Entre Testes e Histórias: Vivências de Uma Década no Cuidado ao HIV.
Celebrar os 40 anos da resposta brasileira à AIDS é olhar para o passado e sentir orgulho de fazer parte dessa trajetória, marcada por tantos avanços na política de enfrentamento.
Há 12 anos sirvo o cidadão iratiense como enfermeira, e todo esse período foi dedicado ao diagnóstico do HIV/AIDS e à assistência às pessoas vivendo com HIV/AIDS.
Nesses 12 anos de vivências, pude acompanhar a implantação do teste rápido como ferramenta de ampliação do acesso ao diagnóstico no SUS. Na sequência, participei do processo de descentralização da testagem rápida dos Centros de Testagem e Aconselhamento para a Atenção Básica, novamente como uma importante estratégia de ampliar o acesso e garantir o diagnóstico precoce. Os casos novos de pessoas vivendo com HIV dispararam nos indicares, evidenciando uma epidemia silenciosa, onde muitos não sabiam sua condição em virtude da latência e assintomatologia da infecção.
Sorri de alegria em 2015, juntamente com os pacientes que eu assistia, ao recebermos a notícia de que os antirretrovirais seriam ofertados a todos, independentemente do grau de imunossupressão. Em meados de 2017, vibrei com a incorporação da PrEP na rede pública, com a simplificação da indicação da PEP e com a possibilidade de quebrar a cadeia de transmissão do vírus por meio da oferta do tratamento para todas as pessoas, na busca pela desejável indetecção da carga viral e, consequentemente, pela sua intransmissibilidade sexual.
Mas, ao olhar para todo esse avanço da política de enfrentamento ao HIV — mundialmente reconhecido — também emerge o sentimento de inconformismo ao lembrar de cada vida afetada, não apenas pelo vírus, mas pela vulnerabilidade social e pela falta de acesso provocada por fatores alheios ao cidadão, em uma época em que a PrEP e demais ferramentas ainda eram apenas uma promessa.
Nesse contexto, recordo de...
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Entre Testes e Histórias: Vivências de Uma Década no Cuidado ao HIV.
Celebrar os 40 anos da resposta brasileira à AIDS é olhar para o passado e sentir orgulho de fazer parte dessa trajetória, marcada por tantos avanços na política de enfrentamento.
Há 12 anos sirvo o cidadão iratiense como enfermeira, e todo esse período foi dedicado ao diagnóstico do HIV/AIDS e à assistência às pessoas vivendo com HIV/AIDS.
Nesses 12 anos de vivências, pude acompanhar a implantação do teste rápido como ferramenta de ampliação do acesso ao diagnóstico no SUS. Na sequência, participei do processo de descentralização da testagem rápida dos Centros de Testagem e Aconselhamento para a Atenção Básica, novamente como uma importante estratégia de ampliar o acesso e garantir o diagnóstico precoce. Os casos novos de pessoas vivendo com HIV dispararam nos indicares, evidenciando uma epidemia silenciosa, onde muitos não sabiam sua condição em virtude da latência e assintomatologia da infecção.
Sorri de alegria em 2015, juntamente com os pacientes que eu assistia, ao recebermos a notícia de que os antirretrovirais seriam ofertados a todos, independentemente do grau de imunossupressão. Em meados de 2017, vibrei com a incorporação da PrEP na rede pública, com a simplificação da indicação da PEP e com a possibilidade de quebrar a cadeia de transmissão do vírus por meio da oferta do tratamento para todas as pessoas, na busca pela desejável indetecção da carga viral e, consequentemente, pela sua intransmissibilidade sexual.
Mas, ao olhar para todo esse avanço da política de enfrentamento ao HIV — mundialmente reconhecido — também emerge o sentimento de inconformismo ao lembrar de cada vida afetada, não apenas pelo vírus, mas pela vulnerabilidade social e pela falta de acesso provocada por fatores alheios ao cidadão, em uma época em que a PrEP e demais ferramentas ainda eram apenas uma promessa.
Nesse contexto, recordo de uma jovem mulher que, aos 27 anos, buscou o Centro de Testagem e Aconselhamento onde atuo, em busca do teste rápido diagnóstico. Emagrecida, pálida a ponto de anunciar uma anemia profunda, carregava em seu colo um bebê de 1 ano e meio. Durante o aconselhamento, relatou ser mãe solo de cinco crianças e que recorria à prostituição como fonte de sobrevivência da família que chefiava. Disse ainda que o motivo da testagem eram comentários surgidos no meio social sobre uma possível infecção pelo HIV, devido à sua aparência fragilizada, e que desejava fortemente apresentar um laudo não reagente para cessar os comentários preconceituosos que prejudicaram seus ganhos nos últimos meses.
Coletado o teste rápido, enquanto aguardávamos os 15 minutos para a leitura, a jovem gentilmente puxou sua blusa e expôs o seio para amamentar o bebê, que chorava em busca de consolo materno.
“Que bacana, amamentação prolongada?”, indaguei.
“É uma forma de complementar o alimento, que anda caro, né, moça?”, respondeu.
Observei aquela cena, aquela troca entre mãe e filho, quando constatei algo que me deixou sem reação, sem fôlego. Num impulso quase primitivo, pedi para segurar o bebê — com o objetivo de interromper rapidamente aquela amamentação — e o tomei em meus braços.
O teste rápido havia reagido. Ainda precisaríamos realizar o teste confirmatório, mas ali já nascia uma suspeita que me deixava, enquanto enfermeira, diante de um caso inédito: revelar o diagnóstico de uma infecção pelo HIV a uma jovem de 27 anos, comunicar a necessidade de cessar a lactação, realizar a testagem no bebê exposto e, caso descartada a infecção, garantir a profilaxia necessária. Haja estrutura emocional!
A consulta de enfermagem foi realizada: o aconselhamento pós-teste, com a revelação do diagnóstico, ocorreu com cuidado e sucesso; os exames iniciais foram agendados para dali a dois dias; consulta médica marcada para a semana seguinte; inibidor de lactação prescrito; PEP HIV infantil prescrita e dispensada sem intercorrências após afastada a soroconversão; todas as orientações foram dadas com atenção e respeito.
No entanto, aquela jovem mãe, que chorava em desespero ao saber de sua condição, sofria muito mais pela necessidade de interromper, de forma tão abrupta e violenta, a fonte de afeto e nutrição mais rica que poderia oferecer ao filho, do que pela própria infecção.
Esse aconselhamento pós-teste rápido ficará para sempre guardado em minha memória, como lembrança viva de tantas vidas ceifadas em uma era pré-PrEP. Essa valiosa ferramenta de prevenção poderia ter impactado e mudado o destino de mãe e filho naquela ocasião. Por isso, essa lembrança serve como combustível para continuar lutando por políticas públicas de acesso para populações em vulnerabilidade e pela incorporação por novas e mais tecnológicas ferramentas de prevenção.
Que sejam celebradas todas as formas de combinar prevenção gratuita e equânime para todos.
Salve o SUS!
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