Programa Conte Sua História
Entrevista de Sebastião Carlos dos Santos
Entrevistado por Rosana Miziara
Rio de Janeiro, 17/01/2025
Entrevista nº: PCSH_HV1437
Realizado por Museu da Pessoa
Gravando por Alisson da Paz e Gunnar Vargas
Revisado por Bruna Piera
P/1 E é isso, a gente está aqui em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Podemos? Tião, vou começar assim, com o clássico, você falando o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Sebastião Carlos Santos, mas todo mundo me conhece como Tião Santos. Sou nascido no dia 20 de janeiro de 1979.
P/1 Que lugar você nasceu?
R - Eu nasci aqui mesmo, em Duque de Caxias, em casa.
P/1 Seu pai, a sua mãe, são de Duque de Caxias?
R - Meu pai e minha mãe são de origem Pernambucana, são do Recife, de um bairro chamado Mustardinha.
P/1 E seus avós, você sabe a história deles?
R - Também são de Pernambuco. Sei.
P/1 Maternos e paternos?
R - Maternos e paternos. Meus irmãos mais velhos também nasceram em Pernambuco. Os quatro mais novos que nasceram aqui. Dentro desses quatro, eu.
P/1 Me fala uma coisa, Tião, vamos falar um pouco da família do seu pai e depois a gente vai pra sua mãe. Os seus avós paternos e sua avó materna, faziam o quê?
R - Então, dos meus avós paternos, sei muito pouco, porque meu pai, o pai dele era uma pessoa muito violenta e no processo de separação dele e da mãe dele, eu nunca conheci meus avós paternos, digamos assim, de sangue, os pais biológicos do meu pai, nunca conheci. A história que eu sei do meu pai é que ele teve uma vida muito sofrida, ele foi dado por diversas vezes na feira, e por último quem cuidou dele foi uma senhora chamada Dona Menininha, que no caso vem ser a referência da gente, como a mãe dele e como vó dele, entendeu? Mas eu não tenho nenhuma referência do meu pai, de conhecer irmão, nem sobrinho, nada, ninguém da família dele.
P/1 E como é que era essa história dele ser dado nas feiras?
R - Então, como eu falei, ele...
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Entrevista de Sebastião Carlos dos Santos
Entrevistado por Rosana Miziara
Rio de Janeiro, 17/01/2025
Entrevista nº: PCSH_HV1437
Realizado por Museu da Pessoa
Gravando por Alisson da Paz e Gunnar Vargas
Revisado por Bruna Piera
P/1 E é isso, a gente está aqui em Duque de Caxias, Rio de Janeiro. Podemos? Tião, vou começar assim, com o clássico, você falando o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Sebastião Carlos Santos, mas todo mundo me conhece como Tião Santos. Sou nascido no dia 20 de janeiro de 1979.
P/1 Que lugar você nasceu?
R - Eu nasci aqui mesmo, em Duque de Caxias, em casa.
P/1 Seu pai, a sua mãe, são de Duque de Caxias?
R - Meu pai e minha mãe são de origem Pernambucana, são do Recife, de um bairro chamado Mustardinha.
P/1 E seus avós, você sabe a história deles?
R - Também são de Pernambuco. Sei.
P/1 Maternos e paternos?
R - Maternos e paternos. Meus irmãos mais velhos também nasceram em Pernambuco. Os quatro mais novos que nasceram aqui. Dentro desses quatro, eu.
P/1 Me fala uma coisa, Tião, vamos falar um pouco da família do seu pai e depois a gente vai pra sua mãe. Os seus avós paternos e sua avó materna, faziam o quê?
R - Então, dos meus avós paternos, sei muito pouco, porque meu pai, o pai dele era uma pessoa muito violenta e no processo de separação dele e da mãe dele, eu nunca conheci meus avós paternos, digamos assim, de sangue, os pais biológicos do meu pai, nunca conheci. A história que eu sei do meu pai é que ele teve uma vida muito sofrida, ele foi dado por diversas vezes na feira, e por último quem cuidou dele foi uma senhora chamada Dona Menininha, que no caso vem ser a referência da gente, como a mãe dele e como vó dele, entendeu? Mas eu não tenho nenhuma referência do meu pai, de conhecer irmão, nem sobrinho, nada, ninguém da família dele.
P/1 E como é que era essa história dele ser dado nas feiras?
R - Então, como eu falei, ele tinha um pai muito violento, que agredia bastante a mãe dele e ele também era muito agredido. Então, um dia a mãe dele fugiu e deixou eles pra trás. Entendeu? E aí, as irmãs dele mais velhas assumiram o papel de mãe, mas também não eram tão mais velhas assim. E acabou ele indo pra adoção. E naquela época não era uma adoção como hoje, digamos assim, regularizada, regulamentada. Ele foi dado a uma pessoa, que foi dado pra outra, que foi dado pra outra, e assim foi.
P/1 Aí, até que ele conheceu a Menininha.
R - Aí, ele casou com a minha mãe de menor. Tanto que meu pai, a referência toda de família para o meu pai, era a família da minha mãe. Se você visse meu pai falar do meu avô, que é o pai da minha mãe, que eu conheço a história, você pensava que ele estava falando do pai dele. Meu pai era apaixonado, louco, ídolo dele, era o sogro dele, o meu avô materno, entendeu? Porque meu pai, tudo que ele foi na vida dele foi através do meu avô. Como eu falei, meu pai casou com a minha mãe aos 17 anos, e ao casar com a minha mãe, o meu avô, que tem uma história muito legal, meu avô foi fundador do primeiro sindicato da América Latina, que foi o sindicato dos estivadores. Meu pai era do cais do Porto, meu avô também, meu avô foi presidente do sindicato dos estivadores, durante muitos anos, em Recife. Então, meu avô deu uma carteira pra ele de trabalho, colocou ele pra trabalhar no cais do porto, e ali foi quando ele começou a ter um contato de família, referência de ter um homem na vida dele, e rapidamente ele adotou o meu avô como referência de pai dele. Tanto como falei, se você visse as histórias, principalmente… E minha mãe sempre gostou muito de contar a história do pai dela. Mas o meu pai tinha mais história do que a minha mãe, porque ele convivia com o meu avô, tipo futebol, o time de futebol, o clube do sindicato. O meu pai, ele respirava e tinha o meu avô como ídolo dele, porque ele não teve referência de pai. Então, ele passou a ter referência de pai aos 17 anos e foi meu avô materno.
P/1 E que histórias ele contava?
R - Ah, ele contava várias. Teve uma vez uma briga num clube chamado Planetinha, que era o nome do clube deles. E o nome do clube de futebol também, time de futebol. Ele falava que o meu avô tinha uma mão muito forte. Meu avô era um cara muito forte, negão, cais do porto. E ele contou que, uma vez, o pessoal foi lá arrumar uma briga dentro do clube. Coisa de baderna mesmo. “Vamos lá, vamos arrumar uma briga no clube lá de… Chamavam o meu avô… O nome do meu avô era Antônio Agostinho, mas chamavam ele de Marreca. Aí, foram lá, porque meus tios não estavam no clube, que minha família também é muito grande, muitos filhos minha avó teve. E aí, pô, eles achando que não tinha nenhum homem no clube, que eles iam fazer bagunça. Mas a minha família era uma família formada por mulheres extremamente fortes e poderosas. Meu pai contou que as mulheres foram quem defendeu lá o clube, e que meu avô tinha dado um soco na boca de um cara tão forte que ninguém nunca achou a chupeta que ele estava, assim, da fantasia. Uma outra história que meu pai contava muito, como referência já assim, de um grande cara articulador político, foi que uma vez o pessoal no cais do porto fizeram greve… Porque hoje é difícil você conseguir visualizar isso, mas na época do meu pai e do meu avô, o cais do porto era um dos sindicatos mais importantes que tinha nesse país. Porque tudo vinha de navio. E tudo era descarregado manualmente, tudo vinha em saco ou em caixa. Então, o sindicato dos estivadores, era um sindicato muito poderoso. E esse sindicato muito poderoso, um dia parou, fez greve, todos os navios ancoraram sem descarregar, outros querendo ancorar para descarregar, e não tinha mão de obra para descarregar. E aí, ligaram para Miguel Arraes, o governador da época de Pernambuco, que era muito amigo do meu avô. E aí Miguel falou: “Pô, mas o que está acontecendo?” Meu avô explicou para ele que o pessoal não queria pagar o equivalente, digamos assim, é 20 centavos por saco, para descarregar cada saco, 20 centavos por saco. E aí, os sindicalizados fizeram greve. Eles queriam 20 centavos e o pessoal queria só pagar 10. E aí, o Miguel Arraes foi lá no Porto, se reuniu com o meu avô, depois de muita negociação, eles fecharam cada saco a 15 centavos. E aí, depois, Miguel Arraes voltou pro palácio lá do governo, e daqui a pouco ligaram pra Miguel Arraes de novo. “Ó, volta aqui porque Marreca não tá descarregando o navio, não.” Aí, o Miguel Arraes voltou. “Marreca, a gente não tinha um acordo de descarregar os navios e pagar 15 centavos por saco?” Aí, o meu avô falou: “Quinze centavos eu tô colocando aqui na porta, da porta pra dentro é mais cinco.” Ou seja, ele era um ótimo negociador. Ou era 20 centavos ou não era. Então, essa história meu pai contava muito, que meu avô era um bom articulador político e sabia fazer com que aquilo que ele queria viesse a funcionar. Isso sempre meu pai conversava muito do meu avô, como essa pessoa era um bom articulador político e sindicalista na luta dos direitos dos estivadores.
P/1 E a sua mãe, a sua avó, que disse que tinha essa força?
R - Minha avó era uma pessoa muito forte, assim, no sentido da espiritualidade. Minha avó era uma referência muito forte na nossa família, não só a matriarca, mas também a minha avó era rezadeira, coisa que não se vê mais hoje. Minha avó era rezadeira e parteira, tanto que eu te falei que eu nasci em casa. Minha avó foi quem fez o meu parto, dia 20 de janeiro agora, faz 46 anos que ela fez isso. Então, minha avó, além de parteira, ela era rezadeira e era também do candomblé. Então, minha avó sempre foi essa referência, digamos assim, espiritual e religiosa na nossa família, sempre foi ela.
P/1 Como é que é ser rezadeira e do candomblé?
R - Eu acho que hoje em dia as pessoas têm mania de dividir tudo na sua caixinha, sabe? E de criar preconceito. A minha avó tinha um armário grande na casa dela, do qual você tinha do lado os santos da igreja católica e você tinha do outro lado os orixás referentes a isso. Minha avó nunca fez distinção disso. Ela era, por exemplo, nessa época de quaresma, ela passava 40 dias praticamente comendo só peixe, ela era muito religiosa mesmo, entendeu? Mas ela nunca deixou de adorar os orixás. Então, por exemplo, se tinha lá São Sebastião, que inclusive eu levo o nome São Sebastião porque ela era católica. Se tinha lá São Sebastião, você tinha do outro lado de São Sebastião, Oxóssi. Se tinha lá Nossa Senhora da Glória, que no caso é minha irmã, que está ali, que também nasceu em casa. Nasceu em casa, dia de santo, fi, é nome de santo, não adiantava nem discutir. Então, Glória, nasceu no dia de Nossa Senhora da Glória. Tinha lá Nossa Senhora da Glória, mas tinha lá outro… Então, assim, minha avó nunca fez distinção, como hoje a gente faz, com tanta, assim, veemência, ou você é isso, ou você é aquilo. Minha avó sempre acreditou nos orixás e também acreditava nos santos da igreja católica, como algo muito normal na vida dela.
P/1 E como é que era a sua relação com a sua avó?
R - A minha relação com a minha avó era uma relação muito íntima, por causa dessa coisa dela ter feito o meu parto, e por eu ter nascido no dia de São Sebastião, um dos santos que ela tinha muito, que ela era muito devota. Então, eu tinha uma relação com a minha avó muito íntima, porque também ela cuidava muito de mim, porque eu nasci, eu tinha problema de bronquite, aí minha avó tinha todo um carinho assim, digamos, porque eu era mais fraquinho e tal. Ela tinha todo um cuidado comigo. Minha mãe trabalhava fora também. E a gente ia lá pra lavar roupa, lá tinha água pra lavar roupa, essas coisas todinhas. Então, a gente vivia muito com a minha avó. Ela fez um papel meio de vó e segunda mãe, enquanto ela vivia.
P/1 Você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Pô, minha mãe falou que minha avó tinha um barzinho lá, que ela tomava conta, que era meio uma mercearia. Aí, ele frequentava lá. E assim foi, paquerava ela. Ela tinha 14 anos na época. E acabou namorando e engravidando, entendeu?
P/1 Com quantos anos?
R - Com 14 pra 15.
P/1 E seu pai?
R - Meu pai tinha 17.
P/1 E aí eles casaram?
R - Casaram. Meu avô fez eles casarem. Naquela época tinha que casar. Casou, deu emprego. Foi aí que ele conheceu o meu avô. Meu avô falou: “Ó, você está entrando na casa do sujeito homem, eu sei que você é um menino novo, então vocês vão casar se ela quiser, se ela não quiser também já vai ter o filho…” Mas eles queriam, se gostavam. Então, o meu avô casou eles e deu o primeiro emprego pro meu pai, que foi o emprego da vida dele.
P/1 E foi aí como estivador?
R - Isso! E meu pai amava ser estivador e ser sindicalista, porque o meu pai também era um ser muito politizado.
P/1 E eles foram morar aonde? Eles estavam em Recife?
R - Ficaram em Recife até 1960 e pouco. Aí, depois vieram para o Rio. O meu pai não veio para o Rio como naquele grande êxodo em busca de emprego, não foi isso. Meu pai já veio para o Rio de Janeiro com uma carta do sindicato de Recife, foi trabalhar no cais do Porto aqui.
P/1 Me fala uma coisa, você tem quantos irmãos?
R - Eu sou o sétimo de oito.
P/1 E que lembrança que você tem, como era a casa que você vivia? Já moravam os oito lá?
R - Como eu falei, meu pai teve uma vida muito boa, porque o sindicato dos estivadores, quem conhece, sabe que pagava muito bem. Eu nasci aqui do outro lado, a casa da minha mãe, hoje em dia quem mora é minha irmã. Então, o meu pai, até 1985, como eu falei, a gente tinha uma vida muito boa. A nossa história com a reciclagem, ela não se dá pelas vias do meu pai, mas sim pela minha mãe. Meu pai tinha um bom trabalho até 1985. Aí, depois de lá, de 85 para cá, tudo que era transportado, como eu falei, em saco, em caixa, passa a ser transportado em contêiner. Aí, essa mão de obra deixa de ter tanto valor assim. Quando você passa no porto hoje, você não vê trinta mil homens trabalhando. Você vê pouquíssimos homens trabalhando e muitas máquinas. Então, meu pai, por ter perdido o emprego e o status, digamos assim, econômico dele, foi caindo, ele se tornou alcoólatra. E ao se tornar alcoólatra, quem assumiu a família foi minha mãe. Negra, quarta série primária, o que que ia fazer? Como se falava antigamente, trabalhar na casa da madame. Mas não dava pra sustentar oito filhos. Aí, um dia a amiga dela, a dona Margarida, que inclusive a filha dela trabalha aqui com a gente também, a Elisângela, você vai conhecer, que a gente chama de Preta. Falou com a minha mãe, que a gente morava do outro lado. Que do lado de cá tinha um local que dava pra ganhar até cinco vezes mais que uma faxina, três vezes mais que uma faxina, dependendo do quanto ativo de tempo que você trabalhava. Aí, minha mãe perguntou pra ela onde era. Aí, ela falou: “É no lixão, e só pode trabalhar a noite.” Aí, minha mãe falou: “Desde que seja um trabalho digno, eu vou trabalhar pra sustentar meus filhos.” Aí, minha mãe veio. No início era só minha mãe que vinha trabalhar, mas depois, por incrível que pareça, conforme íamos crescendo, a situação financeira só piorava, né? Oito filhos, oito sapatos, oito camisas, oito listas de materiais de escola. Minha mãe passou a trazer meus irmãos mais velhos para ajudar ela na renda.
P/1 De Recife para cá, ela não veio com os oito?
R - Não, ela veio com os quatro. Eu nasci aqui. Meus quatro irmãos mais velhos, Nilson, Rogério, Gloria… Desculpa, Nilson, Rogério, Simone e Cláudia. Esses quatro nasceram em Recife. Eu, Gloria, Cristiane e Claudeci, nascemos aqui.
P/1 Aí ela veio pra cá...
R - Ela veio pra cá em 1960 e pouco. Até, como eu falei, de 1966, se não me engano, até 1985, minha mãe tinha uma vida boa, minha mãe e meu pai. Entendeu? Tanto que a gente nasceu no outro lado, a casa da minha mãe é uma casa grande, é uma casa bem… Num bairro bom. Mas aqui, como eu te falei, meu pai ficou desempregado, não adiantava morar num bairro bom, tem uma casa boa, mas não tinha sustento, não tinha comida sequer pra comer.
P/1 Seu pai ficou lá ou ele veio junto?
R - Meu pai veio junto. Veio todo mundo junto, em 1966. Todo mundo.
P/1 E seu pai e sua mãe, como é que era a relação com vocês? Seu pai bebendo muito e a sua mãe?
R - Ah, foi uma relação de muito conflito, né? Até porque você imagina, um pessoa ter que sustentar oito filhos sozinha, trabalhando três, quatro dias à noite, dentro de um lixão, chegar em casa, oito crianças pra cuidar. E aí, tem um marido alcoólatra, muitas vezes era ofensivo. Entendeu?
P/1 Como é que era a relação dele com vocês e com você?
R - Com meus irmãos era muito normal, comigo que não era muito boa.
P/1 Por quê?
R - Porque na época que eu nasci, minha mãe e meu pai estavam muito mais em conflito, sabe? De separação, essas coisas todinhas, então ele achava que eu não era filho dele. Até meus 18 anos, a gente teve esses conflitos, mas depois não. Depois ele se tornou o melhor pai do mundo, porque eu entendi toda dor que meu pai carregava. Um dos méritos que a gente tem de ficar mais velho é entender. Então, eu passei a entender toda a dor do meu pai. Meu pai passou a ser uma pessoa… Passou a ser um grande amor na minha vida. Passou a ser o pai que eu sempre desejei. Meu pai me pediu perdão por tudo que ele fez, por toda a ignorância dele. E a gente passou a viver uma vida boa. Tanto que eu não gosto muito de falar isso, que eu não gosto de ter o meu pai como uma referência de uma pessoa violenta e má. Eu acho que o mundo foi muito cruel com ele, entendeu? Então, ele não era uma pessoa que sabia dar amor, ele veio aprender a dar amor pra gente, carinho, depois de mais velho, entendeu? Ele passou também a ter… Como eu posso te explicar? Não, mas aquele peso, sabe? De ser o único responsável. Meu pai se sentia muito culpado também, porque ele sempre teve um status bom. Então, eu acho que ele se sentia muito culpado depois que ele perdeu o emprego dele, e não poder proporcionar aos outros filhos mais novos o que ele proporcionou para os mais velhos.
P/1 E ele trabalhava?
R - Não. A vida do meu pai era o cais do porto. Meu pai comia, respirava e bebia o cais do porto. Então, meu pai era muito ligado. Tanto que tudo que ele me ensinou referente ao sindicalismo, à organização sindical, aos propósitos da organização da mão de obra, o quanto que era importante lutar por isso. Foi, inclusive, o que me incentivou junto com meus amigos, tratando essa experiência de família, a organizar a associação de catadores. Então, meu pai, assim, por mais que ele fosse uma pessoa alcoólatra, mesmo depois da gente mais velho, ele sempre foi um cara muito inteligente e politizado, sabe?
P/1 Mas aqui no Rio de Janeiro ele não trabalhava?
R - Trabalhou. Ele trabalhou de 1966 até 1985. Meu pai só passou a ser alcoólatra em 1985, entendeu? Meu pai era um cara muito boêmio, um cara bonito, um cara que tinha uma boa vida. O meu pai era um cara muito boêmio, adorava roda de samba, gostava de compor sambas, era imperiano, doente. Mas um cara muito bem-sucedido, até 1985, como eu falei. Tanto que ele deixou a casa da minha mãe, é uma casa grande, uma casa num bairro bom. Mas como eu falei, depois que ele se tornou alcoólatra...
P/1 Mas isso foi lá, né?
R - Meu pai se tornou alcoólatra aqui, em 1985. Aqui.
P/1 E a sua mãe, você estava contando dela, ela trabalhava aqui, ela foi direto para o lixão?
R - Não, ela trabalhou em casa de madame, como diziam, casa de família, fazia faxina, tomava conta de crianças, ficava lá, trabalhava na casa dessas pessoas.
P/1 E você lembra, você chegou a ir com ela em alguma casa?
R - Não, não. Lembro da ausência da minha mãe. Tanto quando ela estava na casa das pessoas trabalhando, fazendo faxina, como aqui também, quando ela veio trabalhar no lixão, porque muitas vezes ela passava três, quatro dias trabalhando dia e noite para poder sustentar a gente. Então, às vezes, ela ia para casa, só de três em três dias, dois em dois dias, ela tinha um barraco aqui dentro, próximo do lixão, onde ela descia para tomar banho, trocar de roupa, almoçar e voltava às vezes de novo para trabalhar, para juntar o dinheiro.
P/1 Mas aí ela ficou trabalhando como faxineira?
R - Não, quando ela largou a faxina, ela ficou só no lixão. Ela não trabalhou muito tempo como faxineira, porque não dava para sustentar eu e meus irmãos.
P/1 E com quem vocês ficavam?
R - Com as minhas irmãs mais velhas. Elas faziam papel de mãe, com 13, 14 anos, minhas irmãs tomavam contra a gente.
P/1 E fala uma coisa, a sua mãe, o que ela contava do lixão para vocês?
R - Ah, eu só ouvia meus irmãos falarem que a rampa isso, que a rampa aquilo. E aí, eu tinha maior curiosidade de conhecer essa rampa. “Ah, o urubu, não sei o quê.” E aí, eu ficava pensando, eu tinha várias imagens, quando criança, na cabeça, e rezava para que chegasse o meu dia de ficar um pouco mais velho para poder eu fazer o papel que a minha irmã fazia, que era levar comida para os meus irmãos, lá no lixão, para eu poder conhecer a rampa. Tipo assim, eu não tinha uma visão, digamos assim: preconceituosa. “Aí, lixo!” Não! E mesmo quando eu cheguei, pra mim era um lugar de divertimento, porque crianças, você não têm maldade, tudo é muito lúdico. Eu não tinha essa referência de um lugar sujo, um lugar ruim. Eu passei a entender o local depois, na adolescência. Mas quando eu era criança, meus 11 anos, que eu conheci aqui pela primeira vez, eu adorava. Ainda mais naquela época, que você tinha, digamos: um lixo mágico ainda, por exemplo. Um exemplo simples. Pra quem voou, teve o privilégio de experimentar, sabe como era luxuoso. Então, aqui vinha os carros da Varig, da Vasp, aí trazia um monte de caixinhas com suco de laranja, bolo, um monte de coisa. Então, a gente era criança, a gente gostava de vir, de divertir, ficar lá dentro brincando com os meninos, outros meninos, outros meninos. Eu não tinha essa coisa da maldade, tipo, “ess aqui é o lixo.” Não tinha isso.
P/1 E quais eram as brincadeiras?
R - Ah, jogava bola, pegava aqueles velotrol velho, emendava, fazia um só, pegava e brincava. Chegava muito brinquedo também, a gente catava brinquedo pra brincar, nos cantinhos que a nossa mãe separava pra gente poder ficar o dia, depois que levava o almoço, para não ficar no meio do trânsito de caminhão e nem de carreta, para não correr o risco de acidente. A gente brincava.
P/1 E o que a sua mãe fazia? Em que consistia ela trabalhar lá?
R - Às vezes… Dependia daquilo que estava dando dinheiro, por exemplo, tinha época que estava dando dinheiro era mais plástico, aí catava plástico. O papel que estava dando mais dinheiro, catava papel. Mas ela sempre gostava mais de catar papel. Digamos assim, ela tinha mais habilidade para isso, digamos assim.
P/1 E nessa época era um lixo que vinha orgânico misturado com metal?
R - Sempre veio orgânico, até mesmo hospitalar. Só depois de 1994 que passou a ter praças separadas. Mas até 1994, quando era um lixão, que depois passou a ser… Antes de ser aterro controlado, você sequer tinha uma praça separada para vazar lixo hospitalar, era tudo jogado junto.
P/1 E ela trabalhava pra quem?
R - Ela trabalhava pra quem pagasse melhor. Era, tipo, catei papel. “Ah, o fulano tá pagando vinte centavos. Vou vender lá. Ah, o outro tá pagando vinte e cinco, eu vou vender lá.” Entendeu? Era de acordo com quem tivesse pagando o melhor preço. Era assim.
P/1 E ela tinha amigas no lixão?
R - Um monte.
Muitos.
P/1 Você lembra de alguma?
R - Todas elas. A Ângela trabalha aqui na frente, que é o primeiro galpão, que é uma das amigas dela que está viva ainda. Infelizmente, você chegou hoje, hoje não tem aula, mas ainda tem a Regina, que está viva também. Tudo da época dela, que também eram todas as amigas que trabalhavam junto, porque naquela época nem existia a palavra cooperativa. Mas elas… A história da minha mãe, dessa coisa de ser mãe, e assumir unilateralmente a sua família, não é única… Tão pouco isso deixa de ser uma realidade de muitos. Se você reparou ali, 90% aqui são mulheres. Eu não vou, como é que se diz, antecipar a história, que acho que cada um pode contar a sua história. Mas elas vão contar a história delas, você vai ver que são histórias muito parecidas. Porque 73% dos catadores não são homens, são mulheres, que trabalham, sustentam a sua família sozinha. Muitas delas com mais de três filhos e de diversos casamentos. Então, essa realidade de ser mulher, catadora e o único sustentador dessa família, não é um privilégio da minha mãe. Infelizmente, é uma situação que se perdura até hoje. Basta ver o próprio livro da Carolina Jesus, “Quarto de Despejo”, que já contava a história de uma mulher negra que nasceu bem antes da minha mãe e que sustentava essa família. E isso, até hoje, ainda é uma realidade da cadeia produtiva da reciclagem.
P/1 E como que era a relação da sua mãe com vocês?
R - Ah, era uma relação boa.
P/1Características dela?
R - Muito cansada. A minha mãe sempre foi uma pessoa muito forte, muito liderança. Sempre teve aquela coisa de estudar, não fazer coisas erradas, entendeu? Minha mãe era uma pessoa que, se chegasse em casa, com uma bola, dizia assim: “Quem te deu? Por que te deu? Vamos lá, que eu quero saber.” Minha mãe era uma pessoa muito rigorosa. Uma pessoa muito com a inércia disciplinada no sentido da educação e da honestidade. Minha mãe ensinou a gente a ser trabalhador.
P/1 E ela estudou até quando?
R - Até a quarta série.
P/1 E vocês? Ela formou os filhos, vocês estudaram?
R - Eu fui o que mais tive oportunidade de estudar. Meus irmãos começaram a trabalhar muito cedo, mas todos nós estudamos, no mínimo, até naquela época, que hoje, agora é diferente, o que era naquela época. Meus irmãos, no mínimo, cada um estudou, fez o ensino fundamental, todos eles. Eu, como fui um dos mais novo, parei de estudar cedo, mas depois dos meus 20 anos, eu voltei a estudar de novo.
P/1 Como é que era o lixão naquela época, que você era criança, brincava lá? Quais as principais características? Porque depois eu queria entender de agora, daquela época para agora. E como que era a relação com as empresas? Com as empreiteiras que...
R - Não tinha. Não tinha. Não existia isso naquela época. Nada do que existe hoje existia naquela época. Inclusive, eu estava conversando com as minhas amigas de reciclagem, da Coopergramagem, que foi a primeira cooperativa a ser fundada aqui. Inclusive, foi minha mãe, uma das lideranças que fundou. Naquela época, você tinha uma relação com o dono do depósito. A gente não tinha essa organização de catadores. Se hoje ainda a gente vive na invisibilidade, naquela época nós éramos praticamente inexistentes, entendeu? Para a sociedade. Tanto que você atravessar aqui do outro lado, é onde a gente mora, as pessoas não conheciam isso aqui. Porque o lixo, ele é sempre o local mais escondido, onde as pessoas não querem ir, e até hoje ainda são muito preconceitos. Naquela época, as pessoas também sequer queriam ter vínculo e dizer assim: “Ah, eu trabalho no lixão.” As pessoas tinham vergonha de falar isso, entendeu? Era um local muito fechado, com pouca comunicação com o mundo externo, digamos assim. Eu sempre costumo dizer para as pessoas onde os lixões estão, praticamente ali se cresce uma comunidade quase que indígena, isolada, entendeu? E era uma comunidade isolada, fechada, com pouco acesso a informações externas.
P/1 Mas vocês não tinham relação com as empreiteiras. Mas vocês sabiam que tinham as empresas que faziam essa...
R - Não, não sabia. A primeira vez que entendi a dimensão que isso era foi quando, em 2002, aí minha mãe já era dessa cooperativa da Coopergramagem, como eu falei, a primeira cooperativa que foi fundada, a gente foi convidado a participar do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, em 2002. E, antes do Fórum Social Mundial, teve um encontro latino-americano de catadores. Tanto que, de lá para cá, a minha vida passou a ser isso. Por quê? Porque quando eu cheguei no encontro, eu tive a oportunidade e a felicidade de saber assim: Pó, eu não sou o único catador, eu não estou sozinho no mundo. Entendeu? E aí, veio aquela questão da felicidade mesmo. Você saber que existiam outros catadores no Brasil, no mundo, e que essas pessoas lutaram por dias melhores, lutaram por direito enquanto trabalhadores de uma classe. Até o ano de 2002, na minha cabeça, como eu te falei, nesse meu mundo, aqui só que tinha catador, e que catar material reciclável era só uma questão de sobrevivência de uma categoria do qual ninguém se importava. Porque na minha cabeça nem tinha essa palavra, categoria, entendeu? Não era… Depois dali, sim. Aí, eu comecei a entender a dimensão, a importância que o trabalho dos catadores tem, os catadores de materiais recicláveis têm, e a valorização que esse trabalho não merecia e que merece. Aí, de lá pra cá, eu fiz parte da fundação do MNCR, que é o primeiro movimento de catadores.
P/1 Vamos voltar um pouquinho pra chegar aí. Você tinha, naquela época, a noção? O que era lixo para você naquela época? Você chamava de lixo?
R - Eu chamava de lixo. Pra mim lixo era algo que me sustentava e que garantia o meu sustento. Algo que favorecia a minha vida, sabe? Enquanto indivíduo. Eu não via a relação do meu trabalho como algo útil à sociedade, algo que eu faço pra mim, enquanto profissional que recebe pelo serviço, por catar e vender, mas também a importância e a valorização. Não existia isso na minha cabeça. Pra mim, ser catador de material reciclável, ou de lixo, ou xepeiro, como era o nome...
P/1 Como era nomeado?
R - As pessoas chamavam de xepeiro. A nomenclatura.
P/1 Xepeiro?
R - Isso. Olhando a palavra xepa, que é resto de feira. Então, a gente era chamado de xepeiro aqui. Entendeu? Tanto que quando eu entendi, a dimensão e a magnitude e a importância que o meu trabalho tem, eu nunca aceitei depois as pessoas me chamarem de xepeiro ou de catador de lixo. Sempre de catador de materiais recicláveis, entendeu? Porque a partir dali eu entendi o valor social, ambiental e econômico que o meu trabalho tinha. A partir dali eu me entendi. Como eu te falei, a dimensão da importância de ser catador e do trabalho de catador de materiais recicláveis.
P/1 E não tinha essa concepção da origem do lixo, de onde veio?
R - Não, de onde veio, para onde vai, nunca foi algo que a gente se interessou.
P/1 Você tem alguma história específica sua dentro do lixão, naquela época que você era criança? Algumas histórias, alguns causos que você lembra?
R - Quando eu era criança, não me lembro muito não, entendeu? Eu lembro disso, do divertimento, de estar ali na Varig para catar docinho, para catar suco, para pegar coisas para comer, que naquela época as imagens… As empresas aéreas realmente valiam a pena voar. Tinha vez que a gente estava com fome… Não era tudo misturado com o lixo, não. O caminhão da Varig era só isso, vinha tudo aquilo que ninguém comeu durante a viagem, vinha pra cá. Então, tinha os danones, tudo gelado, com gelo. Gelo também, vinha muito gelo. Saco de gelo. Então, a gente ia lá para o lixo da Varig, praticamente pra comer, ali você tinha muita comida boa, aquelas coisas todinhas. Isso é vívido na minha cabeça como hoje, entendeu?
P/1 E tinha, assim, equipamento de trabalho, luva?
R - A gente que fazia. Tinha um lixo da Light, que é na Casa Companhia de Energia daqui, aí caía a luva. A gente ia lá e catava a luva para catar. Porque ninguém é burro o suficiente para não aproveitar uma luva. Mas, tipo assim, alguém te deu, alguém comprou, ou você… Não! Tudo era improvisado. Pegava meião, que caía, pra poder botar três, quatro, cinco, meia, enfaixar a perna, pra se bater alguma pedra, algum vidro, não machucar. Todos os EPIs, digamos assim, que a gente fala hoje, era tudo improvisado, tudo feito por nós mesmos.
P/1 E lá se chamava lixão? Como que era?
R - Chamava Rampa.
P/1 Rampa? Ah, que é isso que você falou.
R - Isso, a Rampa.
P/1 Por que era Rampa?
R - Porque tinha que subir uma rampa, né? Porque o Lixão do Jardim Gramacho, ele está situado dentro da Baía de Guanabara, entendeu? Então, ele foi uma coisa que foi sendo aterrada. Então, para chegar lá em cima, quando ele estava lá, você tinha que subir uma rampa. Chamava de rampa.
P/1 E subia como?
R - Não, tinha uma estrada mesmo, até porque os caminhões tinham que subir, então subia uma rampa. Até lá em cima, de vários quilômetros, que é uma área enorme. É um lixão que, ao seu término, ele tem uma área de um milhão e trezentos de metros quadrados, com sessenta e dois metros de altura acima do nível do mar. La era uma área muito grande.
P/1 E tinha alguma doença? Existia isso?
R - Sempre foi, fato, para quase todas as pessoas que trabalharam ali, uma das doenças que quase todo mundo teve, inclusive eu, era tuberculose. Uma outra doença que também tinha muito aqui, isso comprovado, com campanhas, inclusive, a gente desenvolveu aqui em parceria com o Instituto IBS, comprovado, alto índice de tuberculose, alto índice de hanseníase.
P/1 Hanseníase?
R - Você pode pesquisar que você vai achar isso. Tanto que a gente fez um trabalho aqui com um programa chamado TB, que era o Reconhecimento Precoce da Tuberculose, e o REPREAM, que era o Reconhecimento Precoce da Hanseníase. Foi a primeira vez que eu tive contato com instituições de fora pra fazer trabalho aqui dentro. Foi via saúde.
P/1 Você teve?
R - Tive tuberculose.
P/1 Sua mãe, seus irmãos?
R - Não. Meu irmão Nilson teve, se eu não me engano. Acho que o Nilson teve agora também.
P/1 E você ia na escola?
R - Ia, minha mãe sempre fez questão de a gente estudar. Tanto que eu só passei a levar comida pra minha mãe quando minha irmã passou a estudar à tarde. Então assim, quando eu passei a estudar de tarde, aí sim minha mãe passou a me levar pro lixão pra ajudar ela atrás do trabalho. Que aí eu chegava de manhã cedinho no lixão, tipo cinco horas da manhã, trabalhava com a minha mãe até as duas horas da tarde, descia, tomava banho e de três às sete eu estudava. Minha mãe sempre foi uma pessoa muito dedicada à questão de dar estudo, até onde ela pôde nos dar estudo, ela deu. Até porque minha mãe também era uma pessoa que gostava muito de ler. Minha mãe gostava tanto que todos nós, todos os meus irmãos, inclusive eu, tem hábito de ler. Claro que minha mãe não lia o livro que eu li e gostei de ler. Claro que minha mãe não lia o livro que eu lia e gostei, livros que eu me identifiquei com a leitura, filosofia, essas coisas assim. Minha mãe não lia esses livros. Quando eu passei a ler, o livro que eu li foi O Príncipe de Maquiavel, aos 23 anos.
P/1 Com quantos anos?
R - 23. Minha mãe lia uns livros que eu nem tinha interesse de ler. Que minha mãe era muito romântica, ela lia Júlia, Bianca, Sabrina… A gente até catava pra ela esses livros. Minha mãe gostava muito de ler esses livros.
P/1 Com quantos anos você entrou na escola?
R - Com sete anos. Minha mãe sempre botou a gente no colégio bem no momento certo.
P/1 Mas com sete você ia pra escola e já ia pro lixão?
R - Não, com sete eu só ia pra escola. Eu só passei a ir pro lixão quando eu fiz 11 anos de idade. Que aí minha irmã, passou a estudar de tarde, ela ia pro lixão pra ajudar a minha mãe. Então, eu estudava de sete às onze, chegava em casa, almoçava, pegava a mochila e vinha trazer comida para os meus irmãos.
P/1 E que lembranças você tem da escola? Algum fato marcante, alguma professora, desses 7 aos 11 anos?
R - Tenho ótimas lembranças das minhas professoras. Tanto que no meu livro eu sempre cito as minhas professoras, entendeu? Eu acho que uma das maiores referências minhas, assim, da época do colégio é a Dona Estela, porque a Dona Estela era uma professora de… Espero que ela esteja viva ainda, que a gente se encontrou… Quando ela leu meu livro, ela ficou muito feliz, saber que eu lembrava dela, e ainda por cima de nome. Dona Estela é uma professora de Geografia e Português, que numa época, ela conseguiu identificar, que eu estava faltando muito no colégio, entendeu? E ela identificou, porque eu sempre fui um bom aluno, sempre gostei de estudar. Ela identificou, que a minha falta era porque eu não ia, porque eu não tinha camisa do colégio. Não tinha camisa. Minha mãe tava sem dinheiro pra comprar camisa no colégio. Como eu falei, muitos filhos. E aí, eu me lembro, que alguns professoras, por se importarem comigo, por saber que eu era um bom aluno, elas compraram a camisa pra mim não deixar de faltar às aulas. E achei isso até hoje de uma nobreza muito grande. Por isso eu nunca esqueci o nome dos meus professores.
P/1 Tião, quando você estava com 11 anos, você disse que aí você estudava e vinha para o lixão. Os seus amigos na escola sabiam disso?
R - Não. Não. Só vieram saber que eu trabalhava no lixo e que a minha família vivia aqui… Desculpa! No lixão, quando eu tinha 16 anos, 15 para 16 anos. Que minha mãe… Como eu falei, minha mãe sempre foi uma pessoa extraordinária na luta pelos direitos de catadores. Então, quando surgiu a Eco 92, as pessoas passaram a entender um pouco mais sobre as questões ambientais, barra cidade. Então, ali na Eco 92, as pessoas tinham aquelas preocupações, não estou dizendo que não seja genuína, tá? Mas a maior preocupação era a Mata Atlântica, a tartaruga, o mico-leão dourado. Então, quando acontece a Eco 92, começa-se a discutir o impacto ambiental das cidades, o impacto das cidades no meio ambiente. E aí, qual era o maior impacto das cidades no meio ambiente? Lixo. Então, de 1995 para 1996, se não me engano, no final da época de 1995 para 1996, minha mãe, entre 1995 e 1996, minha mãe deu uma entrevista. No dia de hoje, numa sexta-feira, no Globo Repórter, fez uma mega reportagem sobre o impacto do lixo nas cidades. E minha mãe, como era uma pessoa lutadora, uma pessoa de liderança, foi a primeira catadora dentro do lixão a dar uma entrevista com o rosto aberto. Aí, na segunda-feira, quando eu cheguei no colégio, eu não tinha mais nome, era filho da xepeira, filho da lixeira, comedor de lixo. Tanto que eu saí do colégio com 16 anos de idade, só voltei com 20 e pouco. Porque por mais que muitos meninos e meninas que estudavam comigo eram até mais pobres nas condições financeiras do que a gente, mas a mãe não trabalhava no lixo. Ali eu entendi o que as pessoas… Ali começou a cair a ficha pra mim, o preconceito que as pessoas tinham que eu trabalhava com material reciclável. Tanto que eu cresci com a ideia de estudar e não ser catador. Porque eu achava que não tinha valor nenhum ser catador de material reciclável. E aí, justamente quando eu falei com você do encontro latino-americano que me mostra o valor, e aí eu passo a conhecer a importância que tem a minha categoria. Aí sim, eu absorvi a importância e falei: Cara, eu quero ser catador. Mas para ser catador, eu vou ser um dos melhores catadores. Eu vou estudar, eu vou me formar. Eu quero ser catador, mas eu não quero ser esse catador, eu quero demonstrar esse valor que as pessoas não veem. Tanto que daquele dia em diante, eu não aceitei mais que ninguém me chamasse de catador de lixo. Tem uma coisa que é marcante no documentário Extraordinário, que é quando o Jô fala: “Vem aí, o Tião Santos, o presidente da associação de catador de lixo. Como eu fui uma pessoa que preguei muito isso, eu falei: Putz, como é que eu vou corrigir o Jô? Porque se eu não corrigir, eu vou apanhar em casa. Então, educadamente, eu falei para o Jô. “Jô, posso fazer uma correção?” O Jô, “Pode! Fique à vontade.” Falei: “Eu não sou catador de lixo. Sou catador de material reciclável.” Expliquei tudo a ele ali, naquele exato momento. Porque eu sempre preguei para os meus amigos e para as pessoas que a gente tinha valor e que o trabalho dos catadores tinha muita importância.
P/1 Como é que você foi para essa militância?
R - A partir de quando eu não me senti mais sozinho.
P/1 Que foi desses 16 aos 21?
R - Não.
P/1 Quando você saiu da escola?
R - Eu saí da escola e não queria ser catador. Fiz várias outras coisas fora daqui.
P/1 O que você fez?
R - Ah, trabalhei de matador de galinha aviária, trabalhei em açougue, fui pedreiro. Durante muito tempo trabalhei vendendo botijão de gás nas comunidades do Rio de Janeiro. E aí, depois eu saí do emprego que eu tinha no depósito de gás, pra poder… Quem é homem sabe disso, a gente tinha a obrigação de servir, de se alistar. Aí, nessa coisa, vai se alistar, falta. Acabei sendo mandado embora. E depois nem fui aceito no quartel. Aí, eu voltei pro lixão, com 18 para 19 anos de idade. Mas até 18 para 19, antes de ser dispensado do quartel e voltar pra cá de novo, eu não queria ser catador, como falei pra você.
P/1 E aí, quando você volta...
R - Eu volto obrigado. Trabalhava aqui também com má vontade. Vinha pra cá pra poder ter dinheiro, comprar minhas coisas, ter minha roupa, ter meu dinheiro pra sair como qualquer adolescente. Mas não era algo que eu queria definir pra minha vida. Isso só acontece dos meus 21 anos de idade pra 22. Como eu falei, quando eu fui participar do Fórum Social Mundial, e aí dentro do Fórum Social Mundial tem o encontro latino-americano de catadores. Ali eu entendi que eu não era sozinho, como eu falei, e a importância do trabalho de nós catadores. Aí minha vida mudou. A concepção que eu tinha de que eu trabalhava com algo que não tinha nenhum valor, ela passa a mudar, entendeu?
P/1 Muda o quê?
R - Muda o maior entendimento, né? Que quando você se vê como catador de lixo, você é o quê? Você é lixo. Lixo é o quê? Já leu o que lixo é no dicionário? Lixo: aquilo que não tem valor nenhum. Lixo: aquilo que não serve pra nada. Quando se trata de verbo pejorativo. Lixo: ralé, escória da sociedade. E eu não sou nada disso. A partir que eu entendi o valor social, ambiental e econômico que tem o meu serviço, e que eu não era o inútil, uma escória na sociedade, e sim um catador de material reciclável que presta serviço de suma importância à sociedade, à o meio ambiente e à vida no planeta, eu falei: Puta que pariu, eu tenho valor. Eu não sou o lixo! E dali em diante, como eu te falei, não aceitei mais que ninguém me chamasse de catador de lixo. E passei a militar no movimento de catadores e a viver isso que eu vivo até hoje.
P/1 Quando que se deu essa mudança? O que aconteceu nessa virada?
R - Eu acho que foi isso, vê os palestrantes falando sobre a importância do nosso trabalho. Porque eu não conseguia enxergar o que eu enxergo hoje. Eu me enxergava como catador de lixo. “Lixo, vou ali, cato o meu material, vendo. Isso tem importância pra mim enquanto sobrevivente. Qual era a utilidade que eu tinha para a sociedade? Todo mundo quer ser útil. Na minha cabeça, eu não tinha utilidade nenhuma para a sociedade. O meu trabalho era a mera sobrevivência, para mim, e não algo benéfico para a minha vida e para a vida de sociedade. Foi aí que caiu a ficha. O meu trabalho tem um valor social, ambiental e econômico.
P/1 E aí você foi para alguma instituição?
R - Aí, eu fiz um curso chamado Jovem Liderança, que também mudou bastante a minha cabeça.
P/1 Qual que era esse curso? Onde que foi?
R - O curso era um curso dado pela ONG Holandesa, do qual eu tive a oportunidade de estudar com os melhores professores aqui da PUC, da UFRJ. Então, eu estudei um pouco de cada coisa, desde os direitos fundamentais e a cidadania. Dizer, Cidadania é o artigo quinto, à o liberté, fraternité e égalité da França. E foi aí que eu conheci um pouco sobre Maquiavel, sobre essas coisas, e comecei a entender e gostar de ler, porque os meus professores levavam um texto de filosofia, de muita coisa. Até ali, eu achava que a pobreza também era uma questão divina, tipo, eu nasci pobre porque Deus escolheu. Então, eu aprendi tudo. Como eu disse ao meu professor, eu passei a entender como que a sociedade funcionava. E que nascer no lixão, não foi uma escolha de Deus, e sim, um erro de valorização, de reconhecimento que a nossa sociedade comete.
P/1 Tião, e esse curso que você vai fazer, é tipo um curso de extensão? Ou você entrou na universidade?
R - Não, foi um curso de extensão dado para os professores… Era um curso dado para 24 jovens de várias comunidades do Rio de Janeiro. Eu era o único de uma comunidade de Lixão, entendeu? Então, tinha jovens que faziam grafite, tinha jovens que faziam teatro. Por exemplo, uma das instituições que mandava jovens para lá, para fazer curso, era o Nós do Morro. Não sei se você conhece o Nós no Morro? Nós no Morro é a fábrica de atores que vêm da favela, principalmente atores negros, entendeu? Então, você tinha jovens… Por isso que chamava Jovens Lideranças, eram jovens que já naquela época já tinham potencial a se formar liderança. Então, a ideia do curso era potencializar esses jovens a ser, de fato, uma liderança dentro dessas comunidades e a ser não só a mudança na sua própria vida, mas da vida em sociedade, entendeu? E aí, quando eu fiz esse curso...
P/1 Isso foi na UFRJ?
R - Não, eu estudei com os professores da UFRJ, de vários lugares. Tinha professores de várias universidades. E o curso era dado numa ONG chamada IBIS, Instituto Brasileiro de Inovação e Saúde Social. Foi onde eu estudei.
P/1 Vocês tiveram esse encontro, com esse saber novo que abriu esse seu inverso. E o que vocês levavam também para eles, para esses teóricos que davam a aula para vocês?
R - Acho que é uma realidade a qual eles não conheciam. Por exemplo, como eu falei, por mais que tinham jovens de comunidade pobre, eu era o único jovem de comunidade do Lixão.
P/1 Mas como é que esses professores, ou quem deu o curso, também absorvem a prática de vocês? Sabe o inverso?
R - Eu posso tentar te elucidar isso como final do curso. Quando terminou o curso, o professor virou para a gente, porque até hoje ainda é um guru na minha vida, o PJ, Paulo Jorge, professor de sociologia, e quem me inspira a fazer sociologia também. Ele vira e fala: “Como que vocês estão hoje, depois de um ano de curso?” Isso no último dia de aula. As pessoas viravam e falavam: “Ah, eu tô muito bem, eu aprendi isso, agora aprendi aquilo, agora eu melhorei minha vida, eu agora tenho uma visão mais ampla sobre isso.” Desculpa o palavrão, quando chegou a minha vez, ele perguntou: “Tião, e como é que você tá depois de um ano de curso?” Um ano e meio de curso, quer dizer, o curso durava um ano e meio. Eu falei: “Eu tô puto com vocês e acho que vocês são uma cambada de filhos da puta.” “Como assim?” “Como assim? Eu vivia num mundo que eu já era excluído, mas eu tinha meus amigos. Aqui você me ensinou o artigo quinto, liberté, égalité, o direito de cada cidadão, o sufrágio universal, o direito do trabalhador, do que o trabalhador tem que ter nesse país, o direito à moradia, o direito à educação. Quando eu chego lá no lixão para poder pregar isso para os meus amigos, meus amigos mexem muito, ninguém quer andar mais comigo. E se eu vou falar isso pra sociedade, ninguém quer saber de me ouvir. Ou seja, agora eu tô mais excluído do que antes. Eu nem tenho amigo e nem sou aceito na sociedade. O que que eu ganhei com isso?” E aí, é quando ele fala: “Muito, que agora você sabe como a sociedade funciona. Bem-vindo ao mundo.” E ali eu senti, e dá pra gente entender isso. Ali eu mostrei, eu levei pra ele a minha indignação, enquanto uma pessoa que era, entre aspas, socialmente excluída, mas estava incluída na minha bolha de pobreza, onde eu era aceito entre os pares, e agora eu era uma pessoa não aceita. O conhecimento te afasta das pessoas. Então, as pessoas aqui eram tipo loucas. Não tinha pregar sobre o direito do trabalho, sobre o direito do catador. E as pessoas, meus amigos viravam para mim e diziam: “Tião, para com essa maluquice, xepeiro tem direito? A gente não tem direito a nada.” Entendeu? Então, eu passei a ser uma pessoa muito mais excluída do que antes. E os meus professores só entenderam isso porque eu levei a minha realidade, e não a realidade fingida. “Ah, minha vida agora está melhor.” Não tá! Porque eu me sentia muito mais excluído do que antes. Mas também foi como ele falou, agora você entende como é o mundo. E a partir dali eu entendi como era o mundo. Tanto que o primeiro livro que eu vou ler é O Príncipe de Maquiavel, porque eu achava que na época eu tinha me tornado uma pessoa má. Porque o conhecimento passa a te tornar… Aonde eu nasci, como falei para ele, aonde eu nasci, urubu, lixo e porco sempre conviveram juntos, pra mim, era algo normal. Quando eu saí do curso, tudo isso, para mim, passou a ser anormal. Então, aquilo que eu aceitava como algo divino. “Eu nasci pobre, porque foi uma escolha de Deus.” Eu entendo que isso é um erro da nossa sociedade. Nós vivemos numa sociedade excludente. Então, pensa que eu tinha essa mente, mas os meus amigos não tinham. Tinha aquela mente de que aqui é o nosso mundo, o nosso mundo é isso. E eu passo a não querer viver mais nesse mundo. E a entender que esse mundo não é o um mundo de dignidade. E aí, foi um conflito interno, externo, na minha cabeça.
P/1 E aí você vai pra onde?
R - E aí, eu fui, me afastei das pessoas e passei a trabalhar de noite.
P/1 Querido, como que você vai virando essa liderança?
R - Então, eu fiz o curso de Jovem Liderança. Aí, eu fiquei com essa coisa maluca na cabeça de querer mudar o mundo. E aí...
P/1 Trabalhando no lixão ainda?
R - Trabalhando no lixão, mas ninguém me dava confiança. As pessoas não tinham essa visão, como eu falei. Até que um dia o lixão fechou. O lixão fechou, mas não foi porque ele fechou de vez. Ele fechou, na época, era uma briga do César Maia, em 2005, com o prefeito, que na época era o prefeito Astor Reis. O que acontece? O lixão de Jardim Gramacho era como se fosse um feudo do Rio de Janeiro. Até a própria cidade aqui, tinha que pagar ao Rio de Janeiro pra jogar o lixo na sua própria cidade. É como se eu jogasse o lixo no teu quintal e ainda te cobrasse você jogar o lixo no seu próprio quintal. Aí, essa briga fez com que o lixão fechasse, por mais ou menos 15 dias. Ficava uma briga de abre e fecha, abre e fecha. Aí, teve um dia que a galera já com fome, cansada de não ter nada dentro de casa. Pegou pneu, um monte de coisa, e foi aqui para a Washington Luiz tacar fogo. Aí, tacaram fogo. Polícia, tiro. Não foi bom nem para a comunidade, nem para os catadores. Aí, foi proibido qualquer tipo de manifestação. Ou se organizava de um jeito que não fizesse aquele tipo de baderna. Aí, meus amigos me procuraram, cinco horas da manhã. “Pô, cara, tu fala sempre dos direito dos catadores. Que direito que a gente tem? Como que a gente pode lutar por esse nosso direito?” E aí, eu lembrei do Maquiavel, uma frase maravilhosa, que o Maquiavel fala uma frase que não adianta você puxar a espada para lutar contra o rei, se o povo está satisfeito com a situação. Então, aquele era o momento de eu colocar aquilo tudo que eu aprendi no Jovem Liderança na prática. Aí, eu falei: “Gente, vamos fazer uma marcha, sem pedra, sem pau, sem nada. Vamos tentar mostrar o que está acontecendo aqui dentro de uma forma organizada, fazer com que o lixão abra para a gente voltar a trabalhar.” E fomos, tentando organizar, mas não conseguia. Não dava nada, nada dava certo. Por que como que a gente ia falar? Como que a gente ia se comunicar? Aí, entra a questão de você absorver conhecimento. Falei: Eu tenho que tentar alguma coisa que expresse uma única frase, a nossa dor do que está acontecendo. Eu falei: Nós temos que fazer uma faixa. Mas a gente não tinha dinheiro para nada. Com muita dificuldade, a gente conseguiu o apoio do sindicato dos professores, que nos deu um carro de som e R$13,00, na época, para poder fazer uma única faixa.
P/1 E quem foi lá negociar? Teve a ideia de falar com o sindicato dos professores?
R - Eu! Uma professora ajudou a gente nisso. Aí, eu conversei com o sindicato, eles deram o carro de som. Como eu te falei, R$13,00 pra fazer uma faixa. E aí, eu fiquei pensando, como é que eu vou fazer uma única faixa, o que eu vou falar? Aí, eu lembrei que ninguém gostava do George Bush. E aí, eu escrevi, nós fizemos uma faixa escrito. “O Bush carioca, César Maia, quer matar mais de 5 mil pessoas de fome, com o lixão fechado.” E fomos! Aí, apareceu Globo, no dia, e tal. E aí, os meninos falaram: “Vi lá Tião, fala tu, que tu é bom de falar. Você consegue se comunicar, vai lá, vai lá! Fala o que tá acontecendo.” E aí, porque todo mundo tinha vergonha das câmeras, eu fui diante das câmeras, como se fosse um porta-voz, e comecei a falar, sempre tive muita facilidade de falar com as câmeras. Comecei a falar o que estava acontecendo, quantas famílias estavam passando fome, que a gente não tinha nada a ver com essa briga, que não tinha outras alternativas para as pessoas sobreviverem se não fossem no lixão, que por mais que não fosse o melhor lugar do mundo, era a única fonte de renda que a gente tinha. E isso saiu em todos os jornais, inclusive a foto nossa com a faixa, com os cariocas. O César Maia passou a me odiar, mas acho que agora ele já deve ter esquecido.
P/1 Tião, e a sua mãe continuava trabalhando no lixão?
R - Continuava, continuava. Minha mãe morreu só… Minha mãe só parou de trabalhar quando ela estava bem doente, entendeu?
P/1 E aí, depois dessa experiência, você entra, faz alguma associação?
R - Isso, depois disso a gente sentiu que a galera estava motivada. A gente fez uma reunião no Brizolão.
P/1 Brizolão onde é que é?
R - Uma escola que tem antes de você chegar aqui. Tem uma entrada ali no posto? Ali tem um CIEP. A gente conseguiu fazer uma reunião ali no CIEP com mais ou menos 200 catadores. Desses quase 1.500 catadores que trabalhavam na época no lixão, a gente conseguiu fazer uma reunião com 200. Disposto a fundar uma associação para lutar pelos nossos direitos. E ali que nasce a Associação dos Catadores.
P/1 Como é que você articulou esses 200?
R - Não articulou, foi a necessidade, a fome.
P/1 Como eles foram aparecendo?
R - Ah, as pessoas começaram a falar: “Cara, a gente realmente precisa… O que acontece? Eles perceberam que a união e a organização fez com que a gente conseguisse abrir esse lixão. Não foi por força política que o lixão abriu, não foi por determinação de juiz, foi pela luta dos catadores. Claro que o juiz mandou, porque aquele monte de gente, um monte de crianças, deu a visão do impacto que aquilo estava causando na vida de pessoas. De repente, eles passaram a não só ver o lixo, mas a enxergar a gente. Entendeu? Foi isso que as pessoas… “Opa!” Os familiares, as pessoas envolvidas. E os catadores entenderam que o processo de organização facilitava, não é dizer que é tudo fácil, mas assim, facilitava com que a gente conseguisse expressar e lutar pelos direitos. Então, o pessoal falou: “Cara, nós temos que realmente pensar em alguma coisa que nos garanta o direito. E se o lixão fechar de novo? E se o lixão fechar de novo? Então, nós temos que formar uma coisa pra gente poder lutar pelos nossos direitos. O que a gente pode formar?” Vamos formar uma associação de catadores. E assinar essa associação de catadores no final de 2005 pra 2006. Em 2007, ela foi fundada. Em 2008, legalizada.
P/1 Você continuava no lixão?
R - Continuava no lixão.
P/1 E aí, quando cria essa associação, qual…
R - Então, aí foi tudo acontecendo muito rápido, depois disso. Em 2007, antes mesmo da legalização jurídica, ela já tinha uma sede bancada por nós catadores, onde a gente fazia a reunião, onde nos reunimos para tratar das questões, onde a gente reunia o grupo de catador para participar dos debates, que estava acontecendo sobre a questão dos catadores a nível nacional, a nível estadual. Ia para os fóruns, começava a participar de várias discussões. Nesse meio termo, eu me torno a liderança. E aí, surge um artista plástico brasileiro querendo fazer um trabalho, em 2007, com os catadores de material reciclável. Um artista plástico chamado Vic Muniz. Isso no final de 2007 para 2008.
P/1 58:11 - E ele te procurou?
R - Ele me procurou, porque… Na verdade, quem me procurou foi o presidente… Não, o diretor da Conlúrbia, o Penido. Ele me pediu ajuda para que eu garantisse não só a segurança do Vic dentro do lixão, mas que fizesse um link do VIC com os catadores, entendeu? Por ser liderança. As pessoas confiam no Tião, procuram o Tião, porque sem o Tião você não vai conseguir chegar até os catadores. E aí, foi o meu papel esse, de início.
P/1 Como é que ele chegou a conversa?
R - Na verdade, quem chegou aqui primeiro foi a Renê, que era uma historiadora que veio fazer uma pesquisa, procurou assistente social também, que era na época a Valéria, e aí me apresentaram ela, e depois me apresentaram ele. E aí, ele veio com a ideia de fazer o quadro, que não era quadro. De início, a gente não queria muito topar, porque achava que era mais uma pessoa que só ia vir para expor a nossa imagem, etc. Mas ele tem um poder muito forte de convencimento. Ele pegou, convidou a gente para um galpão quase igual a esse, onde ele faz as obras de arte dele, explicou, contou a história dele. A gente falou: “Vamos dar uma chance para o cara, mais ferrado do que a gente é, a gente não vai ficar.” E assim surge o documentário, o trabalho da obra de arte, foi filmando durante três anos.
P/1 Aonde foram as filmagens?
R - No lixão. No lixão, na nossa casa. Sempre lixão, casa ou, então, no estúdio, ajudando a fazer as obras. Foi ali que se passou grande parte do documentário. Claro, também a questão da luta, das marchas, dos eventos de luta de direitos dos catadores. E assim foi. Aí, quando ficou pronto, em 2010, o documentário Extraordinário. Logo de cara, a gente ganhou 22 prêmios, sendo 20 prêmios internacionais e 2 prêmios nacionais.
P/1 Vocês iam nos lançamentos junto com ele?
R - Não. Em 2010, sim. Quando começou a ganhar os prêmios. Eu fui pra Berlim, fui pra Londres, pra vários lugares. E aí depois eu fui para Washington.
P/1 Qual foi o primeiro lugar que você foi?
R - Londres. Londres.
P/1 Você já tinha saído do país?
R - Não.
P/1 Já tinha andado de avião?
R - Não.
P/1 Como é que foi essa experiência? Chegar em Londres, pegar um avião?
R - Ah, foi tudo muito novo, né? Muito, meio que sonho, meio que surreal. Porque você não trabalha, seria leviandade da minha parte dizer: Ah, eu fundei uma associação de catadores porque eu queria ir parar lá no Tapete Vermelho do Oscar. Não! Como diz a minha irmã Glória: Nunca fui ator, nunca fui diretor, nunca fui cineasta, nada disso. Então, não foi algo que eu pensei, algo, tipo, idealizava. Eu estava vivendo aquilo ali, meio que algo surreal na minha vida. Entendeu? Tenho que despachar o rapaz também. Que ele vai para campo, a gente está fazendo um trabalho fora daqui, de contrato, não posso nem me atrasar, é o SESC Verão. A gente está fazendo o trabalho com outras cooperativas. Como você viu, quando você chegou não tinha um monte de cooperativas aqui? Porque eu sou presidente do Movimento Nacional de Catadores. Então, tem toda uma agenda também com os encontros de cooperativas. Aí, eu estou organizando o Sesc Verão aqui, que a gente vai trabalhar também em Caxias, São João de Meriti, Niterói, é a gente que vai fazer. E também no interior, tipo, Casemiro de Abreu, Macaé, Rio das Ostras.
P/1 Tião, voltando para Londres. Você ia _____? Com quem você conversava?
R - Eu fui sozinho.
P/1 Queria entender como é que você viveu isso? Alguma história que aconteceu?
R - Eu sempre fui uma pessoa muito tranquila, cara! Eu sou essa pessoa que você está vendo aqui. Eu nunca fui assim, uma pessoa de me deslumbrar. Mas, claro, que era tudo muito novo. Andar de avião, aí um outro país, entendeu? Ver uma sociedade bem diferente da gente, em todos os sentidos, entendeu? Dos hábitos. Para mim, isso era muito novo.
P/1 Mas você foi para lá por causa do filme?
R - Não, eu fui para lá por causa do filme. A primeira vez que eu viajei fora foi por causa do filme. Porque, como eu te falei, ele além de ser um documentário, ele também era um obra de arte, quadro. Então, eu fui para o leilão do meu quadro, que era um quadro inspirado no Marat, que é um revolucionário francês, chamado Marat. Aí, tem um quadro que ele está morto dentro de uma banheira, o quadro do Davi, chamado Marat. Eu fiz esse quadro. E o quadro foi escolhido, a foto foi escolhida, e o quadro foi escolhido para um leilão na casa chamada Casa de Leilão Filipi de Pirri. Aí, eu fui para esse leilão, que também fazia parte do documentário.
P/1 E como era a sua relação com a língua, você entendia?
R - Não.
P/1 Tinha tradutor?
R - Tinha. Tinha a Gabi, que foi comigo e ficava comigo sempre, para me ajudar nas traduções. Ela era minha companheira, tanto ela quanto o Fábio Guiveldi, que era assessor do Vic. Sempre estavam junto comigo.
P/1 E você foi pra algum desses lugares?
R - Pra Casa de Leilão? Fui.
P/1 Como é que era, vendia, falava seu nome? O que que acontecia?
R - Eu me lembro que não tinha como eles falarem outra língua. Eu me lembro quando ele falou Marat, Vic Muniz, Sebastião Carlos dos Santos. Aí, entra o quadro. O quadro era uns dois por dois, enorme. Isso eu já sabia que ele estava falando. Claro que eu estava ali na torcida. Tinha um catálogo imenso. Eu já tinha decorado, inclusive, qual era o momento em que o meu quadro ia entrar. Era o número 272. Então, foram vendidas várias obras antes da minha, Basquiat e vários outros artistas também. E também foi bom, aprendi a gostar de obras de arte, a conhecer obras de arte e conhecer a história de vários artistas. Fiquei apaixonado pelo Bux, fiquei muito apaixonado pela obra de arte do Basquiat também. Então, fiquei acompanhando. Quando falou Marat, eu já sabia que era o meu quadro. Sebastião, eu sabia que era o meu quadro. Aí, foi uma emoção imensa, você vê. Primeira coisa que eu torcia muito era para ser vendido pelo melhor preço. Mas, na hora que vendeu, eu fiquei triste. Porque eu queria o quadro, na época, eu pensava que tinha um apego muito aquilo tudo. Hoje, não. Mas, na época, eu fiquei muito emocionado, emocionadíssimo com tudo. Foi, tipo, final do Botafogo e Atlético Mineiro, e Botafogo com um a menos, ser campeão da Libertadores. Foi uma emoção parecida. Foi muito emocionante.
P/1 E como foi essa sua chegada ao Oscar?
R - Aí, já foi mais surreal ainda. Porque eu me lembro que eu estava em casa, já morava aqui, já era casado, pai da minha filha mais velha, claro. E aí, eu me lembro que acordei de manhã cedo, estava me arrumando para vir para cá trabalhar, e aí O Renato Machado, na época, que era apresentador do Bom Dia Brasil, ele fala: “E o Brasil está no Oscar, não é com o filme Lula, mas sim com o documentário Lixo Extraordinário.” Eu: “Caramba, estou no Oscar! Estamos no Oscar!” Mas nem imaginava assim, tipo: “Estamos no Oscar! Estamos no Oscar!” Legal. E aí, eu só senti a dimensão que isso era quando cheguei aqui. Porque quando cheguei aqui tinha uma fila de… Globo, O Dia, Rádio Tupi, Rádio não sei o quê. Estava toda a imprensa aqui me esperando. Aí, um susto, entendeu? Foi aí que a ficha caiu. A dimensão que isso era. E já comecei a entender que isso ia mudar a minha vida radicalmente, entendeu? Foi um mês de extrema mudança. E depois, claro, quando eu voltei do Oscar, mudou mais ainda.
P/1 Como é que foi chegar no Oscar?
R - Eu nunca fui uma pessoa muito de expectativas. Sabe, eu não gosto de ter ansiedade. Então, eu fiz uma viagem, sabendo que era um prêmio muito importante… Fui com todo mundo. Fui com o Vic, fui com o pessoal todo do filme. Ai, eu sabia que era algo que eu podia ganhar e não ganhar, mas que estava, assim… Que já tinha mudado a minha vida, como eu falei, só de estar ali no Oscar, né? Já senti, como eu falei, quando cheguei aqui o que tinha acontecido e o que foi acontecendo até o mês que antecedeu o Oscar. É agora, em janeiro, que saem os escolhidos, e o Oscar só foi no mês seguinte, em fevereiro, inclusive. O dia em que concluí o Oscar, era o dia do aniversário da minha filha, dia 27 de fevereiro de 2011, foi o dia que eu concorri ao Oscar. Então, eu saí daqui com muita tranquilidade. Como eu falei, primeiro que eu não queria colocar uma expectativa toda naquilo que a gente vinha fazendo, no ganhar o Oscar. Mas sabia que onde eu estava indo era o momento, não do Tião, mas de toda categoria. Tanto que uma das coisas que eu… Não vou dizer que eu exigi, porque eu não fiz nenhuma exigência. Mas eu dei uma entrevista e acabou acontecendo. Que eu falei: Pô, eu queria muito poder dividir esse momento com a minha comunidade. Então, foi criado um palco enorme aqui dentro, com um monte de cantores. A Natura ajudou, a Coca-Cola ajudou, na época. Aí, o Fantástico foi apresentado diretamente dentro da minha comunidade com o Oscar. Eu tive um link direto com a minha comunidade. Porque eu queria dividir muito esse momento. Acho que o que conseguiu me emocionar muito, foi isso. Eu queria sempre, a todo momento, saber que era eu ali sozinho, mas eu não queria me sentir, sabe, como um privilegiado que estava ali no Oscar, sozinho, vivenciando aquilo. Eu queria pegar e compartilhar tudo com a minha comunidade, até o último momento. E foi isso que eu fiz.
P/1 E como foi isso?
R - Ah, eu achei assim, meio… Um pouco… Emocionante muito mais pra eles do que pra mim.
Acho que o Oscar era muito mais importante no sentido do valor que o americano dá ao Oscar, do que eu consegui sentir, porque, como eu falei, eu não fui com muita expectativa, eu era o azarão que acabou não ganhando, mas que só de estar num Oscar eu já sabia que ali era meu grande Oscar. E faltou um pouco daquela emoção do que eu senti anos depois, por exemplo, que foi desfilar na Grande Rio, sabe? Na escola de samba. Porque é algo brasileiro, algo que você… Sabe, assim? Acho que por não falar a língua, por não ter tanta interatividade com aquele mundo, eu também me mantive muito calmo.
P/1 Como que foi esse convite pra Grande Rio? Foi a temática sobre…
R - Foi sobre Exu e aí falou sobre Dona Estamira, que é uma… O Samba Enredo falou sobre Exu. Exu é o orixá da transformação. Então, a gente fez o último carro dele, todo feito com material reciclável. Que a reciclagem é isso, é você pegar aquilo que não tem valor, que supostamente a sociedade não vê valor, e transformar em algo que pode ser reutilizado. Então, Exu é caminho, é transformação. Então, além de ela falar de Exu, ela falou também da Estamira. Estamira é uma catadora daqui, que foi o primeiro documentário a sair daqui, que chama Estamira, inclusive, o nome dela. Que fala sobre uma senhora catadora, um documentário do Marco Prato também, que foi muito bem premiado, dentro do Brasil e fora do Brasil, mas que não falava dos catadores como o Lixo Extraordinário. Ele falava da dona Estamira e de uma catadora muito inteligente, mas com problemas, para eles, na época, era problema mental. No meu caso, hoje, entendendo, de ser um cara espirituoso, do candomblé, eu só vejo que ela conversava com o Exu, que era o Exu dela, chamava… Eu esqueci agora. Ela chamava Trocadilho. “Fala Mageté.” Era o nome do samba enredo.
P/1 Você sabe cantar um trecho?
R - Sei tudo.
P/1 Canta pra gente.
R - A parte que mais me emocionou que eu ia falar. É: “Alorie, alorie, lalorie, é poesia na história ou no sertão, a voz do povo, os profetas das ruas, tantas Estamiras nesse chão…” Aí, que eu… Chega arrepiou. Foi quando eu vi a imagem dela e eu tive uma crise de choro. Porque a dona Estamira também foi uma pessoa muito incompreendida, sabe? Pela sociedade. E eu fiquei marcado naquilo ali também. Quando eu vi falar da Dona Estamira. Aí, essa parte do samba foi quando caiu a ficha, tipo, caramba, tá falando da gente. E aí, o samba nessa parte falava da Dona Estamira. Claro, que eu sei o samba todo, mas foi a parte que me conectou, digamos assim. Eu me lembro que quando eu fui pra pra viajar, eu falei: Eu tenho que desfilar, eu tenho que desfilar, eu tenho que desfilar, eu vou comprar uma fantasia, eu vou desfilar, eu vou ter que sair na Grande Rio, a Grande Rio vai ser campeã. Ficava falando isso pra todo mundo. Aí, eu viajei pro Macapá, quando eu tava lá em Macapá, eu recebi uma ligação. O rapaz falou: “Oi, Tião, meu nome é Vinícius, eu sou da Grande Rio.” Eu falei: Puta, já tem meu convite, eu vou desfilar. Aí, eles me convidaram para desfilar nesse carro e fazer esse carro. Então, a gente ajudou a confeccionar o carro e também sair no carro, que era o último carro. Que era um Exu feito de material reciclável. Foi isso.
P/1 E como é que você dá, depois desse tour, para conhecer essas experiências suas de viagem? Elas vão para os lugares? Você vai conhecer os processos?
R - Quando voltei do Oscar eu virei garoto propaganda da Coca-Cola, fui contratado pelo BID, eu passei a dar assessoria ao BID sobre fechamento de lixão. Então, eu viajei o mundo, eu viajei pra mais de 30 países. E todos os países que eu visitei, eu sempre queria conhecer o lixo e como o lixo era tratado. Conheci os catadores da Nicarágua. Fui pra vários lugares do mundo. Em todo lugar do mundo que eu fui, dos mais modernos tratamentos, até os mais pobres, eu fiz questão de conhecer. E comecei a entender que a minha missão, assim como Exu teve a sua missão, eu entendi que a minha missão é essa a missão. E aí, mais do que nunca, eu entendo que a minha missão é essa. Me sinto muito orgulhoso de ter essa missão. Orgulhoso não com aquele orgulho soberbo, mas um orgulho resiliente, sabe? Tipo, caramba, que missão maneira que o mundo me deu.
P/1 E me fala uma coisa, você vê diferença entre o tratamento de lixo, quer dizer, na América Latina, no tipo de lixo, de resíduo?
R - Acho que nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, infelizmente, o lixo ainda é visto como um problema, e não com o potencial que o resíduo tem. Por isso que eu não gosto muito da palavra lixo. O resíduo, ele tem um potencial muito grande. Seja o resíduo orgânico, no uso da compostagem, do seu reaproveitamento com adubo orgânico, seja o resíduo reciclável, que pode ser transformado em novo produto, entendeu? Eu acho que nos países desenvolvidos, eles já têm essa consciência, mas o lixo não deixa também de ser um problema nos países deles, já que também o consumo nesses países desenvolvidos é frenético. O quantitativo de resíduos também está ligado ao poder aquisitivo, então por mais que esses países tenham o desenvolvimento da cidadania ambiental bem desenvolvido, falta a capacidade de reciclagem da conta dos seus resíduos. Vou dar um exemplo simples. A Inglaterra, que foi um país que eu viajei. É um país que separa muito bem os seus materiais recicláveis, mas não tem indústria recicladora, nem uma mão de obra que trabalha com reciclagem como no Brasil, entendeu? Catador de material reciclável, ele é uma figura muito encontrada nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Tanto que eu falei para você, que eu fui contratado para dar assessoria ao Bit, então eu trabalhei na Nicarágua, eu trabalhei na Guiana Inglesa, no Belize, nos países Bolívia, na Colômbia, nos países em desenvolvimento, porque são países que ainda têm um tratamento do lixo muito rudimentar, digamos assim, que é os lixões a céu aberto. Isso não deixa de ser uma realidade hoje no Brasil. O Brasil ainda tem por desafio aí erradicar mais de 3 mil lixões existentes. O Brasil ainda tem também como desafio garantir a inclusão socioeconômica de mais de 1,5 milhão de catadores e catadoras de materiais recicláveis.
P/1 Você vê uma diferença entre a embalagem, que dizer, desse mundo capitalista e o mundo socialista?
R - Acho que a embalagem é embalagem em qualquer lugar, entendeu? Acho que a diferença não tem muito, porque você bebe uma Coca-Cola no país desenvolvido, capitalista, e você bebe uma Coca-Cola no país socialista. Nunca vi diferença, não sei porque.
P/1 Mas e o tipo de embalagem são outras?
R - Não, tudo igual. A única coisa que você vê num país mais desenvolvido, por exemplo, você compra uma embalagem e ali está escrito na própria embalagem quanto ela vale ao ela ser reciclada. Está ali escrito que ela tem por obrigação passar pela logística reversa. Isso nos países desenvolvidos. Nos países subdesenvolvidos, você só tem a embalagem lá, sem aquelas exigências que os países fazem. O que faz um país ser mais desenvolvido e menos desenvolvido quando se trata da questão da reciclagem é a questão da consciência ambiental que esse país tem enquanto uma sociedade formada, entendeu? E diferente para o outro, porque posso dizer com toda certeza daquilo tudo que a gente conversou aqui da nossa história. A minha mãe não me levou para trabalhar no lixo porque ela era ambientalista, a minha mãe levou a gente para trabalhar no lixo porque ela passava fome. E a reciclagem no Brasil, ela nasce da pobreza, exclusão social e econômica. Nos países desenvolvidos, ela nasce da educação ambiental e das políticas públicas. Essa é a maior diferença.
P/1 Conta do livro que você escreveu?
R - Ah, o livro foi muito para contar a minha história, porque acho que fiquei muito marcado com 20 anos, 30 anos, o cara do Oscar. E eu não nasci e fui pisar no tapete vermelho do Oscar. Eu tinha necessidade de contar a minha história. Eu queria contar a minha história, desde a infância, tudo, passando pela minha adolescência, até aquele exato momento que foi participar do Oscar. Então, eu queria contar isso. Contar a minha história, das minhas tias, da minha origem, entendeu? A minha origem como negro, a minha origem como pessoa catadora. Eu queria dar ênfase não mais ao Oscar, mas a história do Tião Santos, que pisou no tapete vermelho no Oscar.
P/1 Como que se relaciona a negritude? Tem alguma relação?
R - Claro que tem. O Brasil começa a tratar, por exemplo, a noção… O lixo é saneamento, poucas pessoas até hoje ainda percebem isso. Lixo é saneamento. Quando a gente fala de saneamento, a gente sempre linka esgoto e água. Mas, falando dessa palavra saneamento, quando é que o Brasil começa a ter a noção de saneamento? Em 1808, quando a família real chega no Brasil. Quando a família real chega no Brasil, as três maiores capitais eram Recife, Salvador, que era a capital na época, e Rio de Janeiro. A família real vem ser abrigar no Rio de Janeiro. Quando eles chegam no Rio de Janeiro, as ruas do grande centro que vocês acabaram de passar, São Cristóvão, aquelas ruas todinhas ali, era tudo… A Praça XV, onde eles chegam, no Cais do Valongo, era extremamente insalubre, um cheiro horrível. Não era por causa do lixo que a gente conhece hoje, mas o que era o lixo daquela época? Os dejetos humanos. Então, as pessoas jogavam literalmente cocô, xixi e resto de comida nas ruas. Então, as ruas além de serem mal cheirosas, geravam muito vetor, e doença. Então, Dom João VI, cria uma nova categoria de escravos, que vão ser chamados de catadores de dejetos, que depois vão ser apelidados de tigre. Esses tigres, tinham por obrigação, passar na casa das pessoas no fim da tarde e recolher os balaios feitos de madeira ou de argila e jogar nos rios e lagoas. Ainda é um hábito nosso achar que rio e lagoa é lugar de sujeira, e que eles vão levar embora, que a gente não vai ver mais. Outra coisa que tem ainda a ver, 79% dos catadores no Brasil são negros. Então, a questão da reciclagem no Brasil também é um reparo do racismo ambiental que a nossa sociedade tem e de um racismo estrutural da nossa sociedade. Não é por acaso que a maioria dos catadores são negros. É por história. E é uma questão da reciclagem, é uma reparação, reconhecer, valorizar e pagar os catadores pelo serviço prestado, não é um favor, é uma reparação histórica que vem desde o tempo da escravidão. É isso.
P/1 Tião, como você vê o papel da reciclagem nesse mundo em chamas, nessa crise social, ambiental, socioambiental que a gente passa?
R - O mundo produz mais de 400 bilhões de toneladas de resíduos, juntamente com a quantidade de bilhões de… Vamos falar popularmente, de lixo. Você tem bilhões de toneladas de metano, que é um dos gases de efeito estufa mais nocivos às mudanças climáticas. Então, a gente tem que pensar em uma solução que vai mudar esse conceito, que a gente tem de gerar um condição de lixo no mundo. Acho que o mundo não tem uma outra alternativa, hoje, plausível que não seja a reciclagem para diminuir esse condensável de resíduo e todo esse impacto que o lixo provoca. Não só na vida de quem trabalha e vive com ele, mas não na vida em sociedade, entendeu? É preciso repensar. Claro que eu tenho plena certeza, absoluta, que eu não quero que o mundo termine lotado de garrafa PET, para que eu me torne bilionário e barão da PET. Isso foge totalmente à questão da sustentabilidade. Eu não quero que o mundo termine lotado de plástico e de material reciclável para que eu me torne um bilionário da reciclagem. O dia que a gente for uma sociedade realmente sustentável, o lixo vai deixar de ser uma existência. Hoje o lixo existe porque a gente é uma sociedade não sustentável, quando se trata de sociedade avançada. A gente acha que é sustentável. É um caminho ainda muito longo a ser percorrido. Num mundo sustentável não vai existir a figura do catador, porque o catador também é uma injustiça social. A nossa sociedade, o catador e a catadora existem, pela injustiça social. Como eu falei, minha mãe… Não que eu não tenha orgulho e não que eu não ache a reciclagem extremamente importante, mas a reciclagem devia nascer da consciência ambiental das pessoas, e não da pobreza e da exclusão social e econômica, conforme ela é.
P/1 Tião, o que você achou da nossa entrevista, de ter a sua história no Museu da Pessoa?
R - Ah, eu acho que a gente é uma sociedade que às vezes não valoriza aqueles que precisam de valor, de reconhecimento. A gente é uma sociedade com uma memória muito curta e ter uma história contada por aqueles que vivem ou vivenciaram o crescimento da importância da reciclagem nesse país, é guardar na sua memória a importância que esses catadores tiveram no desenvolvimento social e econômico desse país, e ambiental. Então, acho que isso é de suma importância. Quem não sabe a sua própria história está fadado ao fracasso. Acho que todos os catadores têm que conhecer a sua própria história e os filhos dos catadores vão ter que reconhecer e entender a importância que os seus pais tiveram na sustentabilidade do país e do mundo.
P/1 E aí você vê a importância dessa história estar no museu da pessoa?
R - Aí a importância da história ser contada e estar no Museu da Pessoa.
P/1 Eu esqueci de fazer uma pergunta anterior a essa, que foi até o que teve a nossa reunião, eu, você e a Leila Novak, sobre essa política que vai ser implementada no Ministério do Meio Ambiente. Como é que você chegou lá?
R - Durante muito tempo, a reciclagem, como eu falei, ela só se deu pela pobreza e pela exclusão social e econômica. Não foi por fruto de política pública. Você vê uma política de incentivo à reciclagem, uma lei que vai incentivar as pessoas a investir na reciclagem, a investir num sistema mais humanizado, num sistema que dê qualidade de vida e qualidade de vida também ao exercer essa atividade, acho que é uma lei muito importante. Como eu falei, a reciclagem, ela sempre dependeu da pobreza e da exclusão social e econômica. Hoje a gente começa a entender que a reciclagem é tão importante ao ponto de ter uma lei de incentivo a ela. Mas não basta só ter o incentivo e investir melhor na reciclagem. É preciso reconhecer, valorizar o catador, a catadora de material reciclável. E valorizar esses catadores é reconhecer que eles encontram profissionais prestadores do serviço ambiental, de coleta seletiva de embalagem pós-consumo, muito importante, e acima de tudo, como diz minha irmã, é pagar todo dia cinco pelo serviço ambiental prestado. É preciso reconhecer e pagar os catadores pelo serviço ambiental, coisa que não é uma realidade do nosso país ainda.
P/1 Você foi chamado pela ministra ou vocês que reivindicaram? Como é que se deu?
R - Eu tenho uma ótima relação com a ministra, fui chamado pela ministra para conversar.
P/1 Obrigada.
R - De nada. Eu que agradeço!
P/1 Eu que agradeço.
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