P/1 – Renato, você pode falar o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Eu me chamo Renato Justiniano Loredo, sou natural de Santos, nasci em 06 de outubro de 1951, uma quarta-feira, só para constar.
P/1 – Seus pais são de Santos?
R – Meu pai era natural de Santos, ao passo que a minha mãe era de São João da Boa Vista.
P/1 – Como que é o nome do seu pai?
R – Meu pai era Edegard Justiniano de Loredo, ao passo que a minha mãe chamava Maria de Jesus de Loredo.
P/1 – E o seu pai, ele nasceu em Santos?
R – Correto.
P/1 – E seus avós, os pais dele?
R – Também eram naturais de Santos.
P/1 – Você sabe o nome deles?
R – Eu sei da avó que era Maria Senhoria de Loredo.
P/1 – O que seus avós faziam em Santos?
R – Meu avô, eu não posso precisar, mas minha avó era dona de casa.
P/1 – Mas você não conheceu o seu avô? Não teve contato com ele?
R – Não, não.
P/1 – E a sua avó? Como é que era?
R – Eu não conheci minha avó também pessoalmente, haja visto que ela morreu em 1947, mas através da minha finada mãe, soube como que era a minha avó e ela era gente fina.
P/1 – E você sabe alguma coisa da infância do seu pai, como é que foi?
R – Sei. Foi bem legal, ele jogava bola inclusive lá em Santos, em alguns clubes lá da várzea, até entrar no ramo cafeeiro, o café ainda estava no auge, chegou ao posto de fiel de armazém, na Companhia Aliança de Armazéns Gerais, em Santos.
P/1 – Mas ele trabalhava desde pequeno? Como que foi a vida dele?
R – Sempre trabalhou, sempre trabalhou. Concomitantemente ao esporte que ele fazia, ficava jogando bola, porque o futebol naquela época não dava dinheiro como dá hoje, então tinha que trabalhar. Uma atividade que proporcionasse o sustento. Então ele conciliava bem o futebol, esporte com o trabalho dele na Companhia Cafeeira.
P/1 – E ele tinha mais irmãos?
R – Não.
P/1 – Filho único?
R – Ele tal igual eu, também sou filho único.
P/1 – E a sua mãe, ela veio da onde?
R – São João da Boa Vista, neste estado mesmo.
P/1 – E os seus avós, a família dela era de lá?
R – Eu não posso precisar, acredito que sim, mas eu nunca entrei nesse detalhe, então eu prefiro não falar, para não mentir.
P/1 – E você chegou a ir para São João da Boa Vista?
R – Nunca.
P/1 – E você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Também não.
P/1 – E aí, você nasceu em Santos?
R – Nasci em Santos.
P/1 – E em que lugar de Santos?
R – Numa instituição chamada Gota de Leite.
P/1 – É um hospital?
R – Seria uma maternidade e também onde acolhia aquelas pessoas, que lá existia a Roda dos Expostos, então aquelas crianças rejeitadas, alguns devem saber o que é a Roda dos Expostos, né? Onde as mães deixavam os filhos, é que nem quando você vai no hotel, você pede a sua safra, a pessoa vem, serve você e você vira onde está, sabe? Ali ficava a… a minha Roda dos Expostos é isso.
P/1 – Eu não entendi.
R – A Roda dos Expostos é um dispositivo que tem hoje você vai num hotel, num motel, você pede uma refeição, pede um lanche, a pessoa vem pelo lado de fora, põe no local e você por dentro, você gira e a refeição vem para você, seria uma roda dos expostos atual. Antigamente, era a criança, a mãe que não tinha condições, ela punha ali, as irmãs de caridade giravam e a criança estava dentro, então se chamava Roda dos Expostos.
P/1 – Então, você não foi criado pelo seu pai e pela sua mãe?
R – Não, estou falando que eu nasci num localidade, na Gota de Leite, que inclusive existia a Roda dos Expostos…
P/1 – Ah, lá ficava lá nesse local?
R – É, nesse local também tinha, como em outras instituições, Santa Casa de São Paulo também tinha.
P/1 – Que bairro que era?
R – Era no bairro de Boqueirão em Santos, na Avenida Conselheiro Nébias, até hoje está lá essa instituição.
P/1 – E você morava em casa?
R – Morava em casa, um chalé, que nós chamávamos de chalé que em Santos tinha muito chalé, ou seja, de alvenaria seria só a cozinha e o banheiro, o resto era tudo de madeira.
P/1 – Como que era lá dentro, assim?
R – Muito gostoso, com alpendre, hoje chama-se varanda, no meu tempo era alpendre, né, e pomar, a 100 metros da praia do Gonzaga, muito legal, a minha infância em Santos foi muito boa mesmo.
P/1 – E como é que era o Boqueirão naquela época?
R – O Boqueirão não posso dizer, sei falar da Pompeia que era o bairro que eu morava, um bairro que pouca gente conhece, mas fica situado entre o Canal 1 e o Canal 2, é um quadrilátero limitado pela Francisco Glicério e a orla da praia, a Presidente Wilson. Ali passei a minha vida inteira, muito gostoso, não tinha trânsito, era diferente, violência nem existia. Então nossa, Santos era demais, era muito bom, tempo do bonde, andei muito de bonde, nossa, era muito legal mesmo, mas o que eu mais gostava era as 15 horas quando passava um português, que hoje eu acho… quando você deita naquele gramado, hoje eu vejo isso, mas naquele tempo eu não via a hora do português passar por causa de um sonho que ele vendia, esse sonho você… tive depois, né, tive em grandes doceiras, tive na Colombo no Rio, aqui em São Paulo, Ofner, Dulca, comi sonhos mas nunca achei o sonho da minha infância. Ganhei um prêmio numa rádio que fica situada em Mogi, fui lá pegar o prêmio, desci na estação ferroviária, eu olhei, um senhor com um vidrinho assim, um tripé, eu olhei, primeiramente, você vê o visual, eu olhei, falei: “Aquele é o sonho da minha infância”, e não é que eu comi e era o sonho que eu levei 40 ou mais anos para… e achei, então só para constar, mas eu gostava muito de Santos naquela época, das 15 horas, quando passava fom, fom, apertando a buzina: “Meu sonho”, então é isso ai.
P/1 – Quais eram as suas brincadeiras de infância?
R – Tinha muita coisa gostosa, mas o que eu sempre gostei muito além de ler, porque logo que eu comecei a ler, antes de entrar na escola eu já sabia alguma coisa. E tinha um vizinho meu chamado Wladimir, ele é até mórmon, me chamou uma vez na casa dele, era amigo do filho dele, também era o Junior, Wladimir Junior, e me deu duas caixas de tomate, com uma preciosidade, chamada “Seleções”, talvez vocês conheçam aquela publicação, naquela época era editado em português, ainda, em Portugal ainda, depois passou a ser editado aqui no Brasil, mudou a diagramação, ficou uma porcaria. E aí, peguei o gosto pela leitura e então, palavra cruzada que eu sempre fiz na minha vida, desde a eternidade, eu fiz palavra cruzada como até hoje. Se você me encontrar, eu estou com um livro e palavra cruzada, sempre fazendo. Foi muito gostoso. As brincadeiras nossas também eram jogo de botão, futebol de mesa, mas o meu era no chão lá, então fazia uns botões, não esses comprados em lojas, nós improvisamos com celulose de relógio, com tampa de brilhantina, tinham umas brilhantinas chamadas Gessy, então fazia de coco também e era imbatível, defendia o São Bento, embora eu sempre fui santista mesmo, mas tinha uma quedinha pelo São Bento de Sorocaba, então o meu time sempre foi São Bento, aí fazia com a caixa de sapato, fazia o ônibus do time, tal, era muito legal, mesmo.
P/1 – Onde que vocês jogavam?
R – Ah, jogava… não fala isso, na casa dos outros, mas aí eu fiz na minha casa, a minha mãe quase… poucas vezes, minha mãe ralhou comigo, mas essa vez foi jogo duro, porque eu peguei a chave de fenda e era taco, né, era novidade até o taco e eu fui, perfurei tudo, fiz toda a marcação do campo, passar p giz para depois fazer… quando ela viu os tacos todos perfurados com a chave de fenda, ela ficou louca comigo, mas…
P/1 – Você fez direto no chão?
R – No chão, é isso mesmo, porque falam que é futebol de mesa, mas nós jogávamos no chão e era muito legal.
P/1 – Além do mórmon, que outros amigos você tinha que você lembra dessa época?
R – Ah, eu tinha assim, o Itamar também que era filho do meu barbeiro, eu gostava do Itamar, mas não gostava do pai dele porque no meu corte de cabelo era só americano baixo, eu queria um corte, mas era só americano baixo, eu queria morrer com aquele tal de americano baixo…
P/1 – Como que é americano baixo?
R – Parecia um reco, sabe, de quartel e eu nossa! Mas o filho do seu Itamar que era Itamar também foi um grande amigo meu de infância e as brincadeiras que nós tínhamos na rua que infelizmente hoje, essa molecada nem conhece que é o taco, pula cela, acusado, tinha algumas brincadeiras, o bolso esquerdo, se você tivesse com alguém, de bolso esquerdo, você dizia: “Bolso esquerdo”, o que você tivesse no bolso esquerdo, você perdia. E tinha o “Macaquinho Gosta”, essa era uma boa, você ia comer o macaquinho gosta, o cara que ia comer pedia licença, aí você não podia, mas você surpreendia. E eu, às vezes, também era surpreendido, principalmente com doce de leite, que eu sempre gostei de doce de leite e de banana. “Macaquinho gosta, Renatinho”, aí eu: “Toma” (risos) “Que nojo”, não comia, então eu tinha essa estratégia, cuspia para não dividir (risos), isso mesmo.
P/1 – Eu quero só voltar um pouquinho na praia.
R – Na praia, a primeira vez que fui foi muito interessante que até hoje tem na praia do Gonzaga tem, só para constar, o jardim das praias de Santos estão no livro dos Recordes como os maiores do mundo, feitos pelo homem. E lá, temos na Praia do Gonzaga, duas esculturas bem grandes, são tigres assim, um leão e eu fiquei encantado, era moleque, entrei na praia e não queria sair mais, nesse dia, cometi um… vamos dizer, cometi esse erro, fui comer banana, na verdade, joguei fora o interior da banana e ia comendo a casca, entendeu? Então, o meu primeiro dia da praia foi isso aí, nunca mais esqueci aquelas duas imagens daqueles bichos e a situação da banana que até quando a minha mãe queria tripudiar de mim, dizia: ‘Olha a banana, vou te dar a casca da banana”, então marcou muito essa situação aí.
P/1 – Mas você brincava na praia, você costumava ir sempre?
R – Muito, muito. Na praia, aprendi a nadar, esporte na praia também, futebol, tudo, sem poluição, graças a Deus naquela época e também, outra coisa que marcou muito para mim nessa época de cinco, seis anos, foi a chegada do Pelé na Vila Belmiro, em Santos, Gasolina na época ainda, não era Pelé. Então, assisti a chegada dele e outros craques naquele que veio a ser o maior time do mundo, desculpe a minha falta de modéstia, mas o Santos, realmente, nas décadas de 60. Então acompanhei toda aquela situação, fugi de casa para ver o Santos ser bicampeão, nossa! Fui para o Maracanã, moleque, tinha 11 anos e consegui chegar no Rio de Janeiro, fugindo de casa para ver o Santos.
P/1 – Como é que foi essa viagem?
R – Foi uma peripécia, eu vim de trem até São Paulo, depois me lembro que consegui me enfiar no meio do ônibus, era a rodoviária antiga, na Duque de Caxias. E fui, entrei junto com uma senhora, ela nem me conhecia, mas acho que o motorista não tinha o rigor que tem hoje de pedir documentação e entrei, passei uma fome daqui até o Rio, mas cheguei no Rio, fui para o Maracanã, foi uma odisseia mesmo.
P/1 – Você foi sozinho?
R – Fui sozinho, meti as caras. Eu era santista, já era sócio do Santos, que antes de nascer meu pai já: “Vai ser santista”, como eu fiz com o meu filho e obriguei a mulher também, também são santistas desde o ventre da mãe.
P/1 – E você ia muito na Vila Belmiro?
R – Sempre!
P/1 – Tem um jogo assim, que te marcou…
R – Tem, 11 a 0, Santos e Botafogo quando o Pelé fez oito gols. Esse jogo foi maravilhoso e não dá para esquecer realmente, né? 11 a 0 com Pelé e companhia, com oito gols do Pelé e o Santos naquela época, não tinha… era o maior time do mundo! Hoje, o Barcelona, o que é hoje não chega aos pés do Santos, modéstia à parte, mas vou falar a verdade, não tinha para ninguém!
P/1 – E você jogava bola?
R – Sempre brinquei um pouco como goleiro. Então, os meus ídolos sempre foram os goleiros do Santos, Manga, Laércio, Zé Milano, Claudio, aí veio Cejas, Rodolfo Rodriguez, Santos sempre teve goleiros… agora, temos ali com um meia boca lá, mas eu sempre gostei de ser goleiro. Já que na linha, sabe quando você não joga nada? Os caras falam: “Vai para o gol”, e aí ia para o gol, no gol podia fazer macacada que sempre gostei de pular, fazer aquelas piruetadas todas, então… sempre gostei de jogar bola, sempre pratiquei esportes.
P/1 – Como é que era dentro da sua casa? Quem exercia autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – Olha, naquele tempo, a mulher, diferentemente do que é hoje, a mulher se ligava só a vida doméstica mesmo, então não vou dizer que mandava, mas realmente, quem capitaneava tudo era o meu pai, sempre foi o homem, naquela época sempre era o homem, porque a mulher era só a lida domestica, mesmo.
P/1 – Quando você era pequeno, seu pai estava trabalhando do quê?
R – Ele era fiel de armazém, trabalhava com café, na área do café.
P/1 – O que faz o fiel de armazém?
R – O fiel de armazém toma conta, fiel depositado é um armazém onde tem um milhão de sacas de café, né? Porque era o Ouro Verde, a nota que era, hoje se tiver um armazém com um milhão de sacas, naquele tempo, não. Então, ele era fiel, ele tomava conta e classificador também, aquele que fura os sacos e qualifica o café e prova o café também. Achava interessante, achava meio nojento, meio interessante, já viu como é que prova o café e classifica? Bota a xicara numa mesa aqui, gira, ai a pessoa [som de aspirar e de cuspir] e só ali, eles sabem classificar. Eu acho que é mais interessante que isso só a pessoa que conhece o sexo do pintinho de um dia, que eu também não sabia, fui ver como é que funcionava, porque pinto de um dia é exportado e vai até para outro país, então no aeroporto eu vi, tinha uma japonesa, ela pega dez de uma vez só, pega dez pintos e ela dá uma assoprada assim na cloaca, ali atrás do… e tem um negócio quase imperceptível, mas ela consegue notar para separar o que é macho e o que é fêmea porque o macho é descartado para permanecer só a fêmea. Então, depois do classificador de café que prova e [som de cuspida] e fica cuspido, eu acho que aquela lá de sexóloga de pinto, não, é o certo mesmo, é uma… sem falar no apontador de cavalo que é pior ainda, esse aí nem vou falar.
P/1 – Como que é apontador de cavalo?
R – O apontador tem um segundo lá que ele vai ali, na hora que ele vai ejacular, pessoa tem que pegar o membro do cavalo e pôr na pipeta, que é enorme, evidentemente para pegar o sêmen do cavalo. Então é uma profissão que é jogo duro também. Tem outras também…
P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, essa prova de café, você via lá, você ia no porto?
R – Não.
P/1 – Onde que acontecia?
R – Como acontece na zona cerealista em São Paulo também, só que não é com o café, é com outros artigos. A pessoa fica com um furador e ele tem uma saída, aí a pessoa dá uma furada, o cara está passando, o cara dá uma furada e já vem. Ai, ele já vê o tipo de café, se é Conilon…
P/1 – Mas isso era no cais do porto?
R – Não, no armazém onde o meu pai trabalhava.
P/1 – Que ficava na região portuária?
R – Na região portuária, chama-se Valongo, hoje foi restaurada, inclusive o Museu do Pelé foi feito lá no Valongo, é um lugar muito gostoso, até uma sugestão, quando for a Santos, pega o bondinho, vai lá, vai no Museu do Café, dá uma volta por Santos antigo que é sensacional e não deixa de ir no Museu do Pelé.
P/1 – E a do pintinho você viu onde?
R – A do pintinho vi no aeroporto de Guarulhos, quando eu trabalhava no DHL, eu era da agente de carga internacional e aí tem uma japonesa que pega dez pintos de uma vez só, como homem é muito malicioso: “Pega dez pintos…”, né, fui ver lá, que todo dia tem, o embarque do pinto de um dia e é verdade. Para Grécia, não sei para onde vai e a pessoa tem essa função, que tem até concurso, como tem de limpador de janela, não tem? De prédio, para ver quem é mais rápido? Tem concurso também de… e a japonesa pegava dez de uma vez só e assoprava e vai separando e a margem de erro dela pode acreditar que é só de 1% a 2%, ela é eficaz mesmo.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho aqui. E você teve algum tipo de formação religiosa?
R – Tive, católica apostólica… eu fui batizado, eu fui crismado, fiz Primeira Comunhão e era coroinha. Aí, em decorrência do Chico Buarque de Hollanda, fazer umas situações aí que ele fazia, nós começamos a fazer em Santos também, me desviei da Igreja e depois, tomei um caminho que até hoje… entendeu?
P/1 – O que é?
R – No nosso tempo…
P/1 – Que caminho que é?
R – Eu vou falar para você só uma curiosidade, eu posso citar. A música popular brasileira hoje tem Chico Buarque de Hollanda porque um dia ele roubou um carro. Hoje, roubar carro é para delinquência, para fazer assalto, na nossa época, na década de 60, nós pegávamos carro apenas até acabar… cinco, seis moleques para fazer uma zoeira, acabava a gasolina, deixava onde parava e tudo. E eu vendo a molecada fazer aquilo, comecei também a fazer aquela zoeira toda e eu fiquei sabendo que a situação do Chico foi isso também, porque ele fez um carro uma vez e foi pego e o juiz determinou… faltava 172 dias para ele passar a maioridade e o juiz determinou que esse período de seis meses, quase seis meses, faltavam oito dias para seis meses, ele não podia sair à noite. Aí, a Miúcha falou: “Chico, isso é um violão”, e dali tal, bom, o resto vocês já sabem, Chico Buarque é isso. Então, pode pôr que a música popular brasileira hoje tem o Chico Buarque de Hollanda graças a um roubo de um carro que aconteceu aqui em São Paulo no Sumaré, que ele morava com a família aqui no Sumaré, mas é verdade.
P/1 – Nós vamos chegar aí. E com quantos anos você entrou na escola?
R – Eu sempre tive… com uns cinco anos, prezinho, era jardim de infância, hoje fala prezinho e fui embora. Sempre estudei.
P/1 – Como que era o nome da sua escola no primário?
R – A primeira foi… no prezinho, Marquês de São Vicente, depois passei para o Grupo Escolar Municipal Barão do Rio Branco, em Santos. Fiz no Canadá, o Estudo de Educação do Canadá, também em Santos e no Primo Ferreira em Santos.
P/1 – Como que você ia na escola quando você era pequeno, com sete anos?
R – Olha, no início do ano letivo, o comportamento era dez e a aplicação era sofrida. Aí, passando o tempo, você ia… inclusive os boletins… no final do ano, aplicação, oito, nove, mas o comportamento… porque aí você vai se soltando, vai dando nome aos bois, vai aprontando alguma coisa…
P/1 – O que é dando nome aos bois?
R – Vai se apresentando, que nem uma vez eu fiz uma… o Santos ganhou uma partida dificílima do Palmeiras, ficou na história esse jogo, foi 7 a 6 para o Santos, todo mundo… sabe. E eu cheguei na escola, dei uma mordida no Ibrahim Cury, sobrinho do Élcio Bolinha Cury, né, mas não foi para… ele era santista, nos encontramos no dia posterior a esse jogo e eu dei uma mordida, arranquei aqui e ai fui para diretoria, quase fui expulso, minha mãe esteve lá e aquela situação toda. Mas é uma das passagens que eu me lembro lá da escola. A primeira namoradinha também, que na verdade, não era bem uma namoradinha, me enamorei de uma professora chamada Ada Lascala, foi irmã até do prefeito que ganhou, mas não ganhou porque morreu antes de ser empossado num acidente automobilístico e virou até nome de avenida em Santos, Avenida…
P/1 – Quantos anos você tinha quando se…?
R – Nove anos.
P/1 – Você se enamorou da professora?
R – É, aquela situação, sempre tem aquele…
P/1 – Como que ela era?
R – Pra mim, ela era uma deusa muito legal, chamava Ada Lascala.
P/1 – Do quê você mais gostava de fazer na escola?
R – Das brincadeiras do intervalo, porque nós íamos jogar bafo, figurinha e os lanches que… era bem diferente, mas eu gostava muito do intervalo, porque… saber também que a metade da aula, do dia já estava indo embora, mas eu gostava muito do intervalo, futebol na quadra, aquele negocio todo. Então, gostava do intervalo, além das aulas que a Dona Ada Lascala me dava.
P/1 – Tinha alguma matéria que você gostava de estudar?
R – Sempre gostei muito de Português. História também, acho que não tem uma situação, eu sempre gostei bastante de todas assim, mas o português para mim, que inclusive até hoje, gosto muito de escrever, já fiz alguns garranchos aí, não posso nem falar que é livro, mas fiz alguma coisa no papel.
P/1 – Você comemorava festas na sua casa?
R – Sim…
P/1 – Que tipo?
R – Todos meus aniversários, todos os aniversários meus, inclusive, eu em 63 anos, que já são completados, posso falar que em 50 anos choveu no meu aniversário, então me lembro de uma situação que o meu pai já armava uma lona lá na situação da chuva, que era dia 6 de outubro chovia. E me lembro de uma situação que uma vez, estavam assando um pernil, coisa parecida e eu fui mexer lá, fui mexer na cozinha, molecão, fui lá e não estava… a tampa da pimenta do reino não estava… e eu fui virar, caiu tudo e ai, eu espalhei tudo lá, ficou ardido aquela carne que eu acredito que era um pernil, coisa parecida. Me lembro bem da situação e me lembro também, era um buffet muito famoso em Santos, chama-se Bien Amour, que os meus aniversários sempre foram feitos com esse buffet. Era na minha casa, mas tudo…
P/1 – Contratava o buffet?
R – É, contratava buffet, tive pajem, tudo, porque o café naquele tempo era o ouro verde, realmente, o café dava muito dinheiro…
P/1 – O seu pai ganhava bem?
R – Ganhava muito bem, não posso precisar, mas eu posso dizer que ele ganhava bem, o café era o maior produto de exportação do Brasil era o café.
P/1 – Como é que o seu pai era com você?
R – Meu pai era muito amigo, embora eu tenha perdido ele com nove anos, mas até onde eu me lembro, o meu pai era muito… era enérgico, mas tinha muito diálogo, lamentei inclusive ter perdido ele tão cedo, que eu sei que a minha vida seria de outra forma, porque ele, mais ou menos, alguma coisa eu herdei dele, ele era perdulário, hoje eu posso dizer que ele era perdulário porque eu também fui, sabe? Não pensou assim, tanto é que quando ele faleceu, minha mãe ficou numa situação difícil, não deixou a peteca cair, mas teve que lavar roupa pra fora, uma situação assim…
P/1 – Do que o seu pai morreu?
R – Meu pai morreu de câncer no esôfago, uma morte rápida. Vou contar a história da morte dele. Porque nós viemos de Santos, me lembro… de Santos não, viemos de Campinas, de um passeio, quando chegamos em casa, tinha uma árvore em frente a minha casa, essa árvore foi plantada mais ou menos em 55, 56. E tinha a Romiseta, foi o primeiro carro nacional feito no Brasil, que bateu nessa árvore quando ela estava em formação, ela cresceu, mas onde a Romiseta bateu ficou um nicho, ficou um buraco, uma cavidade e nós chegamos de viagem, vou falar o que aconteceu realmente, tinha um despacho, não era muita coisa, mas era um alguidar com pipocas, e como estava em frente a nossa porta, meu pai, com o pé, pôs para fora assim, tirou da árvore para pôr no meio fio, jogar… e a minha mãe ainda alertou ele… isso foi no início, acho que nós fomos passar Finados lá em Campinas. Do dia 15 para o dia 16 ele faleceu, ele não tinha nada, não tinha problema de saúde. Então, tem situações, às vezes, na vida da gente e coincidentemente, o que eu quero dizer é que ele era devoto de São Judas Tadeu, nós tínhamos lá em casa uma imagem de São Judas que ficava dia e noite iluminada por algo que chamava lamparina, que é onde você põe a água, depois óleo e a lamparina, muitos não conhecem, era uma velinha que vinha num… você punha e acendia num… podia acabar o óleo que não apagava. Quando o meu pai estava internado, veio uma tia com um nome até sui generis, nunca vi ninguém chamada Ardai, mas o nome dela era Ardai de Almeida dormir em casa, haja vista que a minha mãe estava fazendo companhia… estava dormindo no apartamento da Santa Casa com o meu pai, que já… e acordei com a minha tia andando na sala do dia 15 para o dia 16, dia 15 de novembro até por ser um feriado, acordei, minha tia andando, falei: “O que foi, tia?”, moleque de nove anos, ela falou: “Engraçado…”, dentro do quarto não sopra vento e nem nada, e tem oxigênio para não apagar e apagou a lamparina com óleo e tudo, aí, ela tornou a acender, dali a dez minutos, minha mãe chegou com o carro, veio buscar roupa e falou: “Edgard morreu agora, faz 15 minutos”, ela falou: “Nossa! A lamparina de São Judas apagou agora”, então é uma situação inexplicável, mas acontece, pode acreditar que tem mais coisas entre o céu e a terra que pode contrariar a nossa vã filosofia, ou o nosso pensar, sei lá, por ai.
P/1 – E você estava onde?
R – Eu estava em casa.
P/1 – Você estava em casa?
R – Estava.
P/1 – Como te contaram?
R – Eu notei quando a minha mãe veio buscar, tal, chorosa e eu sabia que o meu pai não estava bem, porque aconteceu uma situação assim, meu pai teve câncer no esôfago e teve que pôr uma… ele se alimentava através de sonda, mas no dia 15, feriadão, ele pediu uma canja e minha mãe fez uma canja e não sei como que ele comeu a canja oralmente, coisa que não dá porque ele era alimentado só por tubo aqui. E eu sempre soube e hoje entendo que quando a pessoa está mal e tem uma súbita melhora, você pode acreditar… pode encomendar o caixão que ali é só para dar mesmo aquele último alento e estamos aí. Foi o que aconteceu com o meu pai. Então eu sabia disso aí, fui no enterro, não dava para… com nove anos, mas sabia que ali seria algo… uma perda mesmo, deu para notar que a coisa ia mudar, como de fato, mudou mesmo.
P/1 – O que mudou?
R – Mudou pelo seguinte, nós morávamos numa casa de aluguel, embora nunca meu pai pensou em comprar nada e a Dona Miquelina, da casa tinha 80 casas de aluguel, mas logo foi lá, ela pediu a casa, entendendo que a minha mãe com a pensão de viúva dela não ia dar para manter, sei lá, o aluguel, então notei bem isso. No fim, ela padeceu muito e a minha mãe que até ela falecer, que essa mulher era muito sovina, muito ruim. A senhora vê, vou até contar uma história interessante, porque 80 casas de aluguel em Santos, ela comprava bife… comprava, ela arrumava bife de fígado, punha no sol para ficar putrefato, ficar preto, aí ela punha na perna com plástico e ficava pedindo esmola, é mole uma situação dessa? E eu, moleque, mas não esqueço disso, mas na hora de morrer ela padeceu muito, os filhos nem iam lá, só paravam: “Dona Lurdes…”, que é minha mãe, chamavam ela de Dona Lurdes, não tinha Lurdes no nome dela, mas chamavam de Dona Lurdes, minha mãe: “Graças a Deus”, aí os caras ficavam loucos porque queriam que a mãe morressem para entrar no espólio dela e ela na hora de morrer foi muito difícil, minha mãe teve que acender… tem situações que só os mais antigos sabem, enquanto minha mãe não acendeu uma vela, pôs uma mão nela e rezou o credo, ela não… porque ela ia e voltava, ia e voltava. Mas minha mãe já tinha experiência porque quando o meu pai estava internado no apartamento da Santa Casa, o dono da casa do lado, que seria hoje uma Casas Bahia, seria uma Marabraz, lá em Santos era Casa do Rádio, uma potência do seu Bechara, Jorge Bechara, ele estava mal e não tinha um apartamento, um homem daquele, lá na Santa Casa e pediu se a minha mãe deixava usar a cama lá no quarto e ele também faleceu, ficou lá uns dois, três dias, morreu o turco também devia ter sido muito ruim, porque ele ia e voltava e a minha mãe usou esse mesmo expediente da vela. Então, já tinha experiência de como e quando a Dona Miquelina morreu, já fez como fez com o Bechara, ai rezou o credo…
P/1 – Mas ela fazia isso sempre?
R – Fazia.
P/1 – Mas o quê que é? Tipo benzedeira?
R – Simpatia, cobra ali e aqui com a saia rezando e a cobra ia se enrolando ali, pessoas que têm aquele conhecimento mesmo, além de pegar ervas e saber o que fazer, para que servia cada erva e tudo…
P/1 – Como que era? Ela tinha isso? Quando você ficava doente ela dava uma erva?
R – É, porque eu tive muito doente, eu tive bronquite mesmo asmática e foi através das ervas… as ervas curam e é verdade, me lembro que um dos primeiros livros que eu li falava de ervas e ela sabia todo esse negocio… pessoal do mato, né, assim, que sabe.
P/1 – Você lembra de algum chá, alguma coisa que ela te fazia?
R – Sempre… eu lembro que ela fazia mas se eu falar como era, i não dá, não posso.
P/1 – E os vizinhos sabiam disso? Procuravam ela?
R – Ah sim, procuravam ela também, não como feiticeira, nem nada, mas como uma pessoa que realmente podia por uma via secundária fazer o bem que a medicina não fazia, emplastros, ventosa, não sei se vocês conhecem, até sanguessuga ela sabia usar.
P/1 – Como que é sanguessuga?
R – Sanguessuga é passar o tratamento, você usa ela que ela faz o trabalho que a ventosa faz, formiga também para cicatrizar, você não precisa dar ponto, formiga você pode usar para fazer a… em vez de costurar, fazer uma sutura, a formiga também que ela usava para fazer… coisa que só o pessoal que conhece mesmo. Agora, era ela na verdade, uma cozinheira de mão cheia, não conheci ninguém que fazia um pudim de pão como ela, entendeu? E outros pratos, mas o pudim de pão dela, nunca mais na vida. Minha mãe era cozinheira mesmo de forno e fogão mesmo muito boa, me lembro disso, por mais simples que fosse a comida, era uma delícia. E dei sorte que a minha esposa também cozinha muito bem.
P/1 – Aí, seu pai faleceu, sua mãe teve que começar a trabalhar fora?
R – Ai é…
P/1 – Como é que foi?
R – Aí tivemos que sair de casa, tudo, muito guerreira, fomos morar num quarto e cozinha…
P/1 – Vocês foram morar onde?
R – Em Santos mesmo, a situação era diferente, só que na minha lancheira todo dia tinha o meu lanche, material escolar, nunca ela deixou a peteca cair, minha mãe foi uma batalhadora, inclusive com falta da leitura e tudo, mas minha mãe era exemplo, pra mim, quer dizer, eu tive muita sorte de ter tido uma mãe como ela, o pai também, mas a mãe principalmente, era muito guerreira.
P/1 – Ela foi trabalhar do quê?
R – Ela lavava roupa para fora, tinha três clientes bons e inclusive, um era um guarda rodoviário que aconteceu uma cena que eu nunca esqueço, embora moleque. Ele tinha 28 anos, o nome dele era Regino Goncalves de Oliveira e ele foi dar uma multa numa senhora, dona Clotilde, ela tinha o dobro da idade dele, que era 56, e tinha também algumas auto-escolas em Santos, que era novidade e daquela abordagem policial, acabaram tendo… ficaram amasiados e fomos ver um filme chamado Ben-Hur, um épico, muito famoso. Em Santos, no Cine Roxy, policial era guarda civil, não essa de agora, guarda civil que antigamente existia que era a nível estadual, era força publica e guarda civil. E me lembro que tinha um guarda civil em farda de gala, branco com azul, era muito bonita a farda de gala da guarda civil e Oliveira era da força publica, né, conhecia o… só que estava eu, minha mãe, ele e a dona Clotilde, que na verdade, era amante dele, era o caso dele e o policial que não podia nunca apresentar também que era amante, falou assim: “Vem aqui Oliveira, traz a sua mãe também”, eu me lembro… eu moleque, me lembro do constrangimento que aconteceu da situação ali, mas então não esqueci, faz tempo, acho que em 62, mas me lembro dessa situação aí. Depois de um tempo, de muitos anos, eu passei uma situação mais ou menos parecida, que eu arrumei uma moça com 18 anos e eu com 51, aquelas puladinhas de cerca, eu tinha noção do ridículo, mas tinha hora que não tem jeito, inevitável de alguém que te pega e você fica…
P/1 – Você precisou começar a trabalhar cedo?
R – Eu comecei a trabalhar cedo, com 11 anos numa oficina mecânica, com um espanhol chamado seu Rodriguez, trabalhava só com carro bem antigo, evidentemente, mas antigo já naquela época em 62, 63 e era um espanhol catalão e eu ficava admirado que ele falava umas coisas, eu posso falar aqui, depois se você não quiser, você edita, ele falava assim: “Me cago na puta madre que lo pariu”, e eu achava que ele falava aquilo, achava que era o maior pecado, depois eu fui entender. Aí um dia para ele me dar um vale, eu briguei com ele, ele me deu um vale que eu ia para São Roque, aí fomos para um bairro de São Roque chamado Canguera, tinham duas adegas lá que nós íamos… tudo moleque, moleque de 12, 13 anos, nós pegávamos o trem em Santos, ia até São Roque, buscar vinho e moleque, entrava embaixo daquelas parreiras, já viu como é o parreiral? É muito gostoso, com uma sombra verde embaixo e aí nós tomávamos só o vinho branco que é água com açúcar pra nós, né? Não sabíamos que o teor alcoólico é até mais forte do vinho, aí tudo bêbado, tal, aí na segunda-feira, levei um litro que eu trouxe de São Roque para o espanhol para fazer uma média, haja visto que na sexta-feira, na hora de ir embora que ele me deu o vale, saí brigado, xinguei e tal porque eu queria mais dinheiro e ele: “Que legal! Minha filha está aí com o meu genro e tal, vamos fazer uma paella e tal”, e eu moleque nem dava… quando eu volto do almoço, esse homem está com uma manivela, quem não sabe, manivela é quando o motor não pegava, punha a manivela na frente para… entendeu? E me sai correndo… sabe o que aconteceu? O pessoal enquanto eu estava na volta bêbado, conseguiram destampar o vinho batendo por baixo, tiraram a rolha, beberam o vinho, urinaram dentro do vinho e fecharam. E na hora da mesa lá, imagine o auê quando serviu o vinho: “Esse veio de São Roque, o Renatinho que trouxe”, aí até explicar para o espanhol, quase me mandou embora, não fui embora porque a minha mãe foi lá, ele entendeu o que os moleques… mas foi uma situação interessante com esse espanhol. Aí, de lá eu fui trabalhar numa outra empresa que marcou época, porque o cara teve uma boa ideia. Ele fez uma firma chamada “Cobranças Coringa”, então a roupa era vermelha, mas era bem bonito, tinha uma faixa branca, eu gostava muito daquele… então a primeira vez, eu… só tinha eu trabalhando lá, só eu tinha coragem de trabalhar na “Cobranças Coringa”, aí o coringa ia na porta de alguém, todo mundo: “Nossa, fulano está devendo…”, porque o coringa em Santos, todo mundo sabia que você era caloteiro (risos), então várias vezes… aí a primeira vez, eu ia e levava uma carta: “Solicitamos o seu comparecimento no escritório para tratar de assuntos do seu interesse…”, a maioria, 90% no dia seguinte estava lá porque não queria o coringa na porta, por quê não queria o coringa? Porque a segunda vez, eu ia, você não ia, na terceira vez, você já viu coringa no baralho? Polichinelo, ele tem…
P/1 – Você usava isso?
R – Era isso, então…
P/1 – Mas você usava essa roupa?
R – Na terceira vez. Cobrancas Coringa, ia eu e o seu Nelson. Ele com a zabumba e eu com a sanfona, ninguém tocava nada, mas fom, fom, fom, era o coringa e todo mundo via o coringa… uma vez, tivemos que sair correndo, então foi muito legal. Só que um dia ele fez uma besteira lá que aí acabou, mas ele tinha uma ideia boa, porque você chegava lá e falava: “O Lucas me deve e tal, fulano de tal me deve 100 reais”, então, fechava o contrato, nós vamos receber do Lucas, 40% é nosso e 60% é do… só que o meu patrão recebia tudo e não devolvia, aí foi essa situação. De lá, passei para uma empresa chamada L. Merlini Companhia Limitada que era de máquina de escrever, Remington, aquelas máquinas antigas, aí ali fiquei até 16 anos, 17 anos, quando eu fui convocado para o Exército, que eu pensei que eu não ia, porque eu era arrimo de família, tinha pé chato, tinha não, tenho ainda o pé chato, eu achei que não ia servir, mas como a Dilma e seus seguidores, Zé Genoíno, Luiz Gushiken, o próprio Lamarca estavam barbarizando, eu então não tinha mais arrimo e nem nada, me pegaram a laço e eu entrei no quartel. Fui convocado, mas ainda faltavam uns dois, três meses para eu entrar no quartel e aconteceu um chacina. Em São Vicente, uma chacina mesmo, um cara tomado por um espírito, ele saiu do centro espirita dele que era no Jardim Úrsula, um bairro em São Vicente, passou por outro bairro chamado Catiapoã e veio para um outro centro e nesse passeio, ele matou quatro mulheres, tomado pelo espírito, entendeu? E ai, nesse outro centro que ele foi se amasiar lá, ele foi morto lá e tal, puseram ele na Kombi… na hora que o cara foi sair com a Kombi, um aparelho ali, uma castanha, se chama castanha, sabe como é, já viu a alavanca de câmbio da Kombi para fazer a ligação do eixo que vai para casa do câmbio, soltou ali, mas eu como tenho experiência em mecânica, entrei embaixo e consegui arrumar ali, que o pessoal queria tirar o defunto para lixar o defunto, de tão revoltado que o coração estava porque ele fez aqueles quatro homicídios, inclusive num dia que era feriado, 22 de janeiro é feriado na cidade de São Vicente que para quem não sabe é a primeira cidade do Brasil, célula nata da nossa nacionalidade. E ele empanou mesmo. E o cara ali, desesperado, o cara da funerária falou: “Renatinho, amanhã vai lá, que a gente vai tomar um guaraná e tal”, quando cheguei lá, o cara falou… o dono, seu Rodriguez falou: “Você está fazendo o quê?” “Fui convocado para o Exército” “Vem aqui dar uma força” “Fazer o quê?” “Recolher cadáver”, aí eu fui e trabalhei então no rabecão assim, e era interessante, porque naquela época, na praia não tinha essas divisões todas que tinha, era uma praia imensa…
P/1 – Como assim, recolher cadáver?
R – De terça, quarta-feira, pessoal de São Paulo descia e enchia a cara, ia pra praia e morria lá. Então, na terça, quarta-feira que sobe, quando estoura o céu é que dá a tona o cadáver. Então, ia, tinha cadáver em Soarão… uma vez nós viemos apostando: “Olha lá”, então se eu ganhasse, se tivesse certo, ele pagava um guaraná, se ele achasse o cadáver, visse o cadáver primeiro, eu tinha que pagar uma pinga para ele.
P/1 – Guaraná é pinga?
R – Guaraná ou pinga. Aí, fiquei ali até entrar no quartel. Aí, entrei no quartel em 1960, 16 de março. Hoje é 19, então, hoje está fazendo 44 anos e três dias que eu comecei a servir o quartel lá em Santos, no Batalhão de Caçadores e o Brasil foi tricampeão do mundo e eu estava servindo o quartel e eu tive o prazer de ter o Clodoaldo, que era da seleção, o Clodô servindo lá comigo, e ele foi até campeão, foi muito legal. E fizemos uns exercícios para treinamento para a gente combater os guerrilheiros no Vale do Ribeira, que o governo do estado desconhecia o Vale do Ribeira, sabia que tinha e tal, mas nunca tinha dado atenção e os terroristas fizeram lá os aparelhos, não sei se você sabe, o aparelho era onde se reuniam e levaram até o Alberto Mendes Junior que foi morto lá pelo Lamarca a coronhada, quando ele roubou aquele caminhão… aí é outra história do Brasil.
P/1 – E na juventude, quer dizer, vocês foram para São Roque, mas ainda era tipo 11 anos… quais eram os programas da adolescência?
R – Depois nós éramos caranguejeiros. Caranguejeiro em Santos tem a Cinelândia, onde tinha 11 cinemas em Santos, então escolhíamos o carro, entrou no cinema, então nós sabíamos que teríamos duas horas para andar com o carro. Então, nós pegávamos os carros para aquela onda, então naquele tempo, a nossa diversão realmente era furtar os carros para ficar andando lá, quando pegava um JK, nossa! Mas tudo moleque, fazíamos aquela bagunça tudo…
P/1 – Como que vocês faziam para roubar carro?
R – Era simples. Nós pegávamos uma colherzinha do bar e tirava a concha dela, passava num poste e pronto, você estava com a bicha, a gente chamava de bicha. Se eu um Simca não precisava nem nada disso, porque se o Simca não estava em ré, ele só travava o volante quando você dava ré e travava, que se tivesse no ponto morto ali, era só tirar o fio com chiclete e ir embora com o Simca, só não podia esquecer, pôr a ré e ai, né, travava o volante, com a Kombi a mesma coisa, também não precisava. Nós fazíamos essa onda toda, primeiro escolhia os carros, mas aqueles carros, né, Aero Willys, Dkv era uma situação. Então, ai apostava o pessoal do Macuco, um bairro que tem em Santos também, nós de Campo Grande íamos a pé, aquelas corridas, aquelas coisinhas de moleque mesmo.
P/1 – Vocês pegavam o carro e davam um rolê, como é que era?
R – Até acabar o combustível.
P/1 – Aí largava?
R – Largava. Pegava outro, então era isso ai.
P/1 – E vocês nunca foram pegos?
R – Eu fui pego aqui em São Paulo, foi a minha primeira passagem pelo juizado, que viemos com um Simca de São Paulo, eu dirigindo o Simca…
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu tinha meus 15 anos, de 14 para 15 anos e uns cinco, seis moleques. Chegou no Ipiranga hoje onde é a Dois de julho, mas naquela época não sabia, aí entrei na contramão, ai pus a ré, sabe, instintivamente, aí craw, travou o volante, aí já deixamos o carro, andando, ai dali a pouco a guarda noturna que naquele tempo tinha guarda aqui em São Paulo, me pegou e lá fui eu para o juizado de menores, PM.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – É, na Celso Garcia, onde depois virou a Fundação Casa e tudo ali…
P/1 – Você ficou quanto tempo?
R – Eu fugi. Fiquei uma semana só.
P/1 – E avisaram a sua mãe? Como é que foi?
R – Nada disso, não avisaram nada, aí no sábado… entrei na madrugada de domingo, ai no sábado seguinte, na hora do banho lá, que só tomava banho sábado, eu pulei os muros e saí por trás na marginal do rio Tietê, onde tinha a DPM, alguém conhece a DPM lá? Nunca foi num show na DPM lá, nem nada, na polícia militar? Naquele tempo, era da guarda civil. Aí, saímos ali, nadei no Tietê que não era tão poluído e fui embora até chegar lá na ponte do Tatuapé, ai arrumei um dinheiro e voltei para Santos.
P/1 – Como é que você arrumou o dinheiro?
R – Eu não arrumei, na verdade, quem arrumou foi o… nós fugimos em três, eu, o alemãozinho, gaguinho do morro São Bento e o negro _____00:43:58_____, eles roubaram bolsa de uma mulher, aí me deram… eles iam ficar em São Paulo, me deram o dinheiro, eu subi na Penha, tinha uma empresa chamada Santa Rosa que saía da Penha pra Santos, passando pelo ABC. Eu era moleque, mas conseguia entrar… eu sabia qual era o ônibus, perguntei e entrei no ônibus, fiquei lá. Na hora que o motorista foi puxar o ônibus para o ponto, me viu, eu falei: “Não, eu estou aqui com a passagem”, até contei uma história, era tudo careca naquele tempo no juizado, mas foi Deus mesmo que deixou eu ir, cheguei em Santos devia ser… foi cinco horas, devia ser umas dez horas da noite, onze horas eu já estava com carro roubado lá em Santos (risos).
P/1 – Mas aí você chegou e sua mãe? Como…
R – Estava desesperada, né? Mas nem fui para casa, fui para o Marapé que era o bairro mais pesado lá em Santos, junto do Macuco, aí já conhecia: “Mujica chegou”, me chamavam de Mujica, né, Zé do caixao, Mujica chegou e ai…
P/1 – Mas você não ficou assustado de ter…?
R – Não, nada! Já tinha uma tendência, acho que já estava preparado para o que eu ia passar.
P/1 – Da onde você acha que saiu essa tendência?
R – Acho que é inato mesmo. Já estava em mim mesmo, não dá pra… sabe, aquela situação, às vezes, nasce com a pessoa.
P/1 – E quando você chegou em casa, você falou para a sua mãe? Ela sabia que você tinha sido… tinha passado pela casa de…?
R – Eu estava meio revoltado porque… teve um problema que aconteceu comigo que eu não declinei ainda, eu fiquei sabendo que eu não era filho legitimo com dez para 11 anos foi quando… então, fiz uma rebeldia, isso aí era uma situação mais de rebeldia do que de outra coisa, embora registrado assim, eu não era realmente o filho daquele casal que me criou e eu fui saber isso ai através da minha mãe biológica, que foi lá em Santos e…
P/1 – Com quantos anos?
R – Com dez para 11 anos.
P/1 – Ela apareceu, sua mãe biológica?
R – Apareceu.
P/1 – E te procurou? Procurou sua mãe?
R – Teve lá… porque na verdade, eu vou explicar, depois, como o meu pai fez tudo certinho, preto no branco e tal, conheceu minha mãe, aí fui saber que era de Campinas e tal. E aí, nasceu uma irmã minha chamada Regina e ela convidou os meus pais adotivos para serem padrinhos da menina, então viraram compadres. Meu pai já tinha falecido fazia um ano e pouco, quase dois anos quando ela esteve em Santos. A minha mãe falou: “Essa aqui é comadre Maria Ruth lá de Campinas”, tudo bem, “Sempre vamos na casa dela”, mas eu me lembro quando aconteceu uma situação do meu pai, você se lembra que eu falei que nós estávamos voltando de Campinas? Ela ficou lá uns dois, três dias, passeou comigo e na hora de embora, ela falou bem baixinho: “Ela não é a sua mãe, a sua mãe sou eu". Eu que pus você no mundo”, aí eu não tinha discernimento naquela época de saber como que… mãe ou pai, na verdade, é quem cria, e não aquela que põe no mundo, e aí partiu, a minha rebeldia começou aí.
P/1 – E por que ela não te criou? Você sabe por que ela te deu?
R – Sei. Fui saber, fiquei com 18 anos, eu fui atrás dela, queria até… fui lá para matar, com umas ideias até, mas ela me deixou comentado que ela tinha 14 para 15 anos quando ela me teve e não tinha condições realmente, então foi isso.
P/1 – E por que o seu apelido é?
R – Primeiro, nessa época, foi Tião Medonho. Tião Medonho porque teve um assalto do Ronald Biggs ao trem pagador em Glasgow, lá na Escócia, lá na Inglaterra e aqui no Brasil, como o Brasil sempre copia as coisas, tivemos um assalto ao trem pagador também na Central do Brasil, não sei se vocês conhecem. Foi liderado por uma pessoa chamada Tião Medonho. E nós fomos ver Assalto ao Trem Pagador aqui com o Tião Medonho, a história real, mesmo, Moqueca foi preso e tal. E quando saímos do cinema, já roubamos um carro, eu o seu Gaspar, que era o Gasparzinho, eu chamava ele de Fantasminha, porque era Gaspar e o Soneca, Antônio Carlos Raimundo, era o Soneca. Aí, eu estou lá atrás, aí o Soneca falou para o Gaspar, eles estavam na frente: “Precisamos arrumar um apelido para o Renatinho”, eu no meu íntimo falei: “Tião Medonho”, porque no filme ele foi o… né, ai o Gasparzinho falou: “Tião Medonho”, eu falei: “Tião medonho não, está vaiado”, esse vaiado seria está fora, mas na verdade é que mais querendo que fosse “Vai ser Tião Medonho mesmo”, aí eu falei: “Tião Medonho”. Depois de muito tempo passou para Mujica por causa do cadáver…
P/1 – Mas ai vocês saíram do cinema…
R – Já saímos roubando um carro e tirando uma onda, é como… a diversão assim em Santos era roubar carro pra… era o caranguejeiro, era o termo certo.
P/1 – E depois Mujica?
R – Mujica em decorrência de eu estar trabalhando no rabecão, é isso mesmo. Mujica está até hoje. E no sistema mesmo com o meu pai era Santista, porque eu soube Santos, então sempre foi Santista.
P/1 – Aí, esse dia que você fugiu daqui da casa de detenção para menores, vocês foram para o mar a pé, já…
R – Eu fui sozinho, eu desci a serra sozinho… eles ficaram em São Paulo.
P/1 – E aí?
R – Cheguei lá por volta das dez, depois de cinco horas da tarde, umas dez horas eu estava lá, porque demorava a viagem porque passava pelo ABC todinho, essa Santa Rosa, empresa de ônibus, onde é o Shopping Penha, ali era uma mini rodoviária, e de lá, saía o ônibus Santa Rosa que passava pelo Ipiranga, depois passava no ABC e descia a serra. Então, cheguei lá era umas dez horas, deu onze horas estava montado lá o carro e estava tirando a onda, só fui aparecer em casa no outro dia.
P/1 – Mas você nunca tinha roubado. Eles que roubaram essa bolsa para você vir com o dinheiro?
R – Aqui em São Paulo foram eles: “Espera aí, espera aí que a gente já vai arrumar um dinheiro”, roubaram uma bolsa de uma mulher lá e me deram dinheiro para eu ir embora. “Fica ai” “Não, quero descer para Santos, vou ficar fazendo o que aqui?
P/1 – Mas você não participou desse roubo?
R – Não. Do roubo, não. Eu tinha saído… nós estávamos tudo molhado, inclusive. Nós fomos por dentro do Rio Tietê, entendeu? Com medo de ser recapturado, porque se fosse recapturado naquele tempo ia apanhar muito lá dos monitores, dos tiozinhos lá. Aí, conseguimos. Eu fui sozinho para Santos.
P/1 – E ai até você fazer Exército, vocês roubavam carros, devolvia…
R – Era aquela onda de Santos…
P/1 – E você chegou a ser preso outra vez?
R – Algumas vezes, vixe Maria!
P/1 – Antes do quartel?
R – Antes, muito, muito!
P/1 – Por causa do carro?
R – E outras situações também…
P/1 – Quais são as outras?
R – Calça Lee, hoje tem mais, mas calça Lee era artigo de luxo, então se tivesse uma calça Lee no varal, ia buscar lá no terceiro andar a calça Lee para vender, era coisa de moleque…
P/1 – Como assim?
R – Você ia roubar calça Lee do varal para vender…
P/1 – Dos outros?
R – Era Lee, Cony e Wrangler, era tudo importado, então aí passamos a fazer coisas mais pesadas, que era pirata, nós invadíamos o navio pelas amarras do navio, que o pessoal chegava no porto, vai todo mundo para boate, eles querem mais é se divertir, o navio fica só uma pessoa tomando conta que é o vigia. Aí, nós invadíamos os camarotes, pacotes de cigarro naquele tempo, Marlboro, que era tudo… sombrinha japonesa, quando você via sombrinha, era japonesa, não existia, então era isso aí. Depois, comecei a fazer intercâmbio…
P/1 – Como é que vocês entravam no navio?
R – Pelas amarras. O navio não é amarrado? Então, aquelas cordas, tinha que passar pelo detentor de ratos, que todo navio tem uma placa que não dá… porque senão, o rato invade, entendeu? Então, você tem que fazer assim, igual ao alpinista quando escala a montanha, né, na mão ali, você tem que dar… quando é moleque é um pouquinho mais esperto, aí no navio, tudo é… às vezes, tinha até os caras lá, mas tudo bêbado…
P/1 – Mas vocês entravam onde? Nos quartos? Nas cabines?
R – É, nas cabines deles lá dos tripulantes.
P/1 – Escondia, levava uma mala?
R – Lá arrumava, não tinha… moleque improvisa, não dá par falar. Como roubava leite também de manhã, naquele tempo era leite em litro, aí de manhã, maior larica, a gente fumava, aí ia lá pegava o leite, o pão para… o jornal do dia, aquelas situação de moleque que a gente faz mesmo.
P/1 – E vocês fumavam maconha?
R – Ah sim! Mas maconha, não o que os caras falam que é maconha, que hoje os caras fumam alfafa e falam que é maconha, fumam excremento e “Muito louco”, se pegasse um cabeça no meu tempo, você ia ver o que era bom. E fora os… e até moderador e desobstruidor nasal, nós tínhamos Rinosteg, Corizen e Destilazia, tudo para desobstruir e tinha efedrina, aí nós púnhamos uns dez comprimidos numa gripa que para quem não sabe é seringa e ó, aí você mordia a língua…
P/1 – Que barato que dava isso?
R – Ah você morde muito e fala muito… eu viajei por tudo, de cogumelo, do boi, você vai atrás do cogumelo do boi, nós íamos para Trindade naquele tempo, Iporanga, hoje não pude nem entrar em Iporanga, virou um condomínio fechado a praia de Ipiranga, então, onde o boi ia, nós íamos atrás. Ai, leite moça em cima e alucinógenos, cogumelo, chá de lírio…
P/1 – Que viagem que você tinha com cogumelo?
R – Muita coisa! Mas o pior foi Artane, Artane é a pior coisa, porque Artane é para quem tem epilepsia, mas você toma oito, dez, onze, nós tomávamos, você fala mesmo assim, você olha, não tem ninguém do seu lado, aí você tá fumando, o cigarro já não tá mais, Artane é jogo duro. Artane… mas graças a Deus, sempre voltei, porque tem alguns que não voltaram, foram e ficaram viajando para o resto da vida.
P/1 – E a sua mãe sabia de isso tudo?
R – Ficava muito desgostosa. Devia saber pelas atitudes, por tudo, né, a maneira de ser, o comportamento, demonstrava que não estava…
P/1 – Ela te cobrava?
R – Não. Ela não me cobrava, depois que eu falar… acho que ela não sabia como lidar com a situação, então não me cobrava. Eu também era moleque, a gente era meio rebelde, estava meio perdido mesmo, estava fadado a passar… estava traçado mesmo pra acontecer o que aconteceu na minha vida.
P/1 – E ai, você chegou a servir o Exército?
R – Servi o Exército.
P/1 – Como é que foi isso?
R – Ah, foi muita bagunça, eu sempre pensava o que aprontamos no Exército, eu aprontei, mas muita coisa errada, mesmo! Tanto é que o Brasil foi tricampeão do mundo dia 21 de junho de 1970, um domingo. Eu entrei na hora que começou o jogo no México, o México não tem fuso horário, o mesmo horário do México e aqui no Brasil é a mesma coisa, 16 horas lá é 16 horas aqui, a mesma coisa. Começou o jogo do Brasil contra a Itália, final, que nós fomos tricampeões, 4 a 1. E eu entrei às 16 horas no posto, era G1, que eu era um soldado bem caxias, mesmo, coturno brilhando, o cinto brilhando, então só dava G1 que é o posto principal. Aqui é P1, que é posto, lá era G1, que é guarita. Aí terminou, a hora que eu saí, às 18 horas, o Brasil já era tricampeão do mundo, a maior festa. Eu me lembro que eu saí fardado mesmo com roupa e fui festejar em Santos, dali a pouco, sabe quando você está se sentindo levado em trupa, assim, ai eu olhei era a guarda… lá em Santos, tem a patrulha mista, aqui em Santos tem a Aeronáutica, a Marinha, aí me levaram de volta para o quartel, já preso. Chega lá, o oficial, Tenente gente fina, “O Brasil tricampeão, me perdoa”, aí às dez horas, estava dentro do porto de novo lá como se nada tivesse acontecido. Só uma coisa que eu quero deixar bem claro, eu nunca bebi nada, até hoje, não bebo um copo de cerveja, não bebo nada de alcoólico, não bebo nada, nem em passagem de ano, nem no casamento, nada, eu não bebo nada. Então, nunca bebi. Então tem essa situação, mas em compensação…
P/1 – E ai, você no… você ficou um ano?
R – Fui expulso… fiquei…
P/1 – Você foi expulso do quartel?
R – Ah, aprontei muito, porque aprontaram comigo também, eu era muito levado da breca e aproveitei… teve um… chama-se estágio Voz de Comando, foi um exercício preparatório para poder encarar os guerrilheiros subversivos, inimigos da pátria e até Presidente Miguel . Eu fui, né, simuladamente fui, fui parar num país chamado Esbolávia, todos pelados, os brasileiros porcos, eles com bomba desinfetando a gente, estávamos presos mesmo, campo de concentração, tinha que cantar o hino deles, até hoje eu me lembro do hino, mas eu não cantei o hino, mas a letra para mim não saiu da cabeça.
P/1 – Como que era?
R – Falava assim: “Avante Populi, facciamo hino, Viva Lenini, Viva Lenini. Facciamo briga, facciamo guerre, Viva Brejenev. É um povo livre, um povo feliz, na Esbolávia, nostro país, é um país, um povo feliz, na Esbolávia, nostro país. Esse é o país dos proletários, não tem covardes, nem tem otários. Democracia é só para trouxas, pobres e fracos e para gente frouxa. É um povo livre…”, mas aí o nostro país, aí eu não quis cantar: “Esse brasileiro porco não quer cantar o nosso hino, camarada, leva ele pro médico”, aí me levaram para o médico, nu. A maioria estava nu, dentro do centro de concentração. Aí tá bem grande na placa assim: “Veterinário”, estava escrito na placa, né? Aí entrei, um sujeito barbudo, gordo, nossa! “Ei camarada médico, esse brasileiro não quer cantar nosso hino, vitamina pra ele”, sabe o que era vitamina moça? Um litro de um garrafão de cinco litros, mas de vidro, era um garrafão bem grande de vidro escrito assim bem grande: “Óleo de Rícino”, um copo americano duplo, aqueles que nem tem mais cheio, eu quis brigar, me segurou, eu tomei, não preciso nem falar que o efeito é imediato. Aí, levaram eu e mais uns cinco ou seis para algo chamado Poço dos Desejos, onde cabiam cinco, mais ou menos uns dois metros de altura, puseram uns dez lá, todo mundo daquele jeito, tampavam com uma tampa de aço, batendo em cima, aí dali uns cinco minutos abriu: “O último a sair, fica”, olha o sofrimento! Aí sai dali, entra no Túnel do Amor, que é esse barril de 200 litros enterrado no chão assim, sabe, você pode sair por dentro, uns cem metros para dentro do barril. Aí, o tobogã era novidade, tinha chegado o tobogã em 1970, aí fomos para o tobogã, era de ponta cabeça, aquela situação toda. Aí consegui, eu e mais uma turma lá, estourar uma parte da cerca e sair correndo e invadimos. Só que fugimos em uns 40, nós éramos 310 homens, uns 40 fugiram comigo. Eu sempre tive essa situação de liderança…
P/1 – Como é que você articulou a saída?
R – Pelo canto da cerca, mais no fundão, porque nós sabíamos, tínhamos sido instruídos que por volta das quatro e meia da tarde, eles iam estourar uma parte da cerca para deixar nós fugirmos, porque nós saímos do acampamento na madrugada, no último dia, depois de uma semana de treinamento lá, sobrevivência na selva, orientação noturna, diurna e o último teste seria o centro de concentração. Então, nós saímos às cinco horas da manhã dentro do comboio fechado, mesmo dentro daquelas rotas todas e aí, nos levou a dez quilômetros do acampamento e quando abriu assim, nós estamos já no centro de concentração. Esperamos até de manhã e aí, entramos no centro de concentração. Sabíamos que às quatro e meia, ia estourar um parte da cerca para nós fugirmos e tentarmos localizar o acampamento. Aí, chegando no acampamento… entendeu como é que é? Mas nós não sabíamos onde estava o acampamento, só que por volta de uma hora, uma e pouco da tarde, eu e mais um monte estouramos uma parte lá e os caras: “Não é agora”, que não é agora, e o nosso medo era a cerca ficar pendurada, porque sabíamos que… ai, saímos aquele monte pelado, depois de uma hora, mais ou menos de caminhada, chegamos…
P/1 – Vocês estavam pelados?
R – Pelados, boa parte pelado. Aí, eu fiz uma folha de bananeira…
P/1 – E onde que vocês deram? Essa saída da cerca dava onde?
R – Vou te explicar, estávamos andando a esmo, não sabíamos nem para onde íamos…
P/1 – Pelados?
R – Pelados. Ai, eu pus uma flor de bananeira assim e eu: “Ô de casa?”, cheguei num sitio de plantação de banana, mas só que o Exército jogava panfletos antes informando que ali ia ter um exercício, inclusive com tiros reais e tudo. É no limite de Itanhaém e São Paulo, sabe que São Paulo faz limite com Itanhaém, não sei se vocês sabem, inclusive de São Paulo, você vê a praia. Se você for lá na ponta da zona sul, onde faz divisa com Itanhaém, lá de cima você vê a praia, então dá para avistar a praia e nós estávamos ali. E a pessoa: “Vocês são do Exército?”, aí quando ele olhou atrás, tinha um homem pelado, só eu que estava com uma folha assim, falei: “Senhor, preciso de uma roupa”, daí pra mim eu arrumei uma camisa volta ao mundo que era uma camisa Valisere, que era muita novidade, uma calca faroeste e sai, só eu na frente arrumado e os caras: “Pô, Loredo” – que era o meu sobrenome, aí eu vi uma adutora muito grande: “Vamos por cima”, já estava começando até a fechar, porque sabe que na mata escurece até mais cedo, né? Aí pegamos aquela adutora e fomos indo, depois de uma hora, praticamente, estou ouvindo um barulho de cachoeira e coincidentemente, era a cachoeira que tinha do lado do acampamento onde estávamos baseados. Chegamos no acampamento de sorte, pura sorte. Aí, fomos tratados, remédio pra… Enteroviofórmio, que era um remédio para diarreia e tudo: “Vocês estão de parabéns e tudo”, mas foi uma situação que eu nunca mais esqueci e depois dessa fomos ao combate dos caras que estavam lá no Vale do Ribeira, Lamarca, aquele Luiz Gushiken, que hoje é da presidência, esse cara aprontou bem, a própria Dilma na sequência do Embaixador…
P/1 – Mas ai vocês foram para o Vale do Ribeira?
R – Fomos para o Vale do Ribeira, aquela região ali…
P/1 – Vocês foram para estourar ponto?
R – Eu não, porque eu já era levado da breca, eu dava tiro… porque mataram o Mário Kozel, hoje a praça em frente ao quartel do Exército no Ibirapuera chama-se Mário Kozel. Ali, era um soldado que estava de guarda e os caras mataram o soldado para roubar o FAL dele, então depois desse episódio, falaram: “Primeiro atira, depois…”, não precisa nem falar, aí saiamos dando tiro, então eu gostava tanto de FAL como de FAP, o FAL é automático leve, mas é calibre mesmo, 762 e o FAP é pesado, quando você dá o tiro, fica rosa no chão. Não sei se você já viu no Rio quando saem os tiroteios, aquilo é FAP, é o fuzil automático pesado, não é o FAL, entendeu?
P/1 – Me fala uma coisa, que tipo de instrução vocês tinham? Vocês tinham um serviço de inteligência que localizava os aparelhos?
R – Tinha sim.
P/1 – Você já sabia onde você ia chegar?
R – Era o pessoal do serviço velado, o R2, entendeu? E já tinha a operação também, eu vim aqui trazer, escoltando preso para o DOI-CODI aqui na Rua Tutóia, eu vi coisas incríveis, eu vi oito… pessoa mais fraca do que uma irmã de caridade, só criancinha tem capacidade para ser mais fraco do que uma irmã de caridade e eu vi oito… oito tudo pelada, pendurada num canto e os caras, chumaço de algodão, no éter no ânus, na vagina para confessar quando tem aquela situação de Itaici, estava a reunião da UNE lá em Itaici, você lembra? Soube dessa situação?
P/1 – Ibiúna?
R – Não, Itaici também teve, uma… que pegaram muito estudante também lá. Padre da CNBB, a situação tudo era padre, advogado e eu dando muito apoio para eles, para esse pessoal, porque não era nem para falar e ir, mas eu ficava mais tempo preso lá, só saía para… então eu ficava até no meio deles, levava pão, tudo, aí uma vez fui surpreendido, já estava com cento e poucos pontos, muita alteração, aí fui excluído da filial do Exército. Mas não era aquele modo vexatório que antigamente vinha, tirava com a espada, não, fui… só entreguei a farda e sai. Agora, isso é interessante, que quando eu entrei no quartel, a polícia de São Vicente estava doida para pôr a mão em mim, sabia que eu tinha passe de maior, quando vieram, falaram: “Então, você está convocado”, não quiseram pôr a mão em mim, quando eu saí, foi na mão deles que eu caí, porque a polícia civil que vai te buscar, aí ficou meio embaçado na minha mão que eles pegaram todas aqueles tiros que eu tinha dado neles, que eu ia passando lá, paw, paw, paw, não vi que era polícia, não vi que…
P/1 – E você chegou a matar alguém?
R – Não. Nessa época, não.
P/1 – E aí, como que foi a sua vida depois que você saiu do quartel?
R – Aí, sai e fui para São Paulo…
P/1 – E sua mãe? Aí você já não morava mais com a sua mãe, já tinha ido…
R – Morava lá, mas vim para São Paulo, que eu tenho parente aqui no Jardim Paulista, na Lorena e vim trabalhar numa companhia de seguros, chamada Companhia Internacional de Seguros… antes deixa eu fazer uma passagem, estou adiantando as coisas. Eu fui para Itanhaém, aí fui fazer um teste na Breda Turismo, que fazia o litoral e acabei em vez de ser cobrador, trabalhando na tesouraria, eu vim para São Paulo fazer os testes e como eu me saí muito bem, eu fui melhor dos dez que vieram fui eu, o homem me chamou e falou assim: “Renato, fica no meu lugar aqui que eu tenho que ver o transporte, muita situação para mim, então você vai ficar aqui no meu lugar”. Então eu comecei a trabalhar lá e fiz ponta numa novela chamada “Mulheres de Areia”, primeira versão que tinha o Francisco Guarnieri, foi filmada na Praia dos Pescadores em Itanhaém e depois de tudo isso aí, de ter aprontado lá também, porque…
P/1 – O que você fez lá?
R – Aconteceu o seguinte, todo mundo, os cobradores, as agências intermediárias de Praia Grande, Mongaguá, todas elas iam acertar comigo, acertar, os ônibus que vinham de Itanhaém-São Paulo, vendia passagens no meio do caminho chama intermediário também, iam acertar tudo isso. E eu fazia relatório, mandava para o Banco Brasileiro de Desconto, Bradesco, naquele tempo era Banco Brasileiro de Desconto, fazia o livro caixa e tudo, mas um dia, não de caso pensado, acabei esquecendo um relatório de um ônibus dentro da gaveta, quando fui abrir a gaveta lá que eu notei que tinha algo no fundo que fui ver, tinha um relatório de três dias atrás, de 16 de novembro de 1971, aí eu falei: “Espera aí, eu que lanço tudo, faço tudo, espera aí”. Aí comecei a trabalhar para mim, dois, três carros só trabalhavam para mim, entendeu? Não lançava. Aí, carnaval de 1972, 16 de março de 1972, era segunda-feira de carnaval, bombando a agência, eu ia no juizado e o juiz já me dava aquelas autorizações de viagem para menor, já várias assinadas e eu só preenchia depois. Aí, eu estava chegando, um patrulheiro mirim falou assim: “Renato, eu tenho um rádio de São Paulo para você ai”, aí peguei e falei: “Contabilidade Itanhaém”, ele falou: “Renato, aqui é de São Paulo, olha, o DR deu a foto do relatório do carro de 16 de novembro”,, eu esqueci que o DR cobra 5% sobre intermunicipal e o DR acusou a falta, porque se não fosse o DR… entendeu? Aí, já aproveitei, limpei o cofre, era uma hora da tarde, sai de Itanhaém, peguei um táxi, vim direto para São Paulo, São Paulo-Rio, eu onze horas da noite, estava no Rio desfilando na… [cantando] “Que rio é esse, vou embarcar…”, na Portela. Saí na Portela, saí no Império… tirei a maior onda no Rio.
P/1 – Com essa grana que você pegou?
R – Peguei bem. Aí já não voltei mais.
P/1 – Era uma boa grana?
R – Poxa, não dá para dizer pra você, mas acredito que em termos de hoje eu peguei uns 80 mil. Aí, já fiquei em São Paulo, não voltei mais. Aí, arrumei um serviço na Companhia Internacional de Seguros, vê como as coisas acontecem…
P/1 – Mas aí, você veio morar em São Paulo?
R – É, tenho parentes no Jardim Paulista. Aí, fiquei morando aqui…
P/1 – Quem que é? Sua tia?
R – É, tia de consideração, mas parente assim…
P/1 – E você ficou na casa dela?
R – É, na Lorena 115.
P/1 – Mas ela não sabia da sua ficha?
R – Não. Aí estou lá, ela era cartomante…
P/1 – Ela era cartomante?
R – É. E eu recebia as visitas antes dela, entendeu, que ela trabalhava na Secretaria de educação ali no Largo do Arouche, então ela chegava por volta de 19 horas e eu, na Companhia de Seguros saía antes porque o negócio de estudar, então às quatro e meia, aí ficava na sala com a minha senhora daqui, minha senhora de lá e tal. Aí, um dia, o diretor de lá me chama, a moça falou: “O Doutor Romero quer falar com você”.
P/1 – Da companhia de seguros?
R – É. Aí, eu vou lá na sala do homem, ele falou: “Renato, eu vou pedir um favor para você, você me faz, depois você pode até ir embora”, eu falei: “Não, o que se passa?”, ele falou: “Olha, você lembra a Vilma Xandre?”, essa Vilma Xandre era uma artista de teatro que morreu ao cair no poço do elevador, pelo fato do marido dela dois dias após o acidente acionar o seguro e também porque a bolsa dela e um par de sapatos dela ficou no oitavo andar, foi sustado o pagamento, mas posteriormente, laudos confirmaram que foi um acidente. Então teve que pagar, só que aí não foi pago no fórum civil, na Praça João Mendes. Então ele me deu um cheque de 80 mil… 80 milhões de cruzeiros, veja bem, endereçado ao marido dela, que tinha um nome curto, não sei o que lá, Xandre, pois: “A audiência era às 13:30 em tal vara civil aqui no fórum, você vai lá, alguém vai te dar um recibo e depois que você trouxer, pode embora”, eu falei: “Não, eu fico aqui e tal, seu Romero”, tal, tal. Eu saio da sala do homem, está a secretaria dele que tinha… eu sempre gostei muito do colo da mulher, desculpa falar isso, mas ela, a dona Ivete tinha um colo que eu… e naquela de ver o colo dela, e puxando… ela estava com uma IBM elétrica, que era novidade, de esfera, sabe aquela que os caracteres vão encostar na esfera? E ela estava batendo e errou: “Aí, errei”, eu falei: “Não, é por minha culpa, desculpa”, aí ela pegou um papel que eu não conhecia, erroex, aquele papel que você põe e bate numa letra e apaga. Quando ela bateu, a mente quando é maldosa é jogo duro, a minha mente… não eu: “Renato, põe o cheque nessa máquina, apaga, põe o teu nome e vamos buscar esse dinheiro”. Aí, nós almoçávamos no sexto andar, ali na Libero Badaró, 76, quase esquina com o largo São Francisco, aí estamos no refeitório: “Não vai comer?”, falei: “Não, hoje não estou bem”, mas que nada, fui lá para a sala da mulher, entrei, liguei a máquina, pus o cheque, procurei o papelzinho, aí apaguei o nome do homem, pus Renato Justiniano Loredo, nós recebíamos no Banco Nacional de Minas Gerais, que depois virou só o Banco Nacional, que foi até patrocinador do Ayrton, mas antes era Banco Nacional de Minas Gerais, é do Magalhaes Pinto, da família dele. Nós recebíamos ali, no Anhangabaú, naquele prédio que atravessa até lá embaixo, em frente a Prefeitura, o prédio da Matarazzo, o outro prédio do lado de cá, imenso, né? Nós recebíamos ali. Aí, eu cheguei, o cara me chamava de quase xará, que o nome dele era Reinaldo e eu era Renato: “E aí, quase xará?”, falei: “Oitenta milhões, tenho que receber” “Desce direto do segundo subsolo, tesouraria, direto, pode descer que eu já vou interfonar lá para liberar o dinheiro”, aí desci, sai do banco com 80 milhões de cruzeiros no meu nome (risos), não preciso falar para você nada, né? Rio! Mas nem em casa eu fui, na minha tia.
P/1 – Onde você enfiou o dinheiro?
R – Fui embora com aquele… e naquele tempo, você podia sair à vontade, hoje sair de banco…
P/1 – Mas você colocou nos bolsos?
R – É, fui saindo, não posso precisar como é que foi, eu sei que eu fui embora! Aí fiquei… quando acabou mais ou menos, acabou o que eu tinha mais ou menos, eu voltei para São Paulo.
P/1 – Não, mas você saiu da sua tia no ato?
R – Nem fui para a minha tia, eu peguei o dinheiro e fui embora, passei na Peter que era uma loja sensação em São Paulo, era a Peter, atrás de… hoje é a Kalunga, atrás do Teatro Municipal, mas ali era a Peter, então sapato era conga, calca era boca de sino… aquela situação, já montei o meu guarda-roupa e fui embora. Hoje, 80 milhões daria uns 400 mil hoje ou mais, moça. Aí, quando eu estava mais ou menos baqueado, voltei para São Paulo e eu tinha uns amigos que…
P/1 – Mas você foi para onde?
R – Fui para o Rio, moça!
P/1 – Ficou morando lá?
R – É, no Catete, meu negócio sempre foi…
P/1 – Quanto tempo?
R – Ah, acho que um mês, mais ou menos, que eu gastei muito dinheiro, fiz muita festa…
P/1 – O que você fez no Catete? Como é que foi a sua chegada no Rio?
R – Eu já conhecia o Rio, né? Foi daquele jeito, você está podendo, pô, com muito dinheiro no bolso, você… aí fiquei num hotelzinho no Catete, bom, o que interessa é contar depois a sequência. Minha tia não estava sabendo de nada, porque a Companhia ficou na dela, porque o IRB, que é o Instituto de Reseguro Brasil ressarciu, entendeu? Então ficou na moral, não estourou bronca pra mim, nem nada. Aí voltei para São Paulo e tinha uns amigos que eram garrafeiros, uns negão lá na Vila Olímpia, hoje onde está a Rua Quatá, aqueles lugares que hoje são… naquele tempo, aquilo tinham uns campos de futebol, me lembro muito bem daquilo e tinha lá… eles puxavam carroça. Então, eu comprei três cavalão e pus lá e para minha tia, eu ainda todo dia saía para trabalhar, porque aí quando você… “Fiz um serviço no Rio”, e ela engoliu e tal…
P/1 – Aí você voltou para a sua tia?
R – Voltei para a minha tia e estou lá…
P/1 – E você não pensou que eles pudessem te procurar lá?
R – Não, não ia me procurar coisa nenhuma! Conclusão, as senhoras iam chegando lá e eu sempre: “Minha senhora daqui…” “Aceita um cafezinho?”, aquela sala que eu fazia até a minha tia chegar e sempre uma: “Nossa, o seu sobrinho, que educação, que…”, tal, e aquela situação, eu tinha uma prima chamada Marisa… – bom, isso vai ser divulgado, não vou falar da Marisa, ah, eu vou falar sim, Marisa, já faz 40 anos – a Marisa estava lá e eu entrava pela janela, nós tirava um… A Marisa, então já me esperava. Então, nós ficava, não tínhamos um relacionamento, mas tirava um barato, sabe aquele negócio? Aí, saía pela janela, aí entrava como se tivesse chegando e ela abria a porta: “Oi, chegando agora?”, e já tinha… (risos). Muito bem, íi eu depois… então na verdade, eu não ia trabalhar, eu saía de terno, que tinha que pôr terno, mas ia lá para a Vila Olímpia, você não acredita, tirava aquele terno, punha um macacão, que eu sempre gostei de macacão e jardineira, sempre gostei muito de jardineira, um chapéu de bruxo e subia na carroça e pra mim era a maior onda, meus baseados e pá… só que não comprávamos nada, coitados, quantos faxineiros de prédio: “Tem jornal ai?” “Tem”, chegava assim na garagem, aquele monte de jornal, enchia uns dois, três ticos – tico é um…– e na hora que faltava um pouquinho, nós íamos embora, nossa! Uma casa para alugar, nós entravamos e tirávamos do ralo material fino, fiquei nisso. Aí um dia, chegou na Estrada da Boiada, aqui na São Gualter hoje, uma casa belíssima, apertei a campainha, até me assustei porque a boca de leão que falou, né: “Quem é?”, aí eu: “É o garrafeiro de toda semana, tal, tal…”, aí abriu aquele portão, aí fui entrando com os sacos assim, uma balança. Aí está lá na pedra da piscina a bacana com a empregada. “Bom dia, minha senhora, vai vender jornal, garrafa e tal?”, aí a mulher tirou aqueles dois pepinos do rosto, olhou pra mim: “Renato? O que você está fazendo? E a companhia de seguros?”, falei: “Renato senhora? A senhora está ficando louca, nunca vi a senhora” “Mas é você mesmo”, falei: “Que nada, a senhora está louca e tal”, e já fui saindo fora. Aí ela ligou para minha tia na Secretaria de Educação e minha tia entrou em contato e quando chegou em casa: “Renato, o que você aprontou? Você pegou 80 milhões? O que você fez?”, falei: “Ah tia, nem quero falar… “Aquela situação então você não foi a trabalho?”, falei; “Ah tia, isso já era”, e saí da casa dela, aí me escondi, fui para o Vale de Lima, fui para o Capão Redondo, imagina aquilo em 1972 como é que era.
P/1 – Você foi parar no Capão Redondo?
R – É.
P/1 – Por que Capão Redondo?
R – Capão Redondo é um bairro aqui.
P/1 – Sei, mas por que você foi para lá?
R – Porque esse pessoal, essa negaiada que eu conhecia ali tinha uns parentes lá e falaram: “Vai lá para o Capão e vai conhecer uns caras lá”, aí conheci uns caras tudo da pesada, tempo do Assis, do Saponga, Boca de Traíra, uns caras muito bandidos que teve em São Paulo. Aí comecei a… e como sempre fui muito bom motorista, falava que eu era piloto de fuga, aí comecei a dirigir para os caras e dali pra frente, aí ardia roubando o banco, os caras diziam que era maior mamão mesmo roubar banco, eles roubavam carro de cigarro, roubavam aquela situação, fomos fazer os bancos, eu entrei, quando fui pego, aí entramos na Lei de Segurança Nacional…
P/1 – Mas espera ai, qual foi a primeira vez que você roubou banco? Como foi?
R – Foi no Paraíso, foi uma situação normal, porque não tinha porta giratória nem nada, moça, entendeu? A primeira vez eu nem entrei, eu era piloto, os caras entraram lá e fizeram, voltaram com o malote, aí veio, também gostei, umas duas, três vezes, eu entrei também. Depois…
P/1 – Como que era entrar, você fazia o quê? Como é que era?
R – Naquele tempo não tinha porta giratória, é pegar e chegar pra ela: “Passa…”, é chegar, abordar e tomar ali, puxar com fiel e tudo. Fiel para quem não sabe é o que prende a arma ali, aí já ia puxar com fiel e tudo, aí começamos a fazer essa situação, até que entrei na mão do DOPS por roubo a banco e tinha Banco do Brasil também na situação, acabei sendo enquadrado na Lei de Segurança Nacional como subversivo, mas na verdade, eu era delinquente comum, até 1978, cheguei a ter quase 800 anos de pena, entendeu?
P/1 – Mas você tinha matado alguém ou era só assalto?
R – Não, não, era apenas assalto mesmo. Aí depois, quando voltou para…
P/1 – Mas você não tinha sido preso ainda?
R – Não, quando eu fui preso, eu fui enquadrado na Lei de Segurança Nacional pelo roubo a bancos, fora os assaltos sem vergonha que eu tinha. Eu tinha toda essa história aqui, aí voltou para justiça comum e aliviou um pouco, senão eu estava ferrado na Lei de Segurança Nacional que o bagulho era louco. Aí, tirei 16 anos, sai. Eu saí…
P/1 – Foi condenado.
R – Eu entrei em 20 de novembro de 1973, que eu estava falando para você…
P/1 – Como que você foi pego?
R – Fui preso dormindo numa olaria num lugar chamado final do mundo, moça, e ainda tinha passado batido, mas eu passei embaixo da mesa e a polícia olhou tudo e não tinha me visto, aí me pegou embaixo da mesa, aí a situação ficou feia, mas ai eu fiz duas músicas que me livrou do pau de arara: [cantando] “Eram quatro horas da manhã, quando no barraco os homens da lei chegaram, seu Mário Seu Gizo e companhia foram prender o piloto da quadrilha. Primeiro foi Zé Pipoqueiro…”, então esse investigador da 11ª, ele levava lá os amigos dele: “Mujica, canta essa música que você fez pra mim aí”, aí o chefe dos investigadores ficou mordido: “Pô, eu vou mandar dar um pau em você, rapaz” “Por que seu Sacolinte?” “Você fez samba para os meus agentes e eu que sou o chefe da equipe… tal” “Mas eu tenho a sua música feita”, mas não tinha nada, “Então canta aí”, aí na hora eu improvisei, ele gostou. [cantando] “Ao ser preso numa corja, achei que tivesse chegado o meu fim, mas os homens tiveram clemência e até um pouco de dó de mim. Chegando na 11ª…”, ele falou: “Mas eu quero saber do meu nome” “Eu vou chegar lá, seu Sacolinte” “Então fala o meu nome”, aí eu falei: [cantando] “Cruzei seu Sacolinte e seus agentes que são policiais benevolentes, verdadeiros baluartes da lei, igual a eles, jamais encontrei. Pensei que nada, a guarda preventiva ser rei, quero pagar, só queria rever a minha mãe antes da PP chegar”, quem não sabe, PP é prisão preventiva. Então aí pronto! “Não vai apanhar mais” (risos). Aí: “Canta aí Mujica”, aí até que no dia 20 de novembro de 1973, por isso que eu falo que amanhã faz 41 anos e quatro dias que eu fui preso, assinei o mandado de prisão preventiva na delegacia de prisão e captura do DEIC e desci para Detenção. Aí, o bicho pegou porque por mais malandro que os caras sejam, chegou num lugar que nem aquele naquela época…
P/1 – Essa foi a primeira vez que você foi preso?
R – É.
P/1 – Esses 16 anos?
R – É.
P/1 – Você entrou pra onde? Qual foi a penitenciária?
R – Penitenciária de detenção, moça, Pavilhão 9…
P/1 – Carandiru?
R – É…
P/1 – Você foi do pavilhão 9?
R – Direto para o 9. Alguém tem inimigo? Vai para o 5. Morrer, avisar quem? Mediam a sua altura para saber a altura para mandar fazer caixão se fosse preciso, você chega… e a cadeia… e aqueles caras e outra coisa, você era moleque novo, você era comprado, se você era moleque novo, o cara via você no jornal, chamava o Chicão que era o preso encarregado: “Chicão, quando chegar, o cara pro xadrez”. Então o cara estava com 25 maços de Hollywood, você chegava lá, não sabia da situação, chegava lá, o cara: “Vai ficar nessa cela”, você já estava vendido para o profissional lá, que mulher de preso era preso naquela época, né? E eu, graças a Deus já tinha uns companheiros lá, foi a minha salvação, os caras falaram: “Mujica…”, já me deram uma faca que era o principal, todo mundo tinha que ter a sua faca, e já fui para faxina, aí na faxina era só malandro, até hoje, hoje não fala mais faxina, a gente fala setor, mas para trabalhar no setor tem que ser uma pessoa de conceitos, senão você não… aí na faxina aliviou, aí comecei a fazer show, aprendia a fazer recurso, fui para o juiz de paz, pedi vários casamentos lá dentro, fiz dois filmes com o Nuno Leal Maia que foi filmado lá, aí esses treze anos de detenção na minha primeira passagem tem histórias para contar, tinha hora que até esquecia que estava preso, porque era tanta atividade, fazia o mapa geral da casa de detenção que tudo que acontece de 00:00:09 ate 23:59:59 você põe no outro dia no mapa geral, as entradas, as remoções definitivas, as remoções com retorno, os cumprimentos de mandatos, os cumprimentos de alvará, os trânsitos entre os pavilhões, então tudo isso era eu que fazia. Aí, 12 anos eu trabalhei com uma pessoa só, aí eu vim saber o real valor da Síndrome de Estocolmo, não sei se você já ouviu falar nela, vim saber que isso realmente acontece, é uma situação que você no dia a dia ali, embora dia sim, dia não, você está com a pessoa e esse seu Nibidão, que eu trabalhei com ele, era todo dia de segunda a sábado, ele era encarregado do setor, então não tem como você não ter uma afinidade, se envolver nos problemas dele, me trazia o jornal, essa situação toda…
P/1 – Mas você, quando você foi para a… você tinha quantos anos quando você entrou na cadeia?
R – Eu tinha 20 para 21 anos. Sai com 36, né? Fiquei dez anos e quatro meses…
P/1 – Como foi? Você pegou alguma rebelião lá dentro?
R – Peguei várias rebeliões lá e devo muito não ter morrido eu e outras pessoas…
P/1 – No massacre do…
R – De 1992?
P/1 – Você não estava lá ainda.
R – Não, mas aquele massacre era para ter acontecido na verdade, dez anos antes, quando o pessoal tomou o diretor e mais um monte de… esse diretor que… esse é o Luizão, o nome dele é Luiz Camargo Wolfmann, ele homem evitou uma tragédia muito grande, o que aconteceu em 1992 era para ter acontecido em 1982, quando ele e mais um monte de reféns foram levados para cima do pavilhão dois e o snaiper matou todos eles com tiros de longa distância. E o Nakaharada que era o tenente oficial, comandante já queria ter exterminado todo mundo e ele não deixou. Então, muita gente da minha geração deve a vida ao Doutor Luiz Camargo Wolfmann.
P/1 – A sua mãe ia te visitar?
R – Ia. Isso aí me pesou muito, porque a minha mãe, naquele tempo, morava em Santos ainda e a visita no pavilhão 9 era de manhã, então ela tinha que vir, dormir na rodoviária, na Júlio Prestes para poder chegar lá. Até que o cara me convenceu: “Pô, Mujica, vai para o 2, casa da banha, Hotel Jaraguá”, realmente era Hotel Jaraguá, pensa, antes do diretor comer a comida dele, eu já estava comendo e a comida dele, você sabe o que é, né? E aí, fui para o Hotel Jaraguá, aprendi a fazer recurso e a gente foi bibliotecário, arquivista alfanumérico. E eu sempre trabalhei, tive iniciativa, algumas ideias que eu bolei lá deram certo e presenciei outras situações. Quando inaugurou o 6, a ideia do cinema foi minha também, nós fazíamos… tinha um cinema lá de rua mesmo, muito bem…
P/1 – Como é que era o cinema?
R – Muito legal. Iam os casais, quando você era conhecido, malandro já tinha o pessoal que punha as mantas lá, aí o casalzinho… o problema era quando o bicho pegava, de vez em quando, o bicho… escuro lá, 600 homens, o bicho pegava, quer dizer, eram dois atores no escuro… você tinha que levantar e cada um ser…
P/1 – Isso dentro da Penitenciária?
R – Dentro da Casa de Detenção. Não confunde a Casa de Detenção com a Penitenciária.
P/1 – Qual que é a diferença?
R – A Penitenciária é outra situação, que a Penitenciária foi inaugurada no inicio do século XX e por incrível que pareça, depois de 70 anos, ainda tinha o mesmo molde de trabalho daquela época. Então desde a sua chegada, o tratamento, era um em casa cela, uma cela maior do que esse local aqui para uma pessoa só, você tinha que levantar cedo, se arrumar, arrumar a sua cama, prender ela na parede que ela era presa pela parede e ficar esperando o guarda vir. Então, todo xadrez, a porta, onde eu falei o museu da casa você não vê, tem um guichê embaixo onde passava comida e tem um espia onde o guarda vinha pelo espia e olhava, via se estava arrumado do lado da cama, aí para ele liberar você. A cela sempre muito bem limpa, era assoalho, então brilhando com o escovão, tudo em ordem, tudo, tudo perfeito. E também o tratamento, era senhor na Penitenciária, ninguém chamava você de você, não, senhor, lá era o tratamento correto mesmo, toda assistência, tanto ambulatorial, como jurídica e eu já cheguei lá e já fui trabalhar logo na jurídica, eu sempre fui… eu tinha uns trabalhos que até gostaria de mostrar do tempo de lá, que eu gostaria de mostrar uns trabalhos tanto da Detenção que você vai estar gravando aí depois para mostrar aí, sempre trabalhei com recursos. Isso abriu algumas portas, também, né?
P/1 – E como é que era a sua relação com os outros presos?
R – Muito boa, tanto é que é o seguinte, em decorrência de uma situação que aconteceu em 1978, o oficial de justiça não entrava mais para dar o ciente lá, ciente é o que ele leva para o preso assinar, então ele deixava a carga dele na portaria e quem fazia às vezes do oficial de justiça na Detenção durante seis anos. Eu estou até tentando ver se eu recebo indenização, alguma coisa, porque eu exerci uma atividade que na verdade, eu nem podia ter exercido, porque eu não tenho fé pública e nem nada. Mas eu que dava o ciente: vai recorrer, não vai, pra mim era interessante porque em algumas situações, eu até que tinha pedido a formatação da sentença, ou seja, o desvio da situação, do sumário, que eles botavam só uma situação para o cara poder decidir se ia para colônia, ia para rua, e para não ser procrastinada a decisão. Então eu fazia a petição, quando eu vinha… e eu que estava sempre levando, então eu levava toda carga, não só do oficial, como o ciente da casa, o mandado de prisão que era da captura e ficava lá, companhia de alvará, companhia de alvará é quando vem o alvará, você não pode ir embora por decorrência de estar com outra condenação ou outro punitivo, mas cumpre o alvará, não foi liberado em face de outra situação, então todas as situações dos cientes era eu e você tem que ser muito bom tanto para chegar… que nem eu ia, cabeção não deixava descer na carceragem, eu ia na cela do cabeção, mas você tinha que ter bom termo para falar: “Nove anos e tanto na cadeia, que vai recorrer”, lia a sentença: “Não, não vou não, Mujica ou vou, o que você acha?”, inclusive uma dessa situação me livrou a barra quando eu saí, meu ramo estava numa situação bem difícil, saí em liberdade, na sexta-feira que antecede o carnaval, 28 de fevereiro de 1987, saí em liberdade e na quarta-feira de cinzas eu estava na Gazeta Mercantil, jornal econômico, trabalhando. Na segunda-feira que é dia útil…
P/1 – Espera aí, você saiu da Penitenciária e já arrumou emprego?
R – Então, eu sai na sexta-feira, né, quando foi na segunda-feira, dia útil, estava andando no centro, ai naquele prédio da Martins Fontes com a Consolação, um prédio bem bonitinho ali, ali era a Gazeta Mercantil, falei: “Eu vou entrar aqui”, aí subi na Gazeta Mercantil, era o currículo que você fazia, preenchia e falei: “Sai faz três dias da detenção, quero trabalhar e tal” e pus, pensando que não ia… na quarta-feira de cinzas, à tarde, me ligaram lá na minha prima, na casa que eu estava, lá em Cidade Adhemar para vir na quinta-feira de manhã na Gazeta. Olha! Aí, vim na quinta-feira ser entrevistado por uma pessoa chamada Ariosvaldo Araújo, era diretor de vendas e circulação da Gazeta. Ele só respondia para o Levy, que a família Levy que era dona da… ele ficou comigo conversando umas duas horas, ele falou: “Olha, você vai trabalhar comigo, eu vou te aceitar”, aí comecei a trabalhar. Passou uns dias, ele falou: “Olha, Renato, eu estou indo para o Rio, quero que você vá comigo”, porque na verdade, eu já tinha essa mulher aí, eu conheci ela em 1977, eu já tinha duas crianças com ela, que foram concebidas lá na Detenção, embaixo de banco…
P/1 – A sua mulher?
R – É…
P/1 – Onde você conheceu ela? É, eu queria voltar nisso.
R – É verdade, eu vou falar o que aconteceu na Detenção. Antigamente, na detenção, a intima era proibido, por isso que a gente fala que mulher de preso era preso mesmo, né? Mas tinham aquelas matadinhas, se você fosse pego era aquela situação, era 30 dias de cela forte, ali trancado, um mês sem poder te ver. E nós empurramos dois bancos de igreja que eram aqueles bancos mais largos de igreja, assim que deve ter uns cinco metros, quatro metros, as mantas, aí a mulher entrava por um lado e o homem entrava do outro. Imagina perpendicular, era um verdadeiro canguru perneta ali para ter um relacionamento. Mas pior que isso, quando eu falei isso na pessoal deu risada, porque é uma situação bem… um assunto meio difícil de falar, então tem que ter bom… mas o pessoal perguntou lá, fui sabatinado pelos setecentos formandos do ano passado. Então, falei essa do banco que a situação era difícil, porque os outros casais que queriam ter relação, que já tinham tido relação, ficava no banco ali, ai: “Pode sair”, porque tinha funcionário andando, e a mulher saía toda sem graça, o homem também, mas pior é em pé, imagine você… vou ficar em pé para poder representar aí, você em pé na manta, você e a mulher, agora vem, ah, então na hora do clímax, porque está cheio de pessoa, você não pode fazer, o respeito é fundamental em qualquer instituição, então imagina e o pessoal não aguentou, mas: “Agora…”, então era uma situação bem difícil.
P/1 – Mas você conheceu a sua mulher onde?
R – Lá.
P/1 – Como assim?
R – Na detenção. Ela tinha um primo dela lá que matou a mulher e o amante, ele pegou a mulher com o amante, saiu, por um problema qualquer, teve que voltar e nem tinha esfriado a cama, o amante já estava lá, então ele matou ela… ele bateu na porta e correu para a janela, foi uma situação mais ou menos… matou os dois. Então, ele estava cumprindo pena, eu nem conhecia ele. Ele era do 8. Mas um dia, ele falou: “Pô, você é um cara legal, então vou te pedir um favor, você tem uma namorada?” “Não tenho coisa nenhuma” “Pô meu, chegou uma baianinha, prima da minha mulher da Bahia, para não ficar sozinha lá, que não conhece nada, vem com ela aqui”, que naquele tempo podia entrar dez visitas, agora não, hoje só entram duas visitas, o PCC perdeu muita coisa que nosso campo, nós abrimos, o PCC perdeu. “Então vem ai”. Aí fui lá e quando eu vi a baianinha, tudo… eu falei: “Meu Deus do céu”, até aconteceu algo interessante, eu levei um pavê e falei para ele: “Pavê”, e ela mexeu, eu falei: “Você não vai?” “Você falou que era pavê”, essa situação, de quando ela tira onda, ela fala: “Olha o pavê”, depois ela ficou mais esperta e dá de 10 a 0 em mim. Aí conheci ela no dia 7 de fevereiro de 1977 e estamos até hoje, há 38 anos, independente de eu estar separado, estar numa instituição de abrigos para idosos, mas eu vou em casa e tudo, estamos aí junto e tudo…
P/1 – Ela está numa instituição?
R – Eu estou. Eu moro numa acolhida especial para idosos.
P/1 – Ai, vocês começaram a namorar, casaram, tudo enquanto você estava na cadeia?
R – Não, não. Casar não. Concebemos as crianças, as crianças nasceram. Eu casei em 1993, depois de 16 anos…
P/1 – Quando você saiu?
R – Saí, tava bem…
P/1 – E ela ia te ver todo final de semana?
R – Todo, aí de lá pra cá, nunca mais faltou.
P/1 – E você, tipo, se apaixonou?
R – Ah, nossa! Casa, comida e roupa lavada, né, moça! Era comigo mesmo. Aí sai, as crianças eram pequenas, o meu menino estava com seis para sete anos e a menina tinha dois anos, né, a Suellen. Aí, fui a luta, ai trabalhei com um turco aqui no Bom Retiro…
P/1 – Não, mas ai você saiu depois desses 16 anos, você arrumou emprego na Gazeta Mercantil, você ia para o Rio…
R – Aí então, eu ia falar a situação do Rio. Primeiro, eu fui para o Rio, estou no esgana lá, aí estou andando na Central do Brasil, estou lá uns cinco dias, ai o cara fala pra mim lá: “Ai, paulistinha:”, até me assustei, falei: “Paulistinha?”, o cara: “É, detenção. Eu pedi a Deus para encontrar com você”, ai já fiquei… falei: “Por quê?”, ele falou: “Calma, você fez um recurso pra mim, eu estava com 18 anos de cadeia lá num latrocínio, rapaz e o recurso que você fez lá, depois de oito meses, eu estou na sala porta, uma hora da manhã chegou meu alvará lá, minha pena tinha sido anulada”, ele não tinha sido absolvido, a sentença foi anulada, iria ter novo sumário e veio o alvará, evidentemente, tinha que vir um alvará que ele estava… e ele foi embora e como ele estava com o nome frio em São Paulo, jamais ele… só se ele viesse passar com familiares, mas para São Paulo nem de avião, então “Eu pedi a Deus para encontrar você porque você… vamos subir…” “Pô, então encontrei você na hora certa que eu estou num… não sai faz muito tempo, estou com mulher e criança pequena, tudo morando na hospedaria…” “Não, acabou a miséria”, aí subiu lá para Providência, estava saindo um bonde. Um bonde é o que os caras falam: “Ah…”, tem o bonde do mal para roubar. Então, lá em cima do bonde, eles falavam, a Providência é bem no centro: “Vamos pegar aquele Bemge”, ainda tinha o Bemge, que era o Banco do Estado de Minas Gerais, tinha o Banerj, que era o banco do Rio, tinha o Banestado que era o banco do estado do Paraná, o Banespa, tinha todas essas instituições, né? “Agora, vamos pegar aquele ali, põe o paulistinha aí” “Não, o bonde está formado” “Não, põe que ele é bom”, e na verdade, é sorte que eu nunca estava na caixa forte, no cofre forte, o cofre forte é diferente da caixa. A caixa forte tem uma grade antes de você atingir o cofre, entendeu? E eu no dia que eu fui com o cara, deu a maior sorte que estava tudo aberto e eu fui lá e trouxe o malote, ele falou: “O cara é muito bom”, aí fiquei com os caras. Aí a minha vida melhorou de vez.
P/1 – Aí você ficou no Rio?
R – Fiquei no Rio, mas a mulher viveu vida de princesa aqui, né?
P/1 – Você mandava dinheiro?
R – Ah, muito!
P/1 – E largou o cara da Gazeta Mercantil?
R – Não precisava mais. Mas antes de largar ele, um dia, nós estamos no Hotel Intercontinental, porque ele como diretor, tinha direito a lá, no Intercontinental, sabe, que era aquele redondo? Aí, estamos na pedra, e ele sozinho também que a família dele era daqui, ele tomava muito uísque, aí um dia ele confessou para mim porque ele tinha me pego…
P/1 – Mas você falou o que para ele? “Não vou mais trabalhar”, ou você nem falou nada?
R – Nada, vazei.
P/1 – Vazou!
R – Ele falou pra mim: “Pô, precisa me chamar de seu Araújo?” “Lógico” “Quem que é seu Araújo aqui?”, ele falou: “Eu vou falar uma coisa para você, porque eu te peguei para trabalhar. Lembra que eu te perguntei, fiquei duas horas entrevistando você lá?”, aí ele confessou que em 1974, por problema de cheque, ele tinha ficado três meses na detenção, você acredita? “Eu passei naquela merda três meses”, só que como ele não era malandro, ele sofreu bastante, que estelionato lá é… lá era só o crime mesmo, tinha o Salomão, né, que lê a ação, fui eu lá, estelionato lá, o matador sofria muito mesmo, porque não era do ramo, não era ladrão na verdade, não era bandido mesmo. E ele sofreu muito lá, “Mas eu gostei de você e tal e pá, por isso que eu…”, aí ele lá bêbado, depois de um tempo, comecei a ver que ele me pegou para trabalhar porque ele tinha passado por onde eu passei, no mesmo sufoco. E depois, era diretor da Gazeta.
P/1 – Aí, você ficou na Providência, no morro?
R – Não.
P/1 – Morando lá?
R – Eu fui morar num bairro, fui morar numa boa e tudo, até que não sei o que me fez vir para São Paulo, alguma coisa me fez vir para São Paulo…
P/1 – E você mandava dinheiro para a mulher e para os filhos?
R – Mandava. Aí, vim comprar um apartamento aqui, tinha dinheiro, juntei aqui, vim comprar um apartamento aqui em São Paulo, aí continuei morando aqui com esse outro pessoal e tal…
P/1 – Mas você continuou assaltando?
R – Eu fiquei dez anos e quatro meses na rua.
P/1 – Assaltando?
R – Não só assaltando, entrei numa companhia chamada DHL, entendeu? Ela é courrier, manda… eu fazia… eu cheguei a fazer três viagens para o Rio para levar encomenda, porque se você pega um documento hoje na Paulista, para entrar na Quinta Avenida amanhã, ele não pode ir como carga dentro do avião, ele tem que ir como bagagem, que a bagagem tem prioridade sobre carga e para ser bagagem precisa do quê? De uma pessoa, entendeu? Então, eu fazia três check in todo dia. Miami todo dia tinha, Nova York, JFK todo dia tinha e Europa, só que a Europa cada dia era numa porta de entrada: Roma, Lisboa, Paris, Charles de Gaulle, e eu tinha que chegar lá, o pessoal estava me esperando com o flyer, né, sinal do DHL que eu estou com o passaporte e a passagem para fazer o check in. Aí encontrava a pessoa, tinha pessoa que ia três ou quatro vezes também, para Miami e ficava no Free, trazia uns negocinhos de Miami, trazia uns presentinhos para mim. Aí, eu fazia o check in da pessoa, embarcava a mala de bordo dela e ela ficava eu esperando embarcar as sacas, normalmente 60, 70 sacas de documento e amostras para pegar os tags, colar na passagem dela e a pessoa ir para chegar lá no destino com carga toda, vai como bagagem da pessoa. Ela entregava para o cara do DHL que ele tinha também prioridade na retirada da bagagem, porque a carga demora muito mais. Aí, eu fiquei fazendo isso aí. Bom, já passou, já prescreveu, vou falar porque agora, vocês podem fazer o que quiserem, porque já era mesmo. Conheci um nigeriano, e aí o nigeriano conversou comigo, falou: “Tenho um jeito de mandar para Nigéria da boa?” “Comigo mesmo, 1500 dólares”, aí ele me deu meio quilo só para ver se dava certo. Aí mandei, falou: “Chegou”, aí pronto.
P/1 – Mas o que era, maconha?
R – Cocaína, da pura, moça. Escama de peixe naquela… olha, tão louco que eu no carro, na minha casa que eu fazia tudo em casa, e da minha casa até o aeroporto de Guarulhos, que eu ia antes, às 17, eu ia para Guarulhos para fazer o check in, chegar no aeroporto e eu era um louco, só com o cheiro e olha que… pensava: “Isso vai cair, meu, não é possível”, que? Dali a 72 horas no máximo, porque África, às vezes, ia pela Oceania, demora um pouco mais, mas chegava lá, não acreditava. “DHL bateu na minha porta, entregaram na minha mão” “Então está bom”.
P/1 – Você não tinha medo?
R – Não.
P/1 – De dar errado?
R – Não. Eu não tinha medo, porque depois eu fiquei tão assim, que eu tive um conchavo tão grande com o pessoal da Policia Federal, eles nunca podiam imaginar. Então, eu até às vezes, embarcava, porque a Receita Federal, documentos, eles não olham, documentos, o que interessa para eles seriam as sacas, são amostras, calçados, ferramentas, sabe? Tudo isso, então ali naturalmente não dá para eles fazerem check in de toda carga, você está despachando 300, 400 sacas ao mesmo tempo, então: “Pega conhecimento tal”, aí pegava, ai conferia para ver se realmente batia, aí passava uma fita da Aduana, aquela… toda saca que chegava em qualquer destino com a fita da Aduana, aquela passa batido, ninguém vai olhar, porque foi inspecionado na origem, você entende? Aí, eu consegui subtrair um rolo daqueles, ai pronto! E o pessoal da Varig: “Vai que está em cima da hora, o voo vai embora”, falava: “Vai com Deus", três quilos”, porque também não passava de três quilos, só que eu mandava um documento: Centro Cultural Brasil Nigéria, doc, apostilas. Aí pronto, minha vida melhorou de vez com isso ai, passei a viver bestamente.
P/1 – Ganhou grana?
R – Muito!
P/1 – O que você fez com o dinheiro?
R – Ah eu fui muito perdulário, tanto é que o meu casamento… casei em 93, aluguei a Vai-Vai, reformei a Vai-Vai todinha, preto e branco, 600 metros de azulejo, eu por minha conta, a bateria foi por minha conta, eu casei no dia 19 de junho, no sábado, minha filha faz aniversario dia 20 de junho, então também já aluguei para fazer o aniversario das 17 às 22, muita situação, muita viagem, carro, tinha dia que eu mandava o carro três vezes, sabe aquela situação que você faz extravagância? Seja pago, tenho certeza que… não semeei, não posso escolher muita coisa, se tivesse… só o meu apartamentinho lá que eu comprei lá em Arthur Alvim, mas só isso mesmo, porque o resto eu gastei muito, muito, muito! E não bebo, nem nada.
P/1 – E a sua mulher sabia disso tudo? Que você fazia essa transação com a cocaína?
R – Ah sim, sabia, porque às vezes, até aconteceu uma coisa interessante uma vez, cheguei lá, ela veio com 27 mil dólares. Eu cheguei a uma e pouco da manhã, ela: “Toma”, falei: “O que é isso?”, ela falou: “Vinte e sete mil dólares”, eu pensei: “Dezoito quilos, né, a mil e quinhentos’, eu falei: “Onde está?”, ela falou: “Está embaixo da cama”, aí estavam lá os 18 quilos, numa bolsa de couro, inclusive se você soubesse o que aconteceu… eu morava na Barata Ribeiro, conhece ali próximo a Praça 14 Bis? Tem a Barata Ribeiro, bem em frente a… o primeiro prédio, eu fui entrando pela Barata Ribeiro e era o primeiro subsolo, mas em decorrência do desnível, andava acima na Nove de Julho, sabe? Aquela situação. E ali tem um bar embaixo, tem um bar bem legal, até. E a mulher falou que chegou de táxi, a Rota estava parada no bar, mas para tomar um lanche e sempre com um componente na porta e ela desceu com 18 quilos em duas sacolas, a sacola pesa, aí o cara foi se oferecer pra pegar ainda, ela falou: “Pelo amor de Deus é cristal, se quebrar isso…”, mas era cristal nada! E ela falou: “Nossa, passei mal e tudo”, então teve essa situação aí interessante.
P/1 – Passou batido?
R – Lógico! Eu falei: “Você é louca mulher? Não faça mais isso!”, até que um dia lá, a mulher que fazia… rodou com 35 quilos, aí acabou e eu também acabei arrumando uma confusão muito grande lá no aeroporto, aí sai…
P/1 – Que confusão?
R – Ah, com o pessoal da Varig lá, pessoal da… porque eu ia pegando o malote da Brink’s cheio de dinheiro, que vinha tudo e eu na hora que fui pegar o meu, vi aquele malote da Brink’s, falei: “Nossa!”, quase que eu levo o malote (risos), deu um problema todo, mas não me pegaram com o malote e tal, mas acabei saindo… mesmo assim, ainda peguei… porque ainda me deram mais seis meses ainda do plano de saúde que era Amil e pagou tudo certinho, mas sai da DHL. Mas já estava enraizado com uma turma que…
P/1 – Mas nunca deu… esse, você nunca foi pego por tráfico de droga?
R – Não, por isso, não. Nem os assaltos a banco, depois eu comecei a roubar bancos em São Paulo, moça, com uma quadrilha muito forte, roubei muito banco aqui, no Paraná. Aí, fui pego no Paraná…
P/1 – Isso depois? Depois que você…
R – Saí da…
P/1 – Da DHL?
R – É, quando estava fazendo dez anos e quatro meses que eu estava na rua, eu sai 28 de fevereiro de 87, em 30 de junho de 97 fui roubar um carro forte no Paraná, aí pulei lá no Paraná, fui pego lá no flagrante. Roubei o carro, mas depois de 80 quilômetros, fui pego.
P/1 – E ai?
R – Aí, fui réu confesso, ninguém acreditou, porque eu entendo que réu confesso sempre tem uma diminuição da pena, sendo réu confesso, mas eu queria que a juíza entendesse que não tive a posse tranquila, vou fazer aqui um adendo para vocês entenderem. O flagrante tem duas modalidades: o consumado e o tentado. Ele fica na espera do tentado, quando você vamos supor, pega um carro aqui, rouba um carro e vai até Santos, você vai, mas você não tem a posse pacífica, a posse tranquila por causa da perseguição da polícia, testemunhas, você não tem a posse tranquila. Se é autuado em flagrante, mas fica na esfera da tentada, porque você não tem… entendeu o que eu estou falando? A posse vigiada. Adora, você deixou a sua bolsa ali, eu passei, você não viu, eu peguei seu celular ou peguei a sua bolsa e fui embora. Lá depois de uns dez minutos, a polícia me para porque achou suspeito eu estar com uma bolsa de mulher, e volta aqui e tal, você nem tinha se dado falta da bolsa. Eu tive a posse tranquila, eu estou num flagrante consumado, entende? Lá foi ao contrário, a moça não entendia que eu não tinha a posse tranquila dos malotes, os malotes da Transvalor e fui condenado a seis anos semiaberto, fui para Piraquara e fugi de novo. Aí, graças ao Champinha, em 2003, vindo de Balneário Camboriú com minha família, num dia de finados, Champinha havia feito aquela… matou um casal, você lembra do Champinha? A polícia estava fazendo uma blitz na estrada, eu fui pego, capturado. Aí voltei, fiquei mais sete e sai agora em 2010.
P/1 – E esses sete anos você cumpriu onde?
R – Cumpri… olha, vou ser franco. Comecei a cumprir em Taboão da Serra, fiquei dois meses, aí consegui cinco liberdades lá, devido o pessoal da Câmara Municipal lá, o delegado viu que eu estava muito assim, me mandou para Franco da Rocha…
P/1 – Muito assim, como?
R – Ah, muito destacado, quando você se destaca mais que a autoridade, o cara quer morrer.
P/1 – Destacar, como?
R – Na verdade, eu vou explicar para a senhora, quando eu cheguei lá, eu cheguei lá na madrugada, a cadeia tremeu porque PCC e quando tem uma pessoa que eles falam “Piolho”, que nem eu que estive em muitas cadeias e é um cara antigo, os caras têm medo que você vá tomar o prédio, que você vai querer mandar, que… então, eu falei: “Parceiro, eu não quero prédio, não quero nada, meu barato é ir embora”, mesmo assim, me puseram numa cela que tinha 52, 15 na cama 37 no chão. Vi coisa ali que… 28 no chão já estava lotado, mas os caras encostavam na parede e com o pé, empurrava aquele pessoal tudo de lá, ninguém vai para cima, só de lado, cabeça para cá e cabeça para lá, empurrava e caía mais três, quatro, empurrava mais um pouco e caía, até que os 35 no chão… 37 no chão ficava… e 15 nas camas. A minha salvação começou melhor já no dia seguinte, porque o Champinha foi preso e a população quis invadir a cadeia de Embu das Artes e não conseguiam, mas depredaram, quebraram banco, orelhão e tal. Ai o delegado autuou cinco homens e uma mulher por vandalismo e danos ao patrimônio que afiançaram, mas ele mandou para a cadeia. Então, os homens foram para lá onde eu estava no Taboão e a mulher foi para Barueri, haja vista que não tinha cadeia feminina, acomodações para mulher lá em Taboão. E eu falei para os caras: “Vocês querem ver que amanhã vocês estão na rua?”, amanhã não, foi de terça para quarta-feira, eu falei: “Depois de amanhã vocês estão na rua, amanhã é visita, pode trazer… eu vou fazer o pedido para vocês”, aquela coisa e tal, e fiz o pedido, já tinha conhecimento, provisória inclusive. Na visita, a visita veio e dei o aviso, pulou ora, a mulher já chamou os caras lá e deu a liberdade para os caras. Aí, os caras falaram: “Não, o cara é bom”. Aí comecei a fazer essa situação aí, aí me dei bem, que os caras viram que eu…
P/1 – Você mesmo redigiu o recurso?
R – Sempre fui eu, sempre redijo.
P/1 – Você terminou de estudar dentro da casa de detenção?
R – Eu nunca fiz… olha, aqui dá pra provar, se você ler aqui, da para você ler alto aí para eles entenderem o que está escrito ai?
P/1 – “Senhor diretor, é meu dever agradecer…”
R – A data, né, novembro.
P/1 – Vinte e cinco de novembro de 2003. “Senhor diretor, é meu dever agradecer vossa senhoria por ter me ajudado a conseguir liberdade para cinco companheiros além da esposa de um deles que se achava presa em Barueri. Baseado na certeza de poder prosseguir contando com vossa ajuda, peço especial favor de informar acerca da situação processual dos reeducandos: Alex Aparecido 5018…”
R – Ai é a situação dele.
P/1 – “…flagrante artigo corrupção de menores, além de dois IPs por Artigo 121 e 157, Embu; Paulo Cesar Aparecido de Oliveira, 5762, flagrante do Artigo 12; Liraldo Serafim de Orfeu, 5904, preso preventivo oriundo da Primeira Vara de Embu, delito praticado; Vagner Pereira, seis anos de reclusão, regime semiaberto”.
R – Aqui bati na maquina, foi essa informação ele me prestou, evidentemente, a caneta fui eu que pus meu nome, e na maquina, essa situação. Aí, eu fiz outros pedidos aqui, foi protocolado, pode ver tudo, Taboão, Itapecerica, todos eles… e consegui a liberdade e levei um pessoal da Câmara de Vereadores para fazer o quê? O Natal para os filhos dos presos, coisa que devia ser obrigação do delegado, o diretor da cadeia, não ia ter Natal para os filhos dos…
P/1 – E onde você aprendeu a fazer esses recursos? Lá mesmo?
R – Lá na detenção, moça! Em vez de ficar fazendo besteira lá com os assaltantes companheiros, eu fui aprender a fazer…
P/1 – E você tinha advogado? Em algum momento você teve advogado?
R – Na Detenção?
P/1 – É.
R – Não. Os recursos, até essa minha liberdade agora, quem conseguiu fui eu que pleiteei, eu que fiz o pedido e na mão, porque eles aceitam a mão também, acho que está aqui. Mas você pode. Eu vou explicar para você. O réu pode fazer, o cônjugue pode fazer, pleitear, o ascendente, o descendente, a Defensoria Pública, o promotor, qualquer um pode pleitear a favor, inclusive o réu, evidentemente. O réu não sabe fazer, eu sei fazer, eu posso fazer e ele assina, não precisa ter nenhum arrimo de um advogado, quando muito, se o juiz quiser, ele pede lá para um advogado que está passando só para lastrear aqui, mas a maioria dos recursos que eu fiz que a pessoa ganhou, não tinha nem a assinatura de advogado e nem nada. Você pode fazer como eu sempre faço, mudança de endereço, que eu saio de um aparelho e vou para outro, eu mesmo faço, apresento a mudança, autorização de endereço e tal.
P/1 – Você matou alguém?
R – Matei.
P/1 – Quando foi?
R – Olha, eu tenho um homicídio na rua que eu não assinei e infelizmente, tem dois… um dos meus casos foi até muito falado, porque eu matei o cara por causa de um pão. Os caras… muita gente fala que foi por causa do pão, mas não foi por causa do pão. Na Detenção, pagavam dois pães: um puro e um com manteiga, como eu jogava bola logo de manhã cedo, eu dei só um biquinho no café e deixei os dois pães assim, numa sacola de pão e fui jogar bola. Quando subi do sol da manhã, maior fome e tal, tomei banho e vou na sacola, está vazia! Nós morávamos em 23. Aí eu perguntei para o cara: “Alguém pegou o pão?” “Não…”, mas como estava faltando… esperei até chegar todo mundo na hora do almoço, falei: “Gente, quem pegou o pão?”, ninguém, aí então a situação, se você não toma uma atitude, aí tomam a sua roupa, porque tomou o seu pão… aí dali, eu lembrei logo da genitora e coisa e tal, aí o cara saiu perguntando: “Porra, toda essa história, aí Mujica por causa de um pão velho?”, eu falei: “Não, por causa de um pão velho, não”, aí discutimos, nós tínhamos um código: duelo, “Na rua 10 então, pode se armar que a gente vai na rua 10, depois de abrir o… é nós”, com as facas improvisadas que nós tínhamos. Eu não tinha nem faca, já tinha um extorque que eu tirei da muralha, que a faca na detenção dá muita dor de cabeça para quem for surpreendido, porque se você era pego com uma faca oriunda de vitrô, você ia apanhar muito para dar a serra, para dar a lima, para dar o resto da bandeja, não pensa assim que é um… é apanhar moça, de quebrar braço, cabeça rachar e a maioria caguetava e tal, então eu para não passar uma situação dessa, eu preferi tirar a minha da muralha. Então tinha isso. Só que o cara era muito malandro, falei: “Meu Deus do céu”, eu tive uma ideia. Na Detenção, as maçãs de antigamente só vinham da Argentina, hoje Brasil, graças a Deus está até exportando maçã, mas lá não tinha maçã brasileira, era tudo da Argentina e vinha num caixote de uma maneira muito maleável, muito gostosa de trabalhar, macia e leve. Aquela madeira podia entrar lá para fazer trabalho manual, com uma faquinha bem pequenininha, acho que ela fazia coisas lindas, aí eu peguei duas tabuas daquela e pus aqui embaixo do abdômen, a gândola, tamanco que lá todo mundo malando, usava tamanco, tamanco também é defesa, se você pôr a mão no tamanco, aqueles tamancão e fui gladiar com o cara e tenho até a marca aqui, ficou preso, aí eu com a minha faca, com o meu extorque eu matei ele. Aí a situação foi porque… então não foi pelo pão, entenda bem a situação, agora dá para entender que eu não matei pelo pão, mas sim pela tiração da pessoa, aí depois…
P/1 – E aí lá dentro percebem quando você mata?
R – Lógico!
P/1 – E ai, o que aconteceu com você?
R – Tirei um monte de dias, porque hoje, os caras aprontam o que aprontarem na cadeia, vai tirar dez dias, aí vai ter um julgamento, se ele for condenado, ele volta para mais 20, mas não passa de 30 dias. Na minha época, você tirava uns 60, 70, 80 dias, um dia estava tirando quase uns 100 dias, o que me livrou foi a vinda do papa, o Papa veio em 80, aí tive anistia, porque a anistia só era assim em ocasião de Natal, entendeu, dia das mães, aí tinha um show…
P/1 – Você fica assim numa cela fechada sozinho?
R – Não, não era sozinho. É uma cela fechada, posso falar para você que era de um e meio por um e meio, ainda tinha o boi, que você sabe que o boi é a privada mais alto, mais ou menos uma altura assim, então você ficava numa situação de um ele assim para três, quatro, cinco pessoal ali, entendeu? Uma situação muito difícil mesmo.
P/1 – E você vê pessoas enlouquecendo do seu lado?
R – Ah sim! E nós trocávamos a noite pelo dia, eu animava, que eram dez de um lado e dez salas do outro lado, tudo fechado, um lugar muito feio, uma masmorra mesmo. Então eu fazia coisa de calouro, começava a dançar até às dez, depois voltava, mas cigarro não podia ter, nada, todo dia tinha blitz, era uma situação muito jogo duro, tanto é que teve uma crise de meningite no Brasil em 75 e o Exército foi nos vacinar lá. O ultimo local que o Coronel Comandante foi lá com a tropa foi lá na cela forte nove, quando eu vi, nós estávamos em 108 distribuídos em 20 celas, mas celas nessa dimensão reduzida, estou falando de um e meio por um e meio. A outra coisa, só tomávamos banho de sexta-feira, jogava água no banheiro só na sexta-feira, não posso nem falar para você como é que era uma semana sem jogar água no banheiro e tal, então a única água ali no banheiro era uma caneca com água. Pessoal ia servir o café, já pegava a caneca com água de alumínio em volta, aí eu falaram: “Dou meia hora para vocês acabarem com isso aqui”, aí nós 108 acabamos com as celas fortes, aí fomos ver que as portas eram pesadas, porque tinha concreto dentro das portas que nem porta de cofre, ou era mármore ou era concreto, quebramos tudo e acabamos, mas foi uma situação muito difícil.
P/1 – E quantas pessoas você matou?
R – Bom, depois tiveram mais dois homicídios que eu não assassinei lá e mais um na rua, na verdade, eu tenho quatro homicídios.
P/1 – Esses outros dois foram na casa de detenção?
R – Não, um e um na Penitenciária também.
P/1 – Como foi na penitenciária?
R – Na Penitenciária foi a mesma situação por causa de tomação, por causa de garoto. O garoto é hoje moleque, mas moleque na minha época, moleque era mulher de malandro, “O cara aí é moleque do…”, então moleque não arriscava nem olhar, porque é a mesma coisa que você olhar para mulher… e aconteceu uma situação assim, do cara se engraçar com o moleque e não era nem meu moleque. A mãe e a irmã dele, um dia, pararam na entrada da visita, eu sempre trabalhei na portaria, bem dentro da cadeia, veja bem, não era na rua não, e a visita… todos os visitantes passavam, tinham dez maquinas, né, nós éramos em dez ali: “Bom dia, vai visitar quem?”, o numero do RG e tal, pavilhão, pode visitar, na volta a pessoa tinha que passar pelo mesmo lugar para dar baixa. E um dia, uma moça muito bonita, parou em mim e falou: “Moço, você é o Renato?” “Sou eu sim, moça, por que?” “Preciso falar com o senhor” “Pode falar” “Eu não tenho coragem” e a mãe dela, uma senhora distinta, ali mais atrás assim, ela falou: “Faz o seguinte, eu sei que o senhor pode durante o intervalo ai que o senhor… da visita, que o senhor anda pela cadeia toda aí, vai lá no 9, eu fico perto da sala dos milagres…”, a gente chama a sala dos milagres que é a sala do pau, né, onde o couro comia, “…o senhor vai ver lá eu e o senhor vai entender mais ou menos, eu não tenho coragem de falar para o senhor o que acontece”, aí eu fui lá, dando a volta eu já vi. Estava ela, a mãe, o moleque bonito, Rosinei o nome dele, parecia um… e um negão feio, aquele nego de beiço vermelho e ele tinha estuprado o moleque, estava enchacando a família e tudo. Aí, levei o menino para o 2, consegui no mesmo domingo e é difícil, no domingo só saía um para enfermaria ou para o seguro de vida e eu consegui levar ele para o 2. Aí, o negão na segunda-feira foi lá cobrar de mim lá e ai, acabamos discutindo e eu acabei matando o negão lá por causa dessa situação, por causa do moleque lá…
P/1 – E como que você fica depois da primeira vez que você matou, como que você fica? Você ficou…?
R – Eu acho que a pessoa deve alguma coisa, fica pesaroso se a pessoa fez alguma coisa que não devia ter feito. Se você faz alguma coisa era seu dever ou era você ou o outro, eu acho que não fiquei pesaroso, assim, não, por isso, não.
P/1 – E na rua?
R – Na rua sim, mas na rua na verdade, não foi nem homicídio, seria um latrocínio, também já prescreveu também, não adianta mais, já está prescrito viu gente? Mas foi, porque eu fui pedir o dinheiro para o cara, sabia onde estava o dinheiro, que ele estava com dinheiro, ele: “Vou te dar, vou te dar”, mas estava abrindo o porta-luvas e eu: “Eu estou vendo o dinheiro no saco”, aí quando ele pôs a mão, aí eu apertei, dei a volta, ele estava com a mão em cima… morreu com a mão em cima do revolver, ele ia pegar o revolver, em vez de ser mais esperto e dar o dinheiro: “Toma” e eu virar as costas e ele pá, não, né, aí foi essa situação ai.
P/1 – E ai, você saiu tem quanto tempo?
R – Agora faz cinco anos, sai dia 22 de setembro de 2010.
P/1 – E você continua assaltando?
R – Não. Primeiro que eu nem estou mais pelo seguinte, eu não sou do PCC, moça! Entendeu? Quando eu saí, eu passei uma situação muito difícil, ninguém morre de véspera, realmente e eu já tive para morrer umas quatro, cinco vezes, para morrer mesmo, no Rio, na mão de extermínio, na Baixada Fluminense e aqui no dia 7 de junho de 2010, quando o PCC… eu sai numa saidinha, aí o PCC me… não vou dizer me sequestrou, mas me “convidou” gentilmente: “Vamos até ali conosco”, e me levou para uma mata lá na Zona Leste, onde tem a Jacu Pêssego, vocês conhecem a estrada? Ali tem uma mata fechada e realmente é uma távola redonda, são uns 40, uns 50 numa edificação redonda, tudo sentado em uns bancos assim, então você está falando com uma pessoa aqui assim, você já está com outra te inquirindo aqui atrás, outra aqui e chegando ao vivo em tudo que é o sistema, querendo saber se o Mujica devia alguma coisa, mas eu graças a Deus, sempre tive uma conduta ilibada assim, nunca devia nada, tal. Depois de três horas de sumário, eu fui embora, fui convidado a entrar para o meio deles e rejeitei. Aí, quase fui pego pelas palavras, porque eu achei que eles tiveram uma oportunidade de ouro naquela situação de 2006, o Gugu liberou para eles falarem, o cara não soube, o porta-voz dele se perdeu nas conversas que ali se sou eu, mando muito bem que a população ia ficar a favor do PCC, tinha certeza! Mas puseram uma pessoa que não… “É o seguinte…”, isso é ideia para um domingo à tarde: “Minha senhora e meu senhor, nos perdoe estar entrando no recesso dos vossos lares e tal, mas é necessário, é algo que precisamos explicar o porque…” e vai… e aí quando eu falei isso, os caras… mas é verdade, em outras situações… não quero PCC e mais, não vou pagar, 600 reais, gastar mais de mil reais por mês para você ser afiliado… você vai pagar para ser afiliado ao PCC e toda hora tem que chegar nos caras e dar a situação! Eu não! Eu falei: “Olha parceiro, eu sou de uma época que o crime é o crime, não tem nada a ver uma situação com a outra”.
P/1 – E ai você saiu e foi morar onde?
R – Dai eu sai e fui morar com a minha esposa.
P/1 – Lá em Arthur Alvim, no apartamento?
R – É, no Arthur Alvim, como essa minha declaração aqui está sendo norteada por palavras corretas, estou sendo muito fidedigno em tudo o que eu falo, eu vou falar uma coisa, pode chocar um ou outro, tal, espero que não me vejam como diferente, porque eu vou ser franco. Eu recrimino muito uma pessoa chamada Geraldo Alckmin, entendeu? Eu recrimino ele, enquanto governador do estado, por ineficácia dele, já que ele responde por tudo em não proibir a entrada de drogas no sistema penitenciário Bandeirantes. Eu estava 18 anos fora do sistema penitenciário do estado de São Paulo, e para mim foi uma decepção muito grande ver que andou para trás. Primeiramente, indo na contramão do que rege a lei de execução penal, o preso deve resgatar sua pena perto dos seus familiares, o apoio familiar é importantíssimo e ele pegou aqui os presos de São Paulo e manda lá para as Barrancas, como eu falei, na divisa de Mato Grosso do Sul, 700, 800 quilômetros de distância. Eu estive em Uirapuru, já ouviu falar em Uirapuru? Tupi Paulista, tive em Mirandópolis, mas é, olha, quando eu vim de lá para cá que eu vi como que é longe, eu vi que a minha mulher me amava realmente, porque olha, só muito amor para ir numa instituição de caridade, para ir numa cadeia, num hospital, tem que ter muito amor ao próximo, principalmente para ir numa cadeia, principalmente para ir no…
P/1 – Seus filhos iam também?
R – Não. Pela humilhação que eles… e ainda tem lei proibindo, mas continua o mesmo tipo de humilhação, porque parece que o parente do preso cometeu o delito, não é delito ser parente de preso, ser mulher de preso e a pessoa, o familiar de preso passa por uma situação difícil. É uma revista constrangedora que examinam ânus, vagina, uma situação que já tem lei que já foi promulgada e tudo, mas não estão nem querendo… tinha que ser scanner, tinha que ser raio X, mas não, continua essa situação toda. Então, eu recrimino o Geraldo Alckmin porque se ele não conseguir impedir nas fronteiras a entrada, principalmente do crack, ele tinha obrigação de proibir o acesso dele nas instituições penais. E você quando sai de um lugar daqui, que nem eu estava aqui em Franco da Rocha, a uma hora, uma hora e meia, a minha mulher estava me visitando e vai para um lugar que é difícil, a maioria não tem visita, ociosidade porque não tem empresa que dá trabalho para você lá, você está no meio de um mato, você precisa ver as penitenciárias que é mato, quando você sai, você vai ver… aliás, vai ver só quando sai mesmo, porque você não… é tudo de concreto mesmo, sabe? Então, na verdade, tem a droga lá dentro. Apareceu o crack lá e do crack não tem como você fugir, é uma situação difícil e eu enveredei pelo crack também, então foi uma… quando sai, já sai numa situação… tinha inteligência suficiente para saber que era uma roubada, mas acabei tendo um desentendimento com minha mulher por causa dessa situação ai.
P/1 – Por causa do crack?
R – Por causa do crack.
P/1 – Ai, vocês moram separados?
R – Estávamos morando coletivamente, mas agora estou separado, mas eu vou lá em casa, tudo, porque a casa é minha ainda. Estão querendo vender lá e sair daqui. A minha ideia é talvez agora, ela vá lá para a Bahia, que ela é baiana, né? E vai para Bahia.
P/1 – Mas ela mora lá com os filhos? Os filhos estão com quantos anos?
R – Não, os filhos não. Os filhos são casados… meu filho é muito bem, meu filho é auditor de um banco, não vou dizer o nome, mas meu filho é auditor de um banco e minha filha trabalha no Grupo Casino, que agora é proprietário do…
P/1 – E você se relaciona com eles?
R – Tenho um encontro… encontro mais com o meu filho, fomos até ver jogo do Santos que ele é santista roxo. Minha filha é meio afastada assim, mas…
P/1 – E você mora onde?
R – Eu estou morando atualmente no Brás, na Rua Assunção, em frente a escola do Senai ali, é um hotel que foi transformado em um centro de acolhida especial ao idoso. Então eu estou lá.
P/1 – E como que é morar lá?
R – Ah, aquela situação, onde você tem que se submeter a certas situações é jogo duro, né, tem regras e tal, mas eu procuro…
P/1 – E você parou com o crack?
R – Eu, graças a Deus, parei, mas foi muito difícil! Falo que não tem tratamento, não tem nada, é a pessoa querer. Eu parei vendo o que a minha mulher fez, porque a minha mulher era viciada em cigarro, fumava três, quatro carteiras, gostava muito de jogar bingo e eu achava que ela podia fumar tanto, eu comprava de pacote fechado, dois, três dias depois, estava sem cigarro. E ela parou de uma hora para outra e eu comprei filtro falso, fizemos simpatia, não tinha jeito de parar e ela parou quando ela quis parar, ela parou. Sei que deve ter passado uma situação muito difícil, por causa da dependência, mas parou. E se ela parou naquele tempo com o cigarro que eu achei que ela não tinha condições de parar, eu conseguia parar também. Não foi fácil também, mas me conscientizei realmente que primeiro que denigre totalmente a mente da pessoa, segundo que não leva a nada, mas eu queria falar uma coisa também, vou dar uma sugestão ai como eu deixei bem claro: a erradicação do crack não é esse problema que eles estão falando, que isso ai é tudo roubalheira mesmo, vou falar logo certo aí, nada desses agentes de saúde, porque vai na Cracolândia e analisa, má administração do dinheiro publico, ele está sendo delapidado de uma forma errada, porque não adianta, não é daquele jeito. A única forma de parar com o crack é o cara na verdade, fazer um acordo com o PCC que no dia seguinte não tinha mais crack em São Paulo, porque não dá para esconder que três coisas estão na mão do crime organizado em São Paulo, eu falo sem medo nenhum. Primeiro, o transporte complementar ou o que você chama de lotação, está na mão do PCC e eu sei, eu posso falar, eu sou motorista de ônibus também, entendeu? Principalmente na Zona Leste, não tem uma linha que… toda linha tem um coordenador, não tem uma linha que o coordenador não seja irmãozão mesmo, tem três, quatro anos na linha, então transporte complementar ou alternativo está na mão do PCC. Segunda situação que está na mão do PCC, o quê que é? O samba. Vai na Vai-Vai, pode ir, talvez… eu acredito que Mocidade está na mão da Bechara e a Rosas de Ouro… mas o resto é o PCC, por isso que está caindo e está caindo mesmo, porque os caras não são do ramo, tiraram o Pé Rachado, tiraram o Chiclete, tiraram uns caras que…
P/1 – E a terceira é o crack?
R – Entendeu? Não, terceira não é o crack, não. Terceira, posso falar? A segurança pública. Os nossos índices de homicídio caíram e tal e tal, mas esquecem de falar que hoje para você matar uma pessoa, você tem que ir lá no PCC: “Olha, eu preciso matar o cara que passou a mão na minha mulher ou fez mal para a minha filha, vocês permitem?” “Pode ir lá e matar”, se você matar e não for… é assim! Tem que ter o aval do torre ou então do disciplina da área. Então, esses três estão na mão do… não dá para falar que eu estou mentindo, porque é verdade, não tem… então, eu entendo que ele podia chamar os caras e falar: “Olha, vamos tirar o Marqueta lá do RDD e vamos trazer aqui e vamos até dar uma provisória, uma liberdade pra ele aí, que ele está tirando um monte também, mas faz um favor pra mim, para com o crack”, entendeu? É isso, para parar o crack aqui em São Paulo, acabar, tem que passar…
P/1 – E a sua mulher, você se relaciona com ela ainda hoje?
R – Relaciono, embora com ela eu tive um problema muito grave que está me rendendo um processo, estou respondendo uma… vocês são mulheres, tem duas mulheres aqui, eu peço desculpas para vocês, queria enaltecer muito a Lei Maria da Penha, porque eu, por incrível que pareça, sou contra qualquer tipo de violência, principalmente a doméstica, embora entenda que também tem algumas mulheres que são jogo duro. Mas a Lei Maria da Penha, a cada dia 8 de marco, ela fica mais inconstitucional, agora veio o termo… nesse ponto, eu nem vou entrar em detalhe. O que eu entro em detalhe é a falta de condições que a lei fala…
P/1 – Mas o que aconteceu com você e com sua mulher?
R – Então, aconteceu o seguinte, deixa eu falar uma história em reserva, para depois você entender o que aconteceu. Eu sai no meu aniversário, em outubro de 2010 lá de onde que eu estava, vim passar o final de semana com a família. Aí, um português lá que eu até conhecia, estava lá em casa: “Oi, tudo bem?” “Tudo bem?”. Aí a minha mulher falou: “O Sinei está namorando a Suellen”, minha filha. Chamei os dois no quarto: “Vem cá Suellen, vem cá…” “O que foi?” “Vem cá”, ele é português, tiveram 13 padarias em São Paulo, hoje estão a zero, para vocês verem como que é… aí, chegou lá no quarto, peguei um preservativo, abri, falei: “Sabem o que é isso aqui?”, minha filha: “Pai do céu”, ele: “Seu Renato…”, eu: “Deixa de história, na hora que o bagulho fica louco, como eu sempre falei, mão naquilo e aquilo na mão, olha, não esquece a camisinha!” “Seu Renato, eu respeito a sua filha, tenho o maior respeito”, eu falei: “Tudo bem, só estou avisando”, volto para colônia, aí a minha mulher: “Suellen está com um problema de estomago e tal”, falei: “Leva ela no médico” “Tá tudo bem”, aí veio para o Natal, saidinha do Natal, aí está lá aquele almoço bem suntuoso, a situação está tudo bem, o meu filho já com o meu netinho pequenininho, japonês, que eu tenho uma nora que é nissei, ela é filha de nissei, né? E o menininho, meu neto que hoje está com 15 anos, tinha oito meses e tal e estamos lá. Na hora que vem a minha sobremesa, que era um manjar que eu adoro manjar branco: “Espera aí que o Sirnei quer falar com você. Vai português, aproveita e fala com o seu Renato aí, que ele está com a barriga cheia, com o estomago forrado você conversa melhor”, eu falei: “Fala Sirnei, o que foi?” ”Eu queria falar com o senhor…”, ai no ato minha mente falou: ‘ele vai pedir para ficar noivo da Suellen, eu vou falar que não, que só depois e tal…’, no que passava a milhas de distância, ele… e minha mulher: “Vai português, desembucha ai” “A Suellen está grávida”, meu Deus, aí minha mulher: “Calma, calma”, aí vou falar que está gravando, depois você pode editar, você pode…, eu falei… quando ele pegou, o meu filho, pegou a japonesa e pá, você fala: “Esse é meu filho!” “Nós éramos pedra Renato, hoje nós somos vidraça, vai lá dar um abraço na sua filha que está muito bem tratada, está fazendo pré-natal no Santa Joana, vai ganhar no Santa Joana e tal, já tem um apartamento…”, o sogro que no tinha morrido ainda, construtor na Praia Grande, “…já tem um apartamento dela, já está no nome dela…”, então, nessa situação, o meu genro estava quase fugindo pela janela, que eu moro no 31, mas é segundo andar porque o 11 é o térreo, se a pessoa não… dá para pular, porque na verdade, tem um jardim bem legal embaixo, daria para sair de gorduroso, reservou isso que eu te falei? Aí, aconteceram algumas passagens, ele falou pra mim assim: “Seu Renato, vou ser franco, aquele dia o senhor viu que eu estava do lado da janela ali, porque se o senhor… eu ia pular a janela”, então isso virou mote, a gente: “Ah, você ia pular pela janela!”, entendeu? Agora, 2013, 15 de janeiro, minha mulher, não sei porque cargas d’água, mas várias vezes tinha me provocado, sabe, aquela situação: “Vai bater…”, e eu nunca tinha feito uma situação dessa, então ela achava que nunca ia acontecer, esquecendo ela que eu era do sim, eu descuido do não, tem aquela hora em que você é pego no contrapé, vamos dizer assim e uma hora naquele dia em que ela falou que eu ia bater, moça, eu dei uns dois, três tapas e ela correu para o quarto e se fechou. Nós já morávamos em quartos separados, ela no dela, que era nosso, mas que ficou só dela e eu no outro, só nós dois em casa. As três janelas ficam, tanto a da sala, como a do meu quarto e a do quarto dela ficam na mesma linha, dá para entender, do mesmo lado e ela como sempre moleca desde a Bahia, de amarrar a saia na perna e subir em arvore, aquela situação toda, ela falou: “Vou sair à francesa pela janela”, só que ela não sai à francesa, na hora, caiu em cima de um arbusto, quebrou duas costelas, perfurou o pulmão. Na raiva, em vez de… ela foi para o hospital Dei que ela tem convênio, falou que eu tinha matado ela, que eu tinha tentado matar ela, estava sumariando essa situação até ontem, antes de ontem, dia 16, a juíza entendeu, resolveu arquivar, estou até com a pronùncia… porque eu estava com mandado de prisão, eu estou andando com a pronúncia até a captura dar baixa, né? Entendeu que na verdade… porque todas as provas eram… primeiro, que nessa época, eu estava usando uma sonda, eu tive uma retenção urinária, enquanto eu não fiz o procedimento chamado RTU, que é a retificação de trato urinário, eu estava usando uma sonda, eu estava com 51 quilos, eu perdi 28 quilos em decorrência do meu problema da próstata, entendeu? A minha janela é de 80 centímetros, sendo que uma folha é fixa, sobram 40 centímetros. Então, uma pessoa que vai ser lançada vai gritar, vai te segurar e na pior das hipóteses, ia pegar na sonda ali, porque… e o seguinte, a porta ainda estava fechada por dentro, o IML esteve lá porque eu moro perto do IML da Zona Leste e o delegado, na hora de me autuar, ele olhou bem pra mim, viu que eu estava bem debilitado, não tinha nenhuma marca e escoriação, que alguém… e eu com a sonda e a minha mulher já… ele chamou o pessoal de IPT lá e pediu para dar um pulinho em casa, que é perto, para dali uma hora e pouco já voltou, falou: “Olha, a porta do quarto está fechada por dentro, tem a banqueta, deu para notar que tal, tal…”, e não me autuou. Mas a declaração que ela fez foi no 24º Distrito, o hospital pertence a um outro distrito, de Ermelino Matarazzo e lá que prosseguiu a ação, até que agora, graças ao depoimento, foi arquivada a situação. Mas a situação maior é essa que eu quero voltar a Lei Maria da Penha, principalmente vocês homens que têm mulher, o problema: a mulher falou uma situação, pode estar equivocado, pode estar errado, o homem já chega lá julgado e condenado.
P/1 – E hoje vocês não estão se falando mais?
R – É, eu estou falando para você que eu estou falando com ela, ela me ligou agora. Quem me ligou aquela hora foi ela…
P/1 – E deixa eu fazer uma… vocês têm alguma pergunta? Eu vou caminhar para as finais. Olhando a sua trajetória, tudo o que você contou até agora, você mudaria alguma coisa na sua historia de vida?
R – Mudaria.
P/1 – O quê?
R – Mudaria, mas não com a minha esposa. Porque eu daria mais valor a ela, certo, porque tenho que valorizar uma pessoa que nem ela, primeiramente porque deixou… minha mãe… levou minha mãe, mas deixou uma pessoa, uma substituta ideal no lugar dela, minha esposa, gente fina, muito boa mãe. Mas pela situação dela ter não medido esforços para me visitar, dela ter passado muitas situações difíceis, não passar para mim as penúrias que ela passou, porque quando eu fui preso, deixei em situação bem, mas aí você tira e não põe, você sabe que vai esvaziando e passou situação difícil, nunca passou para mim os transtornos, as privações que estava passando. Então na verdade, se eu pudesse, gostaria muito de agradecer a minha esposa e dedicar muito mais tempo a ela. O que eu me arrependo realmente, foi não ter dado mais aconchego para ela e ter deixado a situação chegar num ponto, não ter relevado as afrontas dela e nem nada. É difícil… a única coisa que eu me arrependo, do resto, não me arrependo de nada, me arrependo de não ter feito certas coisas, se eu pudesse voltar atrás nessa situação no tratamento para com ela, com a minha esposa.
P/1 – Você vive do que, hoje?
R – Eu vivo de pequenos bicos, eu estou esperando, por exemplo, dia 8 agora, eu vou ser submetido a uma operação que é uma hérnia inguinal direita aqui, mas eu dirijo ônibus, sou motorista de ônibus freelancer. Então agora tenho vínculo com a empresa, mas muito patrão não gosta de trabalhar de sábado, domingo, então eu pego porque ganho 90 reais quando eu trabalho, 90 reais por período, eu vivo é disso ai. Ainda tem a bolsa Renda Cidadão, a Bolsa Família, então não tenho vício assim, então dá para eu ir sobrevivendo.
P/1 – Quais são os seus maiores sonhos?
R – Bom, me reinserir verdadeiramente na sociedade, que eu ainda não estou reinserido na sociedade, por incrível que pareça, após cinco anos de liberdade e não vai ser igual, mas tentar chegar próximo do que eu já tive de convivência com a minha esposa, o meu relacionamento com ela, estamos aparando as arestas e tudo, mas é isso ai mesmo, não tenho muito… se eu conseguir voltar com ela pelo menos quase como nós éramos antigamente que era… eu acho que o nosso maior problema foi de inveja, porque tem situação que tem que acreditar que o olho humano tem um poder, viu moça! Porque nós éramos o casal perfeito, pode acreditar que eu e a minha esposa éramos um casal muito legal mesmo, infelizmente, eu…
P/1 – Como que você ficou sabendo do Museu da Pessoa?
R – Eu acho que foi através da televisão, vi alguma coisa na televisão e… aliás, eu sou rato de museus, desculpe falar para você, não tem museu que eu não tenha ido aqui em São Paulo, Museu da Casa Brasileira, Museu da Arte Sacra, Museu do Telefone…
P/1 – E você sabia que aqui era para contar história?
R – Não, eu vim aqui pensando que era um acervo… aí cheguei aqui, falaram: “Não…”, ai não vi nada, aí a moça falou: “Não, aqui funciona assim”, ai falei: “Então eu quero dar o meu depoimento que eu tenho história para contar”, e…
P/1 – E o que você achou de contar a sua história aqui para o Museu da Pessoa?
R – Eu queria que tivesse mais tempo, porque na verdade, eu tinha muito mais coisa para falar, mas estou satisfeito, agradeço muito essa oportunidade de deixar ai perpetuado a minha historia. Quero falar que tudo o que eu falei é real mesmo, não aumentei nada, não carreguei nas tintas, procurei não ser muito piegas também, mas ser franco também…
P/1 – Mas como foi para você contar?
R – Ah, foi um desabafo! Pra mim foi muito bom, porque dividir, o que você fez de bom ou de ruim com a outra pessoa, parece que você distribui um pouco mais o peso do fardo. Espero que seja também para outras pessoas verem aí, se for gente jovem para pensar muito antes de fazer situação, o marido que tiver uma esposa que realmente vale a pena, que valorize, dê o valor que ela realmente merece e tudo, evite a provocação que a mulher é jogo duro também. E outra coisa que eu vou falar, a senhora é a Cristiane Torloni todinha, viu?
P/1 – Eu?
R – É, estou doido para lhe falar isso…
P/1 – Tem muitas coisas, como você mesmo falou, a gente acaba tendo um tempo restrito e devem ter várias coisas que você não teve oportunidade de falar, mas você quer escolher uma para deixar registrado, das coisas que a gente não falou, que não deu tempo para falar?
R – Eu quero falar sim, eu quero dar uma sugestão. Aqueles que tiverem condições, um tempo livre, isso vale para vocês também, que são ai jovens, vão lá na instituição de caridade, vá no orfanato, vá num asilo com pessoas idosas, procure a hora que tiverem um tempo, ler alguma coisa, escrever uma carta para quem não sabe, ler algum livro para alguma criança que é muito legal, procure ser útil, procure viver para servir, senão você não serve para viver. é isso que eu quero deixar bem claro.
P/1 – Obrigada, queria agradecer, em nome do Museu.
FINAL DA ENTREVISTA
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