P/1 – Elmo, queria agradecer por você ter aceito o convite. E queria que você falasse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Bem, meu nome é Elmo da Silva Amador. Eu nasci em Itajaí em Santa Catarina, no dia 22 de agosto de 1943.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – É Anselmo André Amador e Paulina Maria da Silva Amador.
P/1 – E você podia contar um pouco da história dos seus pais, da sua família?
R – Bem, sou de Itajaí. Meu pai era marinheiro e minha mãe era professora primária. Aí um navio, Lóide Brasileiro, a Companhia Lóide Brasileiro, o navio ia em Itajaí de vez em quando, e numa dessas idas encontrou a minha mãe encontrou meu pai na praça e se gostaram; aí muito comedidamente namoraram e casaram. Agora teve uma característica que foi marcante desde o começo que é de eu ver muito pouco meu pai. Como todo marinheiro, meu pai fazia longas viagens no mundo e só parava uma “vezinha”, um dia em três, um dia às vezes em seis meses; um, dois dias em seis meses. Quer dizer, então praticamente não via meu pai. O meu pai, por exemplo, só foi me conhecer depois de eu ter seis, sete meses de cidade. E eu nasci em plena Guerra Mundial. Outra característica: uma situação de tensão muito grande no mundo. Mas essa característica de ver pouco o meu pai marcou muito a minha vida: eu gostava muito dele, mas a presença masculina, a presença do pai, assim, faltou um pouco, por isso, não que ele desejasse, mas a profissão impedia.
E isso também levou a mudar a vinda pro Rio de Janeiro. A Baia de Guanabara teve uma importância nisso, porque a Baia de Guanabara é o grande porto do Brasil, era o grande porto, e as viagens que o meu pai fazia ficava bastante tempo no Rio de Janeiro, então com isso a vinda de Itajaí para o Rio de Janeiro. Eu vim com cinco anos e meio e foi uma mudança, assim, radical. Lembro de forma fragmentada, como criança de uma cidade pequena, de um porto, de praias, lembro de uma inundação. Essa característica que tá aparecendo muito pra Santa Catarina, Vale do Itajaí, aquelas inundações. Naquela época já existia! Eu lembro que eu tinha quatro ou cinco anos de idade, eu acordei um dia feliz da vida, as pessoas estressadas, nervosas, apavoradas e eu feliz da vida porque eu tava vendo peixinhos embaixo da minha cama , eu tava vendo peixinhos e tava achando, assim, o máximo, eu acordei e tava vendo peixinhos embaixo da cama! As pessoas desesperadas com a tragédia da inundação, mas eu curtindo. Então essa visão de um lugar pequeno, legal, com parentes, quintal grande, deu lugar a uma vida nova no Rio de Janeiro.
No início de muito sofrimento. Meu pai era pobre, ganhava pouco. Minha mãe deixou de trabalhar, não trabalhava. Então nós vivemos em situação de extrema penúria, a gente passou muito aperto, muito sufoco mesmo. Moramos em casas de outras pessoas. Nós vivemos uma vez quase numa situação de favelados. Minha mãe brigou onde nós morávamos, nós fomos colocados pra fora da casa, e meu pai viajando e minha mãe sem iniciativa e nós ficamos muito mal mesmo e foi contornado aí com a acolhida de uma família generosa, cristã, que acolheu, eu lembro muito bem: a gente passando fome e eu ficava brincando com a comida pouquinha, fraquinha. Eu ficava brincando com a comida, pra curtir, pra fazer ela demorar a acabar .
Muito bem. Mas aí depois fui morar em Caxias, no Rio de Janeiro; morei na Penha; depois morei em Caxias, na Baixada Fluminense. E Caxias marcou muito, mas muito mesmo, a minha vida! Foi a fase dos sete aos dez, doze anos. Marcou muito porque aquela infância livre, lá era matagal pra todo lado, então via muito natureza, bicho. Eu aprendi a nadar num rio que hoje é o símbolo da poluição da Baia de Guanabara, o rio Meriti. E eu saía de casa e ia lá ver caranguejo, nadava. Na época era uma água razoável! E ficava na rua o dia inteiro, brincava de índio, fazia casinha, cabaninha, aquelas coisas. Futebol. Essas coisas todas. Esse era o lado bom, o lado ruim era que a Baixada, naquela época – mesmo agora, mais ou menos, agora talvez um pouco menos - era muito perigosa, então existiam muitas mortes, muito bandido, eu vi muitos corpos na minha vida, muitas pessoas sendo mortas. Uma se suicidando, se incendiando; uma que levou uma punhalada; outra que um bandido que tava tentando se esconder atrás da cama... e os meus olhos gravaram assim muitas imagens de extrema violência, de uma criança vendo isso nessa época. Então são duas coisas paradoxais: de um lado uma vida gostosa de moleque, que eu adorei, e do outro, assim, de situação de extrema violência que assolava e que permeava a nossa vida. Quer dizer, violência não é uma coisa de hoje, é uma coisa muito antiga, só que hoje tá mais generalizada, talvez. Essa visão eu sempre tive. Bem, e em função dessa miséria que a gente teve, esse desajuste.
No Rio de Janeiro a gente ficou longe da família, e meu pai ganhando pouco, nossa situação de vida era muito difícil, era uma casa de um quarto só, com três filhos, três, a gente dormindo na sala tudo apinhado, era uma situação bastante difícil! Eu lembro que pra complementar o dinheirinho lá, eu tinha que ajudar a minha mãe a vender docinho no campo de futebol, a fazer lá uns docinhos, pra complementar, pra tentar. Então esse quadro me marcou muito. Isso de observar o mundo. Eu passei a ver o mundo com um olhar muito crítico, de ver muita injustiça social. Marcou muito. Profundamente. Não só pela minha origem, mas eu passei a observar também o desigual, e essa desigualdade me marcou muito em termos de militância pessoal, militância social, depois mais tarde militância política, e depois a militância política ela imbrica com a militância ambiental, quer dizer, hoje, na verdade eu faço uma militância que é política e ambiental ao mesmo tempo. Mas houve um momento, por origem, que seria uma militância mais social, mais de revolta. E marcou muito! Marcou, assim, profundamente e eu acho que só. Até hoje eu não tô totalmente curado dos traumas, das injustiças que eu observava, que eu via, que eu acompanhava. Até hoje não tô. Eu tô melhorado, consegui melhorar, superar, deixei de ser tão agressivo como eu fui, mas ainda tenho esses vestígios e eu imprimo em tudo que eu faço ainda essa visão.
P/1 – Elmo, antes, deixa eu só te perguntar: você tem irmãos?
R – Tenho. Tenho. Uma irmã – sou o mais velho. E tenho uma irmã, que seria a segunda, e tive um irmão que foi assassinado. Que era uma pessoa maravilhosa, super inteligente, era o mais inteligente, era o mais bem informado da família, e foi assassinado com 17 anos por um esquizofrênico, um louco, um maluco, vizinho. E como tem nessa novela que a gente tá assistindo agora que tem aquela figura esquizofrênica, eu vejo o assassino do meu irmão exatamente igual. O cara se sentia ameaçado por uma pessoa que não fazia absolutamente nada, era uma pessoa maravilhosa, e ele assassinou. Isso marcou muito também.
P/2 – Você era mais novo ou era mais velho?
R – Meu irmão era o mais novo. Meu irmão tinha uma diferença de sete anos.
P/1 – Qual era o nome dele?
R – É Anselmo. A gente chamava de Anselminho. Eu tinha 22 anos, ele 17 quando ele morreu. Ele era uma pessoa maravilhosa, estudante do colégio Pedro II, melhor aluno! Melhor em tudo! E inclusive em visão de mundo também, preocupado com a natureza, preocupado com a pobreza, com a favela, ele se incomodava com os menores abandonados, tudo isso. E foi isso também que me marcou profundamente, até hoje minha mãe tem seqüelas aí do que aconteceu.
P/1 – E qual que é o nome da sua irmã?
R – Minha irmã: Selma. A Selma tá bem, casou com um português, tá bem, bem sucedido, um cara que trabalhou bastante, não estudou muito, mas trabalhou muito e hoje é um empresário bem sucedido. E ela tá muito bem, muito bem casada, eles se gostam, têm dois filhos, têm lá alguns netos.
P/1 – Então, eu queria voltar um pouco mais pra infância, pra gente caminhar.
R – Tá bom.
P/1 – Você brincava muito com seus irmãos ou você tinha outros amigos também, como é que era?
R – Tinha. Aquilo que eu tava falando: foi uma infância que eu não tenho a menor dúvida de dizer que foi uma infância maravilhosa, apesar de pobre, maravilhosa! É na rua! Uma coisa que a minha mulher, por exemplo, reclama muito, ela sente muito não ter tido essa coisa de viver na rua. E eu tive. Eu tinha uma relação maior com meu irmão irmãozinho. E nós brincávamos muito na rua, essas brincadeiras de índio, de faroeste, caubói e nós éramos do bem, pessoas, assim, do bem. Tinha algumas crianças que eram do mal na época: pegavam, arrancavam, roubavam a nossa pipa, roubavam bolinha de gude, tiravam peão, davam cascudo, tinha isso. E eu lembro, eu era bobinho, eu, meu irmão, nós éramos bobinhos, aqueles menininhos do bem. E teve um evento aí que ficou muito marcado também: um dia eu fiquei revoltado com um desses bandidinhos e resolvi reagir, aí reagi e falei: “Ih, vou morrer, mas vou reagir” Aí nós brigamos, rolamos no mato lá, rolamos e eu consegui aplicar uma chave de perna nele. Na agonia, no desespero, apliquei uma chave de perna, mas foi tão forte, tão forte, que fiz ele se borrar todinho! Ele se borrou todo ali e aí pediu arrego, aí com isso, o que é que aconteceu? Eu virei herói e ele passou a me respeitar, esse bandidinho, e outros bandidinhos. E eu passei a ser herói lá do grupo, por causa de uma coisa assim, de uma reação arriscada, que o cara tinha mais preparo pra brigar, pra tudo que eu. Mas consegui vencer. Eu conto pros meus netos, meus netos ficam fascinados com isso, foi um ato que aconteceu e que marcou muito também. E hoje esse cara até... - bem eu não vejo, não vi - mas parece que melhorou, não ficou bandido, porque tinha tudo pra ser não ficou bandido. Tinha muita brincadeira de “pêra-uva-maçã”. Minha primeira namorada foi com dez anos, dez anos! Primeira, digo assim: atração física, ela devia ter oito, sete, sei lá. A primeira atração física, as pessoas ficavam assistindo a novela, O Direito de Nascer e aí eu namorando lá escondido, brincando de namorar!
P/2 – E a vida escolar, como é que era a vida escolar?
R – Vida escolar? Tinha pouco recurso lá, naquela área não tinha assim colégio municipal, estadual próximo, não tinha, tinha só colégio bem longe, porque a gente não morava no centro de Caxias, nós morávamos no bairro dos Cavaleiros, que era um lugar bem distante, era bem mato mesmo, bem afastado, difícil de chegar. Então, meu primeiro estudo foi com professoras particulares e minha mãe. Minha mãe foi a minha primeira professora, porque a minha mãe foi professora primária. E minha mãe aí praticamente me alfabetizou. E eu tive uma professora, eu lembro muito bem, a professora Consuelo que era no primário; a grande professora, a grande referência. A gente ia pra casa dela, que era a escola, aqueles alunos sem uniforme, sem nada. E aí depois eu tive uma outra professora, a Bruna, professora Bruna, que era russa ou polaca, falava com sotaque meio arrastado. Então eu guardo muito bem assim essas figuras e pouco a figura do colégio. Colégio eu só fui ter mesmo depois, mais tarde, o Colégio Duque de Caxias, em Caxias. Daí tinha que pegar condução difícil, tinha que ir por minha conta. Agora, eu lembro do tempo de infância que existia um certos castigos, a escola tinha castigo: tinha um castigo que era ajoelhar em cima do milho, do feijão, tinha os castigos. Tinha outro castigo que era palmatória, bater mesmo, você tinha que dar a mão e batia mesmo na sua mão. Tinha outro castigo que era Quarto Escuro, esse aí eu nunca vi, mas existia essa figura do Quarto Escuro e tinha um outro que eu fui muito castigado por ele, usei muito: que era você ficar repetindo milhões de vezes uma frase que a professora mandava você escrever. Então tinha lá a frase: “Eu devo respeitar a professora”. Tinha que escrever mil vezes. “Eu devo chegar cedo no colégio”. Mil vezes. Uma coisa assim que marcou muito e hoje não existe. Minha netinha mais velha, a Flora, até perguntou como é que era na minha época, daí eu lembrei pra ela e ela achou um absurdo que isso ocorresse. E era uma coisa interessante, porque a minha mulher é mais ou menos da mesma época, a Zulmira é mais ou menos da minha época e isso pra ela é uma coisa estranha, ela tava até achando que eu estivesse mentindo, mas não é. Eram realidades que existiram no mesmo país, no mesmo estado, mas é lógico, em situações sociais diferentes. A escola dela era um primor, tinha teatro. No meu ainda coexistia esse tipo de repressão, essa forma arcaica de.
P/1 – Você aprontava muito, Elmo?
R – Eu aprontava! Eu realmente aprontava. No colégio mesmo eu lembro um evento. Muitos eventos ocorreram, mas teve um, assim, que foi muito marcante. Aliás, diversas vezes aconteceram, mas teve um que foi marcante: eu era meio líder no colégio, e aí uma vez era um feriado, um dia lá importante que não teria aula normalmente, mas eu não sei por que cargas d´águas, o colégio inventou que teria aula, impôs. Aí nós nos revoltamos e combinamos, o pessoal todo lá: “Não vamos aparecer no colégio”. Aí no dia seguinte eu fui pro colégio sem uniforme só pra ver o que é que acontecia, daí vi um monte de gente furando o nosso trato, aí fiquei revoltado! Aí entrei no colégio, aí aprontei! E não queria deixar entrar, peguei as cadernetas dos colegas pra eles não entregarem, aí virei a sala, fechei a sala, aí veio o filho do dono do colégio, era o Colégio Duque de Caxias, nessa época. Aí veio o filho do dono, eu briguei com ele, nossa, aí fui expulso, claro, lógico! Fui expulso! Daí minha mãe vinha depois, tadinha, ela chorava, pedia. Aí o pessoal deixava voltar de novo pro colégio, eu fiz diversas vezes isso. Minha mãe foi diversas vezes no colégio pra me readmitir.
Eu era muito revoltado, tinha essa. Líder. Tinha uma liderança e uma revolta, vamos dizer assim, a verdade, meio até descontrolada. Mas marcou muito. Marcava muitas festas de São João do colégio, maravilhosas! Coisa assim maravilhosa! O jogo de futebol de salão também. Maravilhoso! Enfim, eu diria que eu tive uma infância pobre, porém muito gostosa. E uma juventude também pobre, mas rica de vivência.
Bem, daí entro no ginásio. Duque de Caxias. Um detalhe era o seguinte: não tinha colégio, quer dizer, em Duque de Caxias só tinha até o ginásio, então teria que fazer o colégio em outro lugar. E no caso, o lugar mais próximo que teria seria na Leopoldina, ali Penha, Ramos. E foi o que eu acabei fazendo. Mas antes disso eu tive uma experiência, motivada pela pobreza. Tô falando muita pobreza. Minha mãe muito preocupada com o ensino – minha mãe era muito ligada comigo, além de nos parecermos fisicamente. Ela gostava muito dos três filhos, mas ela tinha uma ligação maior comigo. E ela se preocupava muito com meu futuro, o que eu iria ser, tudo isso. E como não tinha condição, recurso muito pouquinho, minha mãe pediu pra eu morar em Florianópolis. Ir pra Florianópolis pra ver esses parentes que a gente tem lá, os únicos parentes que nós tínhamos em Florianópolis, Santa Catarina, se a minha tia podia ajudar um pouco. Daí eu tive essa experiência com 14 anos: fui pra Florianópolis, mas foi uma experiência ruim, não foi uma experiência agradável. Porque eu tava na expectativa de chegar lá e ter uma boa escola, arranjar um emprego, ter uma vida mais organizada, com parente com mais recurso que pudesse ajudar, mas aí houve problemas. Consegui uma boa escola, minha tia tinha ligação com a gerência de ensino, tinha sido diretora, tudo isso, então conseguiu uma boa escola. Aí emprego, nada. E eu tive ainda problema com um tio, que era doente, tava doente e essa doença fazia ele ficar muito nervoso, eu me sentia perseguido por ele. Eu era perseguido. Ele ficava olhando o que eu comia, o que eu fazia; reclamava, falava mal de mim, nossa! 14 anos e perseguido! Pra piorar, tinha um gato na casa, um gato velho, aqueles gatos velhões caducos, tipo gato caduco, que também ficava me perseguindo, ficava atrás de mim o tempo todo! Aí eu tentava dar um jeito no gato: prendia no armário. Aí ele saía com mais raiva, vinha com mais raiva, me atacava, vinha pra unhar mesmo, unhar, morder. Aí eu consegui pegar ele jogar embaixo lá da sacada do prédio, aí ele aparecia depois com mais ódio ainda! Aí eu não tinha mais o que fazer, não sabia mais o que fazer com o gato! Já peguei ele com saco, levei pra longe, aí ele voltou. Nossa! Um desespero . E nessa época eu era apaixonado por uma menina, uma libanesazinha, Jalile. Linda, moça linda, tinha sido colega. Aliás, eu aproveitava muito as coleguinhas da minha irmã. Namorei diversas colegas da minha irmã. E essa Jalile era uma. E foi nessa época, eu fazia cartas apaixonadas, maravilhosas pra ela! E ela que tava concorrendo a prêmio, a prêmio de beleza e aí ganhava, era linda! Mas quando chegou no Rio, teve um problema que foi um problema de, como é que chama? De choque cultural. Eu tinha 14 anos ou 15, acho que não devia ter 15, eu doido pra encontrar a minha namorada, beijar, abraçar, tudo, mas tinha que ser na casa dela. Ai fui na casa dela, eu e meu irmãozinho, aí chegou lá e o pessoal, veio com tanta regra pra namorar, tinha tanta regra, tanta dificuldade, que eu fiquei em pânico na hora e disse que eu não queria namorar. Ela chorava, chorava e eu também, doido pra namorar. Eu era apaixonado por ela, quer dizer, foi um impacto que foi gerado. Eu talvez se tivesse pensado talvez um pouco, talvez encontrasse uma saída, uma solução, talvez pudesse dizer que concordava e depois fugia. Mas eu não sei, aí a integridade, a minha forma ali verdadeira, disse que não concordava, que não aceitava aquela forma, era muito novo, 14, 15 anos, eu não podia ficar tão amarrado assim já. E o namoro ia ser amarrado, tipo assim: tem que casar! Sentou, namorou, tem que casar! Não tem como. Eu não sei se isso é normal entre libaneses. Aí uma grande paixão. Aí sofri aí pra caramba!
Aí eu voltei pro Rio, depois desses 14 anos, aconteceu esse choque, perdi minha namorada e minha família foi morar num lugar muito ruim, atrás da Central do Brasil, que é chamada Cordoaria, é uma área lá que eles chamam de Cordoaria na Rua Barão de São Felix. Porque meu irmão tinha passado no colégio Pedro II – ele era ótimo – e lá onde nós morávamos lá em Caxias até o centro do Rio, onde fica o Colégio, era muito contramão, ainda mais pra um menino. Ele tinha. Quantos anos? Eu 14... oito anos! Oito, nove. Seria impossível, então a gente foi morar ali perto, pra ficar perto do colégio. Mas um lugar horroroso, um lugar cheio de bandidos, um lugar decadente, horrível! Mas onde a gente conheceu pessoas maravilhosas também! E aí tive namoradinhas ali. Meu irmão, brincadeiras. Era esse lugar chamado Cordoaria. Minha irmã consegue conservar as amizades, uma coisa maravilhosa! E eu encontrei agora, depois de mais de 40 anos, pessoas dessa época: meninas que eu paquerava – Didi, uma outra aqui também. Nossa, achei assim fantástico, essa volta assim no tempo foi fantástico!
Agora, essa área foi triste porque foi a área que serviu de cenário pro assassinato do meu irmão, então aí era um lugar decadente, degradado onde morava o assassino, o bandido também, que já tinha agredido diversas pessoas e tava num manicômio judicial; tava num manicômio, tinha fugido e a família permitiu que ele ficasse fugido, e ele tava fugido agredindo todo mundo, brigando, ameaçando todo mudo, quer dizer, foi uma cumplicidade, assim, total! Podia ter sido evitado. Era uma coisa que podia ter sido evitada, então isso aí foi a fase dos 14, 15, 17. Aí depois, bem, aí a fase dos trabalhos.
P/1 – Elmo, antes da gente entrar nessa fase do trabalho, você lembra de quando você era pequeno, algum sonho de criança que você tinha?
R – Lembro! Lembro. Um desses sonhos envolvia meu irmão. Um desses sonhos era ter ilha, viver numa ilha, viver em ilhas. Adorava aquilo! E não tinha. Não tive as ilhas, mas tive terras. Porque a gente nunca teve nada, nada, nada! Mas aí fui comprando umas terrinhas, que eram a minha paixão, era como se fosse as ilhas da infância. Eu tenho umas áreas de reserva lá em Friburgo que são maravilhosas, que eu acho que são conseqüências desse sonho dessa época. Mas sonhos muito bonitos mesmo! E uma coisa que marcou muito também: as histórias, as histórias que a minha mãe contava e que eu lia. Eu lembro uma história. Rosinha Chinesa, um livrinho, uma fábula assim gostosa, maravilhosa, que marcou pela gentileza do personagem, a delicadeza, aquilo me marcou muito mesmo.
P/1 – Rosinha Chinesa?
R – É, acho que Rosinha Chinesa, maravilhoso! Um livrinho infantil, mas aquela coisa, assim, que marcou!
P/2 – E a relação do seu pai à medida que você ia envelhecendo: se já na adolescência, na juventude, ele continuava nessa profissão?
R – Continua. Depois mais tarde ele conseguiu deixar de viajar e aí trabalhar no estaleiro do Lóide Brasileiro. Aí já na faixa dos 16, por aí. Mas aí eu já tava desenvolvido. Mas eu senti muito, realmente, a ausência do meu pai na minha vida. Adoro meu pai, não culpo meu pai por absolutamente nada, eu tenho orgulho dele, mas a gente tinha às vezes uns conflitos. Meu pai era meio agressivo também, português. Era um pouco duro, um pouco. Não era muito maleável e tinha algumas coisas que ele não aceitava bem, aquelas coisas de moleque, comuns de moleque, de rapaz. Aprontava algumas e aí que ele não aceitava e daí dava uns safanões . E às vezes castigava legal.
P/1 – Ô, Elmo, você contou desse livro aí, que você lembrou que você gostou, tem mais alguns livros que você lembre, histórias que sua mãe te contou?
R – Tem! Todos os clássicos, minha mãe contava muita historinha, muitas! Quer dizer, do Macaco Simão, da Chapeuzinho Vermelho, esses todos que a gente conhece, a Branca de Neve, tem umas que ela inventava. Ah, sim, uma coisa do meu pai que me marcou e, assim, eu acho até que profissionalmente: meu pai não conversava muito, era tímido. Uma pessoa meio triste. Mas ele adorava falar das viagens dele! Nossa, e quando ele se animava com as viagens, eram histórias, assim, de horas, de dias. E eu viajava com ele! Ele contava as histórias no mundo: Índia, Estados Unidos, Japão, Canadá, não sei o quê. Nossa, eu viajava. E as coisas que aconteciam nos países, os contatos. Então isso me marcou muito porque eu depois fiquei geógrafo, é claro; mais outras motivações apareceram, mas eu diria que uma primeira motivaçãozinha foi essa curiosidade de ver o mundo, de enxergar o mundo, as relações do homem com a natureza, esse encantamento aí, enfim, a viagem. A figura viagem foi meu pai que despertou. Apesar de não ter sido muito, quando houve foi muito intenso e eu agradeci muito a ele isso. Foram fantásticas, histórias, assim, fantásticas! É diferente da minha mãe, a minha mãe eram fábulas, historinhas, meu pai era uma epopéia, épico, sei lá. Coisas maravilhosas! Ele contava, assim, Guerra Mundial, que ele foi envolvido. Eu nasci na Guerra durante a Guerra Mundial. Só fui conhecer meu pai seis, sete meses depois. Ele contava tudo que aconteceu, a tensão que ele vivia. O submarino, o naufrágio de navios, amigos que ele perdeu. Isso tudo marcou muito, muito, muito mesmo! Foi muito importante.
Agora, retomando aos empregos bem, aí com 14 anos eu tirei carteira de menor. Aliás, naquele tempo de pobreza, era muito de pobreza. Muito! Hoje a gente fala rindo, mas passou, o que passou, passou, deixa, não é mais. Mas aí fui tudo na vida: fui engraxate – engraxava sapato não profissionalmente, mas pra garantir assim um dinheirinho pro cinema, pras coisas no fim de semana. Eu catava ferro velho na rua. Essa figura de catar, aí catava e vendia pra comprar pão, farofa, comprar as coisinhas. Pegava revista velha pra vender. E meu primeiro emprego pra valer mesmo foi de trocador de lotação. E aí pra isso eu tive que tirar minha primeira carteirinha de trabalho, 14 anos! E eu lembro, lembro muito bem o que aconteceu: a minha primeira viagem, a lotação. Era aquela aventura menor, era tipo uma van hoje, talvez um pouquinho maior que uma van. E tinha a figura do trocador, não era catraca, tinha o trocador que trocava dinheiro por ficha, o cara recebia a ficha. E a lotação lotada, cheia mesmo! Lotadérrima! Você não tinha por onde. Lá do subúrbio lá de Caxias. E enguiçou. A lotação enguiçou. E eu, atolado, novo. Bobinho! No primeiro dia, tive que devolver o dinheiro, eu devolvi o dinheiro e os caras não me devolviam a ficha. Enfim, eu saí no maior prejuízo, no maior débito, o primeiro dia. Assim, na hora de fechar o movimento, movimento financeiro, aí eu não tinha nada pra receber, tava devendo. Foi um impacto bravo. Mas aí depois disso, aí trabalhei. Aí um primeiro outro emprego importante foi de bancário, trabalhei naquele Banco Nacional, fiz um concurso. Fiz um pouquinho. Não tinha datilografia boa, mas consegui fazer e foi bom, foi um emprego decente, ganhava bem.
P/2 – Você tinha quantos anos?
R – Aí já tinha 18. Já tinha 18, já era maior de idade. Mas era um bom emprego! Mas aquela coisa que foi me atrapalhando um pouco: eu era muito revoltado e muito politizado, então teve uma greve dos bancários. Uma greve geral, e eu fui fazer piquete de greve na porta da minha própria agência. Não pode, isso não existe! Enfim, aí eu entrei em conflito, entrei em briga com o gerente do banco, daí me mandaram embora com seis, sete meses. Eu tava com a carreira razoável, mas a minha militância política me estragou.
Depois trabalhei numa fábrica de tintas, trabalhei numa empresa. Fui sindicalizado. Sempre me sindicalizava e militava, atuava. Fui de uma fábrica de arroz também, fábrica não, indústria que vendia arroz. Fui de uma editora de livros. Cansei disso tudo e fui vendedor de livros, de uma editora que apareceu. Fui vendedor de livros e eu ia de casa em casa, aquele “vendedor-xaveco” que eles chamam. E tinha um artifício que eles faziam: a livraria, o grupo, aplicava um questionário, uma prova, um questionário e prometia um prêmio pra quem fizesse melhor redação, e aplicava isso nos colégios; aí com isso tinha os endereços dos alunos e premiava mesmo, dava um premiozinho, então isso fazia você ter acesso aos endereços, e era isso que eu fazia: eu ia lá nos endereços, batia de porta em porta, dizia: “Seu filho é muito bom, ele ganhou! Ele fez uma prova e ganhou um concurso, fez uma redação maravilhosa!”. Daí dava um premiozinho lá: uma caneta, uma besteirinha lá. E aí aproveitando: “Vocês não querem comprar uma coleçãozinha que tá barata?” Aí emendava.
P/1 – Era um xaveco mesmo!
R – Era um xaveco mesmo! Era “venda-xaveco”, aprendi a “venda-xaveco”. Agora uma coisa incrível: me dei bem! Eu me dei bem e isso teve uma importância na minha vida porque eu tava tão bem, vendia bem, vendi com meu irmão quando era vivo, ganhava prêmio de venda, tudo. E eu conheci. Eu vendia tão bem que eu treinava os novos, os caras que vinham novos pra serem vendedores, eles me encarregavam de treinar, eu tava assim: “pinto no lixo”, tava ótimo! E um desses caras que eu treinei, que eu fui treinar, era um cara que fazia cursinho de teatro, no Conservatório Nacional de Teatro, ficava na Praia Vermelha, no prédio da UNE. Bem, lembrando que aí meu irmão morre nessa época – eu tive uma namoradinha que também eu era apaixonada por ela, que com a morte do meu irmão me largou, não sei. Ela tinha problemas de religião, tava numa procura e teve dificuldades. E o chefe da editora foi morto também, ele foi assassinado também nessa época. Aí eu fiquei sem chão! Fiquei desempregado, sem namorada, sem irmão. Aí fiz vestibular pra universidade, curso de Sociologia. Curso de Sociologia, Ciências Sociais e tava fazendo um preparatório da própria universidade, mas aí veio a Ditadura de 64 e junto com a Ditadura o curso foi praticamente impedido, eu fiquei sem condição de concluir o processo do vestibular. Nem sei se houve, se foi aprovado, saí fora. Eu fiquei marcado, tava marcado, daí saí fora de circuito, então deixei de entrar na universidade, isso em 64, em abril.
Então eu saí sem tudo: sem namorada, sem universidade, sem emprego, sem nada. Fiquei no desespero. Precisava de um analista, mas não tinha dinheiro, aí fui pro Conservatório de Teatro e aí lá eu fiquei flanando, vi outro mundo. Aquelas pessoas leves, fazendo arte, teatro, cenografia, interpretação. Eu fiquei ali agregado. Ah, sim, porque eu fui chamado pra fazer parte de uma pecinha, eles gostaram da minha voz, não sei o quê, acabei ficando, depois mudei. Mas eu gostei e depois fiz o curso de teatro, comecei a fazer o curso de teatro. Aí conheci a Zulmira, a minha esposa. E conheci ela por quê? Bem, primeiro ela era colega de turma, e por causa da militância. Eu era militante político e aí, um dos trabalhos que tinha na época da Ditadura era de resistência, e a gente tinha que criar um núcleo político do Conservatório, que seria um núcleo importante, que era um núcleo ligado às artes. E aí eu fui chamado, me convidaram, uma pessoa de esquerda, era o Partido Comunista daquela época. Naquela época era o Partido Comunista, não existia outro. E aí eu falei, pensei na Zulmira: “Pô, a Zulmira é ligada ao movimento.” Imaginei a Zulmira como uma política, não era nem tanto, mas ela era esclarecida e isso é que fez eu me aproximar da minha mulher, quer dizer, o Conservatório e a criação dessa coisa política. Eles chamam de célula, núcleo, é um núcleo do partido. E aí chamaram a Zulmirinha, a Zulmirinha foi e aí passou. E aí com o tempo foi só abraço, beijo e fomos felizes para sempre.
Aí do Conservatório eu gostei, adorei. Tive uma experiência maravilhosa, apesar de que eu fui reprovado em interpretação porque eu era muito duro, eu tinha uma expressão corporal muito difícil, e eu dei um azar que eu peguei umas professoras ruins, alguns professores ruins - os de interpretação, os outros eram maravilhosos, de voz, de esgrima. Eram maravilhosos, mas os de interpretação eram professores antigos. Sadi Cabral e Sérgio Viotti, antigos. Meio quadrados, e meio gays. Mas isso é o de menos, mas eles tinham um referencial de interpretação, de expressão corporal que não era a minha. Então, aí eu fui reprovado por eles. Aí logo depois eu tive contato com o Amir Haddad. Pô, se eu tivesse ficado com o Amir Haddad eu teria ido, com certeza, eu tava muito mais pro Amir Haddad.
Mas aí eu e a Zulmira, gente casou, entrei na universidade depois de novo, fiz o curso de Geografia, que tinha um colega do curso fazia geografia. E eu retomei aquela vontade, eu queria, eu tava entre Geologia e Geografia, e aí retomei a idéia de geografia e aí fiz. E aí consegui uns trabalhos bons, fiz Geografia, fui fazendo o curso. Aí depois fui. Como é que chama? Eu era assistente de um deputado, Alfredo Tranjan. Eu era assistente, trabalhava com ele, fazia campanha política. E aí ele me convidou como um secretário na Assembléia Legislativa. Daí eu tive uma experiência na Assembléia Legislativa, eu ia todo engravatado, tinha que ir engravatado.
P/1 – Isso em Brasília?
R – Não, no Rio. Era deputado estadual.
P/2 – De que ano nós estávamos falando?
R – Que ano foi isso? 69, 70, por aí. Foi bom, porque era Ditadura ainda e brabo. Aqueles anos pesados, anos de chumbo. Então tava no auge passeata todo dia, e eu participava de todas elas.
P/2 – Eu queria que você contasse um pouquinho mais sobre isso, por essa sua personalidade militante, engajada. Contasse um pouco essa sua relação com o clima político da época, algum episódio marcante da época, alguma passagem.
R – Tá bom, eu vou resgatar um pouquinho mais: no tempo do científico, eu estudei no Colégio Cardeal Leme em Ramos; morava lá na Cordoaria e ia de bonde lá pro Cardeal Leme, paquerando as menininhas, era galinha. Tinha dois colegas. Eu era meio namorador, eu paquerava.
P/1 – Tô percebendo.
R – Hoje eu sou calmo, tô tranqüilo, mas eu fui meio namorador, uma época, uma época eu fui. Mas teve um professor que me influenciou muito, era um professor comunista. Tô esquecendo o nome dele agora. Plínio Bastos, professor de História. E ele dava, assim, um show de aula, de história! E essa forma de história verdadeira, correta, não a visão oficial. A história real mesmo. Aí me marcou muito! E naquela época eu já era de um grêmio, eu criei um grêmio e eu era diretor do grêmio. Os donos do colégio tinham uma certa relação com o Prestes, com o Luis Carlos Prestes. Tinha uma relação que eu lembro que o Luiz Carlos Prestes foi algumas vezes no colégio e eu ficava babando: eu era um estudante vendo aquela figura lendária! E me marcou, marcou a minha geração profundamente. E aí eu no grêmio, com influência desse professor, eu fui da ULE – União Leopoldinense de Estudante -, que era ligada à UNE, então a minha militância estudantil começa nessa época; daí vai depois pro Conservatório de Teatro. Conservatório de Teatro não admitia estar lá e não fazer nada político, então aí a missão era criar um núcleo político. Passei pra universidade, aí eu tinha que fazer parte do núcleo também do partido. Aí fiz parte do maior núcleo do partido que existia, tinha mais de cem pessoas do Partidão. E isso em 67, por aí. E foi a época que passou a ter um racha político, PC ficou rachado e teve uma divisão interna chamada Dissidência. E eu custei a sair do Partidão, eu custei. Eu era muito obediente. Eu obedecia, eu achava importante ser obediente ao partido, então eu era considerado um dos quadros assim mais aguerridos, brigava! Contra os outros grupos, pessoal do PC do B, pessoal da Dissidência, a gente ia sempre às reuniões e eu brigava. Brigava mesmo, era um trator, um tratorzinho mesmo. E aí entra essa fase e essa fase das passeatas participava de todas elas, e nas passeatas também não queria ficar só atrás não. Bem, então, aí o auge da repressão, o auge da Ditadura e nessa época muita militância estudantil. Então as grandes passeatas, muita repressão, muito enfrentamento. E eu gostava de atiçar a Ditadura. Aí eu criava um grupo assim meio kamikaze. Eu ia nos caminhões da PM que estavam estacionados pra esvaziar os pneus. Tinha os caminhões lá com os caras em volta, a passeata lá rolando, aí pra fazer o caminhão não sair eu ia lá e esvaziava o pneu, botava um esquema lá pra esvaziar o pneu. A hora que eles queriam sair não podiam. E tinha um lance, vinha a cavalaria e a gente jogava rolhinha com prego rolha com prego, aí dá problema no cavalo, aí também eles tinham que voltar. Aí enfrentava com pedra. Eu ia mesmo, fui fundo na questão política estudantil.
E aí me seduziu a idéia de guerrilha. Quer dizer, eu era da militância estudantil, eu era do diretório também, era ali dentro da minha turma no curso de Geografia, resistia lá dentro, fazia transmissão do DCE pro curso, tinha muito. Era uma coisa boa, se bem que de altíssimo risco, eu era visado o tempo todo, perseguido, tinha problemas de notas. Depois que eu comecei a trabalhar, depois eu virei professor da universidade e essa época me marcou muito porque eu era vigiado, perseguido. Depois vou falar como professor. Mas essa época estudantil foi um barato, a gente vivia intensamente, plenamente, só pensava em política, em discussão, e nossa vida quase se resumia a questão política de derrubar. E aí veio como desdobramento natural a guerrilha. Mas era coisa meio sonhadora, meio ainda leve. Eu comecei a fazer uns treininhos de guerrilha. Eu fui ligado a um grupo, eu fui ligado à COLINA – Comando de Libertação Nacional – e tinha amizade com o pessoal do MR-8. A Dilma. Mas eu não era dessa. E eu tava na fase pré-guerrilha. Minha função era de prestar apoio à guerrilha, eu era e área, assim, roubando, que ainda tava estudando, então tava roubando, mas que faria apoio à guerrilha: em remédio, conseguir documento, conseguir não sei o quê. E aí passou a repressão, a repressão foi braba! Aqueles diversos aparelhos foram caindo, um deles foi esse, aí teve problema com a Marinha, pessoal foi preso. E eu dei muita sorte porque eu ainda não tinha entrado na guerrilha propriamente dito e eu ainda não tinha muita marca, a minha marca ainda tava estudantil, então isso aliviava um pouco. Mas aí teve um lugar onde a gente morava que foi pego pela Marinha, e aí levaram tudo e levaram inclusive meu material de estudante. E a Marinha jurava que eu era guerrilheiro e que eu preparava os mapas pra aqueles assaltos a banco, apropriação que eles chamavam. Aí teve muito assalto, as apropriações políticas. E era época dos Tupamaros também no Uruguai. Então a Marinha jurava que eu colaborava. Eu era do IBGE, e fazia geografia. Então os caras: “Não, esse cara que arranja os mapas, que prepara.” E aí me pegaram, mas eu dei sorte que eu consegui provar que eu não tinha participação. Mas isso me gerou um problema muito sério, muito grave, eu fui obrigado a me desgarrar dos meus grupos políticos. Isso me doeu profundamente. Por uma questão de segurança, eu fui obrigado a me desligar dos meus grupos políticos, porque eu tava acompanhado, vigiado permanentemente; não tava preso, mas tava. E isso me marcou, me doeu, porque eu fiquei desarvorado, não sabia mais o que fazer.
Bem, aí já era casado, tinha já filho. Aí já veio a filhinha. Ah, sim, teve uma coisa importante na minha vida: eu ia fazer a Universidade Patrício Lumumba. Aquela era uma universidade na Russia pros povos da América Latina, da África, da Ásia, e tinha um dos cursos que era maravilhoso: era um curso de engenharia de minas, minas e petróleo, que equivale a um curso de geologia nosso. Pô, eu tava doido pra isso, daí eu me inscrevi, tem até nos meus documentos a inscrição. Me inscrevi pra fazer o curso, e aí o que é que aconteceu? A repressão pegou esse documento como se eu tivesse ido e feito o curso e dizia que eu era profissional, que eu era profissional do Partido. Aí já no tempo de professor, teve uma aluna que o pai era do Serviço de Informação do Exército, aí ele pegou essa informação. Então, assim, mais uma historinha.
Aí já entrando na Universidade, dei aula, comecei a dar aula, eu era muito perseguido, muito visado: as minhas aulas eram gravadas! Eram gravadas! Era uma repressão braba, tinha uma diretora lá que era nazistona e ela tinha dedurado diversos professores. Uma coisa horrorosa. Eu fazia já pesquisa desde o início da universidade, que eu não fazia só aula, eu fazia pesquisa, eu fui bolsista de iniciação científica, tinha bolsa do CNPq, tive bolsa de pesquisador, então eu fui pesquisador desde novinho, desde o tempo de estudante, e eu fazia uma pesquisa com a professora chamada Maria Regina Mousinho, morreu depois, era uma grande pesquisadora que me influenciou muito na pesquisa. E a gente fazia pesquisa na região da Baía de Guanabara, foi, aliás, o início das minhas pesquisas na parte científica na Baía de Guanabara. Isso aí na década de 60 ainda, 68, 69, 70 também. Quer dizer, já tinha pesquisa na Baía. E uma dessas pesquisas envolvia a Ilha do Governador, uma área da Marinha. Aí um dia eu quis fazer. Eu ia nessa professora pra saber como fazer pra estudar os afloramentos que existiam lá dentro dessa área da Marinha. Aí criaram uma dificuldade enorme: “Ah, não pode entrar”. E depois até que foi esperar não sei quem, enfim, a gente conseguir depois de muito tempo ser chamado pelo oficial do dia, oficial lá da Marinha, e aí o cara chegou todo grosso: “Achamos estranho vocês estarem aqui numa área da Marinha!”. Eles achavam que a gente era guerrilheiro e que a gente tava lá pra levantar informação e atacar uma área da Marinha; o cara tava achando e ele tinha visto minha ficha e na minha ficha tava que eu tinha feito a Universidade Patrício Lumumba, como se eu tivesse feito, e que eu era militante profissional e que eu era terrorista. Aí a moça, que era novinha, minha aluna, soube e contou pro pai, aí o pai ficou apavorado: “Pô, a minha filha está se dando com um cara desses, um cara perigoso!”. E ele era chefe do Serviço de Informação do Exército. Aí, falei assim: “Pô, tudo bem, eu era estudante, tive minha fase pré-guerrilha, mas eu não fiz a Patrício Lumumba, então não tem que ter medo”. Aí eu aproveitei um conflito que existia entre o Serviço de Informação do Exército, que era o SIE, e o Serimar – Serviço de Informação da Marinha. Pra Marinha eu era um cara terroristão. Aí joguei um contra o outro, aí aliviou minha barra. Aliviou minha barra porque aquela ficha brabona que eu tinha foi desmentida, o Exército desmentiu a ficha da Marinha, isso me aliviou. Mas o que me aliviou mesmo, vamos ser sincero, é que eu segurei um pouco o facho, se não eu teria sido guerrilheiro mesmo, não estaria aqui pra contar essa história, não teria os três belíssimos filhos que eu tive, nem os seis lindos netos que eu tenho! E eu ia, eu tava inclinado, foi questão assim de paz, não tava no dia certo. Eu cheguei a treinar guerrilha, tudo. Cheguei a ter meus primeiros desenvolvimentos, faltou um deslanche maior, e com certeza eu não estaria vivo. Então esse foi. A universidade.
P/1 – Como é que era esse treinamento de guerrilha que você participou?
R – Ah, era treinamento de sobrevivência na selva. A gente fazia acampamento, vivia, se alimentava com condições bem precárias, tinha que fazer comida em condições precárias. Enfim, eu terminei, por exemplo, numa área de mato ali no Rio, Bacaxá. Eu lembro que passava as capivaras assim de noite, passava um monte de bichos por nós. Mas é uma coisa meio romântica, meio bobinha, meio romântica, não era pra valer. Pra valer mesmo foi o pessoal do Maranhão. Teve uma turma pesadona do Nordeste. Eu não, era burguesinho sou classe média, eu era bem pobre, como eu tava contando a minha história, mas eu tinha mais ligação com os filhinhos de classe média, burguesia. Mas quem segurou a barra mesmo, quem se deu mal foi o pessoal pobre do Nordeste: Piauí, Maranhão, outros estados. Os outros estão aí: Minc, Gabeira, Siqueira. Passaram como eu. Só que eu não fugi, não fiquei famoso, eu tive uma trajetória muito parecida com um deles, só que não fiquei famoso.
P/1 – E a Zulmira ela não era sua esposa ainda quando você fez treinamento? Como é que foi, o que vocês conversavam?
R – Não, a Zulmira é uma das responsáveis por não ter ido muito à frente. Ela e minha mãe, talvez, por não ter ido muito mais a frente, de não ter dado um passo maior na questão da guerrilha. Como eu me sinto um pouco culpado da Zulmira não ter se profissionalizado no teatro, porque a Zulmira tinha uma relação com teatro desde criancinha, era um prodígio! Declamava desde menininha, três, quatro anos. Ela tinha tudo pra ser uma boa profissional no teatro, mas aí começou a ter filho. Casou, começou a ter filho. E isso foi segurando. Ela teve convite pra fazer peça, pra fazer filme, mas aí tava grávida, balançou. Quer dizer, um na verdade acabou atrapalhando um pouquinho o outro. E ela, no bom sentido, porque me impediu. Casamento, filho, tudo isso me impediu de dar um passo mais no sentido da guerrilha.
P/2 – Eu queria saber em que ano que foi.?
R – Em que ano foi o casamento? Nós vamos fazer 40 anos, então 69. Não foi simples. Como a gente era politizado, não acreditava na igreja, então não fez na igreja no início, depois é que a gente teve que fazer pra minha mãe. Pra segurar a barra da minha mãe teve que fazer um casamento numa igrejinha lá em Campo Grande, só pra ela se acalmar, não ficar cobrando. Mas por nós não, a gente tinha a toda revolta. Ah, sim, uma coisa importante: nós estávamos na universidade, a coisa política ainda continuava, a Ditadura, eu comecei fazer pesquisas na Baía de Guanabara. Eu comecei com a parte de Geologia, com aquela professora que eu falei: Maria Regina. E não parei mais, eu comecei em 69. Mais ou menos. Não parei mais até hoje, até hoje eu tenho um envolvimento com a Baía de Guanabara. Um envolvimento profundo, primeiro como pesquisador – estudei Geologia, mapeei, fiz muito trabalho de campo, muito mesmo! Mas foi muito! Nós nos sujamos muito no campo! Depois aí comecei a trabalhar com a Baía propriamente dita, com os manguezais, com sedimento, aí estudei o assoreamento da Baía, estudei depois a parte histórica da Baía de Guanabara, do entorno. E a degradação ambiental. Quer dizer, hoje eu acumulei um acervo muito grande de conhecimento sobre a Baía de Guanabara, desde a Geologia, passando pela História, Cartografia, os ecossistemas. Eu acompanhei e uma parte disso foi minha tese do doutorado, minha tese foi Baía de Guanabara. Depois eu reuni muitas dessas informações e virou um livro. Um livro que foi importante na minha vida, um livro grande, embora a edição não tenha sido tão boa assim, foi um edição meio precária, mas um livro grande, bem grosso e que dá uma visão holística da Baía. Tenta casar esses diversos planos: o plano geológico, o plano histórico, ambiental, homem, natureza, relações de conflito. Tentei casar isso. Eu gostei muito e esse livro marcou muito, esse é um livro que foi esgotado rápido. O nome dele é “Baía de Guanabara e Ecossistemas Periféricos: Homem e Natureza”. Ele foi esgotado rápido, o pessoal procura muito, eu tô custando pra fazer outras edições, porque é uma edição um pouco difícil, tem muitas figuras, são 500 páginas, e quase 70 são de muitas figuras, umas 300, 400 figuras. Tem dificuldade de lidar com os originais, tem muitos originais que são difíceis de colocar numa qualidade boa, daí eu vou ter que sacrificar talvez algumas figuras pra manter o texto. Eu tô nesse desafio aí, agora. E esse livro é muito procurado, é muito citado, o pessoal de Geografia usa muito e eu sou considerado, assim, um conhecedor da Baía; sou muito chamado pra palestras, conferencias. Muito programa de televisão, muito jornal, Globo. Eles fazem muita matéria, quando entra a Baía de Guanabara, normalmente eu sou chamado.
P/1 – Deve ter sido um desafio bem grande escrever esse livro.
R – Foi. Foi, um desafio grande, mas foi uma coisa assim que foi quase uma história de vida: eu fui reunindo desde 69, aqueles planos que eu fui fazendo de Geologia, depois sedimento, depois assoreamento, não sei o quê. Depois virou o livro. Que eu acho que é uma visão holística, é uma forma de enxergar a natureza. É isso que eu tento passar nas apresentações que eu dou, quer dizer, tudo que foi feito na natureza não foi feito de uma hora pra outra, tem uma longa história. Uma outra questão: a escala do tempo, você vem desde o milhões de anos atrás até hoje. A natureza está sempre se transformando. São conceitos que são técnico-científicos e de vivência que eu tento passar e passa muito no livro, e acho que por isso que ele foi aceito, que é uma forma diferente de concepção.
P/1 – E de outros desafios, eu tava pensando agora: deve ter sido bem diferente quando nasceu a sua primeira filha?
R – Ah, foi. Foi um show, uma explosão de felicidade. E quando ela nasceu, eu ainda tava num trabalho de campo. No dia do nascimento dela, eu tava num trabalho de campo. Eu era muito profissional, muito. Ia muito fundo nas coisas. Eu fui levar a Zul na maternidade daí disseram: “Não, não vai nascer agora, vai demorar”. Daí falei: “O que é que eu faço? Fico aqui esperando ou vou?” Tinha que ir pro campo, tinha um campo marcado. Disseram: “Vai demorar, não tem previsão!”. Eu fui pro campo, quando eu voltei, ela tinha nascido.
P/2 – Que ano foi?
R – 70. É a Denisinha. 69, o casamento, 70 é a Denisinha. E a Denisinha cabeludinha, toda. Uma gracinha! Me marcou! Assim, adoro os filhos, mas ela marcou, não sei o que é que houve nela, assim, uma química, uma coisa que marcou desde o início. Mas os filhos, os três filhos, cada um tem um temperamento, um jeito, uma coisa. Adoro todos, adoro os três!
P/1 – E a aventura de ser pai?
R – Foi boa. É, assim, nós tivemos uma lua-de-mel. Tive uma lua-de-mel antes do casamento, então foi uma viagem que nós fizemos no sul, nós fomos até o Paraguai, Argentina. Assim, acampando por aí, isso antes do casamento. Pra época era uma coisa meio pioneira. As mães, os pais, não concordavam muito, mas a gente fez, isso foi importante. E a Denisinha nasceu desse amor, um amor, assim, livre. A gente tinha tipo um amor livre daquela época. O casamento foi decorrência depois, não foi o antes.
P/1 – E o que é que eles fazem hoje, os seus filhos?
R – Meus filhos? Olha só, eles foram influenciados também. A gente teve muita vivência de natureza, nós compramos um sitiozinho lá em Friburgo, que era baratinho, era onde dava pra comprar. E eu tive aqueles sonhos das ilhas no tempo de criança, e eu fui fazendo com terra: eu ia comprando pedacinhos, comprando. Tudo baratinho! Tinha inflação alta, mas aí dava o dinheiro da entrada e depois as prestações se perdiam, evaporavam. E aí com isso eu consegui comprar uns terreninhos legais e a gente ia pra lá, precário, longe, o acesso difícil, lá em São Pedro da Serra, o limiar, interior de Friburgo. E as crianças foram influenciadas muito pelo contato com a natureza, com aquela vida. E a coisa ambiental também, que a gente discutia muito em casa, era minha área profissional, isso marcou muito. Um é biólogo: a Denise é bióloga, e o André é geógrafo também. A Denise é bióloga, ela fez mestrado, trabalha com agroecologia, agrofloresta, e casou, mora numa fazenda lá em São Paulo, em São Joaquim da Barra e tem um trabalho maravilhoso lá! Além da produção da fazenda, eles estão fazendo um processo de transformação, de transformar uma produção mais natural, mais orgânica, de recuperação ambiental, de ligar ilhas de florestas. E tem um trabalho de educação ambiental muito legal também, recebe escolas, tá ótimo, tá maravilhosa! Muito bem! Ela é bióloga, fez mestrado em Piracicaba em agrofloresta. O ruim é que mora longe. A fazenda fica longe. E tem três filhas lindas! Três filhos lindos: Flora, que é a gatinha, é a netinha mais velha; a Tainazinha, Tainá, gatinha, quatro anos; e o Miguel, que tá com um ano agora. E o André, bom o André é geógrafo, seguiu muitos meus passos, fez a mesma universidade, fez o mesmo curso! Atua na área ambiental. Seguiu totalmente meus passos e tem três filhos também: Gilberto, que é o mais velho e fez onze anos agora, um barato, ele é japonezinho, mestiço, uma gracinha! Uma suavidade, um encanto, um netinho assim maravilhoso mesmo! Tem a Julianinha. E nasceu agora, não tem um mês ainda, nasceu o Francisco, Francisquinho.
P/1 – E você tem uma filha caçula também. São três?
R – E tenho uma caçulinha que casou, separou, aí tá lutando, faz muito concurso, é fisioterapeuta, é uma gatinha maravilhosa! Fez milhões de concursos e tá aguardando esses concursos. Ela tem uma clínica. Tem uma área onde ela atende o pessoal, de fisioterapia. Cada um tem um encanto. São jóias mesmo! Filhos e netos são jóias preciosas!
P/1 – E os dois seguiram o seu caminho?
R – Dois seguiram o meu caminho. Ela um pouquinho menos, a Natália, mas gosta de animal, tem um cachorrinho lá: adora! Adora animal! Pega, vê cachorro na rua, gato. Adora, tem um encanto enorme também! Sofreu alguma influência. A Zul influenciou muito eles em termos morais, éticos. E teatro! A Denise gosta de teatro, por exemplo, acho que muito em função da Zulmirinha. Agora a Zul é uma pessoa maravilhosa: é ética, é um dínamo, é uma formiguinha atômica! Nunca vi uma pessoa tão atômica, tão ligada, tão preocupada em tudo, em todos os detalhes, tanta energia, tanta coisa! Eu adoro a Zulmirinha! E eu já pisei na bola, eu era muito mulherengo. Tô confessando agora: fui muito mulherengo, namorei muito, namorei muito mesmo! Mas eu não trocaria a Zulmirinha por ninguém. Realmente foi a minha grande companheira que eu encontrei, espero que a gente viva junto até o sempre! . Grande companheirona mesmo!
P/2 – Nesse seu histórico aí de estudo, de envolvimento, de militância com a Baía, você deve ter se deparado numa série de situações que devem ser importantes pra você, sejam situações de descobertas ou inusitadas ou mesmo de embate. Eu queria que você selecionasse algumas assim da sua memória que são especialmente significativas pra contar pra gente.
R – Tá bom. Bem, então, Baía de Guanabara: eu tenho uma relação afetiva antiga. É o lugar de onde meu pai saía, foi onde eu aprendi a nadar, no Rio Meriti, nos tempos de criança, que não era poluído naquela época; depois aí eu passo a ter uma relação profissional, de pesquisador, e eu acumulo conhecimento sobre a Baía! Geologia, sedimentologia, evolução do nível do mar, os assoreamentos da Baía de Guanabara... Nessa questão de assoreamento, passa a ter uma relação com a ocupação histórica: o que é que produziu o assoreamento? Daí a ocupação histórica, aí eu tenho que debruçar nos ciclos econômicos. Tudo isso faz parte do livro, de uma certa forma. E dos processos políticos, quais eram as relações. Homem-homem, relação internacional. Então a parte de conhecimento é gerada e o conhecimento ele passa a ser usado como instrumento de militância, de luta. Então eu sempre fiz essa ponte: conhecimento-militância. O conhecimento servia de munição pra militância. E na área ambiental em todo estado! Eu tenho atuado assim no estado, além da Baía de Guanabara, eu tenho ajudado diversos movimentos ambientais, perto do Paraíba, na região dos Lagos. Assim, com pareceres que o nosso conhecimento ambiental é muito bom. Essa parte de geografia, essa especialização que eu fiz dá uma visão muito boa, muito qualificada de natureza, de meio-ambiente. E esse conhecimento tem sido usado muito. E na Baía de Guanabara foi muito utilizado! Nós tivemos grandes embates.
O primeiro grande, deixa eu tentar fixar: o primeiro grande embate foi na década de 70. 78, mais ou menos. Quando existiu um grande projeto que ia impactar na Baía de Guanabara como um todo. Era o chamado Projeto Rio, que visava aterrar cerca de 27 quilômetros quadrados da Baía de Guanabara. Daí com argumentação que a gente tinha de assoreamento, de mangue, de tudo isso, a gente travou uma luta grande na mídia, muito na mídia e em organização de movimentos. A gente conseguiu organizar os moradores das favelas da Maré que seriam removidas. Eu consegui envolver a universidade, a universidade ia dar um parecer favorável aos empreendimentos. Aí fui correndo no reitor, tinha a mídia naquela época lá cobrindo, aí falei: “Reitor, o senhor não pode, de jeito nenhum. A universidade não pode de jeito nenhum concordar com esse projeto!”. Aí eu coloquei o reitor um pouquinho na parede, aí foi legal, quer dizer, por isso, pela mídia, o reitor criou um grupo de trabalho pra discutir o projeto, e nesse grupo de trabalho eu participei. Eu, Marcelo Ipanema, teve umas pessoas importantes do movimento e da minha vida, e nós fizemos uma pressão contrária, e o aterro ficou sendo uma coisa forte. Uma posição da universidade como um todo, que era ali limitante com o projeto, e a universidade seria afetada, a Baía. Com os movimentos sociais, também a gente fez a mesma coisa: então a gente criou também uma posição dos moradores das favelas da Maré, um posicionamento contrário à perspectiva que eles tinham de destruir a área e de remover, porque eles queriam remover os favelados, e aí sob a perspectiva ambiental. Aí criou uma comissão de meio-ambiente na AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros – e dos geógrafos também, e a gente fez um movimento em torno desses três pilares: meio-ambiente, universidade, ciência. E foi um embate importante porque obrigou o governo a recuar, não aterrar toda a região; o projeto que ia remover os favelados pra longe foi transformado num projeto social, e esse projeto social projetou a reocupação na mesma área. Quer dizer, eles mudaram a área, aterraram, mas a população foi reabsorvida na própria área; e sob o prisma ambiental. A universidade não foi prejudicada também. As posições da universidade foram levadas em consideração. Por exemplo, tinha aquela Ilha dos Pinheiros que eles iam aterrar, destruir, e foi anexada, ficou. Eles iam ligar os aterros até a universidade, não fizeram.
Enfim, todas as considerações de ordem técnica-científica, ambiental e social, foram relativamente consideradas. E uma coisa importante é que tinha tido um seminário, em 78 sobre a Baía de Guanabara e nesse seminário eu fiz a proposta de criação, com base no trabalho de assoreamento, de uma reserva nos manguezais no fundo da Baía, nos últimos manguezais. Estão em torno da área chamada de APA de Guapimirim, que são os derradeiros manguezais da Baía. Existiam 270 quilômetros quadrados na Baía e hoje só existem 80! E nesse seminário, com base na importância dos manguezais, do assoreamento, tudo isso, eu fiz a proposta de criação de uma reserva, e o Estado se arrastando. Essa proposta estava se arrastando. Ninguém queria criar, o Estado, o Governo Federal, o IBDF na época. Mas com essa luta contra o Projeto Rio, eles se comprometeram a dar. O Governo se comprometeu a dar um apoio também, em contrapartida. E então a gente travou um primeiro processo contra o Projeto Rio, contra os aterros, e ganhamos!
E o outro foi de defesa dos manguezais da Baía, que demorou muito! A gente teve que se impor a um outro projeto que existia, chamado Projeto Fundo da Baía, que ia drenar a área, ia aterrar, ia destruir tudo! E isso em 1984 foi criada a reserva, - quer dizer, o movimento começou em 78, e só em 84 foi criada, mas com muita dificuldade, muito sacrifício! Só que teve uma coisa muito boa, foi uma vitória, uma grande vitória! Foi a primeira reserva de manguezal que se criou no Brasil! E foi talvez a primeira gerada por um movimento ambientalista, naquela época. Com a Ditadura Militar, a situação difícil, e a gente conseguiu chegar a uma reserva que garantiu o pouco que ainda existe de vida na Baía de Guanabara. O que existe de pesca, de peixe, de pescador, tem uma ligação estreita com esses manguezais que foram preservados.
Nós conseguimos também uma coisa importante que foi aí já em 88, época da Constituinte. Que teve um processo da Constituinte Nacional e teve Estadual. Das constituições estaduais. Nós conseguimos incorporar a Baía de Guanabara como área de relevante interesse ecológico e como área de preservação permanente. Nós conseguimos gerar um instrumento legal pra impedir novos grandes aterros na Baía de Guanabara. Enfim, eu diria que nós tivemos vitórias. Esse processo não foi um processo em vão, nós tivemos muitas vitórias importantes nessa história de embate, que continua até hoje.
Hoje, por exemplo, a gente tá tendo um embate muito sério contra o Comperj. Comperj, o complexo petroquímico que vai se instalar em Itaboraí, é importante, é uma atividade da Petrobrás importante, mas vai se localizar no local mais impróprio que poderia ocorrer. Lá tem um problema de água, uma carência grande de água, já existe essa carência e o projeto vai demandar mais água e vai demandar um crescimento populacional muito grande que vai precisar muito mais água ainda. Normalmente, esses projetos ligados a atividades de petróleo geram uma população flutuante não atendida, de favelados ou de população de baixa renda, que vai viver em favela ou em condições desumanas, que está previsto, e, principalmente impactos ambientais grandes nos manguezais e na Baía de Guanabara. Então nós nos colocamos contra a localização Itaboraí e existindo outras alternativas muito mais viáveis como em Campos, Macaé aonde a questão da água não é um fator limitante, tem bastante água; onde os ecossistemas não estão tão próximos ou não são tão frágeis; aonde há necessidade de investimento maior, não aumentar o crescimento daqui, o crescimento econômico populacional, mas de centralizar o crescimento. Então eu diria que até hoje a gente continua tendo enfrentamentos. E, por incrível que pareça - não estou com saudade da Ditadura, de jeito nenhum -, mas estou achando mais difícil conseguir vitórias hoje do que na época da Ditadura. Que nós conseguimos o embate contra o Projeto do Rio e criar a APA de manguezais em plena Ditadura! E hoje a gente tem mais dificuldade de um embate contra o poderio da Petrobrás, por exemplo. A Petrobrás silencia a mídia, os meios de comunicação, silencia, pela questão do patrocínio. Compra corações e mentes, as universidades. Pessoas que poderiam se opor a essa localização, deixam de se opor porque foram comprados projetos, a universidade fornece diversas pessoas, alguns amigos meus foram comprados! É muito triste mesmo, e pouquíssimas pessoas estão resistindo, estão reagindo a esse processo.
Uma reação que teve importante foi uma militância que eu tenho atual, na fase de vovô, de aposentado, é que eu sou do conselho gestor da APA de Guapimirim, que é essa APA importante; eu sou do Comitê da Bacia Macaé e Rio das Ostras, inclusive eu sou secretário executivo de lá; eu sou do Comitê da Bacia Hidrográfica Baía de Guanabara; eu atuo ainda no Conema – Conselho Estadual de Meio Ambiente -; e no Conselho Estadual de Recursos Hídricos. Então hoje a minha militância tá mais nos conselhos e comitês. Eu tô atuando menos. Ah, e muito que aparece de convites, mídia. Eu fiz muitos programas de televisão, assim, pra Paula Saldanha, por exemplo, expedições. Paula Saldanha acho que gosta de mim, Canal Saúde, Canal Futura, tem milhões, são muitos vídeos, muitos. Tenho ajudado em roteiro. Mas, voltando, o Conselho Gestor da APA de Guapimirim foi um dos poucos que opôs a essa localização do Comperj na área, que é fatal. E deveria ser o suficiente pra não ter, mas não tá sendo levado em consideração. O licenciamento ambiental que foi dado pelo Estado, que é o secretário, foi um licenciamento que a gente considera ineficiente, não diria fraudulento, mas ineficiente. As pessoas foram escolhidas a dedo, houve uma pressão política pra ser dado, com prazo rápido, não foi escrupuloso, não teve escrúpulos e deixou de observar uma série de questões, tanto é que o Ministério Público Federal tá tendendo a cancelar o licenciamento do Comperj; o Ministério Público Federal já se manifestou no sentido de cancelar, com diversos argumentos, alguns que a gente já tinha sustentado e outros novos. Entre os argumentos é de que o licenciamento não se deu por conjunto, se deu por pedaços, então não se tem essa visão do conjunto. O outro é de que tinha que haver também um licenciamento do Ibama, porque a área da Baía de Guanabara, é um bem federal: a Área de Proteção Ambiental de Guapimirim; a Reserva Ecológica de Guanabara, Estação Ecológica de Guanabara; Parque Nacional da Serra dos Órgãos; são bens federais, então precisaria ter a conivência do Ibama, e não houve. E é triste, a gente tem um posicionamento bem claro, por exemplo, nos documentos. A mídia veiculou muito pouco, eu diria que há uma pressão pra não veicular, pra não tornar a questão uma questão discutível do ponto de vista público. Quer dizer, isso é ruim, você tá impedindo a população de ter acesso a uma discussão importante, que vai afetar a vida de milhões de pessoas, e foi uma decisão política, a decisão de localizar lá foi uma decisão política eleitoral e econômica. Por que política e eleitoral? Porque foi a época de campanha eleitoral, véspera de campanha eleitoral, o Comperj foi usado como bandeira eleitoral, amplamente utilizado na propaganda eleitoral e as relações do governo do estado com governo federal caminharam na direção também disso. A oposição do governo federal, a Rosinha, que era a governadora e tava saindo, tinha uma proposta pra Campos, pesou também. Porque Campos era o melhor lugar, mas na política eleitoral com a Rosinha não permitia que beneficiasse o opositor e desagradasse um político aliado do partido PT ou coligado. Foi então político, eleitoreiro. E em termos econômicos. Por quê? Prevaleceu a localização no Rio de Janeiro onde já existia porto, onde já existiam diversos investimentos e não numa área onde teria que ser criado portos. Por quê? Porque a questão ambiental não foi pesada, não foi considerada, então tipicamente te diria que a questão ambiental continuou passando a largo desses grandes projetos de empreendimentos como o do Comperj. Então no Comperj, claramente, a questão ambiental não foi considerada, porque se tivesse sido considerada, com certeza, a localização teria sido outra, e não essa do Itaboraí, que vai ser extremamente nociva, extremamente impactante, só o tempo vai dizer!
P/2 – Ouvindo você falar tanto da Baía de Guanabara como da causa ambiental de um modo geral, você fala com muito envolvimento, com paixão mesmo! E me ocorre o seguinte: você disse há algumas perguntas atrás, de como você começou a se envolver na Baía de Guanabara naquele projeto com aquela sua professora, pesquisadora, etc. Eu não sei, provavelmente naquela ocasião, você não imaginava – eu queria que você falasse isso – que aquela área de estudo naquela ocasião se tornaria a área de estudo da sua vida, por assim dizer. Eu queria que você, se é que isso é possível, em qual momento, em qual circunstância você percebeu que você tava começando um trabalho que seria um trabalho de uma vida? Como foi esse estalo assim?
R – Olha, eu diria que não houve estalo, eu diria que foi um desdobramento natural. Quer dizer, uma pesquisa e a pesquisa gerando um conhecimento; o conhecimento sendo utilizado, utilizado como ferramenta, como instrumento de campo de política, e em plena Ditadura. Ah, eu tenho que lembrar o seguinte: na Ditadura Militar, além da questão da militância política, a única resistência que existia era pequena. A mídia fechada, tudo isso fechado. E uma das bandeiras que ainda conseguia ter alguma passagem naquela época era a questão ambiental, então acho que talvez por isso, como eu era muito militante político, e a Baía era a área que eu dominava tecnicamente, cientificamente, aí eu fiz o casamento das duas coisas. Quer dizer, conhecimento com a área aonde era possível alguma militância, onde era tolerada alguma militância, e eu comecei a fazer uma militância político-ambiental, que era tolerada. Na mesma época teve também - eu lembro assistindo Pinguelli Rosa, o físico, meu colega de universidade - a questão nuclear. Também nessa época eu lembro que teve uma resistência, uma resistência via questão ambiental. Então, quer dizer, a bandeira ambiental ela foi uma alternativa de resistência ao movimento da Ditadura. Quer dizer, via movimento ambiental a gente reagia – você vê que os grandes enfrentamentos na Baía foram enfrentamentos contra o quê? Contra projetos federais! Não foram com outras coisinhas localizadas. Foram grandes projetos, o projeto lá Fundo da Baía – era um projeto de grande porte, grande peso econômico, de milhões, de bilhões. E a gente reagiu contra o projeto propondo a criação de uma reserva de manguezais. Quando é que você ia pensar em manguezal, propor manguezal numa área em que ia ser indústria, sem fazer grandes drenagens? Depois aquele projeto do Andreazza de remover as favelas na Maré, as sete favelas da Maré e criar aterros pra indústria também, aí foi uma resistência. Uma resistência que permitiu uma coisa importante: difusão de conhecimento ambiental. O mangue, por exemplo, não era conhecido, era um ecossistema desconhecido do grande público, o conhecimento era restrito à universidade, ao meio acadêmico. E através da luta, a gente conseguiu difundir a importância dos manguezais e popularizar a importância, conhecimento. O grande público hoje tem já uma imagem consolidada da importância desses ecossistemas. E isso foi muito em função da luta, do espaço que aparecia na mídia, dos programas. A mídia teve um papel, hoje tem um papel grande, mas na época era pequeno e a gente usou muito! E valeu! Valeu, foram criadas entidades ambientais ligadas a mangue: Mundo da Lama. Tem o pessoal da UERJ ligado. SOS Manguezais. Diversos grupos foram criados com a sementinha que a gente plantou de militância político-ambiental, quer dizer, que foi o casamento. Não houve um estalo, houve um processo que acabou fundindo a visão ambiental com a militância. Aí conduzi os dois, aí foi perfeito. E hoje a gente tem dificuldade. Eu não entendo. Por que é que a gente tem mais dificuldade hoje, por que é que é mais duro? Você tem mais democracia, mas é uma democracia em termos, a mídia é mais fechada, mais ligada ao sistema capitalista de reprodução, apropriação do capital, mais dominada pela propaganda. É complicadinho!
P/1 – Ô, Elmo, e o que é que é militância pra você?
R – A militância é isso, é você dar de si pra transformar, pra mudar o mundo, pra criar um mundo melhor, um mundo mais justo. Em termos políticos, mais humanos, mais justos; em termos ambientais, mais sustentáveis, que a natureza se conserve, que a água e os elementos da natureza consigam se perpetuar, a biodiversidade que tá se extinguindo claramente; então, quer dizer, militância, pra mim, é esse movimento permanente de resistência; tem sido de resistência, e de colocação de conceitos, de forma, de proposta de vida, de proposta de forma de enxergar o mundo; acho que tem sido isso.
Hoje politicamente a gente tá mal. Eu pessoalmente tô mal, não tô mais no PT, fui do PT, fiz parte da história do PT, mas desanimei, eu tô mais ligado ao PSOL, mas não tô. No PSOL teve o núcleo de meio ambiente, mas não deu muito certo, foi um núcleo importante no PSOL, mas teve uns entraves ali que pegaram. Então hoje eu tô no PSOL, mas não tô militando muito assim em termos orgânicos de partido. Aliás, eu não era muito militante de partido, no PT mesmo eu não era. Eu era assim de questões sociais, políticas, tinha uma relação com partido, mas não aquela militância orgânica, que nunca me interessou muito, eu acho. Não sei se isso é bom ou mal. Se eu tivesse me interessado mais, talvez eu tivesse sido deputado candidato a alguma coisa. Aliás, eu quase fui secretário de estado de meio ambiente, teve um movimento aí desses, eu era de um núcleo de meio ambiente do PT, era muito ativo nesse núcleo de meio ambiente, muito ativo mesmo! E eu participei muito ativamente nas campanhas eleitorais quando teve aliança Garotinho-Benedita, pelo PT, depois a Bené pelo PT. Participei muito do programa de governo deles na área ambiental, quer dizer, levei a sério mesmo. O que a gente faz não é só resistência na militância, a gente propõe também. E muita coisa que a gente propôs, aconteceu. A APA Guapimirim foi uma, tá lá, existe, é concreta. Outras nem tanto. Mas nós participamos ativamente desses planos de governo, e nisso eu ia ser secretário. Mas aí teve uma articulação política de última hora e entrou o André Corrêa. Eu era indicado aí pelo Carlos Minc, pessoal todo na época, acabou entrando o André Correa, que foi uma articulação do Garotinho na última hora. Eu não sei se isso foi bom ou ruim, porque ser secretário também queima. Eu fui diretor do instituto onde eu estudei, eu fui diretor da FIEMO, eu ocupei diversos cargos e a experiência não é lá essas coisas não. Eu como diretor do instituto onde eu trabalhei, por exemplo, eu tive muito conflito ético, assim, de querer consertar problema. E os deslizes são muito grandes, a sociedade, a universidade é muito grande mesmo! Pessoal que tinha tempo integral e trabalhava pra fora. Enfim, nossa, era uma confusão enorme a universidade! E você ia querer ajustar, fazer um trabalho bom, ou controlar, você tem uma resistência muito grande. E eu me queimei muito no tempo de direção! Foi bom, foi positivo. Fiquei quase cinco anos como diretor lá do instituto, mas o saldo foi bom politicamente: eu entrei pra dar sustentação ao reitor, era o Horácio Macedo. Era o primeiro reitor que tava sendo eleito por eleição direta no Brasil. Era um cara de esquerda, isso na Ditadura ainda, acho que ainda era! E aí tava tendo a primeira eleição. Aí eu tinha trabalhado pra ter eleição direta também no nível de diretor, aí como eu fiquei tão envolvido no processo de abrir a eleição direta, acabei sendo candidato, e ganhei! Ganhei a primeira eleição pra diretor do instituto de Geociências da UFRJ. Mas aí me envolvi. Eu fui muito político também, aí eu avaliando assim, eu acho que eu podia ter sido um pouquinho mais leve nesse tempo que eu fui diretor, acho que eu fui meio pesado, acho que eu fui muito ideológico! Fazendo uma autocrítica, acho que eu fui muito ideológico. Como o ar que a gente respirava era muito político, muito ideológico, teve um conflito muito grande dos grupos reacionários da universidade contra o reitor. Que a universidade é muito conservadora! Você olhando, assim, todas. Todas: USP, todas elas têm uma estrutura conservadora e pra vencer isso é difícil, e o Horácio Macedo ele provocou esses grupos e aí criou uma tensão enorme e essa tensão passava pro nosso nível também de diretor. E eu era um soldado do Horácio, sabe? Eu confiava nele, era o meu reitor eleito. Eu era um soldado e aí brigava lá. Foi bravo, foi uma luta bem difícil, bem complicadinha.
E na FIEMO eu fui diretor, aí teve esse processo político, geopolítico ambiental. E foi uma experiência muito boa! Que foi uma experiência diferente da universidade. Fui diretor de uma área técnica científica, aí passei a ter um conhecimento em termos disciplinar maior, com biólogos, pessoas de outras áreas. E eu adorava os trabalhos que eram feitos lá! Trabalhos assim ligados a meio ambiente, eu adorava! Eu era o único da minha área, era super prestigiado, super solicitado, quer dizer, como só tinha eu, era tudo! Qualquer coisa, assim, nova: analisar um gasoduto da Petrobrás: “É Elmo! Tem que ir porque tem um problema lá de erosão”. “Ah, não sei o quê do aterro sanitário. Ah, tem coisa do solo!”. Eu me sentia, assim, o máximo! Isso foi na década de 80, o diretor também, foi o diretor dos dois: do Instituto de Geociências e diretor da FIEMO, que agora Instituto Estadual de Meio Ambiente. Mas foi uma experiência muito boa, enfim, eu diria que o saldo foi positivo. Eu tô feliz com a vida! Eu acho que valeu a pena tudo, valeu! Teve momentos tristes, mas acho que valeu! E tenho hoje aí os seis netinhos em volta! Aquela coisa gostosa, Nossa Senhora! É muito bom! É muito compensador, Nossa Senhora! Vale tudo, compensa tudo!
P/1 – Ô, Elmo, tem alguma coisa que a gente deixou de te perguntar, tem algum caso aí na manga que você queira contar mais? Foi muita coisa.
R – Tô nessa coisa dos comitês, que é uma coisa nova, numa questão nova, implantação dos comitês de bacia, é uma experiência nova, embrionária. Não estão funcionando ainda bem, mas a gente tá trabalhando pra isso. Ontem teve uma reunião e eu até tive um conflitozinho ontem, um conflito meio bobo, eu fiquei assim na dúvida se eu atuava ou não. Porque eu tenho medo de entrar meio agressivo, hoje eu já tô bem melhor que antes. Eu era mais agressivo no passado, hoje já tô mais controlado, mas ainda tenho certos medos. E acho que devia ter sido menos agressivo ontem, porque tava vendo: o comitê, ele ainda não tem site, mas tem uma correspondência, e a correspondência que eles tavam mandando era uma correspondência institucional de propaganda do Governo do Estado, daí aquilo tava me incomodando, porque tava assim muito autopromoção. E aí eu me opus: “Não, não pode! Comitê tem independência, ele não pode estar atrelado ao Estado”. E quem vê assim vai dizer que é, porque olha e: “Olha, eles só estão mandando propaganda do Estado”. Aí eu meio me opus e teve um conflitozinho. Mas faz parte da vida, depois a gente consegue restaurar.
P/1 – Alguma história da sua vida como professor universitário, na sala de aula, talvez?
R – Não, eu fui muito professor de trabalho de campo. Eu dei diversas disciplinas. Eu dei curso na Geologia; na Geografia; na pósgraduação da Geologia, da Geografia; eu dei aula no curso de Ecologia da Biologia; eu dei aula na Estácio de Sá, uma universidade particular, depois que eu me aposentei. Enfim, eu dei muito curso! E muitas disciplinas, disciplinas ambientais de sedimentologia, de cartografia, fotointerpretação. dei inclusive disciplinas que não eram da minha área, mas na época de perseguição me obrigaram a dar aula de geografia humana, geografia da população, geografia agrária, geomorfologia, geologia do quaternário, paleogeomorfologia. Teve uma que me marcou muito que foi Estágio de Campo, Estágio de Campo I, da Geologia. Era um curso que era dado, o primeiro grande curso de campo da Geologia. Normalmente o aluno tá no terceiro período, mais ou menos terceiro período, segundo ano. E a gente dava em áreas onde ficava um período longo, assim: 20, 22, 24 dias. Aí dei primeiro na Bacia de Rezende, área de Rezende, a gente ficava no Parque de Itatiaia. Ah, porque tinha uma questão que era o seguinte: a universidade tinha pouco recurso, pouco dinheiro, então a gente tinha que fazer uma estrutura mais econômica possível. Praticamente sem dinheiro. Então a gente tinha que procurar lugar de alojamento barato, de graça, num esquema de alimentação coletivo que fosse barato. Então tinha esse primeiro grande problema: encontrar uma estrutura razoável. Então por isso a gente fez em Rezende, porque tinha um interesse geológico bem definido, era uma área que eu tinha estudado. A Bacia de Rezende foi uma das traições que eu fiz à pra Baía de Guanabara. Eu trabalhei também com os depósitos cenozóicos do Brasil, quaternário assim. Aí trabalhei com a Bacia de Taubaté em São Paulo, trabalhei numa outra bacia lá perto de Santa Isabel em São Paulo, Búzios, a região dos Lagos. Fugir um pouquinho da Baía. Então esse conhecimento de Rezende ficou um conhecimento didático, foi a minha tese de mestrado a Bacia de Rezende, e até hoje se perpetuou como um conhecimento que foi importante também: teses recentes o citam, tudo. A área ficou sendo uma área didática em função do conhecimento, das coisas que tinha encontrado, então por isso ela foi escolhida. E foi assim uma experiência maravilhosa! Começou em Rezende, depois a gente teve um problema, passou a ser feito na Bacia do Paraná. A gente ficava na região de Ponta Grossa, na Bacia do Paraná, até eu me aposentar! Eu comecei a dar esse curso em 74 e fui até 97, muitos anos mesmo! E eu aprendia muito, porque além da parte técnica, tinha a parte humana de convivência com os alunos novinhos. Uns de 19 anos, 20! Primeira vez que eles iam fazer campo, primeiro convívio assim de grupo! Então, além da parte científica, aprendia muito com o humano, então deu pra presenciar muita coisa! Eu até pensei em escrever esse livro, só sobre essa experiência do Estágio de Campo. A fase do amor livre, por exemplo, entre os estudantes, como é que repercutia.
A fase depois, por último, uma fase que me decepcionou um pouco: já influenciado pelo neoliberalismo, pela globalização, extrema concorrência! Agora no final, extrema concorrência, uma coisa ruim! Eu lembro de uma aluna, por exemplo, sendo tirada de uma Kombi – que o nosso trabalho era um trabalho pesado: os meninos ficavam o dia inteiro trabalhando, mapeando, áreas inóspitas, áreas difíceis, levavam um saduichezinho e só comiam à noite, eram condições muito precárias. E eles eram levados assim próximo à área de trabalho por uma viatura pequena, tinha um ônibus que era o carro chefe, principal, coletava, a gente ficava no alojamento. Então todo dia o ônibus deixava eles depois a gente ia coletar. Mas teve uma vez aí que eu vi uma menina tinha chegado na Kombi cansada, uma colega tirou, tirou! Porque achava que tinha que ser ele, quer dizer, a questão de companheirismo, não passava! Pô, me chocou, uma coisa assim que me chocou bastante.
Recolher