Projeto 30 Anos Alunorte
Entrevista de Joel Guimarães de Miranda
Entrevistado por Ligia Scalise
Barcarena, 12 de julho de 2025
Transcrito por Selma Paiva
(00:14) P1 - Você é o número 12 no dia 12 de julho, olha só! Joel, vou pedir pra você começar falando seu nome inteiro, sua data de nascimento, dia, mês e ano e a cidade em que você nasceu.
R1 - Meu nome é Joel Guimarães de Miranda. Eu nasci no dia 5 de março de 1968, numa cidade no sul de Minas, chamada Machado.
(00:38) P1 - Nasceu em Minas Gerais?
R1 - Minas Gerais.
(00:41) P1 - Sua família toda é de lá?
R1 - A minha mãe é mineira, lá do Vale do Aço e o meu pai é capixaba, lá de Cachoeiro de Itapemirim.
(00:49) P1 - Você sabe como é que eles se conheceram?
R1 - O meu pai tem esse DNA que eu herdei dele, de viajar, né? Então, ele saiu adolescente, lá do interior do Espírito Santo e foi trabalhar numa empresa que estava fazendo a construção de estradas lá na região de Minas Gerais, onde ele conheceu a minha mãe.
(01:12) P1 - O que ela fazia?
R1 - A minha mãe era empregada e trabalhava em um hotel, que atendia empregados da Vale do Rio Doce.
(01:21) P1 - Aí se apaixonaram. Tiveram quantos filhos?
R1 - É eu e mais um irmão.
(01:27) P1 - Só dois?
R1 - Só dois.
(01:29) P1 - Você é o mais velho, ou o mais novo?
R1 - Eu sou o irmão mais velho, né? O meu irmão mais novo é quatro anos mais novo. Ele reside em Portugal.
(01:39) P1 - Como é que ele chama?
R1 - Ele se chama Jair Guimarães Miranda.
(01:42) P1 - E você sabe do porquê sua mãe escolheu Joel como nome?
R1 - Foi meu pai. São jogadores de futebol, Joel e Jair.
(01:50) P1 - De que time?
R1 - Era Seleção Brasileira, na época. Em 1968 tinha um Joel e o Jair é o famoso Jairzinho, que todo mundo fala.
(02:00) P1 - Que legal! Quando você nasceu, Joel, como era a vida deles? Tinha uma casa? Como era essa casa? Eles tinham condições financeiras ou não?
R1 - Olha, você...
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Entrevista de Joel Guimarães de Miranda
Entrevistado por Ligia Scalise
Barcarena, 12 de julho de 2025
Transcrito por Selma Paiva
(00:14) P1 - Você é o número 12 no dia 12 de julho, olha só! Joel, vou pedir pra você começar falando seu nome inteiro, sua data de nascimento, dia, mês e ano e a cidade em que você nasceu.
R1 - Meu nome é Joel Guimarães de Miranda. Eu nasci no dia 5 de março de 1968, numa cidade no sul de Minas, chamada Machado.
(00:38) P1 - Nasceu em Minas Gerais?
R1 - Minas Gerais.
(00:41) P1 - Sua família toda é de lá?
R1 - A minha mãe é mineira, lá do Vale do Aço e o meu pai é capixaba, lá de Cachoeiro de Itapemirim.
(00:49) P1 - Você sabe como é que eles se conheceram?
R1 - O meu pai tem esse DNA que eu herdei dele, de viajar, né? Então, ele saiu adolescente, lá do interior do Espírito Santo e foi trabalhar numa empresa que estava fazendo a construção de estradas lá na região de Minas Gerais, onde ele conheceu a minha mãe.
(01:12) P1 - O que ela fazia?
R1 - A minha mãe era empregada e trabalhava em um hotel, que atendia empregados da Vale do Rio Doce.
(01:21) P1 - Aí se apaixonaram. Tiveram quantos filhos?
R1 - É eu e mais um irmão.
(01:27) P1 - Só dois?
R1 - Só dois.
(01:29) P1 - Você é o mais velho, ou o mais novo?
R1 - Eu sou o irmão mais velho, né? O meu irmão mais novo é quatro anos mais novo. Ele reside em Portugal.
(01:39) P1 - Como é que ele chama?
R1 - Ele se chama Jair Guimarães Miranda.
(01:42) P1 - E você sabe do porquê sua mãe escolheu Joel como nome?
R1 - Foi meu pai. São jogadores de futebol, Joel e Jair.
(01:50) P1 - De que time?
R1 - Era Seleção Brasileira, na época. Em 1968 tinha um Joel e o Jair é o famoso Jairzinho, que todo mundo fala.
(02:00) P1 - Que legal! Quando você nasceu, Joel, como era a vida deles? Tinha uma casa? Como era essa casa? Eles tinham condições financeiras ou não?
R1 - Olha, você conheceu minha mãe hoje, então deve ter uma noção de quantas vezes ela deve ter contado essas histórias. Então, eles se conheceram lá, numa cidade no interior de Minas, chamada Nova Era. Essa cidade tinha uma mina de minério de ferro, da Vale do Rio Doce. O meu pai, nessa época, estava trabalhando como mecânico de máquinas pesadas dessa mineração. Vale do Rio Doce ninguém saberia que um dia ele ia ficar tão grande, né? Aí, eles se casaram, um ano depois e o meu pai conseguiu um emprego na construção da Rodovia Fernão Dias, que liga Minas a São Paulo. E aí ele foi residir exatamente no trecho que estava construindo lá no sul de Minas. Então, meu pai morava em Varginha, Passo Fundo, né? E por isso eu nasci lá no sul de Minas. Depois de um ano, quando estava completando um ano, eu voltei a morar nessa cidadezinha lá no Vale do Aço, chamada Nova Era. Com dois anos eu passei a morar numa cidade vizinha, chamada Bela Vista, de onde ela só saiu agora, quando eu fui buscá-la, há três anos, para morar comigo.
(03:31) P1 - Foi parto natural o seu nascimento?
R1 - Não, eu nasci de cesárea.
(03:37) P1 - No hospital?
R1 - No hospital.
(03:39) P1 – Que não era muito comum, na época.
R1 – Não.
(03:42) P1 - Teve alguma complicação, será?
R1 – Que eu saiba não, essa parte ela não contou, não. (risos)
(03:48) P1 - E seu pai trabalhava numa empresa que, na época, era menor, mas já devia ter umas condições boas então, pro momento.
R1 - Não, meu pai era aquele ‘cara’ do trecho, o que a gente chama de... hoje, existem as pessoas que trabalham fazendo construção de estradas, existem aquelas que constroem barragens, né? Então, meu pai era o estradeiro, ele correu o sul de Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, construindo estradas. Onde tivesse uma máquina removendo o solo, ele estava lá, naquela época. Era mecânico dessas máquinas pesadas, vapor scraper.
(04:29) P1 - E aí, quando você nasceu, sua mãe voltou a trabalhar ou ela ficou cuidando de vocês?
R1 - A partir do momento que eu nasci, a minha mãe passou a tomar conta da casa e dos filhos.
(04:40) P1 – Você lembra como era sua casa da infância?
R1 - Lembro. Bom, a casa... eu conto muito para os meus filhos, né? Existe um choque de geração: a forma como eu fui criado e a forma como os meus filhos são criados. O papel do pai é esse: fazer com que a criação dos filhos seja melhor do que quando foi a vez dele. Eu tô cumprindo essa parte, com certeza. Talvez eu dê mais facilidade do que eu deveria dar. (risos) Esse é o choque de gerações, mas era uma casa muito simples, com dois quartos, sala, cozinha. Muito pequenininha, muito, muito, muito humilde, né? Aquelas portas e janelas de madeira, aquele telhado cheio de goteira, né? Mas a minha mãe sempre foi muito cuidadosa, muito esforçada, né? E com tempo ela foi melhorando, melhorando, melhorando essa casa. Hoje eu posso dizer que a gente morou em uma casa boa em função do grande esforço dela como dona de casa, que não se contentou somente com isso, ela passou a lavar roupa para pessoas, depois ela aprendeu a costurar, depois ela passou a ser costureira particular. Ela ia para casa das pessoas que tinham a máquina de costura e fazia a costura a self-service. Ela ia lá, a pessoa encomendava uma roupa para ela e ela fazia a roupa na casa da pessoa. E ela ganhava por dia. E aí, com esse dinheiro, ela conseguiu reformar essa casa, construir mais cômodos, aumentar o tamanho da casa, colocar um muro.
(06:40) P1 - Como que era a relação deles dois, como marido mulher? O que você lembra, enquanto criança? Era uma relação boa? Ele ficava muito tempo viajando?
R1 - Meu pai ia em casa, às vezes, de 15 em 15 dias, às vezes só no final de semana. Quando eu era mais novo, ela conta que ele ia em casa uma vez por mês, que era o período que ela ficava morando praticamente sozinha, mas a partir do momento que eu consigo me lembrar, ele passou a ir de semana em semana. Quando eu tinha mais ou menos uns dez anos de idade, o meu pai se afastou pelo INSS, devido ao problema de coluna. E aí ele passou a ser a pessoa que ficava em casa e ela a pessoa que ia para rua, pra casa das pessoas, para costurar. Então, houve uma troca de papéis: ele tomava conta da casa, ele fazia a comida, ele cuidava do quintal e ela, no sábado, no domingo, lavava roupa, né? Isso.
(07:57) P1 - Isso não era muito comum, na época. Como que você via?
R1 - Não era. E é mais interessante contar essa parte, sabendo que meu pai era machista. Aquela criação... na época dele, de juventude, ele chegou a servir o Exército. Então, ele contava essa passagem da vida dele com um orgulho muito grande. Ele era aquele ‘cara’ de escutar o Hino Nacional de pé, com a mão no peito. Ele tinha uma idolatria, um orgulho muito grande de ter sido militar e talvez sentir um pouco de frustração, por não ter conseguido ficar, mas na época ele foi dispensado por excesso de contingente. Hoje já é diferente, mas naquela época tinha tanta gente, que ele foi dispensado. No caso do meu pai, eu comecei a ver no meu pai essa pessoa que passou a cuidar da alimentação dos filhos, de ir em reunião de escola, mas que conservava esse lado de macho dominante. E aí, com tempo, a minha mãe, por estar trazendo o dinheiro para dentro de casa, por estar ajudando no sustento da família, na construção da casa, existiam certos atritos. Então, era algo, assim, quase que rotineiros os atritos, a diferença de opinião. Mas a gente chegou, a gente conseguiu levar em frente.
(09:39) P1 - E com vocês, como filhos?
R1 - Com a gente era aquela educação antiga, o modo antigo, se bastava um olhar. Se estava falando alto e a gente recebesse um olhar, a gente sabia que tinha que mudar, alguma coisa a gente estava fazendo de errado. A gente ficava com o ônus de entender o que a gente estava fazendo de errado. (risos) Nota baixa na escola, tinha os castigos. Hoje isso é impensável, mas naquela época era algo normal, você ser repreendido na frente de visita era algo... se fizesse alguma coisa errada, recebia repreensão na mesma hora, não ficava para depois.
(10:35) P1 - Tanto ele, quanto ela?
R1 - Principalmente ele. O jeito militar dele sempre foi muito forte. Aí o meu irmão, quatro anos mais novo, a gente via a diferença de tratamento. O meu irmão já repetiu de ano, já recebeu reclamação de comportamento na escola, coisas que nunca... era impensável acontecer na minha vez, né? Minha vez foi sempre certinho. Agora, se perguntar a mesma história pro meu irmão, ele tem uma outra versão, está certo? (risos)
(11:12) P1 – Me fala o nome dos seus pais e como eles eram fisicamente.
R1 - Meu pai era muito parecido com o Saulo. Ele era de cor clara, forte. Aquele jeito assim: ele tinha uma descendência italiana distante, criado na roça. Começou a trabalhar pro Camilo Cola lá - dono da Itapemirim - em Cachoeiro de Itapemirim, quando o ‘cara’ ainda tinha só um caminhão, né? Ele tinha, com muito orgulho, a foto dele em cima do primeiro caminhão do dono da empresa, da Viação Itapemirim, o ‘seu’ Moacir. Então, com 18 anos, ele foi servir o Exército e, a partir daí, nunca mais ele voltou pra casa, né? Acho que passados 27 anos a minha mãe conseguiu fazer contato com a família dele que, nessa época, a mãe dele, a minha avó já morava em Volta Redonda.
(12:15) P1 - Então, você não conheceu sua avó pequeno?
R1 - Não. Eu vi minha avó materna... paterna, uma vez só, né? Aí a gente foi lá em Volta Redonda, pra conhecer e depois nunca mais. A minha mãe já foi diferente, como a cidade era muito próxima da fazenda, da roça onde morava a família dela, então eu já fui mais criado com a família da minha mãe: meus tios, minhas tias, minha avó. Eu tenho lembranças da minha avó até o momento em que ela saiu da minha casa e chegou na casa dela e faleceu no dia. São lembranças que ainda tenho comigo, né? Sempre pessoas de roça, pessoas humildes. Humildes. Eu sou, da família, o primeiro a ter uma formação do curso técnico. E eu tenho... falo muito que, baseado em ter visto a luta da minha mãe pra pagar uma escola particular, ela costurando e eu estudando, tentando fazer valer a pena, né? Então, eu me formei técnico em metalurgia em 1986 e a partir daí várias outras pessoas da família começaram a ‘correr atrás’, a voltar a estudar.
(13:41) P1 - Qual que o nome da sua mãe?
R1 - A minha mãe se chama Dona Francisca. ‘Seu’ Moacir, Dona Francisca e meu irmão é o Jair.
(13:49) P1 - Joel, você me contou como eram seus pais e como você era, enquanto criança? Você era esse obediente, educado?
R1 - Hoje eu uso isso a meu favor, né? Quando ela me dá dor de cabeça aqui eu falo: “Epa, quando eu era criança eu não te dava dor de cabeça, a senhora não vai me dar dor de cabeça, eu não vou aceitar isso, não”. Eu cobro dela com muito, muito rigor. Talvez eu seja a única pessoa que a interpelou ao longo de toda a vida dela porque, a partir do momento que ela ganhou a independência econômica, ela passou a ter um poder dentro de casa, maior. E aí eu sempre fui a pessoa que foi o mediador dos conflitos, né? Sempre fui aquela pessoa que viajava pra poder apaziguar uma briga, quando a coisa estava ficando séria, que chama atenção, que diz não. Então aqui, com o cuidar da minha mãe, uma parte é poder de vez em quando dar uma ‘puxada na orelha’ dela e falar: “Não, quando eu era mais novo eu não dava dor de cabeça, eu sempre fui certinho, nunca repeti de ano. Tirei umas três ou quatro notas vermelhas. Três ou quatro notas vermelhas”. Mas não era CDF. Eu sei o quanto é difícil tirar nota dez. Então, eu nunca cobro das pessoas dez. Eu cobro de oito para cima. É uma coisa que eu trago comigo. Eu sei o quanto a pessoa tem que estudar. Hoje em dia, não se dá valor para quem tira dez e sim para quem sabe lidar com o dia a dia do trabalho, as rotinas do trabalho, o trabalho em equipe. Então, meu relacionamento em casa, na época de criança, já que eu estava vendo todo aquele sacrifício da minha mãe para poder pagar os meus estudos, me dar o material escolar, livro... hoje um caderno você compra com a maior facilidade. Naquela época não era tão fácil. Então, eu procurei dar valor, nunca repetindo de ano. Minha mãe nunca foi chamada na escola, pra poder ouvir reclamação a meu respeito.
(16:06) P1 - Você também tinha o lado criança, de brincar, de fazer travessura?
R1 - Tinha. (risos) Mas as minhas travessuras eram dentro de casa. Eu mesmo fabricava os meus brinquedos, né? Eu comprava aquelas bombinhas, estalinhos de São João, tirava a pólvora, pra ficar brincando com a pólvora em separado. Acho que era a maior travessura que eu fazia, né? A ponto de uma estourar e se incendiar na minha mão. Acho que foi, assim, a maior travessura que eu já devo ter feito, né? Sempre dentro de casa, né? A primeira noite que eu passei fora de casa foi a primeira noite minha lá no interior de São Paulo, procurando meu primeiro emprego. Até então eu nunca tinha saído de casa, nunca tinha ficado em baile, em festa na rua, na casa de alguém.
(17:10) P1 - Isso era uma regra dos seus pais?
R1 - Não é que era uma regra, era algo tão natural, que a gente não ousava fazer com que fosse diferente, né? Era natural.
(17:24) P1 - Você cuidava do seu irmão?
R1 - Cuidava. Eu cuidava da casa e cuidava do meu irmão. Ajudava a cuidar do meu irmão. Cuidar da casa é varrer, tirar poeira, passar cera, dar lustro. Quando a mãe ficava doente, lavar roupa, fazer comida.
(17:46) P1 - Isso desde pequenininho?
R1 - Desde pequeno. Desde os dez anos de idade eu sei fazer a comida. Eu peco um pouquinho para o excesso de sal, né? (risos) Mas eu sempre fiz essas coisas. Sempre arrumei casa.
(18:03) P1 - E você aprendia de ver ou alguém falava: “Vem cá, que eu vou te ensinar a fazer não sei o quê”?
R1 - Aprendia de ver. E também experimento. (risos) Gosto de testar. Eu gosto de cozinhar, mas agora eu tenho a Dona Rose, que cozinha e eu não ‘esquento’ muito a cabeça. Mas o fato da minha mãe estar ocupada, por exemplo: às vezes, no final de semana, ela tinha uma grande entrega de roupa para os bailes de sábado à noite naquela época, né? Então, eu a ajudava a pregar um botão numa roupa, a fazer bainha numa calça. Eu sei também costurar, só não sei sentar na máquina, como meu irmão e pegar a máquina pra costurar é uma vontade que eu tenho, a máquina está aí, guardada, né? Mas sei costurar, sei cozinhar, sei passar, sei lavar, sei arrumar casa.
(18:56) P1 - Aprendeu tudinho, né?
R1 - Sim.
(18:59) P1 - E uma parte divertida dessa infância, o que você lembra? Uma memória que você tem, alguma história que você viveu, algum momento que foi marcante pra você, da infância.
R1 - Não tem tanto assim, não. (risos)
(19:12) P1 - Não tem? Um domingo?
R1 - A diversão era quando a gente... dava um domingo e a gente juntava família e ia pra casa de uma tia, na cidade vizinha. E lá juntava com os outros primos, tudo da mesma idade, mais velhos, um pouco mais velhos até e aí aquela molecada toda brincando. Então, era assim: o dia, durante o domingo, aí lá pelas cinco, seis horas da tarde, voltar pra casa, pra viver a vida como ela era. Mas não era... não tinha aquelas viagens de verão, viagem pra praia, isso já é mais pra geração do meu irmão. A minha não foi tão cheia, assim, de coisas boas. A diversão a gente conseguia em simplesmente pegar o irmão e o pai todo dia, depois do almoço, ir pro quintal e aí disputar quem fazia a maior montanha de casca de laranja, quem conseguia chupar, mastigar a cana de açúcar, fazer a maior montanha. Era esse tipo de disputa que a gente tinha, era a diversão nossa, né? Ele ainda se lembra disso, de vez em quando a gente fala sobre isso. Hoje a gente não consegue nem mastigar mais, mas era essa a nossa diversão. Na cidade vizinha tinha um clube dos empregados da empresa vizinha, Belgo Mineira, que tinha animais silvestres presos. Naquela época não era algo errado. Então, a gente podia ver diversos tipos de macacos, primatas. Tinha uma lagoa com capivara, cisnes, patos, marrecos. Então, a gente ia ali para poder ver animais, brincava nos brinquedos. Aí, quando dava duas, três horas da tarde, voltava pra casa. Era a nossa maior diversão.
(21:18) P1 - Você sentia falta dessa mãe mais presente, talvez?
R1 - Minha geração... hoje eu posso dizer que sim, né? Mas a forma como a gente era criado não fazia a gente entender que isso estava fazendo falta, né? Hoje, quando a gente vê a diferença de uma mãe e um pai criando um filho, a gente entende por que eu sou sempre a pessoa mais dura, a pessoa que diz não, né? A gente consegue entender. Não sei se eu posso dizer pra você que eu senti falta da minha mãe, mas... (risos)
(22:02) P1 - Entendi. Era o que era, né?
R1 - Era o que era. Eu não tinha outra escolha. E eu falo isso abertamente, para todos: se não fosse ela ter abraçado a responsabilidade e entrado no mundo de cara, eu não estaria aqui hoje. Então, eu não me sinto no direito de reclamar disso. Hoje ela está aí, cheia de problemas de saúde, às vezes ela me dá uma dor de cabeça, me deixa chateado, mas eu tento entender, são as limitações que ela tem hoje. E aí eu falo: “Você não a conheceu, como eu conheci”.
(22:47) P1 - E como que eram as demonstrações de afeto, naquela época?
R1 - Hoje eu acho que eu já falei pra minha filha que eu a amo, né? Eu acho que eu nunca ouvi essa frase dos meus dois pais. Então, hoje as pessoas falam isso de uma forma mais natural, mas no meu tempo não existia essa troca de afeto, de carinho, né? O carinho era demonstrado e eu acho que até um bom tempo atrás eu demonstrava carinho da mesma forma como os meus pais demonstravam por mim: provendo condições de estudar, provendo roupa, provendo todas as necessidades. Com o tempo a gente vai vendo, nos dias atuais, que não é só isso. A gente também tem que chegar, tem que chamar, tem que abraçar, tem que dar um afeto mais formalizado: “Olha, eu estou fazendo carinho”. Quase isso, né? Mas no meu tempo era uma coisa mais rígida, mais dura.
(23:55) P1 - Às vezes é dando um presentinho, naquela época que você ganhava alguma coisinha.
R1 - Ah, você ganhava um carrinho de plástico, naquela época, era... eu acho que com 14 anos eu ficava feliz quando eu ganhava um carrinho, tamanha era a dificuldade que eles tinham, de poder dar um carrinho pra gente. A minha mochila da escola era um saco de açúcar de cinco quilos, com uma alça costurada, que eu levava o meu caderno pra escola. As folhas do caderno deste ano, que não eram usadas, a gente desmanchava aquele arame, o grampo, pegava as folhas não usadas e passava para o caderno do ano seguinte. Às vezes se costurava o outro caderno, porque as folhas não ‘casavam’ uma com a outra, então se costurava, se cortava, para poder ficar do mesmo tamanho. Era daquela época que ainda se encapavam os cadernos com jornal, com capa de revista e tudo mais. Hoje, até pouco tempo atrás, quando eu vejo uma pessoa arrancando uma folha do caderno, aquilo ali ainda mexe comigo. No meu tempo a gente não podia arrancar uma folha do caderno. Aquilo era um absurdo, né? Hoje a gente joga o caderno fora. A diferença, às vezes, faz haver os choques. Aquela cama que estava ali atrás, eu já entreguei para minha filha vai fazer um mês. Eu acho que a cada três ou quatro dias eu falo: “E aí, quando é que você vem buscar a cama?” Ela não vem buscar a cama. Eu, se eu tivesse uma cama... a parte principal da cama está guardada, né? Ali é só o estrado, que fica no fundo. Então, a forma como eu fui criado, as dificuldades econômicas, eu nunca passei fome, mas eu aprendi a comer a comida simples: a canjiquinha, sopa de banana verde, essas... hoje é cult, as culturas pancs, aquelas comidas no interior de Minas fizeram eu chegar aqui hoje. Eu não obrigo ninguém a comer. Eu faço, eles experimentam, eles têm o direito de falar se gostam ou não gostam e fica por isso mesmo. Mas no meu tempo eu era obrigado a comer, não tinha outra coisa pra comer.
(26:27) P1 - Não podia sobrar, né?
R1 - Não. Sobrar não sobrava, não. (risos) Nunca faltou, mas não sobrava também, não.
(26:35) P1 - Como que era? Você tinha uma cama pra você, seu irmão tinha uma cama pra ele, era um quarto dividido?
R1 - Era um quarto dividido. Nunca tive um quarto só meu. Meu irmão sim, né? Porque eu saí de casa (risos) e ele ficou sozinho, com a casa só pra ele, né? Era um quarto bem pequeno, duas camas e um guarda-roupa, era o que nós tínhamos. Eu chegava da escola tarde, eu saía para a escola às dez e meia da manhã, caminhava um bom pedaço, para poder pegar um ônibus mais barato, um bom pedaço mesmo. Aí estudava até às dez e quarenta da noite, aí pegava o último ônibus da cidade vizinha e chegava em casa quinze para meia-noite.
(27:27) P1 - Você saía dez da manhã e voltava à meia-noite?
R1 - Era.
(27:30) P1 - Nossa!
R1 - Porque eram formas da gente conseguir economizar na passagem do ônibus. Então, eu conto para os meus filhos, às vezes minha esposa faz salgadinhos aqui em casa e aí eu lembro de quando eu chegava, principalmente no último ano, eu fiz o curso do Senai e fiz o curso técnico, em paralelo. Então, eu estudava no Senai de meio-dia e meia, até às quatro e meia. Aí saía quatro e meia do Senai e subia, lá é subir, sempre subindo, pra chegar na escola técnica, né? E aí eu chegava na cantina da escola técnica, porque eu sabia que a dona estava fazendo salgadinho da hora da merenda da noite, né? Então, o resto do recheio (risos) era eu que raspava as panelas pra ela. Então, às vezes, aquilo ali ajudava a controlar a fome, né? Porque você ficar de dez e meia da manhã até meia-noite sem comer nada e não tinha dinheiro pra poder ir pra comprar um lanche, né? Então, eu fui ter o meu dinheiro quando eu comecei a fazer o meu estágio. Então, até, acho que antes de ontem eu estava me lembrando disso. A partir do momento que eu saí da escola e comecei a fazer o estágio, eu comecei a receber o que a gente chama de bolsa. Era meio salário-mínimo. A partir daí nunca mais eu precisei pegar dinheiro emprestado com a minha mãe ou com qualquer outra pessoa.
(29:05) P1 - E era emprestado, né?
R1 - É.
(29:07) P1 - Você tinha algum sonho de criança, menino, que você queria realizar?
R1 - Tinha. Eu queria ser piloto de avião da Força Aérea. Aí eu fiz o curso técnico...
(29:22) P1 – Pra piloto?
R1 - Não, técnico de metalurgia.
(29:25) P1 - Por quê?
R1 - Porque, às vezes, querer não é poder, né? Para poder entrar para a Força Aérea, ainda hoje é algo que tem que ter investimento e eu não tinha tempo para investir nisto. Então, que eu fiz? Trabalhando lá, no interior de São Paulo, na primeira empresa, primeiro emprego, eu fiz o cursinho preparatório, né? Aí, treinei academia, fiz dieta especial, para poder ganhar massa física, musculação. Eu conseguia fazer tudo isso ao mesmo tempo que trabalhava em regime de turno, para fazer o concurso para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, lá em Pirassununga. Quando chegou o dia de eu fazer o teste, primeiro tinha o teste de conhecimentos gerais, eu desisti. Quatro horas da manhã o relógio despertou, estava muito frio, eu não tinha atingido peso ainda, tinha que ter negócio de peso, eu não conseguia engordar, era diferente de hoje. Existia um peso mínimo para a pessoa, senão o paraquedas não abre, se o ‘cara’ for muito leve. Então, o que eu fiz? Eu mudei a estratégia. Em vez de ser piloto, eu queria entrar para o Exército. Aí eu descobri que, aqui, a quantidade de vagas para Agulhas Negras, em Belém era dois ou três candidatos por vaga, enquanto lá em São Paulo era 25, trinta pessoas para cada vaga. Aí, o que eu fiz? Bom, já que meus colegas estão vindo trabalhar na Albras, eu saí lá da CBA e vim trabalhar na Albras, com a intenção de prestar o concurso pelo Pará. (risos) Foi uma estratégia.
(31:19) P1 - Então, mas antes disso, deixa eu entender aqui como é que você chegou aqui, né? Olha a cabeça! Estava estudando e aí você achou que o técnico e metalúrgico era legal, por quê?
R1 - Era o curso que tinha. A minha cidade fica no que a gente chama de Vale do Aço. Naquela época, grande parte do aço do Brasil saía de lá. Lá ficava a Usiminas, a Belgo Mineira, as grandes indústrias brasileiras do aço. A extração de minério de ferro e produção do aço era lá, neste lugar. Depois apareceu lá Santos, Vitória no Espírito Santo. Então, existia uma vocação das escolas de lá, tanto as públicas, quanto as particulares, de formar profissionais em metalurgia, eletrotécnica, mecânica e mineração. Então, eu optei por fazer o curso de metalurgia. Mas o meu sonho era ser piloto de avião.
(32:24) P1 - E aí, enquanto você foi estudar esse curso técnico, você não, ainda, tinha trabalhado?
R1 - Não. Minha mãe trabalhava e ela me mantinha estudando. E em troca eu cuidava da casa pra ela, pra ela poder trabalhar.
(32:38) P1 – Tá. E aí, de lá você foi para São Paulo?
R1 - Isso.
(32:42) P1 - Por quê?
R1 - Aí o meu primeiro emprego, quando eu me formei, que eu mandei currículo... olha, já tinha currículo, surgiu lá no interior de São Paulo, numa empresa, a CBA, Companhia Brasileira do Alumínio, entendeu? Aí, uma coisa vai chamando a outra, né? Eu fui trabalhar nessa empresa, por quê? Porque outros colegas meus, da mesma escola, já tinham conseguido emprego lá e ela estava precisando de pessoas, né? E por que ela estava precisando de pessoas? Porque grande parte da mão de obra que ela tinha, especializada, tinha vindo para uma outra empresa no norte do Brasil, que estava entrando em operação e que estava tirando muitos profissionais de lá. Então, surgiu vaga lá, né?
(33:28) P1 – Como que era o nome da cidade?
R1 - A cidade é próxima de Sorocaba, chamada Alumínio.
(33:36) P1 - Alumínio é o nome da cidade?
R1 – É. Fica entre Mayrink e Sorocaba.
(33:41) P1 - E foi um choque pra você se mudar?
R1 - Foi. Foi a primeira noite fora de casa. Juntar dinheiro para poder comprar passagem de ônibus a partir de Belo Horizonte, ou seja, sair do interior de Minas, viajar duas horas e meia, chegar em Belo Horizonte, pegar o Cometa lá, de madrugada, eu acho que era por volta de dez e meia, onze horas da noite, para chegar lá em São Paulo sete horas da manhã, para depois ir para Sorocaba e depois chegar em Alumínio. Tinha toda uma estratégia essa viagem. E aí eu fui ‘tirando de letra’, porque a gente conseguia fazer essa viagem pelo menos uma vez por mês e aí a gente vai aprendendo os atalhos.
(34:25) P1 - E aí você foi morar com quem? Onde?
R1 - Lá a empresa fornecia o alojamento. A gente chamava que quem era técnico, a gente morava no hotel dos técnicos. Naquela época, eu falo que eu fui talvez a última geração dos técnicos, que foram valorizados como técnicos. Antigamente, quando a pessoa tinha formação técnica, ela tinha orgulho de falar. Hoje os técnicos não são tão bem tratados assim. Então, ela fornecia, além do alojamento, roupa de cama e de banho. E era a pé. Em dez minutos a gente estava dentro da empresa, para trabalhar.
(35:10) P1 - Você estava com orgulho?
R1 - Sim, muito.
(35:14) P1 - E seus pais?
R1 – Também: “Oh, meu filho trabalha em São Paulo”. (risos) Para todos os efeitos é São Paulo, né? Viajei de São Paulo para Minas praticamente uma vez por mês, né? Aí a gente não tinha nada para fazer com dinheiro, aí o dinheiro já estava sobrando. Aí já começamos a viajar a São Paulo-Belo Horizonte de avião. (risos)
(35:37) P1 - Você lembra o que você fez com o seu primeiro salário, seu primeiro dinheirinho?
R1 - Ah, sim. Eu comprei um aparelho de som, para escutar música. Naquela época era normal a gente dormir escutando música. De vez em quando eu vejo isso. Principalmente as músicas românticas. Comprei roupa, aparelho de som, aí depois eu comprei telefone para casa da minha mãe, depois eu comprei televisão para casa da minha mãe, comecei a ajudar a pagar a escola do meu irmão. Aí meu irmão precisava de um livro, já era eu que pagava. Meu irmão precisava fazer uma visita técnica numa empresa... na minha época, foram poucas as vezes que eu pude visitar empresas. Meu irmão praticamente visitou. Eu sempre pagava.
(36:29) P1 - E era um aparelho de som de quê? Disco, CD, fita?
R1 - Não, era só fita. Até é difícil de falar, né? (risos)
(36:40) P1 – Era fita cassete.
R1 – Fita cassete. Nossa, e de última geração. Ele podia tirar de uma fita e gravar na outra, do lado. (risos) Era um baita de um recurso, última geração de aparelho de som.
(36:54) P1 - O que você escutava?
R1 - Telefunken. Ah, eu gosto, até hoje, das músicas românticas internacionais.
(37:03) P1 - Me dá um exemplo de banda.
R1 - Todas da década de oitenta e noventa: Air Supply, A-Ha, Whitney Houston, Madonna, Cindy Lauper.
(37:18) P1 - Como é que você conheceu isso tudo? Tinha televisão na tua casa?
R1 - Em São Paulo. Tudo.
(37:24) P1 – Então, até você comprar televisão, não tinha televisão? Você não teve televisão?
R1 - Tinha televisão, só que era preto e branco. E só assistia novela da Globo e o jornal, (risos) mais nada. E o Chacrinha, né? Só. Na casa dos meus pais, ainda quando eu morava lá, a gente assistia aqueles seriados que passavam, né? Águia de Fogo, Zorro, mas era só isso. A música, mesmo... a casa dos meus pais, lá em Minas, fica numa certa região da montanha e aí, na parte mais baixa tinha um clube recreativo, tinha uma baita de uma maloca, era de palha, sapé. Aí, esse clube tinha... promovia muita festa de dia de sexta-feira pra sábado, sábado pra domingo. Então, eu passei a minha infância, né, adolescência toda escutando músicas internacionais, mas lá do clube, não lá da minha casa, né?
(38:30) P1 - Você ia ao clube?
R1 - Sem ir ao clube.
(38:33) P1 - Sem ir ao clube?
R1 - Sem ir. A gente não ia. Não era um lugar pra pessoas de bem. (risos) Só desocupados que iam pro clube.
(38:42) P1 - E como é que foi essa primeira noite fora? Você saiu, você foi para um lugar dançar, ouvir música?
R1 - A primeira noite fora foi dormindo mesmo, certinho. Aí eu cheguei na CBA, eu fui fazer entrevista em janeiro de 1986, janeiro de... não, 1987. Aí foi em janeiro, em fevereiro foi o carnaval. Então, a primeira noite minha numa festa foi nesse carnaval aí, de fevereiro. Eu tinha uma camisa que a minha mãe tinha feito pra mim, era cheia de flor, cheia de flor, tipo aquelas camisas havaianas. Então, o que eu fiz? Opa, vou vestir essa camisa. Agora ela tem utilidade, né? Então, eu vesti aquela camisa e foi o meu primeiro carnaval.
(39:38) P1 - O que você lembra desse dia?
R1 - Nossa! Quando eu era criança, meu pai comprava uma garrafa de cerveja, aí ele colocava dois, três dedos de cerveja no copo e eu tomava. Nossa, mas aquilo era muito gostoso. (risos) Aí, nesse primeiro carnaval eu pude tomar a cerveja sem ninguém me policiando. Foi muito diferente. Pular, dançar até quatro, cinco horas da manhã. Era próximo do lugar onde eu morava a Associação Recreativa Alumínio, né? Do lado do prédio que eu morava. Foi uma noite de... foi divertido, muita alegria. Mas eu sempre fui de festejar, assim, com bastante critério, né? Em toda a minha vida, eu fiquei bêbado duas vezes. Uma foi em um Natal. Nesse Natal ‘bateu’ aquela solidão, né? Você abrir a porta, a janela... eu cheguei do trabalho dez horas da noite. Então, eu abri a janela e todo mundo com a sua família nas casas, festejando e a gente sozinho. Mas ‘bateu’ uma amargura, uma saudade, que não era muito normal eu sentir saudade também, né? Eu ainda, acho que até hoje eu tenho um pouco desse espírito de aventura, de não sentir muita saudade. Eu só fui começar a sentir saudade bem tempo depois que eu já tinha saído de casa. Então, naquele dia ‘bateu’ uma amargura tão grande e aí um colega me convidou, eu fui pra uma lanchonete e lá a gente ganhou uma garrafa de champanhe, aí eu tomei uma garrafa de champanhe e nunca mais eu consegui colocar um dedo de champanhe na boca, porque eu me lembro daquele episódio.
(41:46) P1 - Isso foi quando?
R1 - Isso deve ter sido em 1987.
(41:50) P1 - Então, foi próximo.
R1 – É. Aí depois, lá, Mayrink é a cidade, capital brasileira do pêssego. Aí lá tinha uma festa do pêssego, assim como Jundiaí tem a festa da uva. Então, lá tem a festa do pêssego, ainda tem. Aqui tem a festa do abacaxi. Quando a gente vai nessas festas, a única coisa que a gente não vê é o pêssego e o abacaxi. Lá a gente ainda via alguma coisa, por causa dos japoneses, né? Lá é muito forte a cultura japonesa, na região. E aí eu tomei cerveja, tomei muita cerveja. Mas fui muita e aí fiquei bêbado. Eu lembro ainda de eu pegando a cerveja e virando uma garrafa de cerveja num copo e todo mundo vibrando de alegria: “Olha o que Joel está fazendo!” E aí, pronto. Naquele dia eu falei... eu passei tão mal, que eu jurei pra mim mesmo que eu nunca mais ia beber daquele jeito. Hoje eu saio com os meus colegas aqui, né? As pessoas: “Olha o Joel bebendo!” O Joel bebe. Ele bebe duas cervejas, entendeu? E chegou, as pessoas já sabem da feita que ele parou, parou, ninguém vai ficar chateado, ninguém fica magoado, que eles já ficaram felizes de eu ter tomado pelo menos um copo com eles, né? Então, foi assim, a minha chegada em São Paulo foi assim.
(43:18) P1 - Você ficou quanto tempo em São Paulo?
R1 - Eu fiquei de janeiro de 1987 a abril de 1990.
(43:24) P1 - Ah, três anos aí. E aí você ia pra capital?
R1 – Ia muito. A cada seis dias eu ia para São Paulo, capital, ia para Sorocaba, Itu, Campinas, Itanhaém, para o Rio de Janeiro.
(43:43) P1 - A trabalho ou a passeio?
R1 - Passeio.
(43:45) P1 - Ia conhecer?
R1 - Era. Às vezes a gente saía, eu tinha um grupo e, se esse grupo não queria, eu ia sozinho também. A gente chegava, pegava... você é de São Paulo? Então, eu saía, descia na estação Tietê, na Rodoviária Tietê, pegava o metrô na estação Tietê, ia pra Praça da República e aí lá, às vezes a gente tirava norte-sul, leste-oeste: “Ah, vamos pro norte”. Aí ia pro norte, até o final da linha. Chegava lá, nem saía, ia até no sul. (risos) “Já está na hora do almoço?” “Tá. Onde é você quer almoçar hoje?” Aí descia em algum lugar lá. Então, aqueles shoppings: Morumbi, Iguatemi, Shopping Center Norte, tudo a gente fazia compra, quando eles estavam... assistia lançamento de filme. No dia que ele estava sendo lançado, a gente estava lá, assistindo. Aproveitou bastante.
(44:43) P1 - Você foi com coragem mesmo, né? Porque o menino que saiu do interior, pra andar numa cidade grande dessa?
R1 – Positivo. Eu falo: meu filho fez uma viagem e eu ficava daqui: “Está faltando dinheiro? Precisa de quê?” Ele foi e voltou com o dinheiro dele e eu ficava preocupado em ele estar economizando e deixando de aproveitar, porque eu acho que, se a pessoa teve a condição de chegar ali, ele tem que aproveitar o máximo. Então, eu aproveitava. E hoje, se eu pudesse... acho que depois de uns vinte anos em São Paulo, eu fui numa loja que vendia roupa, no Shopping Center Norte. Aí eu cheguei lá... Wrangler, uma calça jeans naquela época, da Wrangler, conheceu? (risos) Aí eu cheguei pra menina: “Dá pra você olhar se eu ainda tenho ficha?” Aí eram uns cartõezinhos assim. Aí ela foi lá, olha, eu ainda tinha crédito lá, depois de uns vinte anos que eu tinha saído de lá. Então, eu comprava naquelas lojas assim, era YKK, US Top, Levi’s, Wrangler.
(46:01) P1 - O que mais te fascinava nessa época que você estava descobrindo a cidade desse jeito?
R1 - Comprar presente e levar pras pessoas. Pequenas lembranças. A minha mãe adorava eu chegar em Minas levando presente pra ela.
(46:17) P1 - Você dava o quê?
R1 - Ah, dava perfume, né? Roupa, roupa de frio. Quando eu percebia que estava faltando alguma coisa, eu arranjava um jeito de comprar. Ainda faço isso. (risos)
(46:34) P1 - Querido. E aí, essa época você começou a muitos amigos, namoradas?
R1 - Não, pouca. Namorada mesmo só fui arrumar quando eu vim pra cá.
(46:44) P1 - Lá não?
R1 - Lá não. Aqui arrumei namorada, duas namoradas. A segunda eu casei e tive meus dois primeiros filhos e pronto, voltei a ser certinho.
(46:58) P1 – Então, quando é que você saiu de lá?
R1 - Eu saí de lá pra vir pra cá, em abril de 1990.
(47:05) P1 - Por quê?
R1 - Primeiro por causa da quantidade de colegas que faziam essas aventuras para São Paulo e Itanhaém, que tinham vindo para cá, para trabalhar na Albras. Segundo, por causa da história lá do curso militar, a quantidade de vagas aqui, meu olho brilhou na hora que eu vi a quantidade de candidatos por vaga. Ainda hoje é assim: a quantidade de pessoas daqui que querem servir é menor do que a gente tem para lá. Então, quando eu vim de lá pra cá, foi como se eu estivesse apenas trocando de lugar, porque as pessoas que me deixaram lá, eu vim pra cá e acabei reencontrando-os, moram tudo aqui por perto. Tem ali na próxima quadra, tem gente ali na frente. Então, a gente praticamente continuou o mesmo grupo de amizade de lá, continuou aqui. Só que, com um ano aqui, eu já estava me casando, entendeu? Então, a minha vida não foi tão em função das amizades depois, já passei a viver em função da família.
(48:17) P1 - Mas você chegou aqui e foi para o Exército? Não?
R1 – (risos) A morena não deixou mais, né? Veio a filha, com um ano e meio que eu estava aqui, já veio a primeira filha. Aí, pronto, desisti de tudo e fui ser metalúrgico.
(48:34) P1 - E o sonho de ser piloto e depois de ser do Exército...
R1 – Não. Agora eu realizo meu sonho através dos outros. Eu vejo um primo de segundo grau entrando para a Pirassununga há duas semanas. Teve um outro que entrou na Marinha há 15 dias. Aí eu fico feliz por eles. A minha tia mandou foto pra mim, agora cedo, dele com aquele uniforme de gala. Era o meu sonho. Um dos colegas meus lá do Rio, ele é hoje do Exército. Ele saiu da carreira metalúrgica, voltou pro militar. Ele é militar do Exército. Então, é aquele ‘cara’ que é bolsonarista doente, né? Aí a gente fica, de vez em quando, trocando algumas mensagens, ele largou, eu continuei na metalurgia. Ele largou tudo e voltou para ser militar. Ele agora fica lá em Belo Horizonte, é sediado em Belo Horizonte. Mas ele passou em Recife, Florianópolis, o próprio Rio de Janeiro, entendeu? A imensa maioria dos amigos que eu tinha em São Paulo acabaram vindo pra cá, trabalhar na Albras.
(49:46) P1 - Era uma época que a Albras estava chamando a ‘galera’?
R1 - A Albras ficou, de 1985 a 1990, praticamente o tempo todo trazendo pessoas. Aí, quando chegou 1991 foi a última vez que a Albras trouxe uma grande quantidade de pessoas, mas ela ia pra lá pra buscar de 15 a trinta pessoas de cada vez, entendeu?
(50:09) P1 - Você veio direto para a Albras?
R1 - Eu vim direto para a Albras.
(50:11) P1 - E o que era a promessa para você, de ir para a Albras? O que parecia que ia ser aquilo?
R1 - Bom, quando eu falo que foi aventura... eu consigo explicar da seguinte forma: naquela época, lá em São Paulo, eu recebia o equivalente a 11 salários-mínimos e eu vim pra cá pra receber a mesma coisa, 11 salários-mínimos. Não foi por causa de salário, foi a aventura do moleque de 21 anos, que estava vendo ali a possibilidade de conhecer coisas novas, a coisa dos amigos, do ‘Maria vai com as outras’, já que os amigos foram, eu também vim atrás. Aí eu cheguei aqui, davam salário e instalação. Só o fato de eu vir para cá eu ganhava um salário, para poder chegar. Ganhava ajuda-alimentação para o café da manhã, para o almoço e para a janta. Então, no final da história, os benefícios eram maiores: plano de saúde, depois escola para os filhos faz a diferença no final das contas, mas naquela época eu era um solteirão, né? Então, o salário era a mesma coisa, mas eu ganhei ajuda-instalação, ajuda-mudança. Foi trocar um emprego, para acompanhar os amigos no norte do Brasil. Não fazia muita diferença, não sabia o peso dessa decisão, né?
(51:46) P1 - Joel, não era uma coisa muito distante ir para o Pará? Você desceu em Belém, de avião?
R1 - Eu peguei aquele voo, lá em São Paulo, nove e pouco da manhã, a gente desceu em Brasília. Então, a gente olhava dentro, a mesma pessoa que estava de Viracopos, desceu em Brasília, aí ficou lá no aeroporto, aí a gente já começou a se aproximar um do outro: “Vem cá, pra onde você está indo?” “Ah, eu estou indo pra Belém” “Ah, eu também estou”. Aí depois a gente entrou no mesmo voo pra Belém. Aí, entendeu? A gente já foi começando a fazer... porque eram 19 pessoas e naquela época todos os voos tinham que fazer conexão em Brasília. Então, ali em Brasília, aquele monte de gente com um monte de bagagem, bolsa, né? A gente carregava as bolsas com a gente, não despachava tanto assim, né? Então, a gente começou a fazer amizade mesmo lá no aeroporto de Brasília. Então, quando a gente chegou em Belém, já era quatro e pouco da tarde. E aí a gente... aquele calor quando a gente chega em Belém, parece que o vapor está subindo pela perna da calça, né? Aquela coisa... o corpo fica pegajoso. Aí a gente foi para o hotel e aí saiu um grupo, uns cinco, seis e fomos andar em Belém. A gente ficou andando ali na Praça da Basílica de Nazaré, a gente deve ter dado umas cinquenta voltas naquela praça ali. Então, no primeiro dia, a gente já fez essa amizade com um grupo.
(53:28) P1 - E já parecia tudo muito diferente ou não?
R1 - Era muito diferente. Para vocês que chegam hoje, já é diferente. Imagina naquela época! Então, aquela, assim, você via... na Braz de Aguiar, conhece a Braz de Aguiar? O hotel ficava lá. A Braz de Aguiar, atrás do hotel tinha casa de madeira, com aquelas valas, né? Atrás do hotel. Então, era pra gente, uma mudança assim, de sair de São Paulo pra Belém, foi algo assim, né? Já os colegas daqui passavam informação: “Não, Belém é uma coisa, agora aqui na Vila não, é tudo asfaltado, tudo tranquilo, pode vir pra cá que aqui é tranquilo”, mas eu comprei cobertor, comprei roupa de frio pra vir pra cá, porque eu nem imaginava que aqui eu nunca ia usar tudo isso. Quando foi no outro dia, segunda-feira de manhã, a gente tinha que pegar o barco pra cá, que saía seis horas lá de Belém, aí chega aquele bando de homem carregando aquele monte de mala, mochila, aí pronto, as pessoas acabam se identificando: “Opa”. E aí os próprios empregados da Albras: “Olha, está chegando uma nova leva, nova leva - eles chamavam a gente de estrangeiros - mais uma leva de estrangeiro” e aí eles vinham, se apresentavam, porque um dia eles também tinham sido. Então, aquele comitê de boas-vindas. O pessoal do RH, que foi lá em São Paulo recrutar a gente, encontrando a gente, às seis horas da manhã, no barco: “Oh, seja bem-vindo! Você é o Joel!” Então, a gente já foi recebido em Belém seis horas da manhã. Aí o barco desceu no São Francisco. Aí a gente pegou um ônibus, um ônibus da Rodomar. Então, o primeiro degrau dele, o fecho de mola dele era adequado para o tipo de asfalto que tinha aqui, que era lama, lama, lama, lama. Então, o primeiro degrau dele era quase dessa altura, assim. Então, a gente se ajudou a colocar as bagagens para cima, então foi um ônibus só para a gente, bagagem e tudo mais. E aí ela veio apresentando, de lá do porto, até aqui na entrada da vila era tudo floresta.
(55:53) P1 - Só mato?
R1 - Só mato. Algumas casinhas. Tem uma serralheria lá no laranjal, bem na esquina da rua principal, era a única construção que eu lembro daquela época e o trapiche lá, onde a gente descia e aí a gente veio naquele ônibus e o ônibus passou direto na estrada, lá na PA, né? Então, olha, o núcleo urbano é aqui, ó, vocês vindo aqui vocês vão chegar no núcleo. Então, a gente não conheceu o núcleo no primeiro dia, foi direto para a Albras. E aí, lá na Albras, aquela pessoa que eu tinha visto lá em São Paulo, em Brasília, a gente já estava... aí pronto, formou um grupo, eram 19.
(56:39) P1 - Tudo homem.
R1 – Tudo homem.
(56:40) P1 - Não tinha mulher, nessa época?
R1 – Mulher, no nosso meio, só veio surgir agora, uns dez anos atrás. Sempre foi homem, homem, homem.
(56:50) P1 - E tinha gente local também, moradores locais, ou era sempre gente de fora?
R1 - Os locais daqui não tinham experiência para a área da Albras. Na época da Alunorte já teve uma quantidade maior de pessoas locais. Se aproveitou mão de obra que veio da fábrica de celulose, lá do Jari. Então, são processos químicos, então as pessoas têm uma certa malícia, experiência com o processo industrial, planta química, então dá para fazer uma correlação. Agora, no caso da Albras, não. A única experiência de pessoas era exatamente a Alumar, no Maranhão; a Alcan, lá em Ouro Preto; e a CBA, lá em São Paulo. Então, muita gente que veio para trabalhar na Albras saiu da CBA. Muitos colegas, 90% do quadro da Albras era formado por pessoas que saíram da CBA.
(57:48) P1 - Como é que você se sentiu enfrentando tudo isso, encarando esse cenário novo, trabalho novo, essa cidade nova?
R1 - Eu sempre encarei no espírito de aventura. Sempre adorei viajar. Sempre fiquei empolgado em entrar dentro do avião. Já que eu não fui piloto, eu adorava viajar de avião. Tanto que, quando eu fui chamado para ser promovido, uma das queixas minhas: “Mas então quer dizer que eu não vou viajar?” (risos) “Por que você fala isso?” “Porque eu queria ser o melhor operador de sala de controle, para poder viajar”. Por que tinha isso na cabeça? Porque quando eu estava ali, partindo a Alunorte, isso já em 1990... em 1995, a gente tinha um grupo de pessoas, era muita gente, de muitas outras empresas de alumina, do mundo afora: Escócia, França, Jamaica, Suriname, Venezuela, Estados Unidos, Texas, Canadá, Índia, Japão, tudo ajudando na partida da Alunorte, em 1995. Então, na minha cabeça, se eu ficasse muito bom, seria a minha vez de um dia ir ajudar a partir outras plantas no mundo. Isso quase se realizou. Então, pra mim, sempre foi aventura. Viajar sempre foi aventura. Então, eu gostei, gosto muito de pegar grupos de empregados da Alunorte e viajar, ir com eles lá na CBA, ir com um grupo aqui na Alumar, ir em outras empresas, visitar outras empresas, trabalhar fora. Eu trabalhei em projetos pra Alunorte lá em Belo Horizonte, no Rio de Janeiro.
(59:48) P1 – Aí junta as duas coisas, né?
R1 – É.
(59:51) P1 - Mas nesses primeiros anos que ainda era Albras, o que te marcou mais? Quais eram os desafios? Como eram as condições? Como é que você, então, desistiu de ir para a carreira militar?
R1 - Foi tudo muito natural. Eu cheguei aqui em abril de 1990, eu me casei em dezembro de 1990 na igreja, véu e grinalda, minha primeira esposa.
(01:00:23) P1 - Muito rápido. Ela era daqui, de Barcarena?
R1 - Era daqui, ela trabalhava comigo, na Albras.
(01:00:28) P1 - Ah, ela trabalhava lá.
R1 - Trabalhava. Uma das poucas mulheres que trabalhavam na área operacional da Albras, técnica em metalurgia também, especializada em refratário. Então, trabalhava. A gente trabalhava na Albras.
(01:00:46) P1 - Mas é de Barcarena?
R1 - Ela era daqui, de Belém. E aí, o fato dela trabalhar na Albras não foi por muito tempo, porque tão logo a gente se casou, veio uma mudança de estrutura na Albras. E aí ela foi demitida na Albras, porque... problemas de política. Ela tinha brigado exatamente com um ‘cara’ que passou a ser o chefe dela. Então, eu passei a ser a pessoa a sustentar uma família. Eu não podia me dar ao luxo de largar o emprego, de ir embora. Aquele sonho de ser militar foi deixado, simplesmente foi deixado de lado. Eu assumi o lado família, criar, estruturar uma casa, comprar tudo que era necessário para uma casa. Aí veio a filha, a filha nasceu em junho de 1991. Então, foi tudo muito rápido. As paraenses são... (risos)
(01:01:59) P1 - Danadas!
R1 - Açaí é foda, né?
R1 - Danada!
R1 – Então, foi muito rápido, esse primeiro ano foi muito rápido. Aí, quando foi já em... próximo filho foi quatro anos depois, foi lá em 1995, né? Então, eu falo que para cada empresa que eu trabalho eu faço um filho, né? Então, a mudança maior naquele momento foi exatamente uma vez por ano pegar, encarar toda uma logística, para fazer uma viagem até Minas, para poder ver os pais, né? Aí chegar lá, ser tratado como uma pessoa que está vindo de outro mundo, né? “Ah, como é que viajar de avião?” Outra coisa: contar história para as pessoas, como era uma viagem de avião, como é que se faz para comprar uma passagem. Tudo isso era novidade para as pessoas. Hoje, não. As pessoas da própria família já começaram, a gente os vê viajando hoje em dia de avião, indo para Fortaleza. Naquela época, não, eu fui o primeiro a fazer isso. A minha ex-esposa trabalhava na Albras, a gente trabalhava praticamente no mesmo horário, administrativo. Só que quando passou o momento de experiência, eu passei a trabalhar de turno e ela continuava. Então, eu tinha uma casa, às vezes eu estava sozinho em casa, porque ela estava trabalhando, às vezes ela estava em casa e eu estava trabalhando.
(01:03:27) P1 - E os filhos?
R1 - Os filhos... quando a minha primeira filha nasceu, ela já não estava mais trabalhando. Então, foi sempre mais tranquilo. E aqui, em Vila dos Cabanos.
(01:03:41) P1 - E como que era essa vila, essa Barcarena dessa época?
R1 - A Vila dos Cabanos era basicamente empregados da Albras. Então, todo mundo se conhecia. Tinha umas certas segregações aqui: tinha as casas dos gerentes de patente maior aqui pra trás; tinha dos técnicos; tinha dos engenheiros; tinha do pessoal de operação. Então, tinha o Cabana Clube, que é um clube para todos os empregados, mas tinha um clube, que é o famoso Clube 1, que era mais reservado, não era qualquer um que podia ir lá. Então, na praia, a gente, pra ir na praia, não era tão fácil o transporte público aqui. Até hoje não é bom, mas naquela época era pior. Supermercado, tinha dois. Tinha uma cooperativa, onde hoje é o Mateus e tinha um supermercado, que hoje está fechado, que ficava lá no final. Então, eles... eu estava mostrando pra minha esposa a Americanas. Americanas, a gente sabe que está passando por um problema difícil, de dificuldade financeira, então ela coloca o mesmo produto na prateleira de ponta a ponta, assim, para ocupar espaço. Então, essa cooperativa era assim: aquelas latas de soja Soya, de ponta a ponta, assim, um corredor de dez metros, só com uma lata de óleo de soja, para ocupar as prateleiras. Uma verdura, uma fruta era uma coisa muito... esse foi, talvez, o maior choque que eu tive. São Paulo a gente tem lá aquela fartura das frutas, das verduras, nas feiras. Aqui o que era bom era aquele final de feira lá de São Paulo, aqueles tomates machucados, aquela alface murcha, pendoado, que nem se vende pra lá, né? Então, pra mim isso foi um choque muito grande aqui, entendeu? Aí, com o tempo a gente vai se acostumando. Eu não sou daquelas pessoas que fica o tempo todo reclamando, eu me adaptei. Ah, eu vou lá para Minas, aí eu compro aquele pé de alface assim, de quase um quilo: “Isso aqui é um pé de alface”, mas se estou aqui eu compro lá os três raminhos de alface e dá para comer do mesmo jeito. As ruas eram pintadas de asfalto, né? Então, quando eu cheguei aqui, ainda estava se asfaltando. Então, a Rua da Lama, tem uma avenida principal aqui, que tem muito comércio, ela se chama Rua da Lama porque, literalmente, a gente atolava de lama até o meio da canela, para poder andar, naquele barro amarelo, por essas ruas. Essa avenida principal aqui onde ficam os alojamentos, então, estava sendo asfaltado. Essas casas aqui, eu acho que essa casa aqui estava sendo construída, quando eu cheguei. Então, muitas partes da vila ainda estavam sendo construídas. A gente tinha o hospital, que é esse aqui na frente, que hoje é um hospital, era um posto médico. A gente tinha uma farmácia particular, ali na esquina. Tinha a padaria, esses dois supermercados e o clube. A igreja era um galpão, onde hoje é uma feira. Era um galpão, aí demoliram e construíram aquela feira. Então, desbravando, né? Não tinha alça viária, não tinha uma das pontes, né? Então, pra gente chegar aqui, a gente tinha que pegar o barco de Belém pra cá, seis horas da manhã. Aí esse mesmo barco ia pra Belém oito e meia da manhã. Aí depois esse barco voltava de lá quatro e meia e ele levava as pessoas daqui pra Belém seis horas da tarde. Então, era o barcão. E aí tinha os barquinhos, que a gente chamava de popopo, né? Vocês vieram de balsa? Então, vocês não chegaram a ver. Então os popopos, que passavam aí pelos furos, pra chegar lá, em Belém. Aí, com uns cinco ou seis anos veio a primeira lancha particular, aí foi se melhorando.
(01:08:19) P1 - Como é que você ia da Vila dos Cabanos pra Albras?
R1 – Transporte. As empresas daqui... a gente vive numa ilha, assim, de certos benefícios, que não são tão normais lá para baixo. Aqui a gente tinha o transporte para levar a gente para trabalhar, ida e vinda. A gente tinha transporte para levar os nossos filhos para a escola.
(01:08:45) P1 – Ônibus?
R1 - Ônibus, com direito a uma senhora lá dentro, para tomar conta das crianças, né? Aí, acho que quando a minha filha estava com seis para sete anos de idade a empresa tirou esse benefício. Médico, plano de saúde sempre foram dos melhores. Hoje o plano de saúde, todo o plano de saúde de hoje em dia dá um pouco de dor de cabeça. Na hora que você mais precisa, ele te pede um monte de coisa. Mas a gente tinha plano de saúde Unimed naquela época, 1990. Depois a gente saiu do plano de saúde e passou para o plano de saúde da Vale, que é o PASA, aí agora a gente voltou para o Bradesco. Então, a gente sempre teve transporte da empresa. Os empregados que chegaram um ano antes de mim aqui, que vieram de fora, até hoje têm o direito à passagem de ida e volta de férias, para ele e para a família.
(01:09:50) P1 - De passagem de avião?
R1 - De avião. Então, por exemplo, se duvidar o Carlos Abrantes tem. Então, as pessoas que foram admitidas até 1989, no acordo de trabalho eles têm direito à passagem deles e da família, ida e volta, de férias.
(01:10:07) P1 - Acho que todos esses benefícios eram também um atrativo para manter vocês.
R1 - É, positivo.
(01:10:13) P1 - Para ficar e fazer acontecer.
R1 - Positivo. Era uma forma de capturar. Para cada ano de trabalho, a gente ganhava 1% a mais de salário, podendo acumular até 10%. O clube hoje é muito bom, imagina naquela época, há 35 anos.
(01:10:42) P1 - E como é que passou da Albras para Alunorte? Me conta esse período.
R1 – Aí foi mais simples. Aí é a parte que a gente acaba ficando especialista, de tanto contar a história, nos treinamentos. A história disso aqui, toda essa história dessa região, dessas duas empresas, Albras e Alunorte, são histórias que deveriam ter começado vidas juntas. Não tinha... a Alunorte produz o principal insumo da Albras. Para Albras produzir alumínio, ele precisa da alumina, que só a Alunorte produz. Então, os governos militares viram o potencial aqui de produção hidroelétrica, de energia hidroelétrica, lá em Tucuruí, uma baita de uma reserva de bauxita em Trombetas e resolveram construir aqui a Albras e Alunorte. Deveriam ter entrado em operação as duas empresas, em 1985, para operar. Só que o preço da alumina flutua no mercado e exatamente nesse momento ele caiu no mercado. Então, não ficou convidativo para os sócios japoneses da Vale continuar investindo na Alunorte, mas na Albras sim. Então, eles continuaram a construção da Albras, ela entrou em operação consumindo alumina do mundo inteiro, era uma loucura para quem trabalhava, a gente tinha que se adequar à alumina que vinha do Suriname, aí depois vinha da Venezuela, depois vinha da Jamaica, depois vinha do Canadá. Então, para cada vez que chegava uma alumina, a gente tinha que fazer, sofrer os ajustes na sala de cuba. E aí a gente escuta a história do Victório Siqueira, eu sou uma das pessoas que sabe essa história nos bastidores, o quanto ele batalhou por fora. Então, a gente sabe, através do que se conta pra gente que, por mais que a gente olhasse da Albras pro lado da Alunorte e visse aquela construção, os tanques lá, aquela estrutura metálica toda parada lá, ao tempo, existiam negociações nos bastidores, pra poder voltar com a Alunorte em construção.
(00:13:00) P1 - Já era um projeto.
R1 - Era um projeto, já tinha sido investido dinheiro ali, para se construir. Aí veio, na Albras, a história de que seria dada continuidade na construção da Alunorte e que ela seria uma gerência, uma parte da Albras. Ninguém falava Alunorte, a gente falava, aqui na vila, gerência de alumina. Até 1993 a gente falava gerência de alumina. “Pô, será quando é que o pessoal vai terminar aquela construção da gerência de alumina, da fábrica de alumina? Fábrica de alumina”. Quando chegou 1994, final de 1993, início de 1994, vem um programa de transferência voluntária. Os empregados da Albras que gostariam de ser transferidos para a nova gerência, para a gerência de alumina. Aí as pessoas foram lá e se inscreveram.
(01:13:59) P1 - E você?
R1 - Eu não. (risos) Como a minha experiência era CBA, sala de fornos; Albras, sala de fornos, então eu falei: “Não, deixa eu ficar quieto aqui. Deixa ir pra lá quem está querendo mais aventura”. Eu já estava mais - minha filha - quieto, né? Aí, o que aconteceu? Uma pessoa, que era um gestor lá da Albras, me chamou e falou: “Joel, você vai pra Alunorte. Eu coloquei o teu nome lá. Eu soube que você não se inscreveu, você tem o perfil pra ser da Alunorte. A empresa... não, a gerência de alumina, trabalhar numa fábrica de alumina precisa de uma pessoa com o teu perfil”. Aí eu fiquei ‘encucado’, né? Porque eu tinha transferido para Alunorte só os ‘nós cegos’. (risos) Aí, o que aconteceu? Em março de 1994 eu fui comunicado oficialmente que eu seria transferido para a Alunorte, que tinha sido alocada uma vaga para mim, lá”.
(01:15:03) P1 - E eram os mesmos chefes?
R1 - Não.
(01:15:06) P1 - Tudo novo?
R1 - Tudo novo. Eram pessoas com experiência em fábrica de alumina. E na Albras não, eram pessoas com experiência em produção de alumínio. Essas pessoas com experiência em fábrica de alumina são pessoas que vieram da Alumar; que vieram da Alcan, de Ouro Preto; e da CBA só saiu mesmo a parte técnica, os supervisores de turno, especialistas de processo, parte técnica saiu da CBA. A parte de gestão veio da Alumar e da Alcan, de Ouro Preto.
(01:15:36) P1 - Mas mantinham os benefícios, o salário? Vocês não perdiam, nesse sentido?
R1 - Nada. A gente, naquele dia 1º de agosto de 1995, foi demitido em uma porta da Albras, a gente saiu da porta, entrou na porta seguinte e foi admitido na Alunorte. Mas de 1994 a 1995 a gente não sabia que isso ia acontecer. A gente foi informado em cima da hora: “Olha, vai ter que ser feito assim”. A gente ficou alegre pra caramba, que a gente recebeu toda a indenização. E tudo aquilo que a gente tinha de benefício passou a fazer parte do nosso salário. As pessoas que foram transferidas da Albras para a Alunorte. Então, aquele 1% que a gente ganhava, eu estava já beirando os 4 a 5%, foi incorporado no meu salário. As pessoas que tinham passagem de avião foram transferidas no contrato da Alunorte Tem. Moradia, a gente pagava, numa casa dessa aqui, cem reais de aluguel, só um simbólico. Então, a gente foi transferido com todos os benefícios da Albras, para Alunorte, recebendo a indenização. Então, eu tinha colega com dez, nove anos de Albras, que se deu bem pra caramba naquela época.
(01:17:04) P1 - Era quase uma promoção, né?
R1 - Positivo. (risos) Aí a gente foi transferido para Alunorte. Quando a gente foi transferido para o Alunorte, ela já estava no primeiro mês de operação. A gente foi transferido no dia 1º de agosto e ela entrou na operação no dia 15 de julho. Então, a gente já estava na rotina de operação, já não estava vivendo mais a rotina da Albras. A gente usava a estrutura da Albras, o ambulatório médico ainda era lá, o restaurante, setor de treinamento ainda era lá, o RH, só duas ou três pessoas trabalhavam dentro da Alunorte, o restante do pessoal era lá, treinamento, desenvolvimento. Com o tempo, as empresas foram se separando. Quando a Hydro comprou a participação, aí voltou a trabalhar, algumas áreas voltaram a ser conjuntas, entendeu?
(01:18:06) P1 - E esse começo da Alunorte, como é que foi, pra você? O que era aquele começo?
R1 - Alunorte, pra mim, começou quando eu fui fazer meu estágio, lá em Ouro Preto. Eu não conhecia nada de fábrica de alumina, a não ser pelos meus colegas que trabalhavam lá, na CBA. Mas lá na CBA eu não trabalhava em fábrica de alumina. Então, eu fiz o estágio de um mês em Ouro Preto, né? E alguma coisa mudou, né? Eu tive facilidade de aprender, de entender como é que funcionava o processo Bayer, como é que se fabricava a alumina, ainda em Ouro Preto. Então, quando eu vim de Ouro Preto pra cá, eu já estava entendendo o que eu ia fazer. Hoje eu pratico muito a forma como a gente foi treinado naquela época. Primeiro se fala uma coisa bem grande, bem básica, bem genérica e depois vai afunilando o nível de conhecimento a ponto de, no dia de entrar em operação, gente sabia exatamente o que cada um de nós tinha que fazer naquele momento. Então, a mudança principal foi essa: largar tudo aquilo de metalurgia para trás e entrar no ramo químico, hidrometalurgia, trabalhar numa planta química com soda cáustica. E aí eu era operador de sala de controle. Eu fui transferido da Albras para Alunorte como operador de sala de controle. Lá na Albras eu era assistente de processo, eu ficava correndo a área lá, vendo os fornos e tudo mais. Na Alunorte não, eu trabalhava, eu tinha uma sala de controle para poder operar, naquelas minhas oito horas. E aí a gente se deparou com as dificuldades. Toda entrada em operação de uma planta envolve novidades, erros de projetos, subdimensionamento de equipamento e de cara a gente teve que, na partida da Alunorte, trabalhar em escala de 12 horas, turno de 12 horas. Esse turno de 12 horas durou praticamente os primeiros seis meses. Então, a gente trabalhava em turno de 12. A quantidade de pessoas para a sala de controle tinha sido subestimada. Então, em um determinado momento as pessoas começam a sair de férias. Aí a gente teve que começar a loucura da Alunorte, o jeitinho Alunorte de ser: preparar pessoas na maior velocidade possível, para poder substituir as pessoas que iriam começar a sair de férias, né? Aí, ao mesmo tempo que a gente estava preocupado em preparar pessoas para substituir os operadores de sala, eu não sabia que eu estava sendo cogitado para ser substituto de supervisor, né? Então, eles já estavam mais preocupados também com a supervisão. A supervisão também ficou sobrecarregada com o tamanho da fábrica, a quantidade de problemas que a gente teve na partida. Aí, depois de um certo tempo, a gente começa a entender por que que essas decisões são tomadas, né? Nem sempre a experiência funciona nessa hora, a gente tem que se preparar de uma forma mais conservadora e às vezes as pessoas são excessivamente otimistas. Então, eu tive a missão de preparar uma pessoa para me substituir na sala, dentro desses seis primeiros meses de operação e tão logo ela conseguiu assumir a sala de controle, eu fui promovido, em dezembro de 1995, para supervisor de turno. Naquela época se chamava gerente operacional. Então, naquela época, a partida da Alunorte, eu exercendo a função de operador de sala, a gente tinha contato com pessoas do mundo inteiro, chegava lá nove horas da manhã. Um filho da mãe lá para o lado do sul do Pará, colocava fogo na floresta lá e dava um pico de energia, aí era um pico de energia praticamente todos os dias, problemas nas subestações. Então, à medida que a gente vai vivendo os problemas com muita intensidade, a gente vai ganhando experiência. No meu tempo de São Paulo, eu também fiz curso de inglês. Então, o meu tempo de Albras eu praticamente não pratiquei nada do inglês. Eu voltei a estudar inglês, na época aqui era o CCAA. Na entrevista minha de Albras prometeram pra mim que eu poderia vir trabalhar aqui e continuar fazendo meu curso de inglês, lá em Belém. (risos) Aí a gente chega aqui, transporte uma vez só por dia, a gente vê que não era bem assim. Então, o meu inglês naquela época, em 1995, na partida da Alunorte, já me ajudou a manter contato com as pessoas experientes que vieram de outras empresas do mundo, da Alcan, para nos ajudar na partida. Então, isso faz a gente aprender mais rápido, ter mais argumento, para poder explicar um problema, resolver um problema. Então, tudo isso me ajudou. A fundamentação técnica que eu tive na escola, nunca pensei que aprender metalurgia do alumínio, lá em 1985, fosse fazer a diferença, né? Trabalhando tanto na Albras, quanto na Alunorte.
(01:23:46) P1 - E qual que era o clima entre vocês? Era estressante, era caótico, era amizade? Como que era?
R1 - Olha, o clima dentro da Alunorte, era... é difícil do Joel explicar, mas eu tenho que explicar pelo Joel. Pelo Joel sempre foi bom, mas existem pessoas que falam o oposto. Por quê? Como eu disse, de alguma forma alguma coisa mudou no Joel, quando ele começou a trabalhar na Alunorte. Parece que as coisas se encaixavam melhor, eu entendia melhor, eu tinha maior velocidade de raciocínio, eu me adaptei muito rápido na Alunorte. Então, as pessoas passaram a respeitar a minha opinião desde muito novo, ainda operador de sala de controle, a minha opinião era ouvida. Eu sempre estive disponível a trabalhar, então eu trabalhava em escala de 12, eu ia tirar... alguém faltava, eu ia pra lá pra trabalhar. O ritmo da Alunorte, ainda hoje, pra quem chega, é caótico. A gente, olhando à distância, vê o quanto as pessoas que estão lá estão correndo desesperadas, pra resolver problema, chega a ser doentio. Isso causa problema de saúde, né? Mas a gente não tinha esse direito, naquela época, né? A gente foi... 2017 pra cá que as coisas começaram a mudar.
(01:25:25) P1 - Esse começo foi ‘se vira’, né?
R1 – Se virar. A gente tinha que dar resultado, né? O discurso de encorajamento que o nosso diretor fez pra gente, na véspera da partida, ele falou, falou, falou, falou: “Vocês entenderam? Alunorte só está saindo do papel, para que o prejuízo da Albras seja o menor possível. Vocês entenderam bem? A Alunorte é o ‘patinho feio’ da Vale do Rio Doce. 93 % da Alunorte pertence à Vale do Rio Doce”. Então, a gente só estava entrando em operação para produzir alumina para que a Albras comprasse uma alumina aqui, do outro lado da rua e fosse mais barata para ela, para diminuir o tamanho do prejuízo da Albras. A Albras convivia o tempo todo no prejuízo. Então, era essa nossa missão: produzir alumina para Albras. Só que, com três anos de operação, a gente já tinha, já estava produzindo acima da capacidade de produção, de projeto; a gente estava produzindo a melhor alumina do mundo; o hidrato era o mais branco do mundo, isso faz muita diferença no mercado; a Albras estava sorrindo, melhor alumina do mundo. Então, o que a Hydro fez? “Epa, deixa eu entrar aí com vocês, me vende um pouquinho aí, eu vou pagar um pouco dessa dívida de vocês, mas eu entro nessa sociedade”. Aí veio a Expansão 1, o primeiro projeto de expansão. Aí a gente entrou em operação em 2002... janeiro de 2003. Aí depois veio Expansão 2, Expansão 3. Enquanto isso eu lá, na Alunorte, aquele caótico que a gente já estava ‘nadando de braçada’, lá entre 1997 e 1999, a gente estava bem pra caramba. Duas linhas era muito simples. Éramos quatrocentos e cinquenta empregados, a gente conhecia quase todo mundo pelo nome, alguns a gente sabia até a matrícula, morava praticamente todo mundo aqui na vila, né? Aí veio as expansões. Com as expansões foi crescendo o número de empregados, esse número... as dificuldades também, para treinar, capacitar pessoas, foram ficando maiores. A escola técnica, a gente trazia muita gente. A mão de obra da Alunorte é muito regional, mas lá na partida ela tinha muita gente de Minas, daqui do Maranhão.
(01:28:16) P1 - Misturou tudo, né?
R1 - Misturou tudo. Hoje, a maior parte da mão de obra da Alunorte é local, toda daqui da região de Barcarena, Belém.
(01:28:26) P1 - Joel, você pensou em desistir, em algum momento?
R1 - Desistir e ir embora? Eu falei que, em alguns momentos, depois de um bom tempo, eu comecei a ter um negócio que eu não sabia o que era, que era saudade. Então, à medida que eu pegava o ônibus lá, no interior de Minas, com o restante da família atrás de mim, nos dois sentidos, indo para Belo Horizonte, para poder pegar um avião de Belo Horizonte para Belém, para recomeçar, para voltar de férias, eu fui sentindo que a cada dia aquilo estava ficando mais pesado. Então, a partir de um certo tempo, aquela euforia da novidade, do ser aventureiro, foi passando. Então, eu comecei a sentir saudade. Mas depois... em alguns momentos difíceis dentro da Alunorte, eu acho que todo profissional tem esses momentos, eu comecei também a me sentir muito pressionado por resultados. Eu falo muito pra Silvia, isso: você se prepara, trabalha numa empresa e você vai achando que, quando você tiver um certo tempo de empresa, você vai ser tratado de uma forma diferente. Eu não estou pedindo regalias. Você vai ser tratado de uma forma diferente. Só que a forma diferente da gente hoje, dos velhos de hoje serem tratados, é uma carga maior de trabalho do que os novos. Então, se naquela época, na época da partida, eu fui capaz de deixar a minha família em casa, pra passar uma noite deitado em cima de um tanque, deitado mesmo, olhando dentro do tanque, avaliando o que estava acontecendo dentro, pra poder fazê-lo voltar a funcionar, hoje a nova geração não faz isso. Ela não quer fazer isso, ela se recusa a fazer isso. E aí, pra empresa operar, ela precisa novamente do jeitinho do Joel fazendo isso lá. Então, em alguns momentos, sim, dá vontade de ‘chutar o pau da barraca’ e fazer outra coisa, mas eu falo para os meus colegas que pensam em fazer isso: “E aí? Você está pronto para começar tudo de novo, em um outro lugar? Não é mais fácil você estar aqui, lutar para mudar aqui, do que ir para outro lugar, esperando que lá seja diferente? Eu ajudei a construir. Por que eu não posso ajudar a ser diferente?” Então, chances de trabalhar em outros lugares não faltaram. Teve momentos que eu ia para a Austrália, para poder ajudar na partida de uma planta, aquele sonho que eu tinha de viajar, ajudar a partir novas plantas, só que o meu chefe na Alunorte cobrou um valor tão alto para empresa lá, que ela desistiu. Eles encasquetaram que a gente teria que estar lá utilizando o uniforme da Alunorte. Depois de dez anos eu fui saber das negociações.
(01:31:48) P1 - Então, não foi para lá?
R1 - Acabou que a gente não foi, mas a gente ia passar cerca de um ano lá, ajudando a entrar essa planta em operação. E outra que a gente estava na véspera de entrar com a Expansão 3 em operação. Isso foi em 2006, 2007. Então, a gente ia ficar lá. Teve colega meu que a empresa o financiou estudar inglês. Eu já não precisei, porque eu me ‘virava’, mas o financiou estudar inglês, para ele poder ir comigo para lá, porque ele não falava. E aí, no final da história, na hora das negociações de quanto seria o salário que a empresa pagaria, qual o uniforme que a gente iria usar, eles encasquetaram lá e acabou que tudo ‘melou’, né? Mas eu iria fazer esse papel e aconteceu que, depois disso, todos os projetos da Alunorte acabaram... eu acabei participando deles. Então, para cada vez que você começa a se saturar, surge um projeto. Aí você vai lá, coloca o projeto para operar. Quando você começa a se saturar, vem outro projeto. Então, a cada projeto eu fui ganhando fôlego. Então, passar os trinta anos de trabalho na Alunorte, trinta e cinco somando a Albras, não foi difícil porque, praticamente a cada três, quatro anos vinha uma grande mudança. Um projeto faz com que a gente trabalhe 12, 16 horas por dia, sábado, domingo, feriado, Natal, Ano Novo, Páscoa, Semana Santa. Aí depois vem a calmaria, a operação é calmaria. Aí depois vem outro projeto. Então, não dá pra falar que ficou monótono, repetitivo, entendeu E é um cansativo que a gente vê o resultado depois.
(01:33:44) P1 - Você vê o resultado na sua vida também?
R1 - Deu resultado na minha vida, deu a influência da minha vida na vida de outras pessoas, começando pela própria família, pela minha própria família. Eu acho que eu sou altamente impactante. Eu tenho uma família, eu tenho certeza que o meu irmão está em Portugal e ele sabe que eu estou aqui, tomando conta da nossa mãe.
(01:34:11) P1 - Quando é que ele foi para lá?
R1 - Meu irmão foi embora para lá antes da pandemia, em 2020.
(01:34:23) P1 - Até que é recente. E ele foi para trabalhar?
R1 - Não, o meu irmão tinha uma empresa, uma pequena empresa no interior lá em João Monlevade, de esquadrias de alumínio. Então, isso foi assim: ele era um técnico metalúrgico, como eu, trabalhava em uma empresa metalúrgica, estava bem para caramba, super bem avaliado, ganhava tudo quanto premiação interna da empresa, mas na hora da promoção, nunca era promovido. Então, isso era um motivo de insatisfação para ele. Aí ele começou a fazer o curso superior, que ele não tinha. E aí, durante o tempo que ele fez o curso superior, houve uma reestruturação na empresa e aí ele foi demitido. Naquele período anterior, eu tenho que contar a história dele porque a gente que é técnico e mexe com o ‘chão de fábrica’, tem hora para entrar na empresa e só pode sair quando gente resolve o problema. Então, ele morava lá em Cariacica, próximo de Vitória, subúrbio de Vitória, né? E aí, ele indo pra casa uma hora da manhã, teve uma tentativa de assalto. E aí o assaltante, tentando abrir a porta do carro dele e ele tentando abrir a porta por dentro, os dois tentando abrir a porta, então ela não abre e aí o assaltante pensou que ele estava reagindo, deu um tiro. Aí, na hora que ele viu que o assaltante ia atirar, ele acelerou o carro. Então, esse tiro entrou por aqui, por trás, pelo banco e o atravessou aqui, nessa região. Ele conseguiu dirigir até em casa, aí foi atendido, foi para hospital e tudo mais. E aí, estresse pós-traumático. Exercendo a função dele e ele tinha medo de chegar em casa à noite. E aí, ao invés da empresa dar um tratamento para ele, ela preferiu demiti-lo. Aí, nessa demissão dele, ele recorreu. A minha mãe era simplesmente costureira do gerente da ArcelorMittal aqui no Brasil. Vocês devem ouvir falar da ArcelorMittal, né? Então, a ArcelorMittal era dona dessa empresa, lá em Vitória. Aí esse ‘cara’ entrou em contato: “Não, vocês vão readmiti-lo”. Então, ele foi readmitido, o colocaram numa salinha, assim, cheia de estante, né? E ele ficou lá, isolado. Isso seria, nos dias de hoje, de dez anos atrás, uma sede, né? Mas aí ele fez uma coisa que eu conto pra todo mundo, né? Ele foi num ‘cara’, lá em Vitória, que fabricava esquadrilha de alumínio, blindex de banheiro e falou assim pro ‘cara’: “Olha, eu quero fazer um negócio com o senhor. Eu quero que o senhor me ensine tudo o que senhor sabe fazer. Eu vou trabalhar seis meses de graça para o senhor. A única coisa que eu vou pedir para o senhor é que o senhor me ensine tudo o que senhor sabe fazer. Eu vou trazer minha comida, até minha água. O senhor não vai ter custo nenhum comigo. Eu assino qualquer documento para o senhor e prometo, juro para o senhor, que eu não vou ser concorrente do senhor aqui, em Vitória. Assim que eu tiver aprendido, eu vou embora para o interior de Minas”. E foi aí que ele aprendeu a trabalhar com esquadrilha de alumínio, entendeu? Ele andava em carroceria de caminhão, lá em Vitória, entregando fachada de prédio e tudo mais, né? Então, ele foi para interior de Minas e montou uma empresa. E aí é o problema do brasileiro, né? Você tem uma empresa, aí surge um grande projeto, aí você contrata, aí você sai de pequena empresa para média empresa, aí você aumenta o imposto, aí depois você perde, acaba o contrato, aí você não pode ficar com aquela mão de obra, aí quando você vai dispensar a mão de obra, você tem que pagar as rescisões trabalhistas. Aí veio o negócio do bolsonarismo, em 2018. E aí intubaram um monte de coisa na cabeça dele, ele vendeu tudo que ele tinha no Brasil e se transferiu com família, com filho, com esposa, tudo para Lisboa. Aí lá ele chegou com esse dinheiro dele, ele já comprou três caminhões lá, ele faz entrega de mudanças especiais, aquelas que sobem pelo lado externo do prédio, essas coisas.
(01:38:46) P1 – E está lá?
R1 - Ele está lá.
(01:38:47) P1 - E aí sua mãe ficou sozinha, ou com o seu pai?
R1 - Meu pai tinha morrido, já. Minha mãe ficou sozinha.
(01:38:53) P1 - Quando é que seu pai faleceu?
R1 - Meu pai faleceu em 2003.
(01:39:02) P1 – Nossa! De quê?
R1 – Ai, meu pai tinha problema de hipertensão, coração, né? Ele já estava com 64 anos. Não, meu pai já estava com 74 anos.
(01:39:15) P1 - E sua mãe ficou sozinha total?
R1 - Sozinha total.
(01:39:18) P1 - Quando é que você trouxe?
R1 – Aí é outra história. (risos)
(01:39:24) P1 - É mais pra frente. A minha mãe foi agora. A minha mãe passou a ser evangélica. Então, a forma dela se comunicar comigo, à distância, todo dia parecia que ela tinha gravado a mesma mensagem e ela repassava, mas eu sabia que ela não sabia usar esse recurso. Então, um determinado momento, durante a pandemia, eu insisti muito com ela. Eu vou falar uma coisa pra você: em dezembro de 2019 eu soube, na televisão, junto com as notícias de final de ano, de uma gripe que estava tendo na China. Aí eu falei assim: “Eu vou comprar mais álcool na próxima compra, que isso vai chegar no Brasil”. Aí, nessa compra eu comprei seis garrafas de álcool, só pra você ter ideia. É normal a gente comprar uma, né? Às vezes nem compro. Então, na compra de janeiro de 2020 eu comprei seis garrafas de álcool. E aí falei assim pra minha mãe: “Mãe, viaja logo pra cá, pra senhora ficar aqui, com a gente uns dois meses, já que a casa daí está alugada, vai ter gente tomando conta da casa. Vem pra cá, fica aqui com a gente um pouquinho”. Mas não tinha nada de pandemia. Aí, quando chegou o março, estourou a pandemia, aí ela já não pôde viajar. Quando chegou final de julho, deu aquela depressão. Aí a minha mãe parou de passar aquela mensagem todos os dias, sabe? Então, eu comecei a achar que tinha uma coisa estranha. Aí eu ligava pra ela, ela atendia de uma forma muito ríspida, não era normal dela. Eu ligava, pedia pras pessoas irem lá olhar, aí as pessoas iam lá, ela atendia da janela. Final da história: um determinado dia eu sonhei que ela estava com dificuldades, que ela não estava conseguindo respirar. Aí eu falei para minha esposa: “Minha mãe está com Covid, a minha mãe está com algum problema, ela está precisando da minha ajuda”. Isso era cinco horas da manhã. Aí eu falei para minha esposa: “Compra a passagem, eu vou para a fábrica, eu não vou conseguir dormir, eu saio de lá meio-dia e eu vou embora para Minas”. Aí eu conversei com o Felipe Picanço: “Picanço, eu preciso ir lá em Minas”. Aí eu viajei, eu cheguei lá na casa da minha mãe uma hora da manhã. Aí ela estava com Covid, há mais de um mês. E ela tinha, naquela época, oitenta anos, 79, né? Então, ela estava mal, muito mal e totalmente sozinha. Aí, no outro dia, um sábado, eu a levei, a internei, a médica internou, ela ficou tomando oxigênio, não chegou a ser entubada. E aí, sempre, todas as vezes que eu viajava pra lá, eu falava: “Vamos embora, mãe, vamos comigo”. Mas não era pra morar na minha casa, era pra vir pra cá. Aí, nesse dia eu perguntei pra ela: “Mãe, precisamos ter uma conversa”. Ela falou: “Não precisa conversar, não, eu vou”. (risos) Entendeu? Aí eu voltei, conversei com a família, juntei tudo, eu chamo de conselho familiar, primeira assembleia, aí tomamos a decisão de modificar aqui, aqui é uma garagem. Aí eu modifiquei a garagem, passei a fazer um quarto dentro da casa. Eu cheguei a pensar em construir um quarto e banheiro para ela lá, aqui do outro lado, mas eu falei: “Não, vou construir dentro de casa, para ela se sentir parte da família”. Eu acho que foi a melhor coisa que eu fiz, porque ela nunca mais, depois que acabou a pandemia, voltou a ser a mesma. Ficou muito debilitada, problema de respiração. Então, eu falo que ela é a minha filha de 82 anos, que dá dor de cabeça, viu? E não é dor de cabeça com os problemas de saúde, é com a teimosia, com conservadorismo, entendeu? É o jeito dela de ser, né?
(01:43:46) P1 – Mas, antes disso, antes de chegar nesse hoje, você estava lá na Alunorte, trabalhando bastante, dedicado, me lembrou um pouco, te ouvindo, você aluno, né?
R1 – (risos) Por quê?
(01:44:02) P1 – Querendo ser um aluno que tirava boas notas, trabalhando nessa mesma intenção.
R1 - Sempre foi assim. A minha filha, de vez em quando, a minha filha mais velha, Carol, fala assim: “Já sei o que o senhor vai falar, eu ainda não conquistei o meu ‘lugar ao sol’”. Aí um dia ela me pergunta: “Quando é que eu vou ter conquistado meu ‘lugar ao sol’?” Aí eu falo: “Carol, eu tô inteirando 39 anos de trabalho, eu ainda não conquistei o meu”. Aí, às vezes, eu sou daquele grupo de... eu faço parte daquele grupo de pessoas, os velhinhos, né? Às vezes eu tento mudar esse nome que dão pra gente, mas eu não consigo, acabo eu mesmo falando.
(01:44:53) P1 - Mas é velhinho de empresa, não de idade.
R1 - Velhinho de empresa. Mas a gente já está velhinho de idade também, né? Eu tenho 57 anos. A gente fica se cobrando dentro da empresa e, ao mesmo tempo, rebeldes, chateados pelo fato da nova geração não estar pegando o bastão e correndo na mesma intensidade que a gente correu. Ao mesmo tempo, a gente entende que a gente criou essa nova geração e esse é o jeito deles de ser. Então, às vezes a gente se vê falando mal e às vezes a gente se vê defendendo-os, né? Então, a gente fala assim: “Não. É o ritmo, novos tempos”. Então, essa é frase conhecida: novos tempos. A gente assumiu uma responsabilidade de colocar a empresa para operar, porque a gente assumia a responsabilidade. Há trinta anos o profissional assumia a responsabilidade de uma forma diferente como as pessoas de hoje assumem.
(01:45:58) P1 - Quase como se fosse seu.
R1 - É, isso mesmo. A gente ficava 32 horas dentro da fábrica, sem sair de lá, entendeu? Isso custou caro pra gente? Claro que sim. A gente carrega, quem trabalha em fábrica de alumina, um estigma, né? Ele nunca fica no primeiro casamento. A Sílvia me viu falando aquele dia isso, ela ficou assustada. Eu falei: “É isso mesmo, Sílvia”.
(01:46:26) P1 - Seu casamento primeiro durou quanto tempo?
R1 - Meu primeiro casamento durou 12 anos.
(01:46:31) P1 - Com dois filhos.
R1 - Com dois filhos. Uma das principais reclamações da primeira esposa, na hora da separação, foi essa frase: “Você dava mais prioridade para sua família Alunorte”. Só que a gente encara a Alunorte como a fonte de rendimentos, era aquilo que ajudava a manter a família. Existe forma mais suave de se fazer isso? Existe. Quando chegou em 2012, houve mudança na gestão da empresa.
(01:47:10) P1 - Quando é que passou pra ser Hydro?
R1 - A Hydro assumiu em 2000... eu sempre esqueço essa data e as sempre as pessoas me perguntam, Hydro Day. Só olhando lá. A Hydro deve ter assumido aqui há uns 15 anos.
(01:47:27) P1 - Então, foi por aí, em 2013, 2012.
R1 – É, isso. O que aconteceu? A Alunorte estava dando prejuízo. Ela partiu a terceira expansão e não conseguiu atingir a capacidade de produção. Estava dando prejuízo, estava vendendo... estava pagando para produzir. Aí, o que aconteceu? A Hydro trouxe pessoas de fora daquela ilhazinha, para comandar a Alunorte. E essas pessoas vieram trazendo mudanças, novos conceitos, trazendo o segundo, o terceiro escalão. Então, houve uma troca de gestores. De toda a linha de gestão da Alunorte de dez anos atrás, sobraram eu, o Picanço, o Abrantes e o Guilherme Brazão, só quatro, acho que de umas quarenta pessoas. Mas como é que a gente sobrou? Porque a gente se adaptou, porque a gente era bom, a gente é bom. Então, a gente assumia as responsabilidades, a gente sempre deu resultado, a gente não tem acidente dentro da nossa equipe, as pessoas falam bem da gente, né?
(01:48:57) P1 - Os outros foram mandados embora?
R1 – É.
(01:49:00) P1 - Você ficou com medo de ser um?
R1 - Sim, claro. Ali tem um quartinho cheio de documento da Alunorte. (risos) Meus armários lá são vazios, à espera desse dia. Para você estar trabalhando, você tem que estar sempre preparado para esse dia. Só que eu sabia que, se esse dia chegar pra mim, eu não ia ficar muito tempo sem... eu sei outros lugares que eu poderia me encaixar, entendeu? Eu sempre me... eu acho que de uns dez anos pra cá eu me preparei pra isso. Então, quando chegou 2012, dia 4 de outubro de 2013, né? O dia do aniversário da minha mãe. Eu estava lá em Minas, aí um colega me ligou daqui: “Você não sabe da maior: trocaram diretor”. Aí eu falei: “Então, olha, você se prepara, porque a partir de agora a Alunorte vai mudar. Tudo aquilo que eu falo pra vocês que precisa acontecer vai acontecer”. E aí foi demissão, assim, de fretarem a frota de táxi da Vila, pra poder levar as pessoas embora. Então, a gente... foi muito traumatizante. Então, eu vivi um momento de 2013 até 2017 de extrema, mas de extrema pressão a qualquer falha de toda a estrutura que estava abaixo de mim na empresa, eu seria uma pessoa a ser demitida, por causa dos cabelos brancos também. Parece que a temporada à caça aos velhinhos estava aberta, né? Então, peguei burnout, eu fiquei afastado do trabalho três meses, em 2017. Até 2017 não se falava disso dentro da Alunorte. E aí eu lembro que, durante o tratamento com a psicóloga, eu falava muito com ela: “O que você espera, a partir de agora?” “Eu espero que a empresa mude”. Então, hoje a gente tem lá um grupo de psicólogos; assistentes sociais; tem pesquisa de clima; tem pesquisa de nível, para saber nível de estresse dentro da empresa, entendeu? Então, a gente vê toda uma estrutura tratando disso, a nova geração é assim: ela precisa desse tipo de amparo e os velhinhos também passaram a ver que precisam desse tipo de ajuda. Então, a gente sacrificou muito a nossa vida pessoal tomando conta da Alunorte. Tomando conta do filtro, eu deixei de estar numa praia, entendeu? Aí a gente, hoje, tenta recuperar, por isso que esses velhinhos têm facilidade: “Não, eu tenho compromisso”, entendeu? Eu não posso criticá-los, eles não estão errados.
(01:51:49) P1 - E você viu muito... eu escuto vocês falando lá dentro ‘jeito Hydro de ser”. O que é isso?
R1 - O ‘jeito Hydro de ser’ é diferente do jeito Alunorte de ser. Eles não podem saber disso. A Hydro é uma empresa da Noruega, Norsk Hydro S.A. O norueguês é ético, ao extremo. Ele é aquele povo que vai para os escritórios lá, para as empresas lá, trabalhar de bicicleta. Ele é ético. A ética está acima de tudo. O nível de corrupção lá está entre os menores do mundo. Assalto, criminalidade. E aí eles tentam, de alguma forma, fazer com que esses valores que eles têm lá sejam aplicados onde quer que eles estejam. Aí você traz pra cá esse ‘jeito Hydro de ser’. A gente, como empregado, tem que respeitar e tem que ser e tem que seguir o ‘jeito Hydro de ser’, que não nos permite ser corrompidos, ajudar a corromper, trocar favores, ganhar presentes de alto valor em troca de alguma informação privilegiada, está entendendo? São coisas que o brasileiro naturalmente acha que tem, até, direito, está certo? Está entendendo? Então, esse é o ‘jeito Hydro de ser’.
(01:53:33) P1 - Que foi uma aplicação na cultura nova da empresa.
R1 - Exato. A cultura Hydro, então corrupção não. Então, quando estourou aquele evento lá, da contaminação ambiental, em 2018, eles estavam praticando o ‘jeito Hydro de ser’. Quando ele respondeu a pergunta dos jornalistas, ele estava sendo o ‘cara’ norueguês. Era um norueguês que estava respondendo para um brasileiro cheio de pecado, cheio de malícia, entendeu? E aí ele falou algo que foi usado contra ele, depois.
(01:54:12) P1 – O quê?
R1 - Que ele falou assim: “Realmente nós permitimos que efluente não tratado fosse descartado no Rio Pará”. Mas não quer dizer que a gente estava descartando. O nível de efluente dentro da fábrica estava tão alto, que passou por cima das bacias e transbordou para o Rio Pará. Isso acontece em qualquer enchente, entendeu? Então, isso foi usado como se a gente tivesse pego o material contaminado e transferido - efluente não tratado - para o Rio Pará. Não foi isso. Então, eles usaram do ‘jeito Hydro de ser’ para trazer toda aquela consequência, de embargo à produção, risco de desemprego, com certeza. Aí a gente responde por processo na Justiça da Holanda, na Justiça aqui, no Brasil. Tem termo de ajuste de conduta. Para quem é empregado e estava trabalhando no dia: “Não, não aconteceu isso”, todo mundo briga por isso. Mas o ‘jeito Hydro de ser, eles querem tratar com a equipe de Comunicação, então eu tenho um cuidado danado, eu nunca respondo nada sem que a Silvia fale, entendeu? Você reparou isso? Eu tento ser o mais obediente possível, porque eu já ganhei minha ‘puxada de orelha’, entendeu? A gente vê os ‘caras’ falando as besteiras lá na rede social, a gente entra respondendo, aí eles chamam a gente lá: “Vem cá. Você não está aqui pra responder”.
(01:55:42) P1 - É uma tentativa de ajudar.
R1 - É, entendeu? Então, o ‘jeito Hydro de ser’ é isso, é aquele jeito certinho, é o jeito norueguês, de conduzir as coisas. O presidente fala isso; a Comunicação fala isso; quem fala pelo financeiro é o ‘cara’ do financeiro; quem fala de segurança é o ‘cara’ da segurança, cada um no ‘seu quadrado’, entendeu? E sendo o máximo possível de transparente. Brasileiro, as empresas brasileiras não são 100% transparentes, a gente sabe disso. A gente vê os eventos aí da Vale do Rio Doce da Petrobras, que são exemplos de empresas aqui dentro do Brasil, mas que de vez em quando acontece um Brumadinho, uma Mariana, um escândalo de corrupção, está certo? Eles não divulgam 100% daquilo que acontece. E já o ‘jeito Hydro de ser’ é literalmente 100% transparente.
(01:56:35) P1 - O que isso representa para você, nessa história?
R1 - Pra Joel, eu não sinto dificuldade. Mas eu sempre alerto para esse choque de cultura. Eu, lá dentro, exercendo a função de gestão, de liderança: “Cuidado”. Eu cheguei a falar isso, nas épocas: “Cuidado. Tem que saber para quem estão falando”. Acho que a dura penas isso foi aprendido. A Noruega parou de responder e passou a contratar pessoas no Brasil, para ajudá-la a responder. Eu gosto assim, eu não sei... eu falo a verdade, até que ela me traga um prejuízo. Eu não gosto de levar vantagem, entendeu? Minha declaração de imposto de renda é feita com o contador e eu critico meus colegas, quando eu sei que eles estão defendendo prisão de político e, na hora da declaração de imposto de renda, eles tentam levar o deles por fora. Negativo, entendeu? Eu gosto de fazer as coisas certinho, gosto de falar a verdade, né? Aí eu falo aqui em casa: “Às vezes não falar a verdade não quer dizer que você está mentindo. (risos) Mas você não pode é falar mentira”. Então, eu penso assim, eu gostaria muito que ela realmente conseguisse mudar, mas eu não vi. No final da história, em questão de menos de dez anos, a Hydro teve que se adaptar ao jeito brasileiro. E aí eu sinto um pouco de vergonha, quando eu tenho que receber visitantes. Eu sou uma pessoa que recebe muito visitante. E aí eu tenho que encontrar com eles lá no Equinócios. Eu tenho que levá-los lá no Samaúma, estradas esburacadas, pela rede de esgoto aparente, lixo amontoado nos cantos da rua, com o tamanho das empresas e a quantidade de impostos que se chega, né? Então, isso dá vergonha. Quando a gente trabalha com norueguês... então, eu falava isso há 15 anos, para os meus colegas: “Uma coisa é o ‘cara’ norueguês que nasceu e foi criado num ambiente limpo, ele nunca viu sequer a rede de esgoto da cidade dele porque, quando ele nasceu, ela já estava lá enterrada há cinquenta anos, ele nem sabe onde passa a rede de esgoto da cidade dele. Não tem lixo, o lixo tem coleta, tudo seletiva e tudo mais. A política não tem escândalo. o nosso jornalismo, a maior parte do jornalismo é falar de escândalos de corrupção. Lá raríssimas vezes vai aparecer alguma coisa. Uma coisa é o norueguês, outra coisa é o brasileiro passar a viver do ‘jeito Hydro de ser’. Não bate, as contas não fecham. Porque o ‘cara’ entra lá para trabalhar, mas ele deixou aqui fora um monte de lixo na porta da casa dele, o esgoto dele não tem tratamento, a água dele chega suja na casa dele, o filho dele não tem boa escola. Aí ele entra dentro da fábrica, ele desliga o botão brasileiro e passa a ser Hydro, não funciona”. Então, eu falo que existe esse conflito. Alguns conseguem conviver com isso, outros não.
(02:00:03) P1 - Mas você, que está lá desde o comecinho, tem visto ao longo do tempo os aprendizados. E são muitos, né?
R1 - São.
(02:00:10) P1 - Inclusive para que isso vá mudando.
R1 - Sim.
(02:00:14) P1 - Talvez não no tempo necessário...
R1- É. Cultura não se muda na noite por dia. Você precisa de tempo para ver essa mudança. Eu não sei, eu trabalhando na Alunorte, já vi grandes mudanças lá. Coisas que a gente tinha por hábito praticar no passado, ver as pessoas praticando hoje, são pecados inomináveis.
(02:00:42) P1 - Não se faz.
R1 - Não se pergunta se pode. A corrupção existia no passado? Existia. A gente falava que ela estava... sabia quem estava praticando? A gente sabia. Hoje não. A gente tem vários canais da empresa, para a gente comunicar suspeita: “Olha, está acontecendo”. No passado não, era velado. A gente fazia de conta que não estava vendo e seguia a vida da gente. Então, esse jeito norueguês de trabalhar, de analisar as coisas de uma forma mais fria, não envolver religião na hora da tomada de decisão. Tinha um chefe deles que trabalhava com a gente: “Não, não, não. Não é se Deus quiser. Você tem que querer”. (risos) Ele corrigia a gente. Então, foram coisas que a gente aprendeu com tempo.
(02:01:36) P1 - O que, para você, é muito importante, que mudou, que você aprendeu, que você vê que, de fato, teve sua mão, seu resultado ali, né?
R1 - Na hora que você chegou eu estava com celular, fazendo uma revisão de um texto que vai ser publicado agora, no jornal lá da fábrica, no dia 15. Eu ando por dentro da Alunorte, em cada área de dentro da Alunorte eu estive lá e fiz uma grande alteração. E hoje, lá dentro da Alunorte, mesmo que a gente ainda tenha lá 47 pessoas com trinta anos de Alunorte, a gente não conta os que têm mais de trinta, porque a Alunorte tem trinta. Eu sou uma das poucas pessoas desse grupo que fez tudo isso lá dentro. Então, não só construí. Quando eu atuei nos projetos de construção, eu também tive uma outra parcela, que foi contratar a pessoa, treinar a pessoa, para que ela pudesse operar aqueles projetos. Ou então, num projeto como esse que a gente acabou agora, do gás natural, que a gente não teve novas contratações, que a gente chegou lá e fez uma modificação do equipamento existente, eu também tive que pegar os profissionais: “Olha, desliga sua chavezinha aí, que agora você vai trabalhar com gás natural”, treiná-lo para trabalhar com gás natural. Então, hoje as pessoas têm um certo respeito, uma certa admiração pelo Joel, pela quantidade de pessoas que eu coloquei dentro de sala e estive lá, treinando. O pouco que eu aprendi aqui eu corria para ensinar ali, do outro lado, entendeu? Foram muitas pessoas. Muitos ‘puxões de orelha’, a pessoa que estava fazendo besteira, você puxa na sala: “Ei, acorda, né? Não é assim”, né? Um estagiário que estava lá fazendo uma palestra, agora foi promovido a gerente sênior e aí ele conta pras pessoas que uma das coisas que mudou a vida dele foi que um dia ele estava como estagiário na Alunorte, fazendo uma apresentação e aí ele terminou a apresentação e ele estava brincando com o braço, o braço dele não parava quieto. Aí, terminou a apresentação, eu falei assim: “Olha, muito boa sua apresentação, mas é o seguinte” - aí eu fui lá pra frente dele, fiquei balançando o braço também – “é muito difícil a gente estar falando com uma pessoa e ela balançando os braços, como você estava, ninguém prestou atenção que você estava falando”. Então, hoje, quando essa pessoa fala na frente de todos os outros que há 15 anos você fez isso por ela, é o orgulho que a gente tem. É saber que lá existem várias pessoas te defendendo, em algum lugar, quando alguém fala alguma coisa, as pessoas que não te conhecem. É, por exemplo, eu chegar numa sala que só tem gente lá com um, dois anos de empresa e as pessoas: “’Seu’ Joel”. Calma! É porque a gente sabe que as pessoas falam da gente, quando a gente não está perto, né? Então, literalmente, eu tenho esse orgulho, né? É de andar na área e ver os equipamentos que eu construí, que eu ajudei a escolher o lugar: “Não, isso tem que ser aqui, aquele tem que ser ali”. E também das pessoas que a gente ajudou a preparar, para estar lá.
(02:05:13) P1 - É bonito ouvir, porque claro que você podia ter falado: “Ah, eu ajudei a aumentar os números, o lucro, a produção”. Você está falando de pessoas.
R1 – (risos) Positivo. Através delas, a gente produziu. (risos) Literalmente é isso.
(02:05:29) P1 - Você dedicou tudo?
R1 - Foi. Foi muita dedicação. Muita.
(02:05:37) P1 - Quando terminou esse primeiro casamento, você concordou que você tinha dado muito de si, da sua vida, pro trabalho e por algum motivo...
R1 - Concordei. Aí eu tentei fazer diferente. (risos)
(02:05:54) P1 - E aí, como é que foi o próximo casamento?
R1 - Está dando certo.
(02:05:58) P1 - Quando é vocês se conheceram?
R1 - Já passou dos 12 anos. Já passou da crise dos sete e dos 12, né? Então, eu conheci lá também.
(02:06:08) P1 - Ah, é?
R1 - É. Ela trabalhava lá. Ela atendia a diretoria. Então, ela era aquela pessoa que levava o cafezinho do diretor, era a pessoa que pegava a correspondência de um diretor e levava para o outro, ia no outro prédio, para poder tirar uma xerox, ia pegar um documento. Ela faz tudo ali em cima, no prédio. Hoje tem uma senhora lá, que chama Sandra. Então, ela fazia o... só que na época não era Hydro, né? A Dona Sandra, hoje, ‘veste a camisa da empresa’, mas ela era de uma contratada que trabalhava lá.
(02:06:43) P1 – E vocês se conheceram quando?
R1 - Foi em 2004, 4 de agosto de 2004, ela falou. (risos) A gente grava as datas por causa de outras coincidências, em agosto de 2004.
(02:07:00) P1 - Quanto tempo para ficar junto?
R1 - Foi um ano.
(02:07:08) P1 - Fala o nome dela.
R1 - Ela? A Rosiane. Um ano.
(02:07:14) P1 – Aí casou?
R1 - Aí a gente fez a união estável, né? Acho que com dois ou três anos eu fiz a união estável. Aí, quando foi agora, depois da gente parar, o médico do INSS que me atendeu falou assim: “Não, você precisava desses três meses, para dar uma repensada na tua vida. Você vai ficar três meses para descansar um pouquinho, você precisa”, né? Aí eu repensei certas coisas e falei: “Não, está na hora de eu colocar as coisas no lugar”. E aí eu falei: “Você quer casar comigo?” (risos)
(02:07:51) P1 - Quanto tempo depois?
R1 - Já foi agora em... já esqueci quando foi... errou? Não pode perguntar, né? Tem quatro anos, né?
(02:08:08) P1 - 2020.
R1 - Foi 2020. Foi antes da pandemia. A pandemia marca, né?
(02:08:14) P1 - A pandemia foi em 2019.
R1 - Então, quando eu a chamei e falei se ela queria, a gente já estava há 15 anos juntos.
(02:08:30) P1 - Tiveram filhos?
R1 - A gente teve a Fernanda, a mais nova, que apareceu ali.
(02:08:36) P1 - Quantos anos que a Fernanda tem hoje?
R1 - Fernanda hoje tem 19 anos.
(02:08:41) P1 - Ah, então já tem vinte anos aí, de relação.
R1 - É, vinte anos.
(02:08:45) P1 - E ela saiu da Hydro?
R1 - Saiu. Agora só cuida dos filhos. Filhos e eu também tô no meio. (risos)
(02:08:52) P1 - E esse segundo casamento veio diferente?
R1 - Totalmente diferente. A gente não tende a repetir os erros do primeiro, no segundo, né? Tem certas dificuldades, tem os choques de cultura, mas é muito fácil de lidar com ela, ela é bem diferente em relação à primeira, ela é muito mais humilde, é daqui de Itupanema, da beira da praia. Me ajuda, assim: é o ‘braço direito’ e uma parte do esquerdo, né? Ela é a pessoa que ajuda a tomar conta dos meus dois filhos, os mais velhos, que já estiveram morando aqui, comigo, depois de adultos, né? Só saíram daqui quando conseguiram o primeiro emprego. Aí, ela já ajudou a tomar conta dos dois, né? Toma conta aí da minha mãe. Secretária, ela que marca as minhas consultas, ela que paga as minhas contas. Quando eu tô na fábrica, que eu fico lá depois do horário: “Joel, você já almoçou?” Isso sete horas da noite: “Joel, você já almoçou?” (risos) Está preocupada com o almoço. Pergunta se eu vou demorar, que hora que eu vou chegar. Está sempre esperando, às vezes eu chego aqui meia-noite, está aí esperando. Sábado e domingo, imagina você estar aqui na Vila, aí você precisa comprar alguma coisa, precisa ter um carro. Ela teve um acidente com um carro aqui, na garagem, ela ficou com pânico de pegar em carro. Então, imagina eu saindo daqui seis e meia da manhã, num dia de sábado e domingo, feriadão, pra trabalhar, né? Porque da feita que o projeto está pronto para operar, não é feriado que vai segurá-lo. E ela entender isso, né? Eu não tive essa mesma facilidade no primeiro casamento. E ela enfrentou muito mais, né? O primeiro casamento eu ainda trabalhei cinco anos de Albras, que eu tinha... trabalhava oito horas por dia. Aqui não. Agora, de uns tempos pra cá, do início desse ano pra cá, de janeiro, eu passei a assumir uma outra função, que não tem nada a ver com o projeto, é só cuidar de treinamento de pessoas, conduzir um plano de treinamento. Então, não se justifica mais eu sair depois do horário, trabalhar sábado e domingo, fica aquela lacuna. Você fica dez anos numa loucura e de repente cai nesse vácuo, né? Então, ela me pega de vez em quando reclamando: “Não tem nada para fazer, não tem nada de emocionante acontecendo”, mas eu estou na fase de adaptação a essa nova rotina. Aí eu sei também que, quando eu conseguir colocar isso para rodar, eu vou voltar para algum outro projeto. É aquela história: a cada três, quatro anos tem um novo projeto chegando aí e eu vou estar lá.
(02:12:04) P1 - Você falou que você tem muito orgulho de ter dado para seus filhos uma vida diferente daquela que você teve, né? O que você ofereceu para seus filhos?
R1 - Eu ofereci para todos eles a melhor escola daqui, a escola que os empregados estudam. Eles estudaram na melhor escola, todos eles fizeram o curso superior. Então eu tenho a Carol, que é engenheira de meio ambiente e de segurança do trabalho, com pós-graduação. Eu tenho o Mateus, que é engenheiro mecânico e tem pós-graduação. Os dois trabalham. Carol, essa semana, está desempregada, perdeu o emprego essa semana, mas logo, logo ela se encaixa. Eu tenho o Gustavo, que está fazendo o último ano de Engenharia Química. Só não terminou esse ano por causa da pandemia. Então, ele está fazendo o último ano de Engenharia Química, mas já está trabalhando, fazendo estágio na Vale do Rio Doce já vai fazer um ano e meio, com o contrato sendo prorrogado. Tem a Fernanda, que passou na primeira tentativa de vestibular, em Engenharia Elétrica, entendeu?
(02:13:18) P1 - Caramba!
(02:13:21) P1 - Tudo engenheiro?
R1 - Tudo.
(02:113:25) P1 - Alguém trabalhou ou quer trabalhar, seguir os seus passos, trabalhar na Alunorte?
R1 - É difícil para eles. Eu penso o seguinte: o Joel, lá dentro da Alunorte, é como se fosse um fantasma para eles. Então, ou eles vão ter que esperar eu sair, ou eles vão ter que conviver com isso, né? Porque a Carol trabalhou até essa semana, até terça-feira, lá dentro da Alunorte. Ela era engenheira de segurança das contratadas. Então, ela fazia a gestão de contratados, a parte de segurança de contratados ficava com ela lá, na disciplina dela. Então, se ela está lá fazendo uma apresentação, as pessoas a associam ao Joel. Se ela vai perguntar, ela e o Mateus iam perguntar alguma coisa sobre o processo: “Pô, você tem um professor em casa, por que você não pergunta para ele?” Então, às vezes eu tive que chamar alguns colegas meus e falar: “Ei, vem cá, deixa eu ter uma conversa: quando o meu filho te perguntar alguma coisa, você vai responder para ele. Assim como um dia eu te ajudei, agora eu quero que você ajude o meu filho. Ele está perguntando para você, não está perguntando para mim”. Então, as pessoas ainda têm... entendeu? Mas já o Gustavo, ele está nessa aí: se ele vai para a indústria, ou se ele... eu tenho uma esperança de que ele vai seguir a carreira que ele está lá na Vale, pesquisa, o laboratório de pesquisa que a Vale tem, aqui em Belém. Ela tem lá em Belo Horizonte, tem uma aqui em Belém, o ITV. A Fernanda ainda é incerto.
(02:15:01) P1 - E todo mundo está aqui, em Barcarena?
R1 – Todo mundo, todos quatro.
(02:15:05) P1 – Então, são três filhos do primeiro casamento e só a Fernanda do segundo? E netinho?
R1 - É, são dois do primeiro, são dois filhos, a Carol e o Mateus do primeiro casamento, o Gustavo é enteado, entendeu? E a Fernanda do segundo casamento.
(02:15:19) P1 - E esse netinho?
R1 - Ah, um monte! A Carol tem dois, dois meninos, né? Um com quatro, outro com um ano e meio agora. E o Mateus tem uma, com três anos.
(02:15:32) P1 - Como é que ser vô?
R1 – Olha, daqui a pouco vai chegar uma delas aí, a menina vai vir pra cá. Aí, já tem que ficar aí, esperando. É a forma mais tranquila de tomar conta deles: colocar meio palmo de água ali e ficar ali dentro, com eles. Assim, eu e a minha esposa, a gente fala muito disso, né? Quando eles chegam aqui, na tarde de domingo, a casa vira uma loucura, mas é uma correria, é um revezamento de choro, né? Cada um chora num momento diferente. Aí, na hora que dá oito e meia, nove horas, que eles vão embora, a gente fica olhando um para o outro, parece que dá um vazio, falta, entendeu? Eles mudam a rotina da casa. Aí um quer brincar com o mesmo brinquedo que o outro e... antes eles chegavam correndo para ir olhar o lago, agora eles nem ligam para o lago, já quer brincar lá na... com os brinquedos que tem aí na sala, pra eles, né? É o que está acontecendo agora. E eu aquele negócio de ficar adiando, né? “Ah, vou pegá-los e vou levar pra praia”. Ainda não fiz isso, porque eu acho que ainda a idade está muito... pra assumir muita responsabilidade, né? Mas levar no clube, levar numa praia, está chegando dia de eu fazer isso.
(02:16:48) P1 - O que é a parte gostosa na sua vida, hoje? O que você gosta de fazer?
R1 - É que, olha, às vezes, até nos momentos mais difíceis, eu entrava naquele portão ali, trazendo uma atividade pra terminar de fazer em casa, uma planilha, um relatório, fechava aquele portão ali sexta-feira, 18 horas. Às vezes eu o abria na manhã de segunda-feira, sete e meia, pra ir trabalhar. Eu ficava o sábado e domingo aqui, sem sair do portão, trabalhando aqui dentro. Eu não pago as pessoas pra fazer as coisas, eu mesmo faço. Fazer o lago, mexer com as orquídeas, podar as árvores, pegar o coco, fazer o remendo de calçada, lavar o carro, entendeu? O tempo todo tem alguma coisa pra fazer, é uma coisa que não deu certo, desmancha e faz outra. Eu gosto de fazer. Então, os meus colegas já me conhecem por: qual é o machucado do final de semana, né? Todo final de semana eu chego com um arranhão na mão ou no pé, porque eu tô sempre... e as pessoas sabem que eu faço isso. Eu gosto de experimentar. Fazer os vasos de flor de cimento, fazer o torneamento, fazer as mesas... e aí, de uns tempos para cá, se juntou os netos fazendo a bagunça, né? Fazer pipoca para os netos, fazer bolo, fazer sorvete.
(02:18:16) P1 - Que legal!
R1 - É. Está mudando. A gente tinha a casa sempre cheia. Aí, agora, quando chega domingo, o Gustavo vai embora de tarde, para Belém. Tem uma casa lá em Belém, eles ficam lá. É uma kitnet que a gente alugou lá. Aí, quando é segunda-feira, nove horas da manhã, a Fernanda também vai. Aí eles voltam só na noite de sexta-feira. Então, a gente fica de segunda-feira a sexta-feira olhando assim, um pro outro. Não tem nada pra fazer, né? Aquele silêncio. Aí eu falo assim pra ela: “Nossa, mas não estava muito cedo pra gente ficar sozinho”, né? Porque a minha mãe, o fato dela estar aqui é quase que ela fica no quarto. Ela fica no quarto 22 horas por dia. Ela não sai de lá por nada, entendeu? Então, a gente fica sozinho aqui dentro da casa, né? Então, quando chega o final de semana, os dois estão aí, lá no quarto. Daqui a pouco chega uma neta, aí ela já vai fazer eu ficar ‘aceso’, atrás dela. Aí, talvez na parte da tarde chega mais os dois, entendeu? Aí a casa fica cheia.
(02:19:28) P1 - É a parte que você gosta?
R1 - É. Eu gosto bastante. Queria que fosse diferente, mas não deu pra ser tão diferente, né? Porque tanto a Carol, quanto o Mateus acabaram se separando, né? Então, não é família completa. A fotografia nunca é cheia...
(02:19:50) P1 - Ô, Joel, você falou que você cresceu muito na empresa, né? Faz rapidinho, assim, pra mim: você entrou como assim, passou pra isso, pra isso, pra isso, está como hoje?
R1 - Nossa! Uns dois anos atrás eu pedi para a menina lá do HSE fazer o meu perfil profissional, para você dar o andamento na documentação de aposentadoria. E aí ela me entregou aquele calhamaço: “Joel, você é o ‘cara’ que mais promoção já recebeu, eu nunca vi tanta”. Pois é. Então, nos cargos principais, eu comecei na Alunorte em julho de 1995, como operador de sala de controle. Aí eu fui promovido ainda como operador de sala de controle, dentro da própria faixa. Aí quando chegou dezembro, eu fui promovido para supervisor de operação, na época se chamava gerente operacional da digestão. Aí eu fiquei como gerente operacional na digestão, depois eu passei para filtração, que é uma outra área, dentro da empresa. Aí depois eu fui especialista de processo júnior, pleno, sênior, coordenador de turno, gerente de área e agora eu sou gerente de comissionamento, interface de comissionamento.
(02:21:23) P1 - Você imaginava que você ia sair disso pra tudo isso?
R1 - Não, (risos) nunca imaginei. Olha, assim como nunca imaginei, eu nunca bati na porta do meu chefe para pedir aumento de salário. Nunca, nunca. Outra coisa: eu nunca e aí pode ser também por isso, procurei saber o salário dos meus colegas. Então, eu falo isso muito para os meus filhos: quando a gente não sabe o que o outro recebe, a gente não tem cobiça, não se sente desmotivado. Trabalhe e vai aparecer. Comigo aconteceu. Ah, eu tenho desconfiança de que existem pessoas com muito menos bagagem de entrega, volume de entrega hoje, ganhando salário maior que o meu. Tenho desconfiança, mas eu também não gasto nada de energia, para tentar certificar. Eu consigo.
(02:22:29) P1 - Mas não é o caso.
R1 - Mas não é o caso, entendeu? Porque eu acho que não vai agregar, entendeu? Eu tento viver a minha vida com aquilo que vem, controlo as minhas despesas com aquilo que eu recebo. Não tenho cobiça por cargo acima. Se já me ofereceram um cargo acima, não é meu interesse. Mas por que não? Porque eu fui percebendo que, por mais que se fale que as pessoas são as coisas, os ativos mais importantes, quanto mais alta a pessoa está dentro de uma estrutura, menos importância ele dá para as pessoas. Ele passa a tratar as pessoas apenas como uma matrícula, como um número. Ele acaba esquecendo o nome das pessoas. Então, hoje eu ando na fábrica, eu não consigo sair dali da 73 e chegar lá no restaurante sem parar uma ou duas vezes para conversar com alguém. Ao mesmo tempo que, se eu for promovido, eu vou estar com tanta pressa nesse percurso, que eu vou ter que deixar a pessoa falando sozinha e seguir meu caminho. Eu já passei por isso, eu já exerci funções de forma temporária e eu vi que é assim, não me agrada. Puxa, mas se eu recebesse um salário maior, se eu tivesse um carro da empresa, combustível da empresa, eu estaria mais tranquilo, com certeza. Mas não sei, não me vem nos olhos isso, entendeu? Eles me perguntam assim, uma vez a cada ano, na hora da avaliação: “Onde você se vê nos próximos cinco anos?” Aí vai fazer dez anos que eu respondo assim: exatamente onde eu estou. “Como assim? Não pode. Você não pode ficar onde você está. Você tem que querer almejar algo mais” “Não, eu quero que você me valorize onde eu estou, mas eu não quero sair da posição em que eu estou. O problema é teu. Eu não quero sair de onde eu estou. Vocês me deem aumento de salário, pra me manter feliz, mas eu não quero deixar de ser gerente de interface de comissionamento. Eu quero ficar aqui onde eu estou”. Aí passaram a concordar comigo, entendeu? (risos)
(02:24:47) P1 - Você está realizado aí?
R1 - Sim.
(02:24:50) P1 - Qual o legado que você quer deixar?
R1 - Não é um sim de boca cheia, né? Porque de vez em quando a gente se arrepende. Poxa, mas será que eu não estou sendo covarde? Pô, mas a pessoa chegou agora e já é gerente sênior. Por que eu não posso chegar até gerente sênior? Mas eu estou feliz onde eu estou, entendeu?
(02:25:10) P1 - Quer se aposentar lá?
R1 - Eu já posso me aposentar. Essa semana eu já vou dar entrada na documentação.
(02:25:17) P1 - Mas vai continuar trabalhando?
R1 - Vou. Até... não sei, (risos) o momento que eu ver que realmente precisa de eu sair, né?
(02:25:33) P1 - Eu quero saber do seu legado. Que legado? Você já construiu muita coisa. O que, pra você, é importante deixar como legado? Pra todo mundo, pra tua vida, tá? Não é só pra trabalho, não.
R1 - Eu já deixei muito legado na vida, lá dentro da fábrica. Eu estou fazendo um sacrifício bem grande, uma luta bem grande para deixar um legado aqui fora. Quando eu vi os meus dois filhos se casarem e com um ano, um ano e meio se separarem, isso a gente acaba absorvendo como falha nossa. Então, o meu legado eu quero cuidar aqui fora. Eu quero assim: daqui a dois, três anos eu quero estar independente financeiro, para poder passar a ajudá-los, ficar ‘de olho’ nos netos, como é que está sendo a educação dos netos. Porque eu sei que os meus netos não vão estudar na escola que os meus filhos estudaram. Eles não vão conseguir dar a mesma condição que eu dei para eles. E aí eu quero entrar suprindo essa parte, entendeu? Esse é o legado. Eu não vou estar cuidando da molecada lá dentro da fábrica, eu vou estar cuidando mais dos que estão aqui fora. Lá dentro, talvez os maiores... além dos legados que eu já deixei, eu estou fazendo um que vai fazer diferença na vida de muitas pessoas lá dentro, agora, né? A gente conseguiu, eu consegui ‘vender o peixe’ e compraram, de fazer um perfil comportamental de cada um dos duzentos e trinta operadores de sala de controle que a Alunorte tem. Então, ou seja, a pessoa vai se conhecer, a pessoa vai saber qual é o perfil que ela tem, se ela é uma pessoa metódica, se esse metodismo dela está atrapalhando a vida dela, como é que ela lida com isso, como é que ela pode lidar com isso. Então, isso é um legado que está acontecendo agora, está fechando esse relatório lá agora. E aí eu tenho que pegar alguma coisa e trazer cá pra fora. É o que eu tenho trabalhado, ultimamente.
(02:27:48) P1 - E sonhos? Ainda tem algum?
R1 - Tem. Eu quero voltar na França, eu quero ir no Egito. Eu vou fazer ainda. Eu vou pegar a minha TR daqui a uns dois anos e vou pro Egito. Eu vou colocar a mão lá na pirâmide. Esse é meu sonho de criança.
(02:28:09) P1 – Conhecer o Egito?
R1 - Sim. Eu vou fazer isso.
(02:28:15) P1 - Tenho certeza. O que você não fez, né?
R1 - Quando eu era criança e meu pai fazia a maionese do domingo, aí a gente ganhava o vidro da maionese para poder raspar, aí a gente ficava falando assim, um para o outro: “Quando eu crescer vou comprar um vídeo de maionese e vou comê-lo todinho”. Aí eu falo para meus filhos: “Olha aí como é que a vida: eu já tive condições de comprar quantos milhões de vídeos de maionese e comê-lo todinho e eu nunca fiz isso. Então, às vezes, querer não é poder. Mesmo que a gente possa, a gente não...”. Então, é aquela coisa: a gente vai vivendo a vida e vai deixando, vai postergando as coisas. Ah, eu me arrependo de não ser militar? Paciência. Já passou, né? Agora, quando eu vejo meu parente distante, sobrinho, primo de segundo grau, filhos dos meus primos, né, seguindo carreira militar, nossa, pra mim é o que eu queria, estar vestindo aquele uniforme. Então, o meu legado agora é cuidar do que eu tenho aqui fora. Daqui a algum tempo vai estar literalmente só eu e a minha esposa dentro dessa casa. Aí a gente já se pegou pensando assim: “E aí, a gente vai ficar vivendo numa casa deste tamanho, com um quintal deste tamanho?”. Vocês chegaram bem, não caiu nenhuma folha enquanto vocês estão aqui. Mas imagina quando está caindo a folha da mangueira e depois do jambeiro. Aquela calçada ali fica cor de rosa, com a flor do jambo. É muito bonito o pessoal vir pedir a fruta aí depois, mas ninguém ajuda a varrer. (risos)
(02:30:01) P1 - Mas você que veio de tão longe, você é daqui do Pará agora, essa é sua terra?
R1 - Às vezes eu me pego brigando com algumas pessoas, nas redes sociais, por causa de algumas condições que tem aqui, né? Aí a pessoa fala assim: “É, vem lá de Minas pra ficar reclamando aqui, de Barcarena”. Aí eu falei: “Meu querido, tem 35 anos que eu estou em Barcarena. Você não acha que eu tenho direito de reclamar? Eu acho que eu acabei pegando, tomando esse direito”, né? A gente... tem uma foto, naqueles álbuns ali tem foto lá do Arapari. Então, o Arapari, há 35 anos, onde a gente desce da balsa, é exatamente a foto que a gente tem dele hoje. Ou seja, em 35 anos, a única coisa que fizeram lá foi colocar aquele piso de concreto. Então, você ficar num lugar 35 anos esperando pra mudar e não mudar, né? Tem muita coisa que ainda precisa... nossa, nos últimos dez anos, Barcarena mudou e melhorou? Muito. Mas ela está atrasada. Precisava estar mais, entendeu? As pessoas que eu acompanho nas visitas: “Por que tem buraco na estrada? E os impostos que as empresas pagam?” Aí eu falo assim: “Eu não sei te responder. São coisas que eu não sei te responder”.
(02:31:38) P1 - Você ama essa terra, né, Joel?
R1 - Positivo.
(02:31:43) P1 - Dá pra ver. E isso é bonito porque, se você trabalha numa grande empresa daqui, ao mesmo tempo você quer o melhor pra essa cidade, porque você está aqui, seus filhos estão aqui, né?
R1 - Positivo. Ué! A Alunorte, há algum tempo, estava desenvolvendo obra social lá em Belém. Aí eu fui lá e não, eu não sou voluntário mais. Por que você não é voluntário? Porque a empresa tem que, primeiro, impactar quem está ao redor dela, quem trabalha nela. Quantas pessoas trabalham na Alunorte, nas contratadas da Alunorte e moram em Itupanema e moram aqui na Vila e estudam deitados no chão. A escola, você chegou a ver essa parte da escola do Angelim, que as pessoas estudavam deitadas no chão, por que não tinha carteira escolar? A empresa não tem que estar investindo na escola em Belém se a escola dos filhos dos empregados dela, das contratadas estão deitados no chão, para estudar. Os empregados da Alunorte não, os filhos têm lá sala, com carteira, tudo bonitinho, mas os contratados não. Aqui que a gente tem que cuidar primeiro, tem que desenvolver aqui primeiro, depois a faz o resto, entendeu? Construiu aquele ginásio de esporte fenomenal lá e duplicou a estrada que vai pro Caripi. Aí eu me peguei brigando com um ‘cara’ que é político influente aqui, não posso falar o nome, que você deve conhecer, né? Aí eu falei: “Você vai me dizer que isso é prioridade? A prioridade daqui é ter um hospital com leito de UTI. Depois que tivesse o hospital com leito de UTI, aí a gente podia fazer um ginásio e fazer o que...”, entendeu? “Você não quer ser vereador?” (risos) “Não, negativo”.
(02:33:30) P1 - É outro tipo de legado.
R1 - Não, isso eu não quero nem sonhar.
(02:33:35) P1 - Mas aquela casinha pequenininha lá de Minas Gerais...
R1 - Positivo. Nossa, bem diferente. A casinha de Minas cabia dentro... é daqui até lá. É daqui até o final da piscina.
(02:33:52) P1 - Como é que você se sente? Trinta anos de Alunorte, 35 anos de Barcarena.
R1 - Quase realizando. (risos) Falta pouco. E eu não preciso de muito. Eu tenho um colega que morreu. Quando entrava as expansões, porque todo mundo pedia carro para ir e voltar fora de horário, eu pedia bicicleta, para poder andar dentro da fábrica de bicicleta, mais rápido. E os colegas meus pediam carro, colocava no orçamento da expansão um carro para eles, para eles poder virem para casa e voltar de carro. Aí ele falava assim: “O seu problema é que você pensa muito pobre”. Eu penso, porque para mim é um passo de cada vez. Eu nunca fico endividado. Eu sou o mineiro ao ‘pé da letra’. O mineiro dá um passo depois que tem certeza que o pé está no chão. Eu sempre fiz assim. Aprendi isso com a Dona Tanoca, com a Dona Francisca. Eu tenho esse lado dela é muito forte, entendeu?
(02:35:00) P1 - Quem é o Joel de 58 anos?
R1 - Ele não está cansado, ele está desgastado, mas ele está feliz com o que ele tem, não tô deprimido. Eu brinco com uma frase: “Ah, se no meu tempo tivesse YouTube!” Que a minha esposa fica ‘maluca da vida’, que eu fico lá olhando como é que se faz vaso de concreto, como é que se faz hidroponia, aquaponia, pra poder fazer as coisas. Então, eu tenho uma ânsia, ainda, de poder aproveitar isso. E eu sei que, se eu aposentar, eu não vou ter cacife para bancar a quantidade de coisas que eu quero fazer, então eu vou estar trabalhando, para poder realizar essas coisas. Essas coisas quase simples. Uma viagem para o Egito não é uma coisa tão simples assim, mas eu quero fazer.
(02:35:59) P1 - Tem alguma história que você guardou aí, que a gente não chegou nela, que você não me contou?
R1 - Tem. (risos)
(02:36:06) P1 - Alguma que você queira contar, para registrar na sua história de vida? Algo importante para você.
R1 - Quando eu estou fazendo discursos, tem uma cena daquele filme, O Resgate do Soldado Ryan, em que o capitão está morrendo lá, naquela ponte, aí o Ryan chega pra ele, aí ele segura o Ryan e aí ele fala assim: “Faça valer a pena”. Aí eu falo pras pessoas assim: “Faça valer a pena”. Todo sacrifício que alguém está fazendo por você faça valer a pena. A pessoa não está fazendo sacrifício para ficar te jogando na cara: “Eu tô fazendo um sacrifício, tô fazendo um sacrifício, eu tô fazendo um sacrifício”, mas aí a forma que você tem de compensá-la é: faça valer a pena. Então, eu hoje posso falar para as pessoas: “Eu estou fazendo valer a pena”. Quando eu trouxe a minha mãe para morar, quando eu me casei com a Rosiane, quando eu cuido dos meus netos, pros meus filhos poderem trabalhar, quando eu ensino alguém lá dentro da fábrica, quando eu ajudo alguém que vem pedir ajuda aqui no portão. Tem um rapaz que tem mania de vender terra preta para mim, porque ele sabe, ele vê a quantidade de planta, então ele acha que eu preciso de terra preta. Só que eu mesmo fabrico a minha terra preta, com as minhas dez galinhas, lá atrás. Então, eu tenho a minha... eu sou autossuficiente. Mas aí, por que eu compro dele? E é caro pra caramba. Porque é uma forma que eu tenho de ajudá-lo. É como se eu estivesse dando dinheiro, mas em troca eu estou ganhando a terra preta. Então, esse é o conceito que a minha esposa acabou de aprender. Aprendeu também. Ela também pratica isso. Às vezes a gente compra das pessoas que estão passando e algo caro pra caramba, não pelo valor, mas é uma forma que a gente tem de ajudar. A pessoa acha que vendeu. Então, essa é história que eu conto. Eu gosto muito de usar essa frase. Todos os sacrifícios da Dona Tanoca eu tentei fazer valer a pena. Hoje é difícil de tomar conta dela em alguns momentos, mas aí eu me lembro: “Não, ela fez sacrifício por mim também”. E o sacrifício que eu estou fazendo por ela não é nenhuma parte daquilo que ela fazia por mim, entendeu? Eu trabalhar mais do que oito horas por dia, em alguns momentos e ter que trazer pessoas para fazer o mesmo sacrifício junto comigo. Nossa, nesse projeto, nesse último projeto eu estava lá no dia 1º de dezembro, trabalhando com um grupo de trinta, quarenta pessoas. As pessoas estavam do lado, porque elas sabiam que tinha que ter uma entrega e a gente entregou. E a empresa não se cansa de falar pra eles que a gente fez mais do que a expectativa que ela tinha em cima da gente. E aí é bacana a gente ver essas pessoas: “Foi difícil. Pô, você acredita que eu tô sentindo saudade?” Eu falei: “Eu sei, eu falava pra você que naquele momento era difícil, mas que um dia você teria saudade”. E literalmente a gente tem saudade desses momentos, entendeu? Então, não é uma história, né? Eu repito essa frase: “Faça valer a pena. Tudo que você for fazer, faça valer a pena”.
(02:40:09) P1 - Valeu, né?
R1 - Valeu. Não passo reclamar, não. Ok?
(02:40:15) P1 - E como é que foi - minha última pergunta - abrir o coração, contar a sua a história? Como é você se sentiu?
R1 - Já houve momentos em que contar a minha história era mais difícil. Então, em 2017, eu aprendi a lidar com um lado do Joel, entendeu? Eu não gostava de contar essas histórias todas. Minhas histórias se resumiam à vida profissional. Eu sei que à medida que eu fosse ficando idoso eu ia ter muita história para contar e a gente tem. A gente acumula muita coisa. Eu aprendi, em 2017, que não tem como a gente abrir a cabeça das pessoas e colocar o nosso jeito. Elas nunca vão ser iguais a gente. Então, acho que eu passei a viver mais leve. Então, em alguns momentos aqui, da conversa, minha voz embargou e eu consegui controlar. Mas lá dentro da fábrica, quando eu voltei a trabalhar, após o afastamento, eu não conseguia falar. Eu tinha que parar. E as pessoas entendiam isso. Eu passei a ser como se fosse um exemplo. E aí eu comecei até a tomar um cuidado, para que eu não fosse um exemplo a carregar mais pessoas para o buraco. Quando a pessoa está triste e ela vê uma outra pessoa chorando, ela também começa a chorar. Então, eu parei de contar a minha história. Então, agora não, aos poucos eu estou conseguindo voltar. À medida que eu fui separando as fotos, então teve um... não foi agora que eu lembrei tudo. Então, à medida que a gente vai separando as fotos, a gente vai se lembrando das coisas. Então, não foi um choque tão grande agora, entendeu?
(02:42:04) P1 - Mas e saber que a sua história está sendo arquivada, vai ficar no acervo de um Museu da Pessoa? É sua história inteirinha!
R1 - Eu não sei o que vocês vão conseguir...
R1 - Tudo! A história inteira!
R1 - É?
(02:42:17) P1 - É!
R1 - Quando a Silvia passou o correio informando, explicando, ela fez um correio. O correio que a Silvia passou foi muito parecido com os correios que eu passo. Ele é quilométrico. É tão raro de ver correio explicando o porquê, né? Eu acho que, à medida que depois eu fiz contato com cada pessoa: “Olha, você deve ter recebido um correio, uma pessoa vai fazer contato com você, marcando o momento para conversar com você. Eu gostaria que você estivesse disponível, que fizesse um esforço para estar disponível, a gente lembrou de você”. Eu não sei se essas pessoas te falaram que eu estive fazendo isso por fora, né? Aí eu passei o correio para a minha família toda, todos eles têm o correio, né? Chique, né? Aí para o Gustavo, a Fernanda, o Mateus, a Carol, a Rosiane. Aí eu escrevi assim: “Quando eu for embora, vocês vão ter um filme comigo contando a minha história. Pelo menos isso eu vou estar deixando (choro) pra vocês se lembrarem, se eu não conseguir deixar outras coisas”. Aí eles não gostaram muito, né? (choro) Mas literalmente é emocionante. Eu consigo agora controlar mais as emoções, mas no dia, na hora que eu li o correio da Silvia, eu passei esse correio pra eles: “Guardem esse filme, esse filme vai chegar pra vocês”.
(02:43:48) P1 - Vai ficar lá, online, tudinho que você falou vai estar lá e você está em vida, assistindo isso.
R1 - Está bom! (choro)
(02:44:00) P1 - Obrigada, Joel.
R1 – De nada.
(02:43:59) P1 – Coisa linda!
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