu tenho inúmeros livros, artigos, sobre a imigração portuguesa, inclusive muito apoiado na Eulália que eu fiz muito essa econometria, essa pesquisa demográfica também, mas sempre com foco social, usando isso como metodologia apenas. E a gente demonstrou que os portugueses, por exemplo, no caso do Rio de Janeiro, eles são a maioria em todos os municípios Fluminenses, todos, com exceção de Petrópolis e Itaperuna, onde os italianos vão ser a maioria, no censo de 20, os portugueses são a maioria em todos eles, desde 72 que é o primeiro censo do Império. Mas não é uma maioria qualquer, eles são 60%, a hegemonia deles na constituição social, na composição social é flagrante, então eles imprimem muito os seus hábitos, a sua cultura, etc. Então, a coisa de Natal, da Páscoa, etc, apesar de Niterói, por exemplo, de ter um grupo de ingleses e alemães muito importantes, tenho uma aluna que fez uma tese maravilhosa, que não conseguimos publicar até agora porque o Niterói Livros está parado há cinco anos. Mas você vê, tem a Igreja Britânica, tinha o Clube Rio Cricket, que é uma coisa tão importante em Niterói, que o príncipe herdeiro e o irmão, príncipe herdeiro na época o que vai se tornar Duque de Windsor, que renuncia, mas os dois vieram para a inauguração do Rio Cricket. Porque essa colônia inglesa de Niterói, eram os ingleses comerciantes e representantes dos setores de serviços, gás, iluminação, transporte de bonde e das barcas, atuavam na capital, na corte e depois na Capital Federal.Mas eles detestavam morar no Rio por causa das epidemias, das febres, etc. E aqui em Niterói, eles ocupam toda o Gragoatá e depois ocupam essa região alta aqui do Morro Santa Teresa, que é uma região que vai da Gavião Peixoto para a Moreira César, ali ficam mais os alemães, tem inglês também, mas a maioria são alemães. Mas os alemães e ingleses, sobretudo, ocuparam essa região do Gragoatá. Então, apesar disso, a vida de Niterói é marcada, para você ver, em todo lugar tinha uma igrejinha chamada Nossa Senhora da Conceição, porque todo mundo pensa que é Nossa Senhora de Fátima, mas Nossa Senhora de Fátima é depois, aliás Nossa Senhora de Fátima é tão forte, nessa coisa da identificação nacional dos portugueses, que meu avô que migrou em 1905, ele me contando o dia que ele chegou no porto, que a pessoa que ia buscá-lo não chegou, e aí ele acabou vindo com um amigo, que a pessoa foi buscar, um rapazote também, para Niterói, foi assim que ele veio para Niterói, que ele acabou fugindo de novo e se deu muito bem, porque ele ficou num armazém de um casal sem filhos, onde hoje é a Avenida Sétima, armazém que chamava Minas Gerais. E era um casal sem filhos, em dez anos ele já era sócio e quando teve a Primeira Guerra Mundial, ele já tinha condições de voltar para Portugal para casar com a prima, entendeu?
P - E ele depois se tornou um grande comerciante?
R - Meu avô chamava-se Antônio Augusto da Paz. Todo mundo dizia pra mim, eu ficava danada da vida quando eu era pequena: “Ah, você é neta do Grilo Paz”. Eu não era neta do Grilo Paz, Grilo Paz não existia. Porque tinha uma firma antiga, chamada Grilo. E meu avô quando vem, meu avô forma firma com esse Grilo antigo, que vai embora para Portugal e meu avô se torna dono da firma toda, depois vem um outro Grilo, sobrinho desse Grilo velho, mas que é um sócio minoritário, como tinha alguns, ele tinha 8% só da firma. Quer dizer, meu avô era dono da firma Grilo Paz, mas o Grilo que fundou a firma com ele já tinha ido embora.
P - E qual era o ramo da firma?
R - Era a maior firma de exportação e importação do estado do Rio de Janeiro. Isso se dá, meu avô vem na década de 20… Na década de 20 é o momento que os portugueses começam a enriquecer e ter visibilidade social, é um momento em que a antiga elite portuguesa, agrária, que é de origem portuguesa, elite brasileira de origem portuguesa agrária, senhores de terra, começam a perder os pequenos bancos. Daí o meu avô e o meu padrinho, eles foram donos do Banco Comercial Industrial do Rio de Janeiro, que foi comprado pelo Bamerindus, eu não me lembro, mas tinha o Banco Predial, do Rio de Janeiro e o Banco Comercial Industrial do Rio de Janeiro, que naquele momento de concentração dos bancos, foram comprados pelo Banerj e pelo Bamerindus. E tinha dono de usina, usina de campo, Tanguá, Carapebus, também eram do meu padrinho, que era Manuel João Gonçalves. Mas o meu padrinho morre muito cedo e os filhos dele continuam, tem uma casa sofisticada no Rio, mas depois os negócios deles têm uma evolução diferente da minha família. Então, na verdade, era banco, companhia de seguros, as usinas, além da firma de exportação e importação, fábrica de tecidos Santo Antônio, lá em São Cristóvão, fábrica do Café Cardeal, fábrica do Sabão Mossoró. Aquela Rua São Lourenço, quando você desce da Ponte, eu me lembro pequeninha andando por ali, o meu avô me levava, porque como as meninas, as netas dele eram menininhas e todas só tinham interesse em bonecas, em roupinhas, e eu gostava de fazer perguntas, de estudar, de ler, era muito boa de Matemática... Vou fazer um parêntese para contar isso. Lá em Portugal, era comum as pessoas ter uma alcunha. E a alcunha do meu avô, a gente foi descobrir, era “Somar”. Quando eu fui a Portugal pela primeira vez, quer dizer, eu fui milhares de vezes a Portugal, mas nunca tinha ido na aldeia do meu avô, que eu cheguei, já encontrei bem modificada, porque todo mundo migrou para a França e colocaram o dinheiro lá para construir casas, hotel, isso e aquilo. Então, uma pequena cidadezinha, o meu avô se tornou Comendador, porque ele que construiu a Capela da Senhora de ________, construiu a polícia, construiu o colégio, o abrigo de velhos e a fonte, e mais uma outra coisa que eu não me lembro. Então, ele era Comendador. Era assim que os portugueses ricos faziam, eles investiam nessas remessas que se materializam em melhorias, porque Portugal foi muito pobre nesse período salazarista. Então, esse meu avô, quando eu fui lá a primeira vez, eu sabia que tinha uma prima que morava lá e fui para o hotel, mas fui para o hotel. E aí, no hotel, a senhora velha dona do hotel não estava, estava o neto dela e disse: “Vieres pra cá, tem parentes cá ainda? Vieram passear?”. “Não, nós viemos aqui para conhecer”. “Ah, tem parentes cá. Quem era o seu avô?”. Eu disse: “Meu avô era Antônio Augusto da Paz, ele vinha muito aqui”. “Eu não sei quem é, não sei quem é”. Quando chegou a senhora, que eu falei quem era o meu avô. “Ai meu Deus! É neta do Somar”. Então, a alcunha do meu avô era Somar. E isso era uma coisa que encantava… Meu avô se tornou grande amigo do Amaral Peixoto, porque havia nesse período, nos anos 30, 20 em diante, mas na década de 40 muito também, crises de abastecimento, em que havia uma manipulação para fazer as subidas dos gêneros, usando tudo gêneros básicos, feijão, arroz, etc. Eu tenho um aluno, inclusive, Alberto Gawryszewski, que fez uma tese que foi premiada pela Biblioteca Carioca, chamada ‘Panela Vazia’, que é sobre essas crises de abastecimento. Então, o meu avô dizia: “Eu sempre disse para o Comandante” - que assim ele chamava - “enquanto eu viver, Comandante, não há de haver crise de abastecimento, não há de haver falta de feijão no Rio de Janeiro”. E o meu avô, quando o Amaral ligava pra ele, o meu avô levantava e falava assim, levantava para falar naquele telefone preto de antigamente: “Pois não, Comandante”. Assim que ele falava, ele frequentava muito a casa do meu avô. Nós morávamos todos na mesma rua, como já contei aqui. Então, o meu avô vai ter esse papel muito importante no estado do Rio, ele vai ser o homem mais rico do estado do Rio, a família naturalmente, como dizem, a geração que vem a seguir, os quatro filhos, venderam tudo e praticamente perderam tudo, até a companhia de seguro foi vendida de uma maneira, que nós perdemos inclusive uma sala. Mas a fortuna desse homem era tão grande, que eu, por exemplo, sou praticamente a única da minha geração, eu e uma prima, que somos professoras, filha do meu tio, que trabalhamos por vocações, as duas professoras. Ela fez História também, mas ela ficou na rede, sabe? Ela foi diretora do CIEP, ficou muito entusiasmada. Mas tudo foi vendido mal, tudo foi complicado. Quando vendeu a companhia de seguros, fizemos um contrato tão ruim, tão mal feito, que nós além de não ganhar nada, ainda perdemos uma sala no edifício Galeria Paz, que é o primeiro arranha-céu, porque os dois primeiros arranha-céus, chamava assim, dez andares chamava ‘arranha-céu’, na década de 50, na Amaral Peixoto, foi o Banco Predial, que era do meu avô e do meu padrinho. Depois a Galeria Paz, que vai ser um pouco mais alta.
P - Então, você estava comentando sobre o seu avô e o Amaral Peixoto.
R - O importante aí que eu queria mostrar é que meu avô, toda aquela região de quando a gente desce da Ponte, que tem a Rua São Lourenço, tudo aquilo praticamente, vários terrenos, são nossos até hoje. Teve uma época, a rua quase inteira, do lado esquerdo, que dá para a Baía, era do meu avô. Não tinha Ponte, não tinha caminhão, então as faluas vinham com as mercadorias… chamavam assim, f-a-l-u-a-s eram grandes barcaças, primeiro era um barco, depois eram barcaças que traziam e atracavam no Fundo. Só depois do saneamento, é que essa região toda é saneada, e aí depois as faluas não chegam mais. E depois vem a Ponte. Bom, então depois eu vou falar do Amaral Peixoto, quando a gente falar do quebra-quebra, que é uma coisa muito importante para a história da Ponte também, por causa do trauma criado pela questão das barcas. Então, como disse essa minha família, era uma família que manteve todas as tradições portuguesas. O meu avô, como eu disse, chegou em 1905 e essa hegemonia, o peso demográfico dos portugueses, eles imprimiam uma marca nessa cultura, na religiosidade, nos hábitos, nos costumes, então você vê, quase todas as igrejas antigas de Niterói, importantes, chamam Nossa Senhora da Conceição, que era a rainha de Portugal e a Padroeira de Portugal, desde a restauração de Portugal, que Dom João IV falou: “Nossa Senhora, se eu ganhar a Senhora será para sempre a rainha de Portugal”. Depois de Dom João IV, ninguém colocou a coroa na cabeça, todos os reis têm o retrato com o cetro e o manto, mas a coroa do lado só nosso Dom Pedro I, aquele Pedro maravilhoso, que eu amo, que botou, que a Rede Globo transformou num bobão, que parece um tarado sexual, é que põe a coroa na cabeça naquele episódio todo épico da retomada do trono de Portugal, de derrotar Dom Miguel para colocar no trono a princesinha brasileira, Dona Maria. Então, na verdade, na minha família, além de todas aquelas festas, tinha, por exemplo, a Festa de Reis, que essa não ficou muito pro povo brasileiro, mas português sim. E o meu avô tinha uma varanda fechada na casa dele, enorme, que percorria toda a extensão da casa. E nessa varanda, no Natal e Ano Bom, ele recebia todos os chamados rapazes das firmas. Quem eram os rapazes das firmas? Eram trinta, vinte e cinco, quarenta por ano, que tinham emigrado sem família e ele se lembrava da tristeza que ele teve do Natal sem família. E ele fazia questão de tê-los comendo o mesmo bacalhau, tomando o vinho português ali. Quer dizer, tinha o salão nobre, onde ficava a família restrita e alguns convidados ilustres. Mas os moços participavam, porque tudo se comunicava por portas e janelas com esse grande salão. Então, meu avô sempre foi um homem muito generoso e muito querido na colônia portuguesa. Uma lembrança que eu tenho que escrever, eu acho que eu quero terminar minha carreira escrevendo sobre ele, porque existe um folclore sobre ele, o que tem de histórias inventadas sobre ele, eu já vi de portugueses antigos, eu já tenho mais de dez versões de pessoas que conviveram com ele, fazendo coisas que eu sei que ele não fez, entendeu? Muito engraçado isso, né! Bom, então, a coisa importante que eu acho da minha adolescência, é que eu me distingui, a maneira de eu sobressair na família era através da minha vivacidade, de ser estudiosa, de ganhar todos os prêmios, de ganhar sempre dez e de ganhar primeiro lugar, como se chamava, ganhar medalha de ouro, e ser espirituosa. A minha tia mais nova casou com um deputado, que depois foi Senador da República, Vasconcellos Torres, foi um grande senador, um senador fluminense mesmo, ele pensava o estado do Rio, ele estudava. E eu o ajudei a escrever um livro sobre ele. Na biblioteca dele nós encontramos, naquele tempo, as pessoas estudavam ciências jurídicas e políticas e ele ficou um tempo sem saber se ele ia ser advogado ou se ia entrar para a área de ciências sociais, então a correspondência dele com todos aqueles intelectuais que vieram dar aula na USP, que ele frequentou. Muito interessante. E ele casou-se com a minha tia mais nova. E ele fez toda uma trajetória para a esquerda, depois terminou na direita, ele era do PTB, ele começa na política pelo PSD, vai para o PDT, não, PSD depois para o PTB e termina na Arena. E ele escreveu e publicou muita coisa, o problema canavieiro Fluminense, várias coisas. E ele vai ser autor do projeto da criação da Universidade Federal Fluminense, que de certa maneira o imortalizou dentro da Universidade. Tem o prêmio Vasconcellos Torres, não é à toa. Então, essa família do meu avô era muito compacta e o Vasconcellos que fazia uma diferença. Quer dizer, foi muito bom para ele casar com a filha do grande amigo do Amaral, mas depois se tornou incômodo ele ser genro do ‘tubarão’, que é assim que passa a ser conhecido os grandes comerciantes, os grandes, o meu avô não tinha mercadinho, essas coisas, mas ele vai fazer o primeiro mercado, supermercado de Niterói. O Fonseca, que nos anos 20 era um bairro aristocrático, até os anos 40, era um bairro onde os portugueses ricos ainda moravam lá. Mas o meu avô vai ser um daqueles primeiros que vem para a praia, ele não foi para Icaraí, como meu padrinho foi, mas vai para o bairro do Ingá, que era o bairro do Palácio. E pela proximidade com o Amaral Peixoto, ele construiu essa grande casa que eu já falei aqui. Então, a minha tia mais velha, que não teve filhos, casada com o tal primo, irmão do pai e da mãe, ela viveu sempre na casa do pai. E como meu avô era muito ocupado e a minha avó não era muito dada ao trânsito social, a minha tia é que representava a família, acompanhava muito o meu avô, era uma frequentadora assídua do Clube de Ginástico Português do Rio, das festas da embaixada, porque hoje onde é o Consulado era a Embaixada antigamente, era uma festa atrás das outras, se vestia com modista francesa do Rio, toda uma série de coisas que a minha mãe, nem minha outra tia tinha, ela era uma mulher muito mais sofisticada, entendeu? A minha casa, por exemplo, é cheia de obras de artes, que eu não comprei nenhuma praticamente, todas eu herdei dessa tal mansão do meu avô, que muitos primos não quiseram, preferiram dinheiro, a gente fez uma repartição. E era tudo comprado por ela em leilões, ela foi uma mulher sofisticada, e ela convenceu a minha mãe que eu devia estudar no Rio de Janeiro, num colégio…
P - Quero que você conte um pouco essas memórias do colégio em Niterói e como acabou no Rio. Como é que você ia?
R - Isso que eu vou contar. Então, ela convenceu a minha mãe que eu devia estudar num colégio francês no Rio, chamado Sacré Coeur de Jésus, onde as filhas de um amigo do meu tio, banqueiro, a mulher dele…. Antônio Sarda, eu acho, a mulher dele chamava Dulce Sarda. Então, a Dulce Sarda era até tia da Margarida, que foi professora de História da UFF, não sei se você lembra, da PUC, Margarida de Souza Neves. Então, a Dulce Sarda influenciou. A minha mãe dizia assim: “Ó, Carmem tens que pôr as meninas no Sacré Coeur, onde estuda as filhas da Dulce, é um colégio sofisticado, muito melhor do que aqui em Niterói”. E nós fomos colocadas lá. Foi uma coisa um pouco dramática, porque nós somos três irmãs, com dois anos de diferença cada uma, minha irmã mais velha está falecida, ele faria 84 esse ano, eu faço 82, e a caçulinha faz 80 esse ano. Dez anos depois, nasceu o primeiro irmão, que vai ser homem, e aí minha mãe teve dois filhos homens depois, o mesmo casal, mas ficaram dez anos sem ter filhos.
P - Como é o nome dos irmãos?
R - Guilhermino José, que era o nome de um tal bisavô, que era o fidalguês da aldeia, Guilhermino José. E o outro era… Aí, tem uma história engraçada, porque o primeiro neto homem do meu avô, foi o filho do Vasconcellos Torres, que é um pouquinho mais velho, mas o Vasconcellos botou o nome dele no filho, entendeu? João Batista de Vasconcellos Torres Filho, não botou o sobrenome do meu avô. Então, aquilo numa família portuguesa é um horror, foi um horror. E aí a minha mãe engravidou logo depois e teve esse filho homem, então ela botou o nome do pai, não apenas o sobrenome Paz, mas botou o nome do pai do meu avô, Guilhermino José Paz Lizardo Lima, é o nome do meu irmão. E o mais novo chama-se Sebastião, como meu pai, mas ele é conhecido como Lizardo Lima. Então, esses dois irmãos. E aí, foi meio traumático, porque nasce dois irmãos, para dividir mais a mãe com a gente e a gente ainda é posta num colégio interno. As minhas duas irmãs ficaram só um ano, a mais velha não tinha ido para o Sacré Coeur, ela foi para o Santa Úrsula, que naquela época ainda tinha internato, e eu e a minha irmã mais nova, fomos para o Sacré Coeur. O que aconteceu?
P - Você ficou quantos anos?
R - Eu quis ficar lá. Por que eu quis ficar lá? Porque eu estudava em Niterói, num colégio de freiras também, o colégio melhor de Niterói, colégio da elite, chamado Nossa Senhora das Mercedes. As freiras eram muito bem-intencionadas, mas umas freiras espanholas muito atrasadas. E eu era uma pessoa inquieta intelectualmente, eu sempre perguntava coisas e elas só faziam sufocar a minha curiosidade, o meu desejo de saber mais, elas achavam aquilo inoportuno, entendeu? E aí, eu fui uma pessoa que me voltei muito para os livros, eu li muito, eu acho que desde o segundo ginasial eu comecei a ler, ler, ler, sozinha. Era a época das grandes coleções, meu pai comprou Stephan_____, meu pai comprou para a minha irmã mais velha e eu li tudo, ela não leu. Eu li um que escreve as maluquices do imperador, Paulo… Bom, uns livros de divulgação histórica, ótimos, quer dizer, eu lia muito Burns, enciclopédias da época. Eu lembro que a gente lia enciclopédia, eu adorava ver genealogia dos reis nas enciclopédias. Aí, eu entro naquele colégio, onde as freiras só me falavam do petrado, do inferno. “Tem que fazer isso, não pode fazer aquilo”. Quer dizer, uma coisa horrível para o adolescente descobrindo o seu corpo, eu achava que eu ia queimar no fogo do inferno para o resto da vida. Aí, eu vou para um colégio em que a gente estuda lógica, tinha um livro, manual ______, de lógica, eu comecei começa a ler aquilo no quarto ano ginasial. Eu estudava Literatura Francesa, antes de 15 anos eu li Descartes, ______, me tornei uma filha do melhor racionalismo. E aí, eu ganhei todos os prêmios do colégio, mas nunca fui filha de Maria, porque eu nunca quis! Eu nunca pude aceitar os dogmas da Igreja, que dizer, as freiras me tornaram, não uma anticlerical, eu me acho uma verdadeira filha da civilização Cristã Ocidental, eu acho que a minha moral, a minha ética, meu gosto estético, pela música, pela literatura, pela poesia, tudo passa por essa civilização Cristã Ocidental, que é uma grande construção da igreja católica. É lógico que eu revisito isso criticamente, historiadora que sou, sempre ao longo da minha vida, tanto que eu sou uma militante, até hoje, do campo da esquerda, eu não abro mão do meu compromisso com o socialismo. E eu acho que tem uma bela igreja socialista, adoro o Frei Beto, tá entendendo? Enfim, essa é minha cabeça. Adoro o Papa atual, que eu fico chocada de ver, tem setores da igreja como a Opus Dei, dizendo que o Papa… mas eles já estão dizendo isso há mais de 3 anos, que “o Papa tá senil”. Então, eu sou muito crítica em relação a isso, eu não me defino como católica, mas eu não sou uma ateia raivosa, eu não acredito em outra vida, não acredito em alma, não acredito em muitas coisas. O próprio Deus pra mim é uma harmonia no mundo, também não cai naquele panteísmo doido não. Então, eu sou muito satisfeita com essa construção que eu fiz, eu não tenho nenhuma angústia religiosa, convivo muito bem com a religiosidade dos outros, quer dizer, não sou uma ateia raivosa. E eu devo toda minha formação, que dizer, eu pude crescer intelectualmente graças as freiras desse colégio, não eram todas naturalmente, tinha algumas bem conservadoras, mas as que tinham a responsabilidade da formação intelectual, sobretudo o chamado clássico, porque elas queriam formar… É lógico que elas não queriam formar mulheres para mudar o mundo, elas queriam formar mulheres ilustradas, para serem rainhas do lar, boas esposas, boas mães, e mulheres que não envergonhassem os seus maridos, que tivessem cultura, que pudessem conversar e dialogar. Mas isso deu toda a carga que eu e outras colegas tivemos para ultrapassar esse limite de rainha do lar, tanto que eu…
P - Agora eu queria saber sobre essa sua ligação... Iá para o Rio, ia para Niterói, como que era isso e que ano você está falando? Como é que você ia para a escola, ia de barca, balsa? E se você pudesse comentar, no ano de 1959 sobre o quebra-quebra, por favor?
R - Eu fiquei cinco anos nesse colégio interno, de 1956, terceiro ginasial, quarto, primeiro, segundo e terceiro Clássico. O terceiro Clássico, para você imaginar como era esse colégio de elite, nós éramos apenas dez alunas. E tinha uma Madre maravilhosa, que quando alguma Madre pensava diferente, ela olhava pra gente, levantava a sobrancelha e fazia como se fosse, não presta atenção no que ela está dizendo. E a gente, de noite, quase dia sim, dia não, tinha uma roda de conversa, quando ela repassava pra gente as notícias do mundo, quase que uma arqueologia, daquela_______ ,entendeu? Então, eu ficava encantada, eu saí de lá encantada com a formação que eu tive.
P - O fato de você ser de Niterói diferenciava de alguma forma?
R - Que dizer, naturalmente eu me destaquei muito nos estudos, eu quando entrei no terceiro ano, tive uma fase de adaptação, mas logo, logo, me destaquei muito, porque como eu disse, eu só me dedicava à leitura. Eu tinha uma leitura maior que qualquer colega daquela época. E aí, eu tive uma professora, por exemplo, a Madre Cecília Amarantes, que foi neta do General Rondon, que era freira do colégio. Ela ficou no colégio e a irmã dela foi uma grande indigenista, freira também, mas depois da ordem passou a fazer trabalho de campo. Começou ali, comecei a ver como que a história não era fato e nome de personagens, era questão e era problema, sabe? Eu acho que desde o quarto ano ginasial eu já tinha isso na minha cabeça. Eu me lembro de alguns trabalhos que eu fiz nessa época, não vale a pena aqui contar, mas que consolidaram essa vocação que eu tinha com os Estudos Sociais muito grande. Então, nessa época, eu ficava de segunda a sábado, meio-dia, no colégio. Então, eu voltava no sábado à tarde, que eu não pegava grande fluxo, mas de manhã eu pegava o grande fluxo, na segunda-feira. Então, naturalmente meu pai nos deixava nas barcas, nunca fomos sozinhas. Quando eu digo fomos, é porque depois uma prima e a filha de um médico, amigo do meu pai, bem mais jovens que eu, a tal da minha prima que eu já me referi, que foi a única que estudou e se tornou professora também, e essa menina, que se chamava Teresa Santos, filha de um médico importante, a minha prima se chamava Cristina Paz, e elas eram mais novas que eu, uns sete, oito anos, não sei, em torno disso, então quando eu já estava no Clássico elas estavam terminando o primário e depois nas primeiras séries do ginásio, nós íamos juntas e sempre tinha uma pessoa nos acompanhando, ou a mãe de uma delas, porque depois ia fazer alguma coisa no Rio, uma compra.
P - Como era essa travessia?
R - Vou contar. Essa travessia de manhã, era uma travessia da classe trabalhadora. Então, eu tenho um artigo que acho um belo artigo, que foi publicado pelo Arquivo da Cidade, sobre coordenação da Beatriz Kushnir, sobre cinema e história, onde eu falo do filme… Enfim, aquele filme do francês, “Carnaval…” Que ela morre, esqueci! Como é que chama?
P - Um filme nosso? ‘Orfeu...’
R - Filme brasileiro. ‘Orfeu’. Em que eu comento o ‘Orfeu Negro’, porque é um filme feito por um francês, pra mostrar o Rio. Então é o Rio dos estrangeiro que vai mostrar as crianças da favela, termina o filme assim, com as criancinhas de vestido de organdi, sapato como meia, sapatinho de verniz, sentando e falando um comentário do Orfeu. Aí eu comparo com outro filme, de um daqueles cineastas brasileiros, fantásticos, que mostram as crianças que vendiam amendoim sendo mortas, dentro da favela esfarrapada, sendo mortas na rua vendendo amendoim. E tem como começa o filme. O filme começa com um carnaval na Praça XV, onde tem barracas com polvo, com isso, como se fosse um mercado perto, uma confusão, o carnaval e mercadorias. Eu me lembro de um polvo escorrendo, uma coisa chocante, mas que quer mostrar que era tropicália, que era coisa doida esse país dos trópicos. E a Praça XV não era nada disso. Eu acho que o negócio do polvo é porque existia um mercado de peixe, depois fechou e se tornou o célebre Mercado São Pedro. Mas tinha isso lá, mas ficava longe de onde saia as barcas, você saindo das barcas ficava à direita. Então, você saia, tinha uma grande área cimentada onde os carros corriam e te apanhavam. Então, eu frequentava isso na segunda de manhã, com a classe trabalhadora, que não era a classe trabalhadora operária, era uma classe trabalhadora sobretudo de setores médios. Agora, a classe média alta de Niterói, onde eu e minhas amigas nos inserimos, a classe alta, a classe média alta, podia fazer uma compra ou outra em Niterói, mas fazia as compras no Rio também. Então, quando eu não ia para o colégio… Ia nas férias fazer compras com a minha mãe, a gente ia lanchar na Colombo e a gente ia fazer compras na Sloper, na Imperial. E eu me lembro, eu menininha, com 12 anos, usava um chapeuzinho de palha com laço atrás, ia de luvinha, com 12 anos.
P - Saindo de Niterói de barca, vinha vestida assim?
R - Vestida assim.
P - Como era o nome da estação de Niterói? Tinha nome a estação das barcas?
R - Estação das barcas. E era aquele grande prédio que foi incendiado bem ao estilo do atual prédio dos Correios, que hoje é um centro cultural ali, era bem aquele estilo, se você ver eles são da mesma época, dos anos 20, da época chamada de Renascença de Niterói, da década de 20, com Feliciano Sodré, que faz o saneamento de toda aquela região onde desce a Ponte hoje, que tem aquele prédio, neoclássico, assim do lado esquerdo, aquilo tudo era grande Praça da Renascença. E ali iam ser construídos os outros prédios, que dizer, foi feito o porto e foi feito aquele prédio, que era o prédio do negócio do café. Enfim, era o prédio que tinha um uso para agricultura, inclusive Alberto Torres dirigiu aquilo, mas na década de 20. Mas os outros prédios não foram construídos, mas tem um projeto que a gente ainda usa, tem artigo sobre isso publicado, etc. Então, essa ponte era uma coisa tranquila, às vezes havia panfletagem, essa travessia era uma coisa tranquila. E como era Niterói nessa época? Niterói dessa época, era um Niterói que eu vivi que o Fonseca deixou de ser um bairro e o centro da cidade, tinha banqueiros como seu Lima e outros que moravam ali no Jardim São João, tem um palacete onde é hoje o Conservatório de Música, e tinha uma outra casa que era o maior exemplo de Art Nouveau daqui, que foi desapropriada na época, que o Moreira Franco levou tanto tempo para fazer obra, que aquilo caiu praticamente tudo, nem sei o que que eles vão fazer, tá em obras. Todo governo começa obra e nunca acaba. O atual disse que vai inaugurar, não sei como que está, que está com tapume, mas é uma beleza. Então, o Centro e o Fonseca deixaram de ser os bairros da elite, a Rua São Lourenço continuou sendo uma rua importantíssima de comércio. E o largo onde tinha a igreja, ali do início do Fonseca, da Alameda ainda eram _______, e o centro de Niterói, era o centro do comércio. E a gente ia lá por muitas coisas: a Rua da Conceição era a rua mais sofisticada, tinha a Leiteria Brasil e tinha a Esportiva. A Esportiva tinham coisas, famosos salgadinhos, tudo era muito novo, eu sou de uma geração que não tinha biscoitos, as mães faziam biscoitos em casa, entendeu? Que tudo começa já na minha adolescência, na minha infância não tinha esse negócio de fazer biscoitinhos, essa qualidade. A indústria de alimentos não tinha essa sofisticação, produzia os gêneros básicos mesmo. Niterói era uma cidade pacata, o centro estava decadente, a região da praia, o bairro do Ingá, São Francisco, por exemplo, quando a minha tia se mudou para aqui, nos anos 50, as ruas ainda não eram pavimentadas. Por aí você imagina como era isso. Icaraí, quer dizer, era aquele miolo. E ali começa a ter uma vidinha, as casas, isso, aquilo, mas a parte de bares, restaurantes, isso ficavam no centro e começa a ter um pouco em Icaraí. E naturalmente tinha o Cassino em Icaraí, que sobreviveu depois da época, quando o Dutra fecha, como um hotel e lá tinha restaurante, tinha cinema, tinha teatro, mas não era um subúrbio do Rio, Niterói era a capital da província, como eles chamavam. E no colégio, como eu me distingue muito nos estudos, às vezes, os pais vinham, de uma amiguinha, que eu estava sempre no quadro de honra em primeiro lugar. E aí, era convidada para uma festa, para ir na casa de uma e de outra. “Você mora onde?”. “Niterói”. Eles falavam: “Em Niterói?”. Como se Niterói fosse o fim do mundo. Niterói na verdade, essas expressões, ‘sorriso numa boca sem dente’, que diz que ‘Niterói é a cidade do sorriso, sorriso numa boca sem dente’. Niterói é conhecida… Aí o pessoal do Rio dizia: “Cidade do sorriso numa boca sem dente.”. ‘É o fim do mundo Niterói’. E isso foi uma coisa que sobreviveu muito nessa mentalidade coletiva, quer dizer, hoje se você acessa o Google e bota lá Niterói, vem lá. “Cidade da região metropolitana do Rio de Janeiro”. Quer dizer, nós estamos na região metropolitana do Rio de Janeiro. Mas nós somos diferentes de Nova Iguaçu, Duque de Caxias, qualquer outra cidade. Nos tínhamos uma urbanidade… Primeiro pra mim é a própria capitalidade, a herança da capitalidade. Não porque a gente foi a capital da velha Província, mas pelos equipamentos culturais e sociais que nós herdamos, pra mim fundamental a cidade que hoje é a que tem maior IDH da região metropolitana, a nossa renda per capita, é maior que a do Rio de Janeiro, não sei se você sabe disso. Pra mim o que manteve a condição de Niterói foi a sua condição de Pólo Regional, ela perdeu a capitalidade depois da fusão, mas ela manteve a condição de Pólo Regional. E isto se deu justamente pela criação da Universidade, desde os anos 20, quando chega nos anos 30, começa a ser criado as escolas superiores e começam a vir os filhos das elites do interior da região serrana, sobretudo das regiões mais novas de expansão, que é o Norte e o Noroeste Fluminense. O Norte Fluminense, a exceção é feita de Campos, porque a elite de Campos nunca veio para Niterói, ela vai direto para o Rio, ela tem palacetes no Rio, por exemplo, no meu colégio você tinha elite… eu fui colega da bisneta do Dom Pedro II, Cristina de Saxe-Coburgo Bragança, colega de turma da filha do Tancredo Neves, quer dizer, a elite de Minas Gerais, política. A família Jereissati do Nordeste, ______ Gentil, a oligarquia de Maceió, do Sergipe, dos Uchôa, Janilo Uchôa. Enfim, todo esse pessoal estudava lá. Mas nesse colégio eu percebia a grande perplexidade de eu ser uma menina sofisticada intelectualmente, de me vestir bem, de conhecer o mundo, de já ter ido a Europa, de ter visitado grandes museus, etc e ser de Niterói. Então, eu vivenciei muito isso, então Niterói era “a cidade sorriso numa boca sem dente”, era… Tem outra coisa que eles falavam muito. Depois, quando vai começar a construção da Ponte, que era uma expectativa, eu, por exemplo, antes de ter a Ponte, muito antes, eu sabia dos projetos que existiam desde o século XIX, porque a gente estudava isso, na faculdade eu já estudei isso. E é uma época, Niterói foi muito importante no movimento sindicalista, a questão das barcas sempre foi uma coisa dominada, no início era dominado esse comércio, por capital estrangeiro, depois aquele português, o Visconde de Mauá, ele vai querer controlar esse comércio, depois os ingleses vem. Eu tenho uma pesquisa que eu mostro a sincronia das barcas com os bondes, de tal maneira e o circuito das pensões sobretudo na Andrade Neves, que os empregados das firmas inglesas e alemãs, ficavam todos ali pertinho da Praça XV, naquelas ruas, Assembleia, isso e aquilo. Eles vinham a pé, em cinco minutos, ou dez minutos no máximo, pegavam a barca, o bonde era sincronizado, bonde circular e saltavam na pensão, comiam, quando o circular voltava, entrava de novo e pegava a barca de novo e vinha almoçar em casa. E acreditem ou não, eu tenho o meu melhor amigo, que agora é um nonagenário, mas ele está vivo, o Doutor Cláudio Couto, que foi arquiteto da Hemope do Rio de Janeiro, quando tem a fusão a Hemope foi transferida para São Cristóvão, no início da Ponte o movimento era tão pequeno, que quatro deles moravam aqui em São Francisco, quatro dos arquitetos. Então, cada semana eles iam no carro de um, então não tinha esse negócio de dividir gasolina, nem pedágio, nem nada disso. Cada semana eles iam num carro de um e vinham almoçar em casa e voltavam. Eu achava uma coisa impressionante. Mas aí eu me lembrei, quando eu fiz essa entrevista com ele, que a minha neta, que agora tem 31 anos, ela estudou na escola alemã lá do, não a do Centro, primeiro ela estudou na Escola Suíça no Centro, aí a Escola Suíça do Centro, foi transferida para a Barra e aí a mãe dela resolveu transferi-la. E a filha do Guto, meu filho Luiz Augusto que você conhece, a mais velha. Resolveu transferi-la, conseguiu matrícula na Escola Corcovado, escola alemã que fica em Botafogo, na São Clemente. Então, o meu chofer, porque aí eu já tinha parado de dirigir, porque eu trabalhava muito, fazia muita coisa e tinha negócio de netos, sobrinhos para levar. Ele acordava cedo, ia buscar a minha neta, levava e voltava pra ficar comigo aqui de manhã, e na hora do almoço, não, de tarde, três horas da tarde, ia buscar ela de novo. É uma coisa impressionante. Então, o fluxo era muito menor, hoje se você vier 16h do Rio, 16h30, você leva uma hora e meia para atravessar a ponte é dantesco isso. Quando inaugurou a Ponte, que dizer, usaram aquele quadro da ditadura, se agravou muito essa coisa de Niterói. As pessoas ignoravam que a gente já tinha aqui centros culturais, que a gente tinha museus, que a gente tinha um teatro municipal que funcionava, mas assim, com concurso de piano, com uma programação pro ano inteiro, como tem no Municipal, que você se associava pra comprar _____, pra comprar isso que a elite comprava, frequentava, bons restaurante, hotéis que vinha muita gente de fora, como ______ e outros. E sobretudo um circuito de cinema maravilhoso. Aqui em Icaraí tinha quatro cinemas em Icaraí, tinha no shopping, porque na década de 50, na década de 60 já está consolidado a transferência do Centro para Icaraí, começa as construções dos shoppings. Então já vai ter cinema na Rua Moreira César, cinema em Icaraí, cinema na Reitoria.
P - Mas de que forma afeta a construção da Ponte?
R - Eu sinto que até os anos 60, 70, até o momento da construção da Ponte, inclusive, acho que o negócio da fusão, tudo isso, não melhorou nada essa relação Rio-Niterói, pelo contrário, só agrava essa coisa de Niterói, esse folclore sobre Niterói, como coisa ruim, que pra mim sobrevive até hoje, depois eu vou dizer porquê, Niterói é ‘a cidade do sorriso de uma boca sem dente’, como eu falei. ‘A melhor vista de Niterói é do Rio de Janeiro’. E aí o célebre Sérgio Porto, Stanislaw Ponte Preta, que com aquela perversidade muito simpática dele, ele diz que “Niterói era a terra que até urubu voa de costas”. E quando surge o projeto da Ponte, ele começa a ser chamado, dentro dessas metáforas todas, produzidas sobre a obsolidade de Niterói, como “túnel do tempo”. Era o “túnel do tempo”. E eu quero dizer que para mim, eu já escrevi um artigo, acho que eu não publiquei, eu fiz uma palestra, eu preciso publicar esse artigo, mas aí eu tenho que ver o nome exato das novelas, dos atores, etc., como na Rede Globo sobrevive até hoje nas novelas da Globo. É impressionante, tem uma novela que a Susana Vieira, era uma socialite, mãe de uma mocinha, que namora um cara que é piloto, e aí o piloto, a mãe dele é cabeleireira, o pai é bêbado e não sei mais o que, uma confusão doida. Ela vem a Niterói para ir a cartomante. Ela vem de helicóptero para Niterói, para ir na cartomante. Então, Niterói é lugar onde tem o bêbado, tem a figura que não deu certo, as manicures, é onde tem a cartomante, entendeu? Tem uma que tem um ônibus que vem do interior, não sei de onde, que para num lugar assim, que toda noite fica todo mundo assim na roda, conversando, parece aquele negócio do interior, que ficavam com aquelas cadeiras. Uma coisa louca, louca. O Paulo José, faz uma vez, um desses personagens bêbados, que não conseguia se realizar. Então, é o lugar dos fracassados. Aí quando vem a Ponte, eu acho que Niterói foi descoberto. Quando eu digo que Niterói é pra mim igual aos outros municípios da Baixada. Primeiro eu levanto a questão da capitalidade, segundo eu levanto a questão de ele ter permanecido como Pólo Regional, devido a importância da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cuja as escolas vem desde dos anos 20 e 30. Se você mapear as elites políticas do Rio de Janeiro, você vai ver que são todos jovens estudantes, que vieram para cá, que se tornam presidente da União Fluminense dos Estudantes. Então, eu posso citar Kiffer Neto, Cláudio Moacyr, Togo de Barros, antes destes, os irmãos Silveira, o famoso Roberto Silveira e Badger da Silveira. Niterói foi um grande centro político do movimento sindical e operário muito importante. A Universidade foi muito contaminada, muito participante dessas relações com esse desejo de mudança política e social. A revolução reprimiu, criou forte clima de repressão também na Universidade.
P - Mas de que forma você acha que a Ponte modifica a cidade de Niterói?
R - A Ponte, quando ela vem, vai mostrar que Niterói, isso que eu digo, que dizer, tem a questão da capitalidade, a questão do Pólo Regional, se manter com o Pólo Regional, devido a importância da Universidade Federal Fluminense, que desde 20 vem se consolidando com as escolas isoladas. Mas também tem a questão de ser… A gente não está no fundo da Baía. De Niterói, nós tínhamos uma vista tão bonita, quanto vocês têm do Rio, nós estamos exatamente na entrada da Baía. De um lado você tem a Fortaleza de Santa Cruz, de outro lado você tem a Fortaleza que está destruída, a nossa é que foi mantida, infelizmente, porque foi usada o tempo todo com presídio político, desde a Guerra Farroupilha até a chamada Revolução de 1964, a Ditadura Militar. Então, na verdade, eu acho que essa beleza de Niterói, vai surpreender as pessoas. A Ponte vai provocar para mim… é a origem de muitas coisas boas. Mas eu acho que é a origem de muitos problemas que a gente tem em Niterói. Primeiro porque as pessoas se encantam que a gente tem uma praia, praias interiores, que hoje são todas saneadas, que a gente pode frequentar, etc. Então, vai haver uma verticalização enlouquecida na cidade. Icaraí, as crianças não podem mais passear na praia com sol, porque os edifícios criam uma sombra naquele horário bom do sol, às 11h da manhã. Além disso, quer dizer, você tinha Icaraí, até o Campo de São Bento, até Miguel de Frias. Do Campo São Bento pra cá, depois da Avenida chamada Roberto Silveira, começava o bairro Santa Rosa, que não era um bairro de classe alta, um bairro de classe média alta, era uma bairro de classe média, não era um bairro de classe alta assim, nem de classe média alta. As pessoas preferiam morar em Icaraí ou no Ingá. Ingá cheio de palacetes. Então, o que que acontece? A especulação imobiliária vem e transforma Santa Rosa num bairro chamado Jardim Icaraí. Quer dizer, e aí naturalmente houve toda a colaboração do poder municipal, um consentimento, não houve um planejamento político. O governo do Jorge Roberto Silveira, o primeiro Roberto, foi uma maravilha. Sabe por que? Porque mesmo com a Ponte, nós tivemos como vice-prefeito João Sampaio, professor da UFF, um grande urbanista. E naquela época não podia se recandidatar, então ele se torna o prefeito depois. Então, aquele projeto urbanístico, que foi feito e pensado na UFF, em todos os setores da UFF, da Engenharia, da Arquitetura, da História, da Sociologia, da Ciência Sociais, tudo. Uma coisa feita em laboratório para uma empresa, como depois vão fazer um que vem um cara lá do Rio Grande do Sul, do Paraná, vem não sei quem não sei de onde, que nem conhece a cidade, entendeu? Nem sabe o nome dos bairros da cidade. Então, depois que o Jorge volta, e daí por diante, nunca mais parou. É uma verticalização dramática. E Niterói vai sofrer, então, um congestionamento terrível. Quer dizer, robustece-se a classe média de Niterói. A população que dá esse IDH alto é a classe média do Rio, porque as pessoas que moravam na Tijuca, preferiram morar em Icaraí, tá entendendo? Muitas delas, do que morar na Tijuca. E muita gente do chamado subúrbio, não tô falando dos municípios da Baixada, dos chamados subúrbios, porque depois de saturada da cidade, a gente se expande em relação à região oceânica, que começou com condomínio e depois juntou uma verticalização desenfreada. Então, pra mim, se você me perguntar os efeitos da Ponte, acho importante, muito importante. Você fez essa ligação por terra, acabou aquela dependência que você tinha que esperar horas por uma balsa. É verdade que você fica hoje uma hora para atravessar a Ponte, no mínimo. Eu quando vou de manhã, nunca tenho problema na Ponte, eu tenho quando chego lá, que você encontra o fluxo que vem da Avenida Brasil e de outros lugares. Mas, enfim, a minha apreciação da Ponte é que a vida de Niterói se tornou uma vida de uma grande cidade, sem a preparação de uma infraestrutura, não houve um projeto urbano que preparasse isso. Eu, por exemplo, fui a um casamento de um contraparente em São Paulo, na semana em que se inaugurou a Ponte, e eu cheguei… naturalmente como eu trabalhava… Fomos, meu marido, eu, meu marido era médico, trabalhava, eu já era professora, trabalhava e meu pai e minha mãe. Então, nós fomos, tínhamos um carro muito confortável, fomos de carro e voltamos, quando voltamos, viemos pela Ponte. Nós podíamos ter passado pela estrada de Bagé, que era um horror, mas a Ponte tinha sido inaugurada, falamos: “Vamos pela Ponte”. Minha filha, demoramos quase cinco horas, da hora que nós chegamos para pegar a Ponte para chegar na nossa casa, a casa dos meus pais, que era perto do Campo São Bento. Quase cinco horas! Inacreditável! Niterói parou! Eu tô hospedando aqui um amigo, que tá passando uns dias conosco, que ele morava no bairro do Ingá. Então ele disse que saiu de casa, que era na Rua Tiradentes, desceu aquela Rua Visconde de Morais, passou em frente ao Museu do Ingá e foi pegar a Rua Paulo Alves, que ele ia lá para o Centro para encontrar uma pessoa que ia levar uma coisa para o Fonseca. Quando ele chegou já estava tudo congestionado. E aí, ele ficou horas só para conseguir fazer a volta, para pegar a garagem e entrar para casa de novo.
P - Isso no dia da inauguração da Ponte?
R - No dia da inauguração. E depois ele acompanhou, eu tenho inclusive a reportagem aqui, porque quando ele me falou isso, eu sabia do congestionamento, porque eu fiquei, eu pessoalmente, eu, meu marido, meu pai e minha mãe, que estão falecidos, mas meu marido está vivo, lembra-se muito bem, que ele inclusive era chofer, ele que estava dirigindo.
P - Qual era o carro de vocês, você lembra?
R - Eu me lembro. Acho que era um Dodge, daqueles americanos, grandes assim. Dodge Dart. Galaxie, não tinha Galaxie? Tinha um carro chamado Galaxie, eu acho. Era um desses dois, eu não me lembro. Dodge Dart ou um Galaxie, carro muito confortável. E aí, quando eu comentei que daria essa entrevista, ele contou, que no dia seguinte, ele soube, que ali os bares, esse circuito ali, tem a Faculdade de Direito, tem a Faculdade de Medicina, cheio de bares e de pequenos restaurantes e de padarias. Quer dizer, tinha muitas residências, mas também tinha muitos… por causa desse público universitário, entendeu? Diz que faltou até água mineral, comida, tudo acabou, tudo acabou.
P - Mas a população foi na inauguração da Ponte, você sabe?
R - Na verdade quem tentou ir, não conseguiu, porque o pessoal do Rio que veio, ficou claro que quem encheu a Ponte foi o pessoal que veio do Rio. E aí, todo aquele circuito de descer da Ponte e de subir, ninguém andava, nem pra trás, nem pra frente, dramático. E ele disse, anteontem, pra mim, aqui em casa, que ele levou mais de uma hora para conseguir descer da Paulo Alves e entrar, isso é andar um quarteirão, depois mais um e depois mais dois na Tiradentes, quatro quarteirões para chegar de volta na garagem dele, entendeu? E naquela época não tinha celular ainda, nem pode avisar o amigo que não ia pode encontrá-lo. Mas ele viu que amigo ia viver a mesma situação. Então, eu acho que a Ponte foi muito boa, eu acho que hoje Niterói… Por exemplo, na Universidade… Mas aí eu acho também que é o prestígio da UFF, entendeu? A Universidade é importante, por exemplo, no meu departamento, mais de cinquenta por cento das pessoas, o pessoal, mora no Rio de Janeiro, quase sessenta por cento. A construção da Ponte pra mim ela se insere nesse projeto desenvolvimentista que a ditadura, que a ditadura se nutriu dele, cooptando setores médios, urbanos. Como mostra o Daniel, a chamada revolução, o golpe, ele não foi um Golpe Militar, ele foi um golpe civil e militar. E o interessante é como os setores médios… Eu acho impressionante como em pesquisa e isso e aquilo, a gente conta, “com pessoas no tempo militares…” Eles não falam no tempo da ditadura, eles falam: “No tempo dos militares era muito melhor, tinha ordem, não tinha criminalidade, não tinha isso....”, quer dizer, eles não conseguem perceber que é a estrutura socioeconômica e que a gente pode construir isso numa sociedade democrática. Então, naquele momento, esse projeto desse Brasil grande, essas marcas… A Transamazônica, todos esses…
P - Hidrelétricas?
R - É! Exatamente! Inclusive algumas coisas que interessavam… Eu me lembro, os meus alunos da faculdade de Economia, quando eu fui paraninfa deles, como o projeto da Hidrelétrica de Itaipu, era um coisa que eles todos contra a ditadura, mas como aquilo era uma coisa importante, porque tirava a gente da órbita dos Estados Unidos, entrava na órbita alemã, era uma outra possibilidade da gente sair daquela exploração colonial, aquela coisa, porque essa juventude tinha muita essa coisa antimilitarista, quer dizer, desde a minha até a dos meus primeiros alunos, isso da gente lutar contra a Guerra do Vietnã, aquelas coisas todas. Então, na verdade, quando esse projeto se insere aí numa conjuntura em que o transporte hidroviário tava muito ruim, as embarcações não eram modernizadas, atrasavam, faltavam. Tem isso, aquilo e isso vai acumulando um descontentamento, e Niterói nessa época vivencia, final dos anos 60, 70, uma grande efervescência política e social, a partir do fortalecimento dos sindicatos, Sindicato dos Bancários, mas sobretudo o Sindicato dos Metalúrgicos. Tinha um sindicato chamado Ferro Velho, o Sindicato dos Metalúrgicos, mas tinha também os operários navais, tudo isso. O sindicato muito forte.
P - O quebra-quebra da Ponte [ das barcas] em 1959…
R - E o que eu estou tentando dizer… Então com essa má qualidade, as barcas atrasavam, enguiçavam no meio da Baía. Todas essas questões, filas quilométricas, etc. Nós vamos ter em Niterói a maior revolução urbana do país, até então nunca houve uma revolução urbana daquelas proporções. Elas quebram e queimam a estação e saem das barcas marchando e pegam a avenida que sobe pro Fonseca, onde tinha a mansão dos Carreteiros, isso tá muito bem registrado no filme, ‘Os Anos JK’, onde você vai ver as pessoas invadindo a casa, saindo vestidos com casacos de pele, essas coisas todas da casa, botando os chapéus das mulheres e essas coisas todas. Quer dizer, foi uma coisa revolucionária mesmo, era uma explosão. E aí, por exemplo, a minha família ficou muito envolvida, porque o meu avô que sempre teve coisas do grande comércio, ele tinha inaugurado uma cadeia de mercados Santo Antônio, que tinha no Fonseca nas… Eu tenho um retrato… Para você ver o prestígio dele, eu tenho um retrato do Amaral e Dona Alzira, inaugurando o Supermercado Santo Antônio.
P - Isso é prestígio.
R - Então, ele era chamado de ‘Tubarão’. Então, eu me lembro, quer dizer, 1974 eu já estava casada, tinha filhos pequenos, mas… Quebra-quebra das barcas foi em 1959, eu tinha 12 anos. Então eu tinha 12 em 1954, me lembro, morava na tal casa que dava entrada nos fundos da minha avó. Da minha avó com os empregados, tirando a prataria da parede e botando na cisterna, porque diziam que…
P - Isso em 1959?
R - No dia do Quebra-quebra. Que eles iam rumar para a casa do Tubarão. Então, eu me lembro disso, eu fiquei tão impactada. E isso teve grandes consequências, que depois eu estudei. Inclusive eu faço crítica de uma série de livros que foram publicados sobre o Quebra-quebra das Barcas, mas na época eu estava muito ocupada. Quando eu comecei a me interessar por isso, então saiu uma monografia que eu fui Pró-reitora, estava em várias comissões ministeriais, não tinha tempo. E a pesquisa naquela época não era essa facilidade de hoje, então eu acabei deixando. Mas eu sou muito descontente de vários livros que tem publicados, tanto teses, quanto os dos jornalistas, etc. Porque eu acho que era muito dirigida para um lugar só. Então, na verdade o meu avô ligou, quer dizer, o pessoal que trabalhava com o meu avô, o meu avô era um homem muito importante, ligam não sei para quem do governo, e aí era o governo do Roberto Silveira, do Jorge, do pai, Roberto Silveira, o pai do Jorge Roberto, e aí, falam assim: “Ah, você…” Pediu uma ajuda, para mandar tropas para proteger a casa. Então, que ele teria respondido e meu avô confirmou isso. “Eu não vou mandar as tropas do povo contra o povo”. Quer dizer, não sei se o Roberto falou, mas a pessoa da administração lá do setor competente, disse que o Roberto teria dito isso. Que não ia mandar. Aí o meu avô pegou o telefone e ligou para o Amaral. E aí o Amaral mandou gente do Terceiro Exército. Mas eles não chegaram a ir lá, não aconteceu nada. A minha madrinha, que já estava viúva, que já não era mais sócia do meu avô, já tinham separado tudo. Um ficou com o Banco Comercial Industrial, outro com o Predial, meu avô ficou com a Usina Carapebus, o outro… Enfim, já tinham dividido tudo, as usinas, os bancos. A minha madrinha, com os filhos, eles tinham um consultor econômico muito importante, que eu não me lembro, que era ligado, na época, ao governo Juscelino. Eles transferiram toda a razão social de todas as empresas deles para o Estado da Guanabara, na época. Que na época era o Estado da Guanabara. Aí só para concluir… E aí o meu avô pensou nessa possibilidade. E aí, sabe o que aconteceu? O Amaral Peixoto… Para você ver como o Amaral sabia fazer política. Você sabe que ele e o Roberto… ele foi derrotado pelo Roberto. Ele foi derrotado pelo Roberto, porque o candidato dele não se elegeu. Então, o Roberto procura o Amaral, conversa com o Amaral, porque seria um grande golpe para o estado, porque meu avô tinha indústria, tinha tudo aqui. Então, o Roberto Silveira vai à casa do meu avô, com o Amaral Peixoto, pedir para que ele repensasse isso e assumiu um compromisso. Meu avô disse assim: “Pois eu amo Niterói, sempre pude morar no Rio, mas sempre quis morar em Niterói, então vou continuar aqui mesmo”. Então, aconteceu isto. Agora, o que eu acho, é que esse impacto, o Quebra-quebra ocorreu… Desde antes do Quebra-quebra ocorrer, aquele desejo pela Ponte, aquela ideia, aquele projeto que seria um trem, uma ponte de trem, que seria isso, que seria aquilo. Vira e mexe tinha um debate sobre isso, uma questão, isso ficou uma questão muito viva. E aí, a questão desse projeto da Ponte, vai ser uma coisa assim muito ansiada pelos niteroienses. E o início só trouxe benefícios, porque como eu te disse, os arquitetos e os engenheiros, trabalhavam, iam ao Rio almoçar e voltavam. A minha neta estudava lá e voltava. Muitas coisas foram facilitadas. Mas também, os atrativos de Niterói, pra população de subúrbios do Rio num primeiro momento e depois da região metropolitana para outros municípios, muita gente da elite dos municípios metropolitanos da Baixada, resolvem morar em Niterói, que era melhor para eles do que no Rio. E eu fiquei muito espantada, eu iniciei uma pesquisa, que eu tive que parar por um momento de saúde, mas vou retomar, porque é uma pesquisa que eu tenho que liderar pessoalmente, que implica em riscos, isso e aquilo, eu quero estar ao lado dos meus estudantes. Sobre a população de rua de Niterói. E eu pensei que eu fosse encontrar, como sempre se pensou, essa população sendo principalmente entre São Gonçalo, Itaboraí, esses municípios limítrofes. Mas não, gente da Baixada, aqui em Icaraí e São Francisco, nesta amostra que nós temos, que não é uma grande amostra ainda, que nós vamos ampliar. Era mais de 60%. E já é muito revelador. E eu estive internada, muito tempo, durante três meses eu ia e voltava para o hospital quase toda semana, isso há três anos atrás, antes da época da pandemia, quando começou a pandemia, 2022, 2021. E eu perguntava… Eu fazia diálise, e eu perguntava para as enfermeiras: “Você é de onde?”. Elas vinham da Baixada. Elas diziam que preferiam vir para Niterói. Não, não, elas moravam lá na Baixada. Preferiam vir trabalhar em Niterói porque a firma podia mandá-las… quando era no Centro do Rio, tudo bem! Mas podia mandá-las para a Barra. Então, era melhor vir para Niterói, que tinha o trem, tinha condução direta, do que ir para a Barra, para ir para o Leblon, para ir para Ipanema. Eu achei isso impressionante. Mas era um dado assim, revelador. Entendeu.
P - Ismênia, a gente devagarinho vai ter que ir encerrando o depoimento, é uma pena, você tem muitas histórias para contar e tem uma memória fabulosa…
R - Tenho que contar só uma coisinha, um folclore da Ponte. Sem ser aquela história do ‘túnel do tempo’ e todas essas denominações que surgiram, parecidas. Tinha um folclore assim, que eu acho incrível. Eu fui muito amiga do Joel Teodósio lá da UFRJ, que fez o estudo… Que pega o pessoal da Engenharia, da Física, da COPPE. O Joel Teodósio era um professor titular da COPPE, muito meu amigo, na época do movimento docente a gente criou a _____ juntos, etc. Junto com o Luiz Pinguelli Rosa. Então, ele fazia uma verificação daqueles pilares, não sei o que.
P - Dos pilares da Ponte?
R - É! Ele me contava isso, que ele morava em Niterói, que ele se casou com uma aluna minha, quer dizer, ela não foi minha aluna, que ela era médica, mas ela fazia parte do movimento docente comigo, eu era presidente da Associação e ela tinha um cargo na Associação. Ele acabou se casando com essa moça e mudou para Niterói, Joel Teodósio. Então, ele tinha muita preocupação… E começou aquele negócio da Ponte balançar, então as histórias que surgiam. Primeiro que a Ponte ia cair, que seria mais. Segundo, que foi mal feita. “Esses ingleses vieram aqui para fazer tudo errado”, desconhecendo inclusive, que houve uma grande participação da engenharia brasileira, da própria COPPE, na construção, nesse processo, etc. Todo esse folclore. E depois… o tenebroso, que era o seguinte: que quando… quer dizer, se contavam que a construção criou aqueles grandes espaços onde tinham ser… depois a água foi sugada e ali aqueles grandes espaços, que seriam as colunas da Ponte eram concretadas, então que aquele balanço… Vira e mexe tinha uma notícia, mas que nunca era confirmada, era sempre uma coisa meio obscura, que havia acidentes na Ponte. Eu nunca pesquisei isso. Mas na verdade o folclore é por causa disso. Quando a Ponte começou a balançar… Porque disseram que um desses acidentes, seria que um grupo de funcionários, três, quatro, ou cinco, não me lembro, eles davam até um número. Quando foi a concretagem, caiu de um negócio que eles estavam pendurados e o concreto ficou em cima deles e foi impossível salvá-los, não tinha como salvá-los e que eles morreram, então que era a alma deles que balançava os pilares. Eu acho isso maravilhoso. E como isso se perpetuou. Também tem uma história desses pequenos pescadores de Jurujuba, que gostavam de passar nos pilares da Ponte, mas que tinha sempre uma assombração por lá. Muitas histórias assim desse tipo. Então, eu acho que a Ponte hoje faz parte da nossa paisagem, ela liga duas grandes cidades que estão na entrada da Baía de Guanabara. E eu tenho uma grande pesquisa sobre todos viajantes que vieram para cá no século XVIII e no século XIX. E todos falam, do lado Niteroiense, ou do lado do Rio, tem a mesma beleza, porque o que é bonito é a entrada da Baía, são essas praias interiores. E eu acho que o nosso bairrismo, afinal de contas é uma coisa que não é como Recife e Olinda, a gente parou nisso. Acho que parou nisso. A gente tem muita ligação, a gente acabou tendo uma grande Universidade, a gente tem muitos artistas globais que nasceram em Niterói. Niterói é um celeiro de artistas, é impressionante. Eu não vejo muita televisão, mas eu sei do Murilo Benício, porque ele era filho de uma colega do tal colégio Nossa Senhora das Mercês, minha e a tia dele da minha irmã. Então, tem muitos outros números. Então, eu acho que tudo isso apazigua um pouco essa rivalidade.
P - E a fusão dos Estados?
R - Eu acho que a fusão foi uma confusão. Na verdade, eu acho que a fusão foi muito mal planejada. Ela criou um grande descontentamento para a classe política do Rio de Janeiro, porque, por exemplo, aquilo que eu te falei, das lideranças políticas daqui, você mapeia os desembargadores daqui, todos eles são dos municípios daqueles governadores, impressionante. Você tem ________, da região de Itaperuna, de onde era o Roberto, você vai vê… Esse meu amigo que tá aqui em casa, que eu te falei, passando um tempo com a gente e a irmã dele foi minha grande amiga também, Alcione. Só ela tinha três primos desembargadores, três parentes, primo de primeiro grau, de segunda grau, desembargadores. Uma coisa impressionante, porque afinal de contas era uma eleição. Então isso tudo se perdeu, esse poder dentro da Magistratura, esse poder dentro da máquina do estado, porque a concentração populacional da cidade, era muito maior que a de Niterói. A demografia de Niterói, primeiro ela foi sugada nos anos 30 com a divisão para São Gonçalo, que hoje é o município mais populoso de Niterói, e depois com essa disputa desse poder político, ter que eleger pessoas disputando com os candidatos do Rio de Janeiro. Agora, o que eu acho mais grave, é que nunca houve um projeto para o novo estado do Rio. Eu acabei de criar um grupo chamado “Pesquisadores do Rio de Janeiro”, em que uni todos os programas de História das universidades federais do Rio de Janeiro, todas que você imaginar, todas: UERJ, UNIRIO, UFRJ, aquela da Baixada, todas, todas. E ainda chamei a Fiocruz e a Casa de Oswaldo Cruz, que também têm programas de História. Para a gente discutir por onde andam a História e os historiadores do Rio de Janeiro. Sabe, estudando Grécia, estudando Roma, estudando o Ibn Batuta do século XIII, estudando a contemporaneidade. Tudo eu acho importantíssimo, eu acho que a erudição é importante, eu acho isso, eu acho aquilo, mas a História não é mais erudição, a História tem que dar, nós somos profissionais, cientistas sociais, pagos pelo direito público. Tanto que eu só me alio à universidade pública. Eu participo, quando me convidam, por gentileza, de alguma coisa na rede privada, mas eu só me associo a rede pública, só. Então eu sou a Ismênia da UFF. Eu fui convidada para trabalhar em todos os lugares quando eu me aposentei, eu nunca aceitei nenhum. E fiquei na UFF sem ganhar nada a vida inteira. Verdade que eu tinha casado de novo com o meu marido que tinha uma situação muito boa, não precisava ganhar dinheiro, então pude me dar esse luxo. Trabalhar como trabalho até hoje, captando verbas, recursos para a universidade. E aí a minha preocupação, criando esse grupo de reflexão, onde a questão da Ponte realmente vai ter que ser pensada, vai ser um capítulo especial nas nossas investigações, porque na verdade o grande projeto para a região Fluminense não existe. Como é que você vai resolver, eu não digo que o estado do Rio de Janeiro seja o pior estado do Brasil, porque nós temos o Piauí e o Maranhão, mas sem dúvida é o mais decadente. E nós temos que pensar que nós não vamos resolver os problemas da cidade do Rio de Janeiro se nós não tivermos um projeto para a região metropolitana. Se nós não tivermos um projeto para o Rio de Janeiro como um todo, chamada região Fluminense. Por que? Porque a permanência do êxodo rural, continua provocando inchamento das populações desprovidas da Baixada, entendeu? Então, não a desindustrialização. Eu acho impactante a gente afirmar que hoje em Niterói nós temos uma renda per capita maior que da cidade do Rio de Janeiro. Então, eu acho que a Ponte foi muito importante, eu acho que hoje ela não basta, nós temos que pensar um plano hidroviário ligando diretamente a São Gonçalo, ligando diretamente, não sei à outras… Sei lá o que pode ser feito. Eu acho que tem muitos urbanistas pensando essa questão. Eu fiquei encantada com as teses e dissertações da Faculdade de Arquitetura de Niterói da UFF, que concorreram a um concurso que eu examinei. Como eles estão pensando questões práticas da cidade, oferecendo trabalho que possam construir políticas públicas. Eu acho que a universidade pública não é um lugar de ensinar apenas e dar diploma, ela é um equipamento social, o que ela ensina, o que ela produz, tem que dar um retorno a essa sociedade. E nós como professores, sobretudo de História, temos que dar, produzir teses, dissertações, pesquisas, não que vão resolver, nem que vão explicar totalmente, mas que vão lançar luz sobre a situação a que nós chegamos e que possam inspirar políticas públicas. Nesse concurso que nós participamos, ao lado de Mario Osorio e outros professores muito importantes do Rio de Janeiro, sediados no Instituto Pereira Passos, esse comitê é apoiado pela Faperj e pelo grupo de reitores das universidades federais do Rio de Janeiro. Então, nós na verdade premiamos uma tese sobre milícia. Tinha teses maravilhosas, porque na área de História, a maioria das teses maravilhosas, podiam ganhar prêmios internacionais, mas eram sobre a cidade do Rio de Janeiro, Corte ou Capital Federal, então não discutiam as questões regionais. E eu acho que a Ponte ligando essas duas metrópoles do Rio de Janeiro, principais que é Niterói e a cidade do Rio, quer dizer, ela tem que ser repensada também, o que que vai fazer? Vai fazer um trem por baixo que vai ligar? Eu não sei! Eu já vi uma porção de reportagens sobre possibilidades de facilitar aquele fluxo e também ter alternativas hidroviárias.
P - Bom Ismênia, então eu gostaria que você me fornecesse o nome do seu marido, quando é que você casou, por favor? Data do casamento, nome dos filhos e netos, por favor?
R - Eu sou Ismênia de Lima Martins, eu casei com o Aloysio Decnop Martins, que era um jovem médico, que nasceu em Cordeiro, no estado do Rio. O pai dele acabou se radicando aqui para que os filhos pudessem estudar, aqui já tinha universidade. E eu o conheci por um comentário da minha mãe, que eu era muito estudiosa, achava que namorado dava um trabalho, mas que eu tinha que casar rápido para sair do controle familiar, que era muito pesado, eu estudava no Rio, na PUC, eu queria esticar, nunca podia, era isso, aquilo. Então, eu ouvi minha mãe dizendo para o meu marido, “a nossa Fatinha”, que é minha irmã mais nova. “Ela é muito levada, Liminha, temos que casá-la com aquele rapaz tão bom que é o Aloysio, sobrinho do Nadir Coelho”, que era um professor da USP que trabalhava com o meu pai. E aí eu ouvi aquilo. “Ah, que bom! Se a mamãe gosta eu vou lá ver quem é”. Era um moço bonito e o meu pai adorava ele. E um dia nós estávamos na fazenda, chegou um telegrama dele dizendo que podia faltar no internato lá do hospital, porque tinha um congresso estudantil lá. Não, é um congresso da UNE. Aí eu fiquei feliz da vida. Depois eu fui saber que era o congresso da JUC. Mas eu fiquei toda animada. Então, nós começamos a namorar, porque eu comecei a visitar meu pai no hospital, depois convidei ele para uma festa. E aí quando eu saí do colégio interno já estava noiva, no final do ano eu casei e com 19 meses de casada, não tinha pílula naquela época, eu tive dois filhos. Eu me casei em dezembro, no dia 27 de 1960. Dia 27 de julho de 1963. Não, eu casei em 1961, desculpa! Dezembro de 1961. Em julho, dia 27, de 1963, nasceu o meu segundo filho. Então, eu tive que trancar meu curso de Sociologia e Política. Eu antes pensava História, mas naquela geração dos anos 60, aquele negócio de Ciências Sociais era uma coisa maravilhosa, muito nova, muito inquietante. E eu fiz Sociologia e Política na PUC.
P - Já casada?
R - Não! Eu fiz o vestibular e cursei o primeiro ano, solteira. Eu casei em 1961 e me formei em 1960 no clássico. E aí, eu tive dois filhos até 1963.
P - O nome deles e data de nascimento, por favor?
R - O Luiz Augusto nasceu em 13 de setembro de 1962 e o Lizardinho, que é o Lizardo, meu primeiro filho se chama Luís Augusto Paz de Lima Martins e o outro, Lizardo de Lima Martins, que era o nome do meu pai. Então, ele nasceu em 1963. O primeiro é advogado, trabalha e mora no Rio. O segundo é médico e mora aqui na região oceânica. Cada um deles me deu quatro netos de cinco mães diferentes no total. Então, eu sofri muito o ônus da família, fiz uma carreira muito sacrificada, eu tranquei matrícula no curso da PUC, fiz vestibular grávida do segundo filho, passei em primeiro lugar, tranquei a matrícula quando o segundo filho nasceu, porque o primeiro tava muito doente, e depois é que eu engrenei e fiz os 4 anos e depois eu emendei, sempre com minha mãe, minha avó, minha tia, dizendo: “Meu Deus, vai ficar uma mulher falada, minha filha estudar de noite”. Porque só tinha um curso de História da noite. “Tu já é uma mulher”. E depois quando eu me formei. “Tu já é uma mulher formada, agora quer ir para São Paulo?”. Porque eu queria fazer a pós-graduação na USP. E eu acabei enfrentando tudo isso, fui a primeira Doutora do curso de História. Enfim, e me tornei a ‘Ismênia da UFF’. Essa vida foi muito pesada para mim. Quando os meus filhos se formaram, eu era muito jovem ainda, eu tinha 40 e poucos anos, um já estava profissional, meu filho se formou com 22 anos em Direito e o outro, com 23 em Medicina. No ano seguinte, os dois estavam profissionalizados e aí me separei do meu marido, me divorciei, que era um marido apaixonadíssimo por mim, muito bom para mim. Mas eu tinha profundas divergências políticas com ele e ele costumava muito rotular os meus amigos. “Seu amigo comunista, seu amigo anarquista, seu amigo viado, sua amiga sapatão, seu amigo não sei o quê”. E eu me separei dele. Fui a mulher que abandonou o lar, foi um choque para a minha família. Mas a nova geração sempre recebeu isso muito bem, as minhas irmãs sempre me compreenderam, tomavam conta do meu marido. Ficou quatro anos me esperando. Eu fiquei quatro anos divorciada. Fiquei vinte e dois meses em Paris e depois eu voltei, reorganizei a minha vida profissional. Fui ser, mesmo divorciada, pró-reitora da UFF, me tornei presidente da Associação Nacional dos Historiadores, depois diretora do Arquivo. Enfim, membro de muitas comissões ministeriais, com aquele ministro maravilhoso, Hingel. Que a gente sofreu muito com aqueles ministros horrorosos que a gente teve. Quando chegou aquele ministro Hingel, que era um verdadeiro mestre em escola. Fui quando eu fui presidente de uma comissão que regulamentou a extensão no Brasil como atividade indissociável do ensino e pesquisa. Porque antigamente no Nordeste, na Bahia e etc., a extensão era onde a elite da universidade, aqueles concursos você sabe como era, aquele negócio das cartas, era mão de obra barata para o poder público político local e esses interesses que eles conciliavam assim. Então, aqui em Niterói mesmo, o prefeito ligava: “Estou precisando de uma turma de alunos de Medicina para vacinar no Morro do cais”. Isso não existe! Então, hoje reforçamos as carreiras de serviço social, já existia um curso antigo, mas ele se torna muito mais importante. A Medicina Social da UFF, enfim. E todos os programas passam a ter… nós da História nunca ficamos lá no Olimpo, no pesadelo, sempre fomos às escolas de base, sempre trabalhamos com os nossos colegas professores, etc. Rompi com isso tudo. Aí a minha família viu que eu não fiquei com uma mulher falada, pelo contrário, eu fiquei uma mulher falada, mas muito bem falada. A coisa que eu mais me orgulho é que eu fiz toda essa trajetória sem romper com a minha família de origem, sempre amei a minha família de origem, compreendendo a minha mãe, a minha tia, a minha avó. E eu tenho uma posição em relação ao movimento feminista, que as feministas não concordam muito, mas eu digo que o machismo não é um problema dos homens, é um problema social e que ele vai ser resolvido quando nós tivermos homens e mulheres juntos num projeto social, exercendo bem a questão, compreendendo bem a questão de gênero e tendo projetos conjuntos. É impressionante, não apenas na minha experiência, mas muitas mulheres que eu conheço, como as mulheres com o poder que elas tinham na economia doméstica e na educação dos filhos, elas repassavam esse machismo. Eu me orgulho muito de que meus filhos, por exemplo, e meus netos, são maridos que criam os filhos juntos com as mulheres, que dividem tarefas. Coisa que o meu marido nunca fez, que os maridos das minhas irmãs nunca fizeram. Então, eu tenho alegria de estar vivenciando isso até a terceira geração. Então, quero contar que eu sou bem casada com esse homem que ficou quatro anos me esperando, fez questão de casar, anular o divórcio. “Anular não, anular eu não anulo, que eu não anulo nada na minha vida. Mas ficar juntos”. Aí ficamos juntos. Aí um dia ele chegou, assim: “Ismênia, cadê o nosso retrato de casamento? As nossas netinhas já estão perguntando pra mim se a gente não é casado, que não tem retrato aqui”. Eu botei um retrato. “Vamos casar de novo, eles vão saber”. E aí, quando a gente fez trinta anos de casamento, do primeiro, eu fiz uma festa íntima, que tinha quase 100 pessoas. Casei com ele de novo, que ainda me deu um colar de brilhantes. Ele passou quatro anos aqui, minhas irmãs apresentando todas as amigas, desquitadas, divorciadas e ele esperando por mim. Então, o que eu amo nele… Bom, eu acho que ele melhorou muito, porque hoje ele convive muito bem com diferentes. O diferente é apenas o diferente para ele, não é mais como já foi. Mal ou bem, ele não fez psicanálise, que seria demais pra ele, mas ele fez terapia, etc. Então, isso de se ouvir e ouvir o outro, ele hoje é um homem que convive muito bem com a diferença, não é homofóbico, convive com todos os meus amigos que foram sequestradores, quer dizer, hoje não pode chamar de sequestradores, mas que participavam ativamente do movimento da luta contra a ditadura. Que eu mesma participei, fui presidente IEP do MDB, presidente do movimento da anistia em Niterói. No primeiro aniversário da anistia brasileira, que ia ser no Teatro Casa Grande, na hora a polícia impediu; foi feito no teatro aqui em Niterói, quando eu presidia a Fundação de Cultura, que era como se fosse a secretaria da época. Então, os meus netos…
P - Os nomes dos netos?
R - Vou falar. Eu tenho a minha primeira neta, se chama Julia. Hoje ela é Martins Lopes. A segunda é veterinária, tá fazendo doutorado na UFF, trabalhando num projeto da Embrapa, a pesquisa dela e em torno de um projeto da Embrapa, com um titular da universidade, e ela é docente da Veiga de Almeida. E depois quando ela terminar o doutorado, acho que ela vai tentar no primeiro concurso, vim para a UFF. Ela é coordenadora do curso de Veterinária. A segunda, a Beatriz, é médica, mãe solteira, muito bem aceita pela família, com seu filho, nossa e da mãe. A mãe dela também é mãe do meu filho, que casou depois só com um médico, que tem outra filha. Então eu tenho essa grande família que vai juntando tudo. Então, a Beatriz é a minha segunda neta, médica, que está fazendo R4 no INCA, com cirurgia de alta complexidade, aquelas coisas de robótica, etc. O terceiro, meu filho, é meu neto, mora comigo e com o avô, os pais são divorciados e ele formou-se em Direito, mas quando ele estava quase terminando Direito ele falou: “Vovó, eu nunca quero ser advogado. Eu tenho horror ao conflito”. Eu falei: “Não, mas tem umas coisas que não tem conflito, essa questão de direito tributário”. “Não, não, não, se tem direito tributário é porque alguém está brigando para não pagar um imposto, o outro quer cobrar. Eu não quero vovó, eu não confio, eu não quero!”. Então, eu falei: “Bom, você termina e depois você vai fazer uma especialização no que você quiser”. Então, ele está fazendo a especialização nessa área de administração rural e a parte agrária e está se desenvolvendo com apicultura, enfim.
P - O nome dele?
R - Lizardo Augusto de Lima Martins. Esses são os netos da primeira fornada. Aí tem a Maria Clara. Quer ver, são quatro netos, Júlia, veterinária, Bia, médica, Lizardinho, advogado, está se dedicando à área rural e a Maria Clara, que acabou de se formar e que quer ser oftalmologista, vai estudar para fazer residência. São os netos da primeira fornada, que ainda me pegaram como avó trabalhando demais. Mas os outros também pegam, que eu continuo trabalhando até hoje. Aí depois nasceu uma da segunda fornada, que está fazendo 18 anos essa semana. E depois nasceram mais dois, da última fornada, que o meu filho Guto se casou, ele foi pai solteiro duas vezes, se casou com uma moça que é advogada, historiadora, tem mestrado em Direito e doutorado em História, eu sempre brinco com ele, que casou com a mãe. Ele foi liderança universitária aqui na UFF, é um advogado brilhante, passou em primeiro lugar no unificado naquela época, ia fazer 17 anos, ele se formou com 23 anos, antes de fazer 23 anos. E é um advogado hoje muito bem sucedido e muito bom filho. Eu esqueci de falar do meu neto primeiro de todos, o mais velho, que é o Tomás. O Tomás é filho do meu filho médico, com a chefe da residência. E ele foi para os Estados Unidos e o meu filho não perfilhou, porque nessa época que ele nasceu, meu filho já tinha conhecido a mulher que seria a mulher dele, mãe dos três filhos que ele tem. E ele não perfilhou, acho que teve um problema qualquer e eu fui saber desse menino quando tinha 8 anos. Aí eu fui atrás dele, atrás da mãe dele. E ele era um menino superdotado, estava com problemas, ele teve que vir no Brasil para materializar o pai, ele fazia… Naquela época dos Estados Unidos, formar elites, então ele estava naquelas turmas especiais, tinha um acompanhamento psicológico muito grande, mandaram ele vir ao Brasil para materializar o pai, a figura do pai. Ele veio, o meu filho recebeu ele muito bem, mas não registro ele, não fez nada. Quando eu soube disso pela enfermeira dele, que era minha amiga, eu fui atrás da mãe da menina, que era daqui de Niterói, porque quando o menino tinha nove meses, ela foi aos Estados Unidos visitar a irmã radicada lá, que tinha outra irmã mais nova que estava fazendo prova de residência. Ela falou: “Por que você não faz?”. Aí a mais nova não passou, ela que passou. E ela ficou lá, ela era uma moça que ela já era divorciada, tinha duas filhas mais velhas e mais esse menino, lutou muito. E quando eu soube dessa história toda, eu fui conhecê-la, adorei. Quer dizer, eu conhecia ela de vista, mas pensei que tinha sido um namorinho sem nenhuma causa. E aí, nós assumimos esse filho, fiz DNA naquela época, tinha que pagar, na Universidade do Texas, paguei dois mil dólares, na Universidade do Texas para fazer o DNA, porque a minha nora, da época, exigiu. Não é mais a nora atual do meu filho, já está no terceiro, no segundo casamento também. E foi maravilhoso. Ele é um superdotado, meu filho hoje tem orgulho enorme dele. E eu construí uma irmandade, esses três irmãos e a prima da primeira geração, esses cinco são muito unidos. E o Tomás agora está um tempo aqui no Rio, porque ele quer criar, ele tá casado, não sei quantos anos, muitos anos, oito anos, ele ficou cinco anos sem ter filhos, se programou, ele ganhava uma fortuna, ele era.. com 24 anos ele se tornou Sênior em engenharia da Tesla. Ele estudou no MIT, que é o maior centro tecnológico do mundo, entrou lá com 16 anos, fez a graduação, sem eu gastar muito. Porque aí eu passei a pagar todos os custos dele. E aí ele fez a graduação, o mestrado no MIT. E foi trabalhar na Tesla e em dois anos ele se tomou sénior em engenharia, ficou quatro anos lá, ficou de saco cheio com o poder da Tesla, que ao invés de investir na pesquisa para baratear o carro, fica comprando redes e fazendo ônibus não sei das quantas, e a classe em média em geral, inclusive dos Estados Unidos não pode comprar um carro, entendeu? Por exemplo, eu perguntei: “A sua sogra tem um carro elétrico?”. “Tem, porque o meu sogro é CEO de alguma coisa assim, mas se fossem dois professores como ela, não poderiam ter um carro elétrico”. Então, ele comprou um apartamento lá na Oswaldo Cruz, onde Getúlio morou, reformou todo. Vai morar cinco anos no Brasil, porque quer que os filhos dele, na primeira infância, convivam com os avós, os bisavós e com essa irmandade, com esses priminhos, essa vida que ele não teve. Eu acho isso maravilhoso.
P - Qual o nome dos dois filhos mais novos do Guto que você não falou?
R - E aí, o Guto finalmente se casou com uma historiadora e tem dois filhos maravilhosos, que é a Marina Augusta de Lima Martins e o Aloysio Augusto de Lima Martins. A Marina Augusta vai ser arquiteta. Eles têm uma erudição, uma cultura impressionante, um vocabulário que eu fico perplexa. E o que eu mais me orgulho é que eles têm muito orgulho de mim, sabe. E aquele peso que eu tive, quer dizer, eu acho que eu fui uma mãe muito presente, apesar da vida doméstica ser um peso pra mim. Primeiro eu amo casa, eu amo cozinha, a minha casa nunca teve decorador, as casas que eu tenho da fazenda, apartamento, tudo. Eu amo casa, eu amo cozinha, eu amo meus filhos, mas vida, aquela primeira fase de profissional, eu chorava, eu ia num congresso, eu não podia ficar um dia, voltava, porque eu tinha culpa que o meu filho tinha asma, o outro tinha não sei o que. Hoje eu continuo tendo uma profissionalização muito intensa e como eu sou Emérita eu permaneço, eu sou convidada para ir para muitas universidades levando a minha projeção, conseguindo verbas, etc. Mas eu continuo na UFF. Eu sou a ‘Ismênia da UFF’; não tenho mais nem sobrenome no meio acadêmico. E eu oriento pesquisa, dou cursos. Esse ano eu não dei curso não, mas no outro semestre eu dei cursos, entendeu?
P - Qual é seu conselho para um historiador recém-formado?
R - Bom, primeiro eu acho o seguinte, tem que amar a História. Como diz Lucièn Febvre: “Amo a história. Se não a amasse, não seria historiador”. Eu quero dizer, que mesmo depois da regulamentação da profissão do Historiador, eu não me apresento nunca como historiador, eu me apresento como professora, professora de História. Porque eu acho que a coisa, eu não abro mão de ser uma educadora e não é educar só para ministrar conhecimentos. E educar para a cidadania. Esse país só vai melhorar quando nós tivermos uma educação comprometida com esses objetivos de formar cidadãos críticos e conscientes. Então, eu acho que a história participativa, a história comprometida com o presente. Eu acho que a gente tem que estudar História desde a Grécia, o que quiser estudar, acho que a erudição, a gente não pode abrir mão. Eu me considero uma pessoa erudita. Eu tenho uma biblioteca de treze mil volumes, que aliás eu não sei o que vou fazer dela, porque hoje você doa biblioteca para universidade, a biblioteca da Eulália que veio pra cá, se não fosse meu esforço enorme e das filhas dela, aquilo não teria nem desencaixotada. Então, eu não sei o que vou fazer, porque ninguém quer mais livro hoje, eu acho que eu vou dar para todos os alunos que quiserem, eu vou fazer um grande leilão de vontade, entendeu. Porque eu jamais teria coragem de comercializar meus livros para quem quer que seja.
P - Então, para finalizar. O que você achou de dar esse depoimento, de contribuir para o projeto de memória?
R - Eu fico aqui, eu sempre sou muito autocrítica. Fui falar isso, abri não fechei, mas essa coisa de você se revisitar é muito mobilizador também, do ponto de vista afetivo. Então, eu não consigo falar de mim com uma lógica formal, um cadeado, o tempo todo, porque as memórias me atropelam, entendeu. Então, eu estou, por exemplo, me lembrando agora, que todas as vezes que eu me referia a minha mãe, eu falava com sotaque português. Eu falava via minha mãe dizendo assim: “Ó filha minha, tu vais ficar uma mulher falada”. Mas eu não expliquei porquê, porque a minha mãe não era portuguesa. Por que ela tinha sotaque? Porque a minha avó detestava o Brasil, não queria ficar no Brasil, meu avô amava o Brasil, não queria ir embora. Minha avó nunca foi uma imigrante comum, ela nunca trabalhou em casa, sempre teve empregada, eles todos, porque o meu avô tinha esses cuidados com ela. É muito interessante, diziam que o pai dela era militar. Tinha aquelas fotos com fardas, aquela roupa bonita, fui descobrir que ele não era um militar, era um guarda da região. Mas a guarda lá era um status muito importante. A casa da minha avó tinha piano, era a segunda casa mais importante da aldeia. Então, eu esqueci de falar isso, que a minha mãe e a minha tia mais velha ficaram oito anos internas num colégio do Porto. Porque isso… Eu que não encontrei o meu avô lá na na tabela dos imigrantes do Arquivo Nacional, que eu coordenei esse projeto de organizar, limpar, digitalizar e disponibilizar isso tudo, foi um projeto financiado pelo BNDES. Eu encontrei o meu avô indo e voltando muitas vezes, porque a minha avó colocou as filhas lá e o meu avô era um homem dos negócios, do comércio, um português que teve a vida dura, mas apaixonado pelas filhas. E as duas eram mulheres, as primeiras, só o terceiro filho dele que vai ser o homem. Então, a minha avó internou as filhas num colégio no Porto, que era assim, onde as filhas das pessoas que iam para África, militares, deixavam as filhas nesse colégio no Porto. Então a minha mãe estudava no Porto e ficaram lá. A minha tia dos oito aos dezesseis e a minha mãe dos sete aos quinze. E nunca mais perderam este sotaque e falava assim: “Ó filha, por favor! Ó filha, não faça isso!”. Muito bem ao gosto português.
P - Tá bom, Ismênia! Mais uma vez super obrigada pela sua participação, te agradeço imensamente por esse compartilhar de histórias.
R - Eu quero pedir desculpas, de não ter atendido as expectativas, agradecer a Camila, acrescentar a esses moços maravilhosos. Ai meu Deus, eu esqueci. Vinicius e Rafael, que eles têm quase uma presença invisível, quer dizer, não perturbam, muito pior do que aqueles gravadores que a gente botava na frente, deste tamanho, que a gente tinha que ficar apertando e desligando. Tem horas que eu estava só pensando que só tinha a Paula aqui. Muito obrigada a vocês. E a Paula, meu prazer de reencontrá-la e reviver algumas dessas lembranças de Niterói e da UFF.
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