Entrevista de José Antônio Pires de Carvalho – Tião Carvalho
Entrevistado por Jonas Samaúma
São Paulo, 25 de setembro de 2020
Projeto Conte Sua História – Vidas Negras
Entrevista PCSH_HV920
Transcrita por Selma Paiva
P1: Então, muito obrigado, Tião. A gente quer muito agradecer a sua presença.
R1: Muito obrigado, Jonas. Obrigado pelo convite.
P1: E aí, eu queria começar com uma pergunta, até pra... se você quiser até fechar os seus olhos, que eu queria perguntar qual que é a sua memória mais antiga nessa vida.
R1: É... se eu pensar rápido aqui, é... eu tinha o hábito, era criança, muito pequena e eu dormia no braço do meu pai. Eu dormia no braço do meu pai. Isso aí é a memória que eu mais lembro, assim, mais palpável. As outras memórias, elas vêm meio misturado com cores, sons, com coisas assim.
P1: E aí eu queria te perguntar qual que é a cidade e o ano que você nasceu.
R1: Eu nasci em 1955, na cidade de Cururupu, no Maranhão.
P1: E os seus pais e os seus avós são dessa cidade?
R1: Todos. Todos são dessa cidade. Todo mundo nasceu... é, pelo que eu sei, todos nós, né? A tradição da família é da cidade mesmo, eu não sei nem se tem algum, porque às vezes são cidades pequenas, às vezes tem povoados e tal, mas eu acho que não, todo mundo assim, que eu tenho, né, ciência, nasceu em Cururupu. Cururupu é da região ali dos antigos quilombos no Maranhão, né? Então, a gente... nós somos quilombolas, descente de quilombolas.
P1: Beleza. Eu aí queria pedir pra você contar um pouquinho a história dos seus avós, se você souber.
R1: Então, assim, muito eu conheci a minha vó, mãe do meu pai. Foi a única avó que eu conheci, né? Chamava Silvéstria. E ela, eu sei que ela era... nós chamamos de brincante, brincante. Hoje em dia, nós chamamos de mestra, né? Foi uma mestra de... dona de terreiro. Né? Terreiro de tambor de mina, de tambor de crioula, de Festa de São Benedito, São Sebastião. Né? Divino Espírito Santo, Macaxeira. E vinha... tinha todos esses... que era meio, assim, da geração dela, né, dessas mestras aí da geração dela, era muito comum aí essas matriarcas também, né, meio que liderando também essas questões, então, terreiro, como, às vezes, até o próprio vilarejo também, né, as comunidades, né, tem muito essa questão das matriarcas. Minha vó, mãe do meu pai, era... era uma espécie dessas matriarcas, né, guerreira aqui, líder. E os meus avós, eu não... outros, eu não tenho muita notícia, assim, de avós. Eu sei que eram quase todos músicos, né? Pai da minha mãe era músico, tocava cavaquinho, mas eu não conheci. Né? A mãe da minha mãe, eu não conheci.
P1: E você tem memória dessa sua avó?
R1: Tenho. Algumas memórias eu tenho, sim.
P1: O que você lembra, assim, de você em contato com ela?
R1: Que ela era muito... era muito cuidadora, né, ela criou o meu irmão mais velho. Né, criou quando era criança, ele morava com ela. Não sei exatamente por que, mas eu sei que ele criou isso. Ela tinha um pouco essa coisa, mais esse espírito de liderança mesmo, né, de coisa, de lavadeira, né? Ela tinha essa coisa de mulher simples do interior, do campo, comunidade, né?
P1: E ela era mãe da sua mãe ou do seu pai?
R1: Mãe do meu pai.
P1: Então, ela era mãe da sua mãe?
R1: Mãe do meu pai.
P1: Mãe do seu pai.
R1: Do meu pai. Feliciano.
P1: Feliciano.
R1: Feliciano. Feliciano PP, que era de Pires Pereira.
P1: E a sua mãe, qual que é o nome dela?
R1: Floriana.
P1: Floriana. E o que você sabe, assim, da história dos seus pais? Como eles se conheceram? Não sabe muito?
R1: Não sei muito. Mas não é tão difícil, entendeu? Que são lugares muito pequenos. Então, quer dizer, é capaz de nem eles mesmo lembrar de quando eles se conheceram, entendeu? Porque, capaz de ter se conhecido criança, jovem, adolescente. É lugar pequeno, né? Não é: “Ah, porque eu fiz uma viagem, encontrei, não sei o quê”. Não, não. Foi dali mesmo. Tudo na mesma tribo, né?
P1: E você foi criado por eles?
R1: Um tempo, até os meus oito anos de idade. Até os meus oito anos de idade, eu fui criado com eles, por meus pais, por meu pai e minha mãe. Aí quando... nos meus oito anos, eu fui morar com uma tia, que virou a minha mãe também. Então, eu tive duas mães. Até tenho foto delas, trouxe aí também.
P1: Ah, legal. A gente vai chegar lá, nessa mudança.
R1: Tá.
P1: Mas até os seus oito anos, o que você lembra da sua vida, da sua infância assim? Como é que era?
R1: Eu... na infância eu tinha atividades, né? A gente ajudava, até ali, a gente era pequeno, mas a gente ajudava nos trabalhos, tanto nos trabalhos caseiros, como da roça. Né? A gente ia na roça, né, meus pais plantavam... milho, arroz, feijão, melancia. Então, tinha muito uma... algo que eles trabalhavam assim: então vai plantar feijão, eles faziam a cova e um vinha com um tanto, vamos supor, três caroço de feijão, pegava aqueles três caroços e jogava na cova e botava de cova em cova. Aí o outro vinha atrás, ou então você mesmo, botava e ia cobrindo a cova, botava ali e cobria. Então, isso ia... ali já lembro dessas questões já de trabalhar, né, nesse tempo aí, desse tipo de trabalho. A gente... eu gostava muito de acompanhar meu pai, porque ele sempre ia pra lugares muito bons, né? Onde tinha música, festa, né? Ele era o cara que também, assim, eu diria que igual que eu também, um cara muito popular, né, era cantor também, né, todo mundo gostava dele. Era cantor, cantava muito, compunha e tal, um grande artista. E até eu gostava muito de andar com ele e tal, né? Até tinha lugares que ele ia, que ele falava, que meu pai era um pouco bravo também, né? Então, eu falava: “Pai, posso ir com o senhor?” “Vamos”. Ou então: “Não”. E aí eu não entendia, ficava meio sem saber se ele tinha falado “Não” ou “Vamos”. Eu ficava meio amoado, ele falava: “Vamos, rapaz!”. Aí eu entendia (risos) que ele tinha falado: “Vamos”. E às vezes, depois, tem dia que ele até brincava com isso, né? Falava meio assim, pra eu ficar meio sem saber se eu não ia, se era pra ir ou não. Falava: “Posso ir com você, papai? Posso ir com o senhor?” “Não”. Então não. “Pode ir?” “Vamos”. Aí eu ia. Lembro disso aí, né? Lembro que a gente... do futebol, né? A galera do futebol, claro, a do futebol. A gente tinha uma lagoa muito perto da nossa casa, uma ou duas lagoas, né, lagoas mesmo, de água doce. É muito... aquilo era muito importante. Era um lugar meio mágico, né? Encantado, parece uma coisa meio... tinha uma determinada encantaria ali, né, aquela beleza da água, da água doce, dos sons da mata, né? Da Amazônia, né? Então, toda essa força aí da água doce, da mata...
P1: Tem alguma história, assim, de encantaria?
R1: Ah, tinham várias, sim, com certeza. Agora eu não sei se eu vou lembrar. É... mas era um pouco isso aí. Tinha a questão da música, né? A musicaria também, que era muito importante. A música... muita música do Bumba-meu-boi, música do samba de crioula. A turma fazia muito roda de samba, choro, na calçada, né? Família de amigos, de músicos, até se reunia bem na calçada de minha casa final de semana, ali os mais velhos ficavam tocando, a gente ficava escutando e tal, muito essa herança musical. É... daí da dança, das manifestações e tal. Toda essa herança aí da infância, eu lembro.
P1: Quais que eram, assim, as manifestações de cultura? Bumba-meu-boi?
R1: Bumba-meu-boi, samba de crioula, lá em especial em... na nossa cidade tinha uma manifestação chamada Tamborinho, que era uma espécie de... era quase como se fosse um tambor de crioula, mas os tambores não grande, pequeno e tinha outras coisas também e tal e canto e as pessoas dançavam juntas. Não como tambor de crioula, que tinha roda grande e tal, dançava junto, casal, pares de pessoas dançando junto. Tinha esse Tamborinho também, que era muito comum. Tinham os cantadores ali, o meu pai era um dos cantadores de Tamborinho, da chamada vila, né? Uma vila. Vila de Cururupu. Tamborinho, é... Festa de São Gonçalo, Festa de Bambaê. Bambaê é quase tipo um cacuriá. Não sei se já ouviu falar, se você conhece o cacuriá, é uma dança de caixa também, né? É muito usado... o povo usa, muito comum, depois... como sons de caixa, muito comum usar depois do compromisso religioso, que é dos festejos do Divino Espírito Santo, né?
P1: Uhum. E como é que era assim, pra você, criança, estar acessando isso? Você... era o seu pai que te chamava?
R1: Não necessariamente, é que já estava lá. A coisa está muito próxima de você, fazia parte do seu dia a dia e você ia. Ou ia, ou então vinha até você e você gostava, né? Eu gostava, no caso. Então, quando não tinha, eu ia. Tanto que depois, quando eu mudei pra São Luís, que nós vamos chegar lá, mas que era outra família, que não tinha tanto envolvimento com essa coisa das tradições e eu fui meio que descobrir sozinho, em São Luís, esses lugares, porque eu já curtia, já levei, né? Da minha infância, já levei pra capital.
P1: Uhum. E você podia me explicar um pouquinho dessas tradições? As principais, o Bumba-meu-boi, o... qual que era a outra que você falou? Era tambor de crioula?
R1: Tambor de Crioula, samba de crioula, tamborinho.
P1: O que você sabe da história?
R1: O Bumba-meu-boi é o seguinte: o Bumba-meu-boi, é... ele tem uma história, assim, eu diria que bastante controvertida também, porque ele até acontece no Brasil inteiro, formato diferente, né, a gente com um foco muito grande no Maranhão. No Maranhão, é impressionante, porque ele é... tem muitos no estado inteiro, muitos na ilha e tem muitas pessoas envolvidas, né, o povo é uma cultura local, que muita gente se envolve, até de... ali é um... tem a ver com a parada, hoje em dia, de turismo, com o... eu acho que o mais importante que eu diria, o foco, é mais na questão da tradição. Mas ele já dialoga, nos dias de hoje, com outros sentimentos também, né? Parada do turismo, né, contexto religioso também, que vem junto. Mas colocando o Maranhão, ele tem toda uma... um contexto religioso também, né, ele vem ganhar um contexto religioso. A gente até que acredita que tem muito isso, né, muito a forma, né, a religião católica, ela, né, sempre teve essa parada de, às vezes, transformar coisas, né, virar como se fosse, às vezes, da própria religião, né, tem um outro sentido, aí copia, "tarará" e, quando você vê, então isso vira meio que tradição. Então, o Bumba-meu-boi do Maranhão, ele tem sentido do... de ser feito em louvor, em homenagem a São João, São João Batista. O Bumba-meu-boi, justamente, conta a história que São João Batista, quando, né, viveu aqui na Terra, já tinha umas visões... é... futurista, no sentido de cuidar do planeta, certo? Ele já tinha uma visão que, nos dias de hoje, a gente... que o mundo estaria com essas coisas, até meio degradado, né, pegando fogo, né, que precisava cuidar da terra, cuidar dos animais, cuidar não sei o que, quer dizer, os animais sendo queimados, como estão sendo. Então, ele já tinha toda essa visão e ele procurava trabalhar isso com os apóstolos dele, né? Ele... ele e Jesus Cristo, né, que eram parceiros, né, eles eram primos, né, os dois, o São João Batista e Jesus Cristo eram primos e eles dois terminaram se batizando também. Um batizou o outro. Eram grandes parceiros, ele era um grande aliado de Jesus Cristo. O cara que tinha isso. E ele tinha terras, na terra dele, ele criava animais, como se fosse de estimação, então tinha uma parada aí de meio Noé e tal. E ele tinha um boi. Ele tinha um boi que ele ganha, quando ele era criança. Ele ganha um boi, um bezerro. Esse bezerro foi crescendo com ele, tal, não sei o que, ele começa a cuidar desse bezerro. Uma hora eles descobriram que esse boi dançava, esse boi do São João dançava, então ele gostava do boi dançar. De vez em quando a turma ia, fazia um som: "Pois o boi dança". Ia lá, fazia um som e o boi dançava. Aí enfeitava o boi, botava pra dançar, não sei o que, batia palma, um entrava, dançava com o boi e tal e tinha coisa. Era aniversário de São João dia 24, todo ano tinha essa festa. E aí, o que acontece? Todo ano tinha essa festa e a galera já sabendo... é... migrava pra casa de São João por causa... pra essa Festa de São João, né e andava léguas, né? Era aniversário de São João daqui a dois dias: "Vamos sair daqui a pé, de jegue, não sei o que, nós vamos pra Festa de São João". Eu, quando... eu tive na Grécia faz uns dois... não, um pouco mais, faz quatro anos atrás, 2016 e aí, contando a história da parada do teatro grego, né, teatro antigo grego e ali eles contavam essa relação da importância do teatro, da arte para o ser humano. Que os caras, na época, viajavam também, né, pra ir no teatro, saíam, pegavam três dias viajando pra ir no teatro. E o teatro tinha essa parada de cura, de... sabe? Assistir o teatro três dias, que demorava um espetáculo, né, de uma noite, você dormia, acordava, o espetáculo continuava, não sei o quê. Tinha toda uma parada. Fazia... certa vez a gente faz festival, não sei o que, que a galera faz essa fila, né, Lollapalooza, não sei o que, aí você fica uns dois dias na fila pra... (risos) já tinha essa parada lá, mas em relação aos teatros, né? Então, às vezes, quando vem essas histórias, na minha cabeça vai ficando um pouco mais claro, né, porque muita das vezes essa história vem meio como fantasia, como um mito, algo que: "Pô, não aconteceu, mas não aconteceu as histórias do santo?". Você foi ali, orou pro santo, não sei o que. Então, quando você não sabe muito a história desse cara, desse santo, dessa santa, desse não sei o que, então você vai que vai, paga a sua promessa, é o suficiente. Mas esse santo, cada um tem uma história deles, né, antigamente, aí eles falavam, São João Batista, Santa Rita de Cássia, São Gonçalo do Amarante, desses santos aí oriundos da religião católica. Mas voltando a São João. Então, ele tinha esse boi, que dançava no aniversário dele. Certo é que, em determinado ano, teve a Festa de São João, o boi dançou. No outro dia, o santo que faz aniversário próximo a São João, que começa desde Santo Antônio até São Marçal, no final do mês: Santo Antônio, São Pedro, São Paulo, que faz aniversário no mesmo dia, São Felício, São Marçal, no final do mês, São Gonçalo, Santiago, tem um monte de santo nesse período. Um desses santos pede o boi emprestado pra São João. São João, a princípio, não quis emprestar o boizinho dele, mas o santo insistiu, insistiu, São João terminou cedendo e ele levou o boi. Só que, como todo dia tinha aniversário, eles foram de um... pra um lugar, da festa de um pro outro. Falou: "Não, meu aniversário é amanhã" "Pô, vamos levar o boi" "Não, eu tenho que devolver, que o boi é de São João" "Não, não sei o que, eu te ajudo". Aquele negócio ali (risos) e tal. Levaram o boi, até uma determinada hora, eles levando o boi, né, o boi de mão em mão, não sei o que, levaram o boi, uma hora faltou comida pra galera. Galera não sei o que, tomou uns dois vinhos, cadê a comida? Não tinha comida. Abateram o boi de São João, esse boi de são João, mataram e comeram o boi de São João. E aí foram... quando foram dar a resposta pra São João, ele... quando foi dar a resposta pra São João, ele tomou um susto, né, claro: "Pô, não sei o quê". A galera chegou, não falava nada. Ele falou: "Pô, cadê meu boi? Não sei o quê". Gaguejou. "Não, realmente, comeram o seu boi" "Vocês estão de brincadeira que vocês comeram o meu boi. Vocês estão loucos". Aí ficou puto, entrou, adentrou-se pra casa, ficou aborrecido, não sei o que, não falava com ninguém, não sei o quê. Deu uma determinada depressão nele. Então, o certo é que ele não comia, não bebia, nem nada, ele veio a óbito por causa desse boi que ele perdeu, São João Batista, né? E aí a turma fala que, então, pra... sempre pra agradar São João, no dia de São João, faz sempre, os devotos de São João, a qual eu me incluo, né, a gente faz boi, sempre procurando o boi mais bonito, com pessoas mais bonita, com boa comida, com boa música, com boa dança, né, com bons bordados, né, todo esse conceito de arte, vem nesse sentido, sempre procurando fazer algo muito belo, acreditando que o espírito de São João estaria, de repente, entre nós e vim receber essa graça, que seria o boi ou alguma coisa relacionada ao boi. Eu posso fazer uma música pra São João. Mas isso... que eu esqueci de falar, isso tem a ver com a promessa, sempre existe uma promessa antes. Eu faço uma promessa pra São João. No que eu alcanço a graça, eu ofereço alguma coisa pra ele, relacionado ao boi. Eu posso tanto pegar um boi boneco, juntar pessoas e fazer a festa pra São João, eu posso... você faz um boi, eu posso te dar um couro de boi. Se, por acaso, eu fizer essa promessa, não sei o que e eu alcançar a graça que eu desejo, você tem um grupo de Bumba-meu-boi, eu falo: "Puta, eu vou dar um couro de boi novo pro boi de... como é, que eu esqueci o nome agora. Jonas. Vou dar um couro de boi novo pro boi de Jonas". Né? Vou comprar... Quanto custa um couro de boi? Um mil, dois mil reais. Aí eu vou lá, mando alguém, encomenda um couro, falo: "Ó, esse aqui é presente meu, Jonas". Tu fala: "Porra, Tião, que maravilha". Digo: "Não, isso aqui é meu. São João... São João me ajudou, meu filho sarou, estava muito doente, não sei o quê. Eu prometi pra São João que eu faria isso e agora eu estou fazendo" "Pô, que maravilha e tal". E assim vai. Então dizer: "Ó Jonas, o dinheiro da comida do seu batalhão, eu dou". Certo? Tu tem um batalhão, sua comida, sua galera, não sei o que, eu vou dar, não sei o que, daí eu falo: "Ó, eu sou fazendeiro, não sei o que, eu vou te dar um boi pra você matar, pra dar comida pra tua turma durante o festejo". Então tudo são coisas, promessas que a turma vem. Eu posso dizer assim: "Não, eu vou fazer uma roupa e vou brincar no seu boi". Ou então eu posso chegar pra um filho meu, de repente está doente, ou passar na escola, no vestibular: "Ah, se você passar, eu te dou uma roupa legal, mas que tu vai dançar no boi de Jonas". (risos) Então, N motivos. Daí a relação do Bumba-meu-boi. Mas é isso aí, gente. Acredito que isso aí já foi algo relacionado com a religião católica porque, na verdade, o Bumba-meu-boi, é muito antiga essa questão e cada civilização lida de uma forma diferente com essa questão do homem, o homem e o boi, né, nós e a relação do animal. Esse animal, que é muito forte, que traz muitas maravilhas para o homem, desde a relação da comida, né, que tudo no boi se aproveita, quase tudo do boi se come, né, come coisa, até as fezes, do rabo ao chifre, tudo do boi é aproveitável. Então, o homem tem uma admiração muito grande por esse animal, né, em todo lugar do mundo quase, né? Mesmo na Índia, que não se come carne, mas tem uma relação com o boi também que é especial, né, tem uma admiração. Então, todos os lugares e cada civilização resolve essa questão de uma forma. Tanto nós, que fazemos essa forma: cantar, não sei o que, como você vai na Península Ibérica, ali, Espanha, não sei o que, você vai ver a tourada, né? Vai em Santa Catarina, você vai ver a Farra do Boi. Você vai em Barretos, tem a Festa do Peão, ou por aí. Agora você vai ver uma outra relação também, mas é a mesma relação do homem e o boi, né? O homem e o animal. Cada um vai resolver de uma forma.
P1: Só um segundo, Tião. Pode continuar.
R1: Não, o que eu ia dizendo assim é que, de uma certa forma, essa questão é algo que nós, seres humanos, temos em relação ao animal Bumba... ao animal, o boi e daí surge essa questão do... nós queremos, de uma certa forma, tá ou louvando esse animal, né? É importante se frisar: cada civilização faz de uma forma. Por exemplo: tem um lugar da Espanha que chama San Martín, que eles põem o boi na rua (risos) e o boi sai correndo atrás da galera e, às vezes, né, machuca, né, os cara, mata, né? Então tem essa coisa do... alguns precisam disso aí realmente, dessa adrenalina, né, do coisa, da morte propriamente dita, do sangue, os toureiros, né, do sangue, o que fura o boi, não sei o que e o povo: "Óóó, maravilha, não sei o quê". Isso aqui, aqui é um teatro disso aí, né? Então, esse povo aqui que, a princípio, seria um povo mais primitivo e tal, não sei o que, usa toda uma arte, pra resolver essa questão com o animal. Né? E esse outro, que podiam ser mais evoluídos, né, que o terceiro mundo, continua usando essa questão, né, do coisa, ou de matar ou de morrer, né, isso é raro. Hoje em dia você vê... mas ainda tem tourada, parece, não sei, mas ainda tem tourada. Cara diz: “Ah, o toureiro morreu, não sei o quê”. Mas antigamente morria, né? Em acidente, os caras morriam.
P1: E por que é... são três festas no ano, né?
R1: Mas, ao mesmo tempo, os caras não morrem mais no... no coisa, mutilado nas touradas, mas na Fórmula 1, né, acontece ainda, nos dias de hoje, no boxe, no Muay Thai, né, pessoas ainda se sangram, né, batem. Acreditam que, né, que é glória, não sei o que, você apanhar e quando você está com os seus sessenta anos, luta boxe, não sei o que, você já está... a cabeça não segura mais as coisas, né, não segura, não sei se... não segura mais, muita porrada que você pegou, né? Então, o ser humano é muito... muito complexo nessa questão do... como lidar com essas questões, como é que você vai lidar com a arte, com o coisa, com... com o lúdico, né, como você vai transformar isso, esse gostoso, essa vivência, a vida, o espírito, o amor, né, o afeto. Tudo por aí.
P1: Que massa. E aí eram três festas que aconteciam durante o ano, do boi?
R1: Pra contar. O negócio é o seguinte: não são três festas no Maranhão. Lá no Maranhão tem duas festas que eles fazem, os grupos: o Batizado do Boi, que é justamente quando vai entregar a oferenda pra São João, né, o boi, ali, batizado o boi, aí você começa a brincar o boi, tá brincando pra São João, o batizado. Geralmente é ali no dia vinte e três pra vinte e quatro, que é o dia de São João, essa é a grande festa. E a Morte do Boi, quando você fecha o ciclo, que cada grupo não tem muito data, qualquer data é data pro grupo fechar, fazer a morte do boi, vão ter uma festa assim. O que aconteceu pra nós aqui em São Paulo, que a nossa... o nosso primeiro ensaio, que é no sábado de aleluia, já virou uma festa. Mas aqui em São Paulo, outros lugares não, outros lugares não é festa. Aqui em São Paulo terminou virando e coisa e a gente foi fazendo: "Ah, sábado de aleluia, vamos fazer o primeiro ensaio" "Ah, ensaio não sei o quê". Já vem gente virando festa, aí virou festa. A gente achou: "Beleza, então é a primeira festa, primeiro ensaio". E aí deve ter uma razão também. Primeiro ensaio: sábado de aleluia. O que acontece é o seguinte... é... vide esse contexto religioso da Quaresma, né e o sincretismo religioso também aí junto, então o que acontece? É... respeitando a quarentena da religião católica, na realidade, aí sim, aí isso é uma quarentena. O que significa a palavra quarentena? Quarentena são quarenta dias de jejum. "Estou em quarentena: eu estou recluso quarenta dias". Se não é quarenta, não é quarentena, certo? É trintena, é dezena. Quarentena é quando são quarenta dias e vem justamente que é esses quarenta dias do Carnaval, da quarta-feira de cinzas, até a sexta-feira santa. São quarenta dias, por isso a palavra "quarentena" vem daí. Depois nego diz: "Ah, quarentena, quarentena". Não, não é quarentena, é outra coisa. Mas a gente entende, mas não é quarentena. Quarentena são quarenta, né e vem justamente daí. Então tem esse dia, esse tempo, que é esse tempo, que é o tempo da Quaresma, onde que é o tempo da purificação, onde você vai... porque o que acontece? Vou um pouquinho antes, até. Por causa dessa quarentena, que nós, antigamente... nós não, mas nós também, né, mas isso vem de antes, né, os povos antigos - eu vou expressar dessa forma - tinham quarenta dias pra estar em jejum, onde você ia abrir mão das festas, de comer, comer carne, comer carne vermelha, comer peixe, comer fruto do mar, comer carne branca. Você vai ficar mais orando, abdicar de tudo, de festa, de sexo. Tudo isso vai abdicando durante esses quarenta dias, certo? Pra você purificar, certo? Purificar. O que aconteceu? Sabendo que você ia ficar quarenta dias, nós íamos ficar quarenta dias, a turma inventou um negócio chamado Carnaval, certo? "Como eu vou ficar purificando, então eu aproveito, tiro três dias pra eu soltar a franga". Certo?
P1: É mesmo?
R1: É, isso aí. O carnaval vem justamente pra isso. Carnaval significa excesso de carne e excesso de carne, tanto a comilança da carne, como a carnal também, o sexo, a exuberância. Os gregos tinham esse negócio: "Pô, cheio de homem, mulher, põe todo mundo na mesma bacia e vamos que vamos”. Né? Então era orgia, né? Então. E o carnaval é um pouco isso. Aí, a relação do carnaval hoje também, que tem essa relação com a nudez, né? Antigamente era coisa, era pouca roupa no carnaval, porque justamente, o carnaval era justamente... e aí o carnaval foi usado também com a questão do protesto, né? Eu venho pra protestar, eu tiro a roupa, eu ponho não sei o que, eu ponho a bunda pra fora, eu encho a cara, né? O marido dá perdido na mulher, a mulher dá perdido no marido, namorados, ex-namorados. E esse é o carnaval. Eu posso, no carnaval, me travestir, eu me visto de mulher no carnaval, porque, né, eu vou querer fazer tudo o que eu não consigo fazer nos outros dias, então eu vou aproveitar o carnaval pra eu ir no excesso. Muita gente fala: "Ah, eu não gosto de carnaval". Eu falo: "Calma. Você não conhece carnaval, certo? Você não conhece, precisa conhecer, saber do que você está falando”. O que é o carnaval? Carnaval é pra isso, entendeu? Pra... pra excesso. Aí, depois, você vai purificar.
P1: E Tião...
R1: E aí a relação do coisa: então, como você purificou, então o que você faz no sábado de aleluia? Todo mundo pode fazer uma grande festa. Todo mundo fazia. Inclusive, há um tempo, quarenta, cinquenta anos atrás, existia - não, uns quarenta? Mais do que isso - inclusive, um baile que era feito no sábado de aleluia, que era um dia de carnaval, uma noite de carnaval, que era esse sábado de aleluia, entendeu? Porque você veio jejuando, então você vai fazer, depois você está purificado, equilibrado e tal, não sei o que, inclusive eu me destravesti e estou ali como homem cidadão normal e tal. E aí... daí a razão que nós fazemos... porque nós fazemos a primeira festa no sábado de aleluia, que é depois da Quaresma.
P1: Nossa! E esse é o único lugar do Brasil que tem isso?
R1: É. Exceto outros que foram inspirados na gente, né, o boi... tem o filho meu, Noel, que ele tem um boi, mora lá em Goiânia e a mãe dele mora em Pirenópolis, ele tem um aparato, tem um grupo de Bumba-meu-boi lá. Tem um pessoal em Londrina, no Paraná, que tem um grupo de Bumba-meu-boi também, que foi... eles se inspiraram na gente. Pessoal de Maringá também tem um grupo de Bumba-meu-boi, também inspirado no nosso Bumba-meu-boi. Então, eles seguem, um pouco, essa linhagem nossa. Mas o comum mesmo não tem, é uma coisa mais nossa aí, de fazer essa festa no sábado de aleluia. E muito, muitas vezes essa turma também, que vem de longe, vem... que mora, não são inspirados, também vêm pra nossa festa, né? Eles são aqui também.
P1: E você lembra alguns episódios seus nessa festa? O que você lembra de memória sua, dentro das festas do Bumba-meu-boi?
R1: Aqui em São Paulo?
P1: Não. Lá no...
R1: Ah, no Maranhão?
P1: No Maranhão.
R1: Rapaz, tem bastante coisa. Eu me lembro de uma vez o... eu lembro que eu cruzei... estava eu... eu tinha um grande amigo lá, chama Alexandre. Alexandre. A gente é amigo desde moleque e a gente... nós dois nos chamamos de Zé, né? Zé, Zé, Zé. E às vezes ele estava descendo, tinha um lugar lá no __ (33:37) que chamava Igreja de São Pedro. Igreja de São Pedro, no dia de São Pedro, vai um monte de grupo de Bumba-meu-boi lá pra Igreja de São Pedro, que vão pagar promessa também, né? E aí vão na São Pedro, não sei o quê. Então a gente estava ali... eu costumo ir pra lá... assim, eu gosto de amanhecer lá, eu gosto de dormir. Às vezes eu estou na festa, não sei que, eu vou dormir mais ou menos lá pela meia-noite, aí quando chega umas quatro da manhã, eu já acordo com não sei o que ali, tomo um café, vou tomar um café na festa, chega umas quatro e meia, cinco horas, eu estou chegando, que eu gosto de ver os bois ali e gosto de ver o amanhecer, né, os bois e o sol chegando. Mas isso aí já era mais ou menos umas dez horas, pra meio dia. Aí tinha dois senhores brincando e aí esse meu amigo chamou: "Zé, vem cá, vem cá, Zé, vem cá, vem cá, vem cá. Olha eles dois aqui ó. Negócio é o seguinte: o boi deles é só eles dois. A brincadeira deles é só eles dois, não tem...". Eles falaram pra nós, dois senhores, falaram assim: "É o seguinte: uma hora eu sou o boi e ele é o amo, outra hora ele é o amo e eu, o boi. Nossa brincadeira é só nós dois, não tem...". E você encontra grupo de mil pessoas, não sei o que e tal. Então, é muito louco, né, porque muita das vezes a turma, os grupos de Bumba-meu-boi têm... assim, tem grupo de duzentos anos, né, ou seja, de cinquenta, sessenta, setenta anos, duzentos anos, a perder de vista, os grupos lá. Tem mais novos também, mas tem uns grupos muito antigos. Nesse meio tempo, existe altos e baixos. Tem grupo que, às vezes, pode até terminar, ou você imaginar que terminou por um motivo ou por outro, um líder não sei o que, morreu, ficou dois anos. Mas é a ideia meio que da comunidade, entendeu? Esse... é quase como um time de futebol aqui, né, só que lá são muitos. Quase um time de futebol. Então tem a comunidade, assim, Palmeiras, aqui, a região da Barra Funda; Corinthians, Itaquera, né? São Paulo, região aqui meio Morumbi, Butantã; Santos, baixada, né, tem uma galera que é meio desse gueto. Então, se eu sou do boi de Maracanã, Maracanã é a região aqui do Maracanã. Madre de Deus, boi do Madre de Deus, né? Maioba, galera da Maioba, né? Pindoba, região da Pindoba, boi da Pindoba, então é aquele ali. Então... e tem aquela parada meio de torcida, então muitos deles se provocam, muitos deles falam assim: "Não, esse boi não sei o quê”. Então, às vezes, o boi enfraquece, aí tem muito a parada do... administrativa, né, às vezes. É a mesma coisa do futebol: tem hora que quase que é (risos) rebaixado, né, que um ou outro não administrou legal ali, aí vai ficando sem, uns daqui mudam, migram pro outro, os cantadores. Hoje em dia os cantadores têm uma coisa assim, o cara é meio contratado, um boi contrata o cantador, né, tem uma coisa mais assim. Antigamente, era aquela coisa meio Pelé, né, você é desse time e pronto, acabou, não tem negócio de: "Ah, estou aqui seis meses aqui". Ali acho que é até um pouco mais nesse sentido, né, os grupos de Bumba-meu-boi. E...
P1: E tinha alguns mestres, mais, que você tinha contato, assim?
R1: Tinha. Tinha. Não, tinha e tem, né? É, tem, tem sim. Tinha sim. Ali teve um cara, em São Luís, eram chamados dois mestres, assim: Marciano... hum... Marciano e o Tabaco.
P1: Tabaco?
R1: Tabaco. Tabaco, esse cara, era um líder comunitário lá do Madre de Deus. Ele era um líder comunitário lá do bairro do Madre de Deus e esse cara, ele inspirou... eu não vou lembrar o nome da novela, mas se vocês perguntarem pra uma geração um pouco mais velha que vocês, mãe, talvez assim, um pouco mais velha, que tinha um cara chamado Tabaco, que ele era o motorista e esse cara era muito mulherengo. Os dois, né? Esse Tabaco da novela foi inspirado nesse Tabaco, nosso amigo, que era muito mulherengo, né, que hoje já tem um pouco essa fama dos cantadores de boi têm um monte de mulher, não sei o que e tal, né, os caras meio faraós. E esse Tabaco era um cara muito que tinha essa coisa e ele inspirou. E ele foi o seguinte: existe um grupo no Maranhão, que é um grupo para-folclórico, chamado Grupo Cazumbá. Eu trabalhei desse grupo um tempo, Tabaco também, a gente viajou junto, nós... a gente viajava... eu morava no Maranhão ainda, a gente viajava junto pra cá, pra São Paulo, todo o lado do Brasil, pra apresentar, né, pra Brasília, pra cá, pro sul. Eu vim pra cá, esse Tabaco já era um senhor mais velho do que nós, era um pouco o conselheiro da gente, foram os caras que me receberam nesse Bairro da Madre de Deus. Porque eu fui... eu vim pro Maranhão, quando eu saí da minha cidade, eu fico meio órfão em São Luís, porque eu não conhecia ninguém, principalmente alguém relacionado com a cultura tradicional, a cultura popular, eu não conhecia ninguém. Eu fui me achar. E aí esses caras que me receberam, né, que falaram: "Pô, esse cara aí... esse neguinho aí... esse cara, ele canta. Pô, esse cara, não sei o que e tal". E me acolheram, né? E esse Marciano, que já é falecido, era um grande cantador de Bumba-meu-boi, do boi da Madre de Deus e ele foi um dos caras que me incentivou a cantar Bumba-meu-boi. Eu era muito novo, me incentivou a cantar. Ele me deu o maracá dele. Uma vez eu fui lá na casa dele, ele me deu da seguinte forma: ele estava meio assim, já com bastante idade, já assim: "Ah, meu filho, eu não canto mais, eu não quero mais. Já estou aborrecido com o boi, com não sei quem. Não querem fazer do meu jeito e tal e coisa". Ele já estava meio assim, ele falou: "Pô, leva esse macará pra você". Aí eu falei... fiquei assim, que o maracá é um símbolo muito forte. Eu, naquele momento, falei: "Não. Não, não vou levar. Deixa aqui, depois eu levo". Foi na casa dele, né? Ele falou: "Vou dar o maracá pra você, que você vai cantar Bumba-meu-boi lá em São Paulo e tal, não sei o quê”. Eu falei: "Não, não vou levar o seu maracá. Deixa o seu maracá aí, e... você ainda vai cantar e tal". Na realidade, eu meio assim e tal e viajei pra cá, São Paulo. Nesse meio tempo ele faleceu, né, aí eu não trouxe o maracá dele, depois foi pra família. Mas foi um dos caras que me incentivou, né, em falar assim: "Não, você... você canta, você é um puta cantor. Você vai cantar Bumba-meu-boi". Porque não é só o fato de você ser cantor, você tem que ter um estilo, um sotaque, entendeu? De... ali, uma pegada pra cantar boi, né, não é pra todo mundo, né, que canta boi, né, tem uma coisa de que vem não sei de onde, de sangue, de cultura, do chão, né? E...
P1: Mas você estava sempre cantando? Desde menininho, assim, você já se interessava?
R1: Não. Eu cantava, cantava, mas depois que eu fui mais colando nos bois, e aí, de vez em quando, eu chegava lá e pegava um maracá e cantava uma toada ou outra e tal, ou então a gente estava batucando e cantava, cantava, pô, sempre cantei,não sei o que e ele achou, como eu já estava em São Paulo montando grupo e queria montar um grupo de Bumba-meu-boi, ele foi o cara que me incentivou. Ele disse assim: "Não, não, você canta aí. Você é um grande cantador. Você vai ser um grande cantador. Pode... pode ir em frente e tal". Foi um dos caras que me incentivou quanto... enquanto cantador. Porque meu pai também era cantador. Como eu não... eu vivi com o meu pai até os oito anos, que aí os meus mestres foram esses caras já, de São Luís.
P1: Mais velhos?
R1: Mais velho. Ele, o mestre Humberto, de Maracanã, que faleceu há pouco tempo também, Pai Euclides que é babalorixá.... Fui conhecendo esses mestres aí. O Patativa, Mãe Cabeca. É umas mestras e mestres que foram meio que, de uma certa forma, apadrinhando a gente, a mim, né?
P1: Nossa, eu vou querer que você fale um pouco mais deles, mas vai... daqui a pouco. Eu queria que você contasse um pouco pra mim como era a sua casa, como é que era a dinâmica. Você tinha quantos irmãos?
R1: Minha casa lá em Cururupu. Minha casa? Eu tinha... nós somos em sete, né? Nós temos... na realidade, sou eu, duas irmãs e dois irmãos, nós somos cinco e dois irmão que nós perdemos já, dois irmãos mais velhos, os dois mais velho, que era o Dário e o Bráulio. É... o Dário faleceu pescando, ele estava pescando, ele e um camarada, eles jogaram a tarrafa, a rede e a rede engatou e aí ele mergulhou pra tirar a rede e aí não voltou, morreu afogado, esse mais velho.
P1: Nossa. E você era criança ainda?
R1: Não, já estava grande já, já era rapaz. Até eu lembro a última vez que eu... a última vez não, eu lembro a última vez que a gente se viu, né? A gente se viu... eu lembro, a última vez que a gente se viu, eu estava justamente nesse Bairro do João Paulo, vestido de Caboclo de Pena, que é um personagem do Bumba-meu-boi, né, a gente se viu, eu estava com... eu e a Luciana, que era a minha namorada na época, que é mãe do meu filho mais novo, mãe do Yuri, a gente estava lá e aí a gente cruzou ali, naquela circunstância e apresentei eles dois: "Ô, meu irmão" "Pô, seu irmão". A gente se cruzou ali também. E foi a última vez que a gente se encontrou. E o Bráulio... o Bráulio, que é o outro mais novo, também foi... hepatite, morreu de hepatite, o mais novo, o Bráulio. E aí tem esses dois que era, tal, o mais velho era criado com a minha avó. Eu convivia mais com o Bráulio e tal, eu, o Bráulio e Ana Maria, que é a minha irmã, que a gente é mais velho, o Bráulio, ela e eu, Ana Maria mais velha, depois da Ana Maria tem o Silvestre... é o Silvestre, a Isabel, Ana Isabel, e o Guajante, que é o mais novo. Convivi com esses aí também. O Guajante nasceu um pouquinho antes de eu viajar, né, pra São Luís. Eu o conhecia pouco, né, conheci, assim, pouco, que ele era pequeno e eu fui... não, não, na verdade, nada, não foi nada disso. Até essa última vez eu estava conversando com mamãe, perguntei pra ela e ela falou: "Não, não, você já tinha ido pra São Luís, quando ele nasceu". Aí eu até falei pra ela assim: "É, vai ver que, quando eu fui pra São Luís, vocês também sentiram falta de botar alguém no lugar, né?". Ela riu, falou: "É, pode ser". Aí o meu irmão... nasceu o meu irmão mais novo.
P1: Nossa!
R1: Que eu fui com oito anos, né? E aí tinha a Bel e depois foi ele. E aí foi assim, como é que eu fui pra São Luís? Essa minha tia, que virou minha mãe, a Dona Edite - Dona Floriana e Dona Edite, irmãs da minha mãe - morava em São Luís e foi à Cururupu visitar as parentes, a minha mãe e tal. Lá em casa, ela me conheceu, eu tinha oito anos, falou assim: "Pô, não sei o quê". José Antônio o meu nome, né? Como me chamavam também. Tião veio depois. Aí ela: "Ah, ‘seu’ Antônio, não sei o que, pô, mas esse moleque é tal, lelele, que moleque bacana e tal. Pô, você não quer ir pra São Luís comigo, pra cidade, pra estudar, não sei o que, virar doutor, tal, essas coisas?". Eu falei: "Ah, é, eu quero. Eu quero, quero, quero". O negócio, que virou brincadeira, virou verdade. Meu pai, a princípio, ficou recuado, não queria muito que eu fosse, mas falou: "Pô, não sei o que e tal, é minha irmã e tal, eu sei que ela vai criar os filhos dela e, pô, a gente quer ir, vai pro mundo, nós estamos aqui no interior e tal, você é o único que quer ir pra fora e tal, ganhar o mundo, deixa ele ir". Tal, tal, tal. Eu lembro que foi a única vez que eu vi o meu pai chorar. É, foi a única vez que eu vi o meu pai chorar, foi quando eu fui embora. E aí eu fui pra São Luís. E daí que foi essa minha ida pra casa dela, pra onde ela ia. Essa minha tia Edite morava... ela era empregada doméstica de uma casa, que era o seguinte: tinha um casal, esse casal tinha três filhos, ela foi pra cuidar das crianças. Só que depois esse casal separou, ela continuou cuidando das crianças com o pai, ela ficou na casa cuidando das crianças com o pai. Aí resolveu... se envolveu tanto com as crianças, depois se envolveu com ele, eles casaram, os dois, no final da vida e, nesse meio tempo, o cara ainda era jovem, eu também, criança, nesse tempo, ela foi visitar, falou: "Pô, não sei o quê”. Falou com ele, falou: "Pô, eu quero levar o meu sobrinho e tal, não sei quê". Ele falou: "Porra, traz”. “Pô, um puta moleque massa, não sei o que e tal, quero levar". Ele falou: "Não, traz. Pô, beleza, traz" "Tudo bem?" "Tudo bem". Me levou pra São Luís, fui criado por eles. Que era um cara... na realidade, ele era português, né, a família dele era quase toda brasileira, mas ele, como era o irmão mais velho, nasceu em Portugal, na Ilha da Madeira, então ele era português, né? Filho de português, os outros irmãos vieram pro Maranhão, era nascido no Maranhão. Ele vem da Ilha da Madeira, porque era um português.
P1: Pois então, aí você veio morar com a sua tia em São Luís. E o que mudou, então, da cidade que você nasceu pra São Luís? O que você sentiu que mudou?
R1: É, muda muito, muda muito. Muda muito, porque eu, em São Luís, eu demorei pra me aproximar da cultura de novo, né? Morei ali acho que uns dois anos, ou mais, três anos, não sei o que, cinco anos. Aí você vai se aproximando devagar, você olha um grupo de Bumba-meu-boi, grupo de tambor de crioula, você fala: "Poxa, aqui parece com lá da minha terra, não sei o que, não sei o que e tal". Aí fui, fui, até que depois eu fui começando a sair. Eu escutava o som dos grupos na cidade, escutava, depois fui ficando mais adolescente, eu já saía sozinho, então eu fui meio que me enturmando. Mas era uma outra coisa, né? Outra coisa, outra parada, que era também uma outra classe social, né? Eu saí de uma classe social de uma galera mais... completamente... é... ali, do... mais simples, né e aí você vai pra uma classe social, né, eu vou pra um bairro de classe média, né, em São Luís. Algum tempo me senti um pouco, às vezes, isolado, né, um lugar onde tinha poucos negros, né? Eu, um garoto negro, mas não tinha muito garoto negro ali. Então, tinha uma parada meio assim, né, a turma meio que gostava de mim, mas era... tinha uma diferença muito clara, né? Eu sempre fui um cara, de uma certa forma, bem-querido, bem... mas era um pouco muito isso: pra que, né?
P1: Você chegou a passar até algum momento de discriminação, assim?
R1: Ah, eu acho que sim. Mas antigamente... é... tinha coisa que você não... você nem observava, tanto coisas você observava e algumas coisas que foram meio doídas assim, né? Eu lembro que tinha uma prima minha, mas ela era prima assim, eu era filho de criação do tio dela. Filho de criação do tio dela. Filho de criação do tio dela, quase que ela me tinha como filho e filho da empregada, ou ex-empregada, dele, que era negra também, então tinha essa coisa. Eu lembro que ela super gostava de mim, né, eu era moleque, não sei, ela gostava de mim, de brincar, não sei o quê. Uma hora ela estava numa situação com outras amigas, e aí, não sei o que, eu passei, “pá”, todo alegre, que ela gostava de mim, não sei o que, ela fez uma brincadeira comigo assim, chegou: "Ah, e aí, cinzento? Não sei o quê". Ela me chamou. Pô, aí eu fiquei triste pra caramba. Falei: "Pô… de mim pra caralho, ela, não sei o que, na frente da irmã dela". Depois a nossa relação ficou meio estreitada. Mas eu lembro dessa situação, né? E aí ela também, depois, se assustou, ela falou: "Pô, que merda que eu fiz? Não sei o quê". Né, de N situações assim. Essa eu lembro, marcante. É... Tinha essa coisa, era muito comum - assim ((risos)), eu lembro - você tá aqui, né, se eu tiver aqui, eu vou, chego aqui pra comprar um negócio. Aí você chega assim, você, pequeno aqui, aí chega alguém aqui desse tamanho, está aqui, aí o cara chega pra você: "Pô, tudo bom, doutor? O que o senhor quer? Tal, não sei o quê”. Aí, pô, te atende, você chegou depois, aí chega você: "Ô, tudo bem com você? Não sei o quê". Te atende. Aí depois que ele atendeu todo mundo, ele chega pra você: "E você, neguinho, o que você quer?". Depois de atender todo mundo, entendeu? Quer dizer que você fala assim: "Pô". É muito louco, né, você vai trabalhando e você é criança, você nem... parece que está certo aquilo, né, parece que é normal, né? Então, tinha algumas coisas que parecia que era meio normal, algumas coisas, ou brincadeira, ou não sei o que, tal. Até você trabalhar isso, digerir isso e tal, demora um tempo pra você digerir e entender, né, que “pá” como é que você vai elaborar isso com as pessoas, né, como é que você vai lidar, como é que você vai trabalhar a relação do limite com as pessoas, né?
P1: Uhum. E você disse que você era descendente de quilombola, assim. Isso era falado na sua família, da cultura negra?
R1: Não, não, não, não. Isso é coisa bem mais recente. Isso é mais a história, a leitura da história, né, que nós fazemos hoje. Mas isso não... que eu acho que nem eu e mesmo as pessoas lá, eles não... é... não é algo, que nem eu falo assim: "Porra, massa. Ó, nós somos quilombola. Massa. Não sei o quê". Não. O povo não quer muito saber disso aí.
P1: Uhum. Na época nem tinha, nem se falava?
R1: Não, na época não tinha isso. Nem se falava disso. Hoje em dia alguns... um ou outro fala. Não, não é mais quilombo, claro que não é mais quilombo, mas a descendência é isso, né, as pessoas que estão lá, que moram lá. E também muda um pouco depois que asfaltaram a cidade, né? O asfalto levou os carros, os veículos pra lá. Faz pouco tempo, dez anos pra cá. Antigamente não tinha isso, era uma outra coisa. E até hoje você vai nessa cidade, é... você vai encontrar uma média de 80% de pessoas do povo dela é negro, 80, 85% é negro, os outros são misturados e, se você vê branco, são uma média de 5%.
P1: Mas já na sua família...
R1: Hoje.
P1: Hoje? Na época era...
R1: Era lugar dos negros, mesmo.
P1: Quase todo mundo?
R1: Todo mundo negro, é.
P1: E vocês trabalhavam pra vocês mesmos? Tipo, o seu pai?
R1: Não. Não, não. Meu pai trabalhava... meu pai tinha roça, trabalhava pra ele, mas tinha uns cara que era meio donos da cidade, que os prefeito, não sei o que, aquele prefeito que não era prefeito há dois anos aqui, depois não sei o que, mais três ou quatro família, que eram os donos da terra. Terminava todo mundo, de uma certa forma, trabalhando pra eles.
P1: Entendi. Então vocês, por exemplo... você falou que vocês plantavam, vocês tinham que entregar uma parte do que vocês plantavam pra ele?
R1: Ó, eu não sei te falar com tanta precisão o que era, mas eu sei que não era dono. As pessoas trabalhavam pra essas... pra esses donos, né, esses patrões. Eles eram donos das terras, das terras de todo mundo. Então, eu trabalhava na tua terra, deixava eu morar na tua terra, pra dizer... que eu dizia pra você que a terra era minha, você tinha que trabalhar lá e você tinha que trabalhar pra você e pra mim, ou pra mim e pra você, porque você ia trabalhar certo. Os caras compravam, tomavam terra, tomavam aqui, tomavam ali: "A terra é minha". Aí: "Ah, não sei o que, vem trabalhar aqui". O meu pai, uma época, ele tinha uma espécie de caseiro, né?
P1: Uhum.
R1: Tinha um pouco essas coisas, tinha essa questão dos donos, dos coronéis.
P1: E tinha até caso de conflito de terra, de briga, assim?
R1: Não lembro.
P1: Não lembra?
R1: Não lembro.
P1: Uhum. E aí você... quando você mudou, né...
R1: Muito porque eu fui com oito anos, né? Então, muita coisa eu não tinha consciência ali, né?
P1: Uhum. Aí só antes da gente já ir chegando na cidade, eu queria te perguntar um pouco das brincadeiras...
R1: Pode ser.
P1: ...tradicionais. Que tipo de brincadeiras você fazia?
R1: É... Tinha tanto essas brincadeira do Bumba-meu-boi, que eu falei bastante agora também, do tambor, mas muita brincadeira que a gente fazia era essas brincadeira, jogo, né, que às vezes nós chamamos de ciranda e tal, de... brincadeira infantis, isso aí tinha bastante, que é um pouco... eu sou professor, né, eu trabalho com criança, né, então a minha pesquisa vai por aí. Eu trabalho muito com jogos tradicionais, jogos, brincadeiras e tal. E isso, boa parte delas, veio de infância. E aí eu procuro aqui, estar reciclando, pesquisando mais e vou compartilhando isso com crianças, com pessoas que trabalham com criança, com professores que trabalham com criança e às vezes com famílias também.
P1: Uhum. E aí, nesses jogos que você fala e também nessas brincadeiras, como Bumba-meu-boi, você sentia que tinha alguns valores que eram ancorados através da cultura popular? Valores de vida.
R1: É um pouco difícil de falar, porque a gente sente, porque se não tivesse tanto esse valor, ela não estaria viva até hoje, entendeu? Mas isso não era uma coisa, assim, diz assim: "Ó, você tem que fazer, porque isso é importante, porque... sabe? Nós temos que cuidar, né, porque são heranças nossa, deixada pra nós, nós temos que fazer, é importante a gente fazer, é importante deixar pro futuro, né, porque senão a gente sabe que o capitalismo importado vem a milhão e a tendência é ele atropelar tudo isso aí". Essa consciência não tinha, né, não sei se as pessoas tinham essa... ou melhor, eu não sei se tinha, mas parece que não, tão consciente essa questão, mas as pessoas... o mais importante que eu acho era o gesto de fazer, né, independente de ter a consciência ou não, esse gesto de fazer, essa resistência, essa prática de fazer, vai virando uma determinada resistência, né é perpetua, né?
P1: Uhum. E tinha também contadores de história?
R1: Bastante.
P1: Como é que eram os contadores de história, assim?
R1: Muito na família. Geralmente as tias da gente contavam história, o pai.
P1: E tinha algum momento específico que isso acontecia?
R1: Muito início de noite, de noite, antes de dormir. Antes de dormir era muito comum, né? Só reúne a criançada: "Tia Rita" - tia Rita que contava história pra nós - "conta história, conta história". Eu lembro que eu já estava grande, aí também as últimas vezes que eu encontrei com ela, falei: "Tia Rita, e aí tia Rita, conta história pra nós" "Ei, meu filho, sua tia não sabe mais contar história e tal". Já estava meio, assim, cansada e tal, as últimas vezes que eu encontro com ela. Mas tinha história... eu lembro que tinha uma história que ela contava, a gente gostava muito, era uma história meio simples, história do... do lobo, lobo e o leão e o macaco. Ela contava que o leão era o rei da selva, rei da mata, rei da fazenda e tal e aí o leão tinha um roçado, fez um roçado pra plantar, não sei o que, tal e aí alguém foi lá e tocou fogo na roça do leão. Aí o leão ficou puto: "Porra, quem queimou o roçado?". Aí o leão foi falar com o macaco, os dois conversando, aí falou: "Pô, vamos arrumar uma estratégia". Aí combinaram: "Pô, o negócio é o seguinte: ‘Eu dou uma festa, ((risos)) você vai ser o anfitrião da festa e nós vamos pegar esse sacana que tocou fogo na roça e tal’". Aí: “Está bom, vamos fazer, vamos fazer a festa". Prepararam tudo: "A gente faz o mote e ele vai aparecer". O macaco falou: "Deixa comigo, deixa comigo". Macaco tal, armou, chegou na frente, estava todo mundo por ali, aí o macaco: "Pi". Apitou, cantou:
"Senhor rei mandou dizer
Quem queimou o roçado dele
Vai ganhar um boi capado e um saco de dinheiro".
Sabe o que é um boi capado? É castrado. Se ele já está castrado, é sinal que ele já está pronto, macio e tal, pra abater. Um boi capado grande, né? Ele: "Um boi capado e um saco de dinheiro". Né? Aí apareceu o lobo, né?
"Foi eu, foi eu.
Quem queimou o roçado dele foi eu. Foi eu".
Tava lá cantando. E aí o macaco falou: "Pera aí, pera aí, pera aí". Aí cantou: "Senhor rei mandou dizer". De novo: "Quem queimou o roçado dele tem uma dúzia de bolo e trinta dia de cadeia". Aí o lobo falou: "Não fui eu, não fui" "Foi tu, sacana. Pega ele". ((risos)) A gente ria pra caramba dela contar essa história. Era isso a história.
P1: Muito boa.
R1: E aí a gente, criança, ria e sempre pedia: "Tia Rita, conta a história do... conta a história do lobo". Ela contava várias, mas essa aí era clássica.
P1: E aí... bom que você falou, eu ia te perguntar se tem alguma memória de animais, né, se tinha animais que você convivia muito? Que você lembra se teve alguma história.
R1: Muito. Eu lembro. Eu lembro quando eu era muito criança, a gente tinha uma cachorra que chamava-se Tanarrinha. Tanarrinha. Meu pai era um cara meio assim: ele botava... ele inventava uns nomes pra coisa, pra tudo, ele tinha mania de botar nome, botar apelido, pessoas. Ele tinha uma parada meio assim. Era um cara meio gozador, ele botava o nome. Eu não sei por que ele botou o nome da cachorra da Tanarrinha. Então, era Tanarrinha o nome da cachorra. E essa cachorra, eu lembro que ele tinha uns bois, ele era... ele tinha carreiro, era boi de carro de boi, tinha carro de boi, e tem os... mas é de quatro bois, né? É... Aí ele botou... o nome do boi chamava Tanavista. Tanavista. O outro era Prativê, o nome do boi. Chamava Prativê. "Ô, Prativê". Aí depois o outro ele chamou de Chegou... Chegou... Chegouotempo. Chegouotempo, Chegouotempo. O nome do boi, Chegouotempo. O outro era simplesmente Praticrê. Tanavista, Prativê, Chegouotempo, Praticrê. Botou o nome dos quatro bois desse nome, que ele tinha essas paradas assim, essas viagens, né? Tinha um lugar que a gente morou também, um lugar que... tal, que ele chamava de Passolhando. Passolhando. Aí depois eu entendi: "Passolhando, Passolhando. Passolhando". Depois que eu entendi que era justamente... era simplesmente, era... parecia um nome meio latim, Passolhando, Passolhando, Passolhando. Então era o nome do lugar, que você passa e olha, estou passando, que era a estrada daqui, a casa está ali do lado e você passava olhando pro lugar e ele botou o nome desse lugar uns tempos, de Passolhando. Tem outro lugar também que ele chamava de Bijagó, que a gente morou lá, que era Bijagó... justamente Bijagó, ele traz o nome do povo dos Bijagós, que veio lá de Benin, da África. Tinha uma etnia que chamava Bijagó, que é de onde nós descendemos. E eles lá botaram esse nome desse lugar também, lá no Cururupu, um lugar chamado Bijagó. Aí agora, só agora eu fui matar a charada e falei pra minha irmã, agora, depois do tempo que eu saí do Brasil, fui na França, cruzei com um cara do Benin lá na França e tal, ele fala: "Pô, não sei o que e Bijagó". Eu falei: "Pô, mas Bijagó, não sei o que e tal". E a gente conversando, ele falou: "Pô, não, claro, nós somos parentes. É a nossa etnia, não sei o quê”. Eu falei: "É Benin". Ele falou: "Pois é, é Benin". Né? Em Benin tem uma etnia muito grande, que é do povo dos Bigajós, entendeu?
P1: Nossa!
R1: Então tem... tinha um lugar lá que chamava de Bijagó. E com o tempo, né, porque não tinha muita informação. É informação guardada por eles. Não foi coisa que veio externa. Porque lá em Cururupu tem uma parada também, né, que um determinado tempo, o tráfico negreiro era proibido pelo lado daqui, tinha uma corrente, né, foi uma corrente que favorecia a entrada lá no Maranhão, como também uma... eles... era um lugar meio estratégico, né, chegava ali meio escondido, por ali e ali, daí a relação que foi já fazendo esses quilombo ali, nessa costa do Maranhão, certo? Aí ao invés de ir pra São Luís, Alcântara, pra grande cidade, foram pra ali, os cara já foram... já, quando chegavam ali, os navios chegavam, já tinha os cara já rebelado, que já tinham os seus guetos, não sei o que e foram meio que acolhendo aqui. Então, teve um monte desse povo que foi prali, que não chegou a ser escravizado, entendeu?
P1: Nossa!
R1: Eles não viraram escravos. Chegaram por ali, já foram pra coisa, trabalhar com lavoura, já não sei o que e tal, formando quilombo e tudo, nesse período aí que... né, que era proibido, ainda tinha o tráfico, né, mas aí foi não sei o que, até romper, né, parar de chegar e tal, ele foi chegando por ali e já ia. E São Luís e Alcântara era o lugar que comprava, pra trabalhar, que tinha, né, toda essa relação do poder, né, os caras que tinham grana, os fazendeiros e tal. Então trabalhava e construía e tal.
P1: E dessas pessoas, que a sua família é remanescente, além das festas, tinha outros costumes que você sente que tiveram, tipo, religiosos, ou até de plantas?
R1: Não, não lembro assim. Acho que tem... essa questão de planta e de erva, é antiga e tradicional, né? Isso aí todas as minhas... minha família, todo mundo foi muito próximo dessa questão com as plantas, com as ervas. E outra coisa que é meio tradição nossa é que é um lugar meio de pescadores, né? Então, vive muito essa relação com frutos do mar:, peixe, camarão, caranguejo, sururu, eles estavam nisso aí e a relação, que é um lugar também, por ser uma questão meio norte, Amazônia, muita água de água doce, uma relação com as frutas também, né, fruta diferente: cupuaçu, bacuri e tal, açaí, juçara.
P1: E você pescava também ou não?
R1: Não. Nunca fui... gosto muito de peixe, mas nunca fui de pescar. Não vou mentir. Sou santista. ((risos)) Mas nunca fui de pescar, não vou mentir. O que é de César a César, mentir não precisa. ((risos))
P1: Sim.
R1: Brincadeira. Mas não, até coisa, até já sonhei pescando, mas nunca foi a minha, nunca foi esse negócio de lidar com o mar, não sei o quê. Sempre fui meio cabreiro com o mar, sabe? Meio medroso nesse sentido e tal. Nunca fui muito e tal. Acho legal, não sei o quê. Uma hora dessa eu até falo: "Vamos pescar, não sei o que, você tem paciência e tal, de ficar ali". ((risos)) Eu adoro peixe, eu compro, faço na boa, mas pescar mesmo, não é a minha praia. ((Risos))
P1: Lá era um lugar de mar?
R1: Mar.
P1: Você tem alguma memória de mar, assim? Alguma conexão com o mar?
R1: De criança, não tanto. Eu lembro que uma vez eu ia quase morrendo afogado, mas acho que era em São Luís, era em São Luís, eu já adolescente.
P1: Você pode contar.
R1: Não, isso era... era São Luís. É muito simples: eu estava na praia, em São Luís, acho que era a Praia do Olho D'Água. Em São Luís, o mar é muito distante, ele fica... aqui está a terra, está a areia, aqui é onde acaba a areia, a praia, né, a areia. Desse daqui onde acaba a areia, aqui no mato, na mata, até a praia, era muito longa e muito reta. Lá é muito comum. E é coisa durinha, né, o chão. Eu lembro, até eu sempre tive vontade de agilizar um campeonato de futebol de areia lá em São Luís, porque é uma outra areia, certo? Aqui você vê esse futebol de areia, a bola cai e fica. Lá não, a bola pica, certo? Você corre, joga, é muito comum você jogar descalço. Hoje um ou outro põe tênis, mas o comum é jogar descalço e o bom é jogar descalço. E a bola pica, né, você já joga, já sabe que a bola veio, você já vai, tem outra... é outra relação com a Física, né, com o tempo da bola, de não sei o quê. Então eu sei, que eu jogo bola também, gosto, acompanho. Então eu falo: "Porra". Quando vejo que a bola bate, o cara tem que levantar e não sei o que (risos) e os caras são feras, né, esses jogadores de futebol de areia, pelo amor de Deus. ((Riso)) Falo: "Pô, um campeonato lá em São Luís, queria ver esses caras jogando lá, como é que era, no futebol de praia". Então, tem essa coisa. Então, é muito distante. O que acontece? Eles vão fazendo, de tempo em tempo, uma espécie... como se fosse espécie de um igarapé. No meio da areia tem uma... passa uma correnteza de água, às vezes de água doce, às vezes de água salgada, que veio assim, né, então vão rolando. E aí ela vai distante. Conclusão: eu passei por uma dessas poças, que era grande, fui pra outra e aí na outra. Quando eu vi, eu estava vindo, só que quando eu volto, essa poça que vem água aqui, a água está... já subiu mais, ela está mais funda e a correnteza também está mais forte. E eu voltando, experiente, aí eu só vendo, não sei o quê. Aí tinha um cara, que virou meu amigo depois, conhecido, cara que é músico também, eu nem sabia, não se conhecia, a gente era quase vizinho também, mas a gente não conhecia e a namorada dele falou: "Puta, eu acho que aquele moleque tá se afogando". Falou pra ele. Falou: "Puta, é mesmo, deixa eu ir lá". Falou: "Ei rapaz, não sei o quê”. Eu falei: "É". Ele falou: "Não, vem cá". Aí foi lá e tal e me ajudou a vir embora. Aconteceu. Até hoje eu brinco com ele, o chamo de meu padrinho. E eu falei: "Pô, me salvou a minha vida, não sei o que e tal". E quase me afoguei, assim, mas isso foi uma coisa, um susto também, não virou trauma, mas eu sou meio escabreado com o mar, assim, meio receoso, né, com água. Primeiro que respeito muito, né, respeito muito essa força da natureza sentir, água e fogo, eu vivo avisando meus amigos e as amigas, assim, principalmente a turma que gosta de fumar, que é distraído, não sei o que e tal, com essa parada de álcool, aí você chega aqui no álcool, (risos) relaxa. Eu fico falando: "Ó, cuidado, cuidado, você é muito distraído. Cuidado com o álcool e o fogo, viu? Redobra, porque negócio está... a gente relaxa, acabou de passar álcool na mão, a gente quer acender um fino, um tal, é, pá...".
P1: E aí o... mas você mudou, então, pra São Luís, aí você estava morando na sua tia, aí você disse que você começou a se enturmar, né? Com quem que você se enturmou, assim?
R1: Ali eu tive algumas vertentes, assim. Uma foi o Bairro da Madre de Deus, outra... ah... o pessoal da capoeira, mestre Sapo. Mestre Sapo foi o meu primeiro mestre de capoeira. Ele era baiano, discípulo do mestre Canjiquinha. Ele foi pra São Luís no início da década de 60 e começou a dar aula em São Luís. Ele foi pra lá, na realidade, eles foram fazer um... estava fazendo uma turnê pelo Brasil e mestre Brasília estava nessa turnê também, também passou por lá e ele ficou em São Luís dando aula. E ele, uma época, a escola dele... eu morava no quarteirão, numa esquina assim e a escola era na outra esquina. Às vezes eu passava por lá, eu escutava o som do berimbau, não sei o que, tinha uma brecha pela janela, eu olhava, via a capoeira, subia na janela pra ver, falava: "Pô, que negócio interessante, caramba” e tal. Capoeira é isso, tinha esse negócio. A gente era moleque, naquela época passava luta livre na televisão, chamava-se Telecatch Montilla, ((risos)) que era o rum Montilla que patrocinava, então falava Telecatch Montilla. Então, tinha esse negócio de luta e a gente moleque, imagina, lutava, não sei o que, aí viu a capoeira, meio que me encantei. Mas aí era pago ali, né, eu não tinha o dinheiro pra pagar e a minha turma, a minha mãe, não sei o que, a turma não botava fé, né: "Imagina, fazer capoeira, pra quê? Não sei o quê. Vai estudar". Não botava fé. E aí tal. Como, depois, a capoeira mudou pro... inauguraram o ginásio municipal, que tinha vários esportes, eles botaram capoeira lá também...
P1: E era capoeira Angola?
R1: Era capoeira Angola. A capoeira já era Angola, não era Canjiquinha, já era Angola. Se bem que, nessa época, eles entravam... era uma época que eles entravam muito em conflito com essa relação dessa capoeira Angola e a regional. Que essa coisa... volta e meia tinha essa... a turma estava me perguntando __ (01:14:05), eu falava... volta e meia isso vem à tona, a turma querer dizer: "Não, que a capoeira é uma só. A capoeira não sei o quê. Pra você dar aula de capoeira, você tem que fazer... estudar educação física e tal". Né? E... que no fundo, é... meio que não justifica essa relação da educação física, porque a gente... pelo que eu observo, né, eu enquanto educador, enquanto professor de dança, enquanto... é... trabalho, né, voltado à consciência corporal e tal, eu vejo que muita das vezes é muito comum o atleta vir orientado, viram mestres do coisa e tal, se machucarem muito cedo. A educação física machuca as pessoas muito cedo, nossos atletas, o próprio Zico. O Zico do Flamengo era um cara que era assim, né, igual você. Aí vem os caras: "Não, não, você tem que ser forte, então faz não sei o quê". Quando vai olhar, arrebentaram o joelho do cara. A Daiane dos Santos, a mesma coisa: nova não sei o que, com turma não sei o que, não sei o que. A menina estava com o joelho machucado, todo mundo, médico, não sei o que, sem poder ir pra Olimpíada, eles achavam que ela tinha que ir, que ela tinha que ir e levaram até lá. Ela, sabendo que estava com... o psicológico dela sabendo que estava com o joelho machucado, eu fui assistindo, ela deu o salto. Quando ela deu o salto, que ela conseguiu chegar lá em cima, ela viu que ela conseguiu saltar. O medo dela foi quando ela chegou embaixo. Quando ela chegou embaixo, ela fraquejou, o peso do corpo em cima do joelho e nunca mais fez nada. Ela deu aquele salto, que os caras pediram pra que ela desse, forçaram, meteram na cabeça dela que ela tinha que dar aquele salto, um salto.
P1: Nossa!
R1: E isso tudo é da educação física, entendeu?
P1: Mas a capoeira dessa época era com educação física ou não? Tinha uma mistura?
R1: Eu acho que não. Acho que não. Tinha algumas coisas ali. Que o meu mestre uma época também, né, tinha toda uma pressão pra que... que é aquela coisa também do sincretismo, de assim, putz, você tem que abrir mão disso. E a capoeira, de uma certa forma, foi abrindo mão de alguns conceitos da capoeira de Angola, alguns conceitos de origem africana, tipo oriundos do candomblé, não sei o que, dos terreiros, né, tal, pra poder passar no coisa, pra ser aprovado como escola de capoeira. Então, como você vê, ah, academia de capoeira. Precisa ser academia? Precisa porque... Grêmio Recreativo não sei o que, escola de samba "pararararará". Pra poder passar, então... é... o Estado...
P1: Pois então, pode continuar. Você estava falando da capoeira.
R1: Tá. A capoeira. O que eu quero dizer é que, de uma certa forma, o Estado, esse Estado formal, sempre quis, de uma certa forma, sempre houve esse determinado conflito ou eu nem chamaria conflito, eu diria essa determinada pressão em cima dessas origens africanas, entendeu? A própria capoeira. Então, pra... você tem que justificar que você é da capoeira, mas você não... você é... tem que justificar que você é preto, mas você não é bandido, sabe? Você tem que provar. Né? E uma das coisas é a capoeira? Então: "Ó, eu fui numa escola de capoeira, não sei o quê". Então tem que botar faixa, não sei o que, você tem que se assemelhar às artes marciais japonesas, orientais, que têm essa... né, tem que ser semelhante aqui. Essa aqui é legal, essa aqui é, mas tem que botar assim, assado, então tem que ter tal golpe, você tem que fazer educação física, você não pode ser um mestre de capoeira e você... é claro que ninguém quer ser analfabeto, mas teve vários mestres de capoeira que não tiveram oportunidade de estudar e são mestres. Não tiveram oportunidade de estudar em escola formal, mas têm sabedoria, mais do que muitos outros que são formados em escola formal, em universidades, entendeu? Então, diz assim: "Não, tem que tátátá...Então você tem que aprender capoeira e tal. Tem esse golpe assim" "Não, imagina, o nome do golpe não pode ser macaco, não pode ser não sei o quê. Então você não pode vir aqui, fazer aqui e saudar o seu orixá e tal, seus guias espirituais". Né? Não precisa de nada disso, isso é besteira. Né? É besteira. Capoeira é isso aqui: ou você aprende, ou você bate, ou você apanha. Certo?
P1: E você viu o seu mestre em conflito com isso, com essas pressões?
R1: Eu não sei se era conflito, mas eu acho que ele tinha, um pouco, essa... eu sinto que a capoeira dele, ela passou um pouco por esse crivo.
P1: Então, Tião, a gente estava contando você chegando na capoeira.
R1: É. E estava falando da capoeira, a gente estava falando, inclusive, a questão da capoeira da Angola, regional, dessa coisa da capoeira. E tem hora que eu falo que o Estado brasileiro, de uma determinada forma, sempre lidou dessa forma de dizer assim: "Puta, né, você...". Principalmente com essas... nós, com essas heranças africanas. É quase como que diz assim: "Você tem que alisar o cabelo, pra passar nas portas". Sabe? "Você tem que abrir mão do teu contexto religioso". Sabe? "Você pode até vir pra cá, trabalhar aqui, mas vem sem turbante". Né? Eu tenho uma guia, esconde. Certo? Foge um pouco dessas coisas. Isso vem coisa, com a própria capoeira. Não, a capoeira é pra ser aceita, mas ela precisa... sabe, passar por algumas coisas, pra poder não sei o que, então você precisa ser professor da educação física, formado, não sei o que e tal, porque... né, não... né? Você precisa ser professor, doutor, igual esse aqui e tal. Né? Claro que todo mundo quer ser educado. Agora, pra você precisar de servir essa educação, é como se essa educação fosse melhor do que essa aqui. Como educação física, realmente educação física, está aqui o resultado, né? Você vai lá e se questiona: "Pô, por que vocês são professor de educação física e vocês estão com quarenta anos, quarenta, cinquenta, sessenta anos e já estão acabados? Né? Já está sem não sei o que, ou sem o joelho, pá, pá, pá, já... né, de tanta porrada, de tanta... por que se machuca tanto? E machuca o outro também?” Como é que é essa relação? Como é que a gente lida com essa relação? Também é da própria inteligência, né? Como é que eu administro essa inteligência também? Pra que que nós estamos usando a nossa inteligência? Pra que que nós estamos usando os nossos estudos?
P1: E aí você treinava... era quantas vezes por semana? Como é que era?
R1: Geralmente, a nossa média de treino sempre foi uma média de três vezes por semana. Mas de treino, treino na escola. Uma média de três vezes por semana. Às vezes você vai duas. Agora, ultimamente, a minha média é de... nós treinamos três, mas a minha média, geralmente, é de duas vezes por semana, às vezes uma, porque não consigo ir e tal, mas eu tenho mais ou menos um... agora está um pouco mais complicado, mas uma prática meio diária assim, aquele movimento que você faz antes do banho, sabe? Toma um banho, dando um tempo, você faz. Agora também tem hora que o tempo fica corrido, você fica sem tempo de treinar, aí é uma loucura, né? Corrida, questões, administrar tudo, viagem, né? Você tem viagem, fica quase um mês viajando, tudo, você não consegue manter uma rotina de treino.
P1: E você lembra quando você fez o seu primeiro berimbau?
R1: Não. O primeiro berimbau eu não lembro. Vagamente. Vagamente o meu primeiro berimbau, tocando. Quando eu fui apresentar o berimbau com o meu tio, tio esse que era o Domingos, Dominguinhos, tio compositor, irmão da minha mãe, ele morava lá em Cururupu, aí eu viajei pra lá, pra Cururupu, pra cidade, levei um berimbau pra ele e mostrando e ele: "Porra". Ele ficou super curioso, que ele não conhecia, né, naquela região. Aí eu fui explicando que era capoeira, que era da Bahia, que não sei o que, ele falou: "Porra, que coisa maravilhosa isso aí e tal". E eu tocando berimbau pra ele, mostrando. Mas o primeiro berimbau... o primeiro berimbau, eu não lembro, assim, exatamente. Mas eu lembro quando, mais ou menos, a época que eu aprendi a tocar, sabe? Eu aprendendo a tocar e tal, o equilíbrio, o dedo aqui que dói, que... sabe? Eu lembro um pouco desse sentimento.
P1: E como é que era a pedagogia da capoeira? Tinha alguma coisa de diferente da escola, por exemplo?
R1: Da escola?
P1: É. Ou da educação física? Como você falou que tinha alguma... o que tinha de diferente nessa pedagogia?
R1: Eu acho que tinha algo que... muita das vezes tinha algo um pouco rígido, que eu, às vezes, acho até que era desnecessário __ (01:24:00), né, mais rígido. Mas eu acho que tem um lado que é fascinante, que é a parada da música, né? Da música e da dança, né? Essa questão da música e da dança. E eu acho que isso tem a ver também com a parada de um bom mestre, né? Bom mestre também é muito importante nisso, né? A pessoa ali, o cuidado, a índole do mestre, né, do mestre e da mestra da capoeira. Acho que isso é importante. E a coisa da música, fator música, é muito mágico, né, porque ele tem muito a questão do encantamento, né, dos estudos, da sabedoria, do tempo, né? Músico, o ritual que vem junto, né, a mandinga que vem junto, né, que vem muitas questões, né? Falando da capoeira, outro dia estava conversando com minha equipe da campanha, explicando pra eles um pouco, né? Aí eu até usei um termo da capoeira que fala assim: "Quebra jereba, quebra. Eu quero quebrar, quebra. Vou quebrar tudo hoje, quebra. Amanhã nada quebra, quebra". Eu falo: "Ó, quem quebra tudo hoje, amanhã nada quebra, sabe? Quem come e guarda, bota a mesa duas vezes. Não vamos querer fazer tudo hoje. Nós temos _______ (01:25:43), nós vamos começar uma campanha, nós temos que começar essa campanha daqui debaixo ___ (01:25:45). Essa campanha tem que ir crescendo. Não começar enorme e depois vai diminuindo, com... cansado. Ó, nós temos uma equipe, uma equipe grande, que essa equipe tem que continuar junta, unida, coesa. Né? Você se sobrecarrega, aí já é o desgaste de uma relação de um com o outro, né, um que cansou, ficou doente, porque se sobrecarregou de trabalho, né, fica aborrecido, eu me aborreci comigo mesmo ou com alguém porque eu estou __ (01:26:16). Nós temos que está... né, ir crescendo, ir crescendo, ir crescendo até lá. Não chegar no meio, quando nós já estamos cansados, o outro: 'Puta, eu não tenho mais tempo'. Ou então: 'Eu estou chateado, eu não sei o quê'". Sabe? Tem que... isso são coisas que a capoeira ensina à gente e que muito, é fundamental da gente, nós, capoeiristas e tal, saber que a capoeira não é pra você bater, nem apanhar de ninguém. Você pode se proteger e proteger alguém, proteger o que você quiser, quem você quiser, coisa, até a sua pátria, como aconteceu na Guerra do Paraguai. A Guerra do Paraguai, quem fazia as frentes eram os negros capoeiristas que iam na frente do... né, os peões ali eram os negros capoeirista, que iam na frente das coisas, por quê? Porque esse povo capoeirista, duas coisas: que eram negros, não tinha tanta importância se morria, como não tem até hoje. Né? E também eles eram estratégicos, né? Mandingueiros. Né? Os caras que tinham habilidade ali, não sei o que, de se esconder, de se camuflar, né, de observar. Às vezes os sentidos mais aguçados de visão, audição, olfato. Eles têm isso aí: conhecimento, conhecedores da mata. Aí vem a questão da coisa, da capoeira, né? Então, a capoeira é tão... quer dizer, que a capoeira é pra você, né, aprender a lidar com as coisas, lidar com os... pensar, pensar rápido, agir rápido, ou pensar com calma, agir com calma. Tudo isso é capoeira. Não é porque eu estou aqui, por isso eu vou brigar, eu vou bater, eu vou quebrar. Não é nada disso, pelo amor de Deus. Não é nada disso.
P1: E que lembrança que você tem do seu primeiro mestre?
R1: Ele era muito musical e gostava muito de mim, porque eu era bastante musical também, já tinha essa herança de família. Ele era um cara negro, chegando da Bahia também, no Maranhão e aí ele não tinha tanto essa raiz maranhense, né, tinha a cultura baiana, mas essa cultura maranhense ele não tinha muito. Então, de uma certa forma, eu também era um pouco essa relação de espelho pra ele. Então, a gente andava muito junto, né, aprendi muito com ele, andava muito junto. Me apresentou pra muita gente, né, muitas pessoas, artistas, né, lá, pra músicos, diretores de teatro e tal. Ele era mais velho, mais conhecido, eu era garoto. Então, ele me apresentou pra muita gente, né, a capoeira foi muito importante pra mim nesse sentido, né? Eu falo que, se não fosse a capoeira, seguramente eu não estaria aqui, né? A capoeira foi muito importante pra minha vida, pro cidadão que eu sou, desde pai de família, de amigo, enquanto homem, né, cidadão brasileiro __ (01:29:39), músico.
P1: E aí você tinha mais ou menos quantos anos, nessa época?
R1: Eu comecei a fazer capoeira, eu tinha uma média de... acho que quinze pra dezesseis anos.
P1: Quinze pra dezesseis.
R1: Quinze pra dezesseis anos.
P1: Que mais você lembra desse período? Você chegou... eu acho que você não contou, você ia na escola?
R1: Ia.
P1: Como é que era a sua escola?
R1: A escola, teve uma época que aconteceu uma catástrofe no ensino brasileiro, mas no Maranhão atacou bastante, que eu não lembro por que, mas a gente não... não acabava-se o semestre. Tinha alguma coisa que eu não acabava, ou mudava de uma escola pra outra, não sei o que era no governo. Isso deu uma desanimada, aí eu comecei a estudar à noite, que eu trabalhava durante o dia e tal e aí eu fui, um pouco, perdendo o interesse por esse estudo e tal e depois foi começando vir a parada do trabalho, da música de noite, não sei o que e mais trabalho aqui e tal e eu fui deixando de mão e não concluí os...
P1: E você disse que trabalhava de dia?
R1: Trabalhava durante o dia.
P1: Você fazia o quê?
R1: Eu trabalhei... eu fiz várias coisas. Eu lembro que... é... alguns trabalhos que nem lembro tanto, que não vingava. Eu lembro que uma vez eu trabalhei meio que representante de vender algo. Eu lembro que uma época, eu fui vender um negócio que era de sabonete. Eu era representante de um sabonete, um sabonete meio que medicinal, sei lá que os caras inventaram, chamava Pelicano, o nome do sabonete. Aí eu ia representar, não vendia nada, não vendia nada. Eu lembro isso aí. Aí até que a gente ainda inventou uma moda, eu e o meu amigo, a gente passava, assim, num lugar e falava assim: "Vem cá, vocês já tem sabonete Pelicano?". O cara fala: "Não, não tenho". Aí ia em outro: "Vem cá, você já tem sabonete Pelicano?". Aí no outro dia eu ia lá e oferecia, os caras compravam (risos) e depois não vendia. Aí eu falei: "Putz, não dá certo". Aí deixei isso aí. Teve uma época que foi muito legal, porque a gente inventou... eu e um amigo, a gente inventou uma máquina... não sei se você lembra que uma época tinha máquina de... ainda tem, mas isso é muito raro, viu, nos dias de hoje, que é um sorvete que tem umas máquinas, assim, que vê em centro de cidade, que tem uns litros assim, garrafão, com aquele líquido e aí passa no coisa, sai o sorvete embaixo. Você já viu isso?
P1: Já.
R1: Isso tinha há muitos anos. Eu e esse amigo: "Puta, uma máquina, não sei o quê. Você topa? Porque eu tenho um trampo aqui, a hora que eu não tiver no trampo, você fica pra mim, eu vou trampar no coisa". Trabalhava em Banco, ele: "E aí você fica aqui pra mim e tal". E começamos a fazer, que aí era em frente à uma escola, uma escola de meninas chamado Rosa Castro, a escola. Era em frente, um point assim. E eu botei a barraca de sorvete. Aí, nessa época, eu já tocava violão e cavaco. Então, às vezes eu ia pra barraca, levava o violão, levava o cavaquinho, ficava ali tocando, vinha um e eu vendia sorvete, tal, um sorvete muito massa, esse sorvete. Só que a gente fazia o sorvete com frutos da terra: cupuaçu, bacuri, açaí, coco, cajá, né, só... tudo massa. Foi um puta sucesso. E era em frente à escola das meninas, elas saíam no final de tarde, parava ali pra tomar o sorvete. Aí os caras chegavam também, né? Tinha a mulherada, os caras chegavam ali, ou ia buscar namorada, ou ia paquerar. Eu sei que era a Banca do Tião. A gente vendeu o sorvete ali durante um bom tempo. E antes dessa coisa também eu trabalhei num Banco, num Banco de... Banco do Estado do Maranhão, né, que eu era... de boy. Trabalhava de boy, durante um tempo também. Trabalhei muito tempo de boy nesse Banco. E foi esse o trabalho, no início, em São Luís. Aí depois, eu acho que, por último, foi esse do sorvete.
P1: Que foi uma ideia de vocês mesmos?
R1: É, foi ideia do meu amigo, que teve e ele me deu o toque e eu topei fazer.
P1: E teve algum episódio desse momento, que você lembra?
R1: Do sorvete? Rapaz, um episódio? Não, não lembro. Eu lembro, uma vez tinha uma galera do Rio e eu conheci uns músicos, que são meus amigos até hoje: é a Inês Perdigão e o Marcelo Bernardes. Marcelo era da banda do Chico, era saxofonista do Chico Buarque, saxofonista e clarinetista da banda do Chico. A Inês era violonista/flautista, era esposa dele. Eles eram muito jovens na época, né, são jovens assim, eles eram da minha idade mais ou menos, não sei se, talvez, um pouco mais velhos que eu e eu lembro que uma vez eles faziam um choro e eles passaram lá pra me chamar pra tocar com eles, que eles iam fazer um coisa e estava precisando de um pandeirista. Eu fiquei muito contente, falei: "Pô, os caras são uns puta músicos do Rio, me chamando pra tocar com eles. Pô, que massa. Muito bom ali". Eu lembro de uma... qual era a outra coisa ali? Essa situação deles. Teve outro cara, que era daqui de Salvador, um cara chamado Cacau, que era um produtor, esse cara me apresentou o Gil, me levou na casa do Gil, lá em Salvador e ele trabalhava lá no Rio, no... ele era amigo do Gilberto Gil e aí ele estava no Maranhão, era um produtor e ele era amigo do Fernando Sarney, amigo do Fernando Sarney, filho do Sarney e aí, coisa, ele, pô, ficou meio impressionado com a minha pessoa e fez uma grande reportagem comigo no jornal, a primeira reportagem que eu saí no jornal. Não sei se ainda existe essa reportagem, podia ir atrás. Essa reportagem é interessante. É que a gente vai falando, descobrindo, que eu não sei se é o caso também, se interessaria pra cá algumas reportagens.
P1: Mas aí ele fez a reportagem sobre você?
R1: É, a primeira reportagem que saiu no jornal sobre mim foi esse cara que arrumou, ele foi conversar comigo ali e as fotos eram tiradas ali.
P1: E era sobre o que, a reportagem?
R1: Sobre a pessoa do Tião. Ele começava até falando assim: "Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento". Coisa que eu vou e tal, era o Tião. E eu era muito novo, eu não imaginava que eu ia traçar essa trajetória. Mas eu lembro desse episódio. E outro episódio que me aconteceu foi o seguinte... é... eu tive... foi um sonho que eu tive já aqui em São Paulo e eu tive um sonho naquele lugar. E olha o que era o sonho: eu tive um amigo que faleceu, né, esse amigo se suicidou, né, o Ricardo, aqui em São Paulo, ele era do grupo... do nosso grupo, tal, um cara muito amigo, muito parceiro meu, o cara se suicidou assim e foi uma coisa que a gente... ninguém esperava, né, não esperava, porque você via que o cara estava tudo, tinha acabado de se formar na USP, em Biologia. Acabado de se formar, músico, rapaz novo, bem de saúde, tocava percussão, família, né, família tradicional de São Paulo, pai empresário, dono de empreiteira. E uma hora o cara resolve se suicidar na casa do pai, um sítio que eles tinham aqui no... Itu. Enforcou, se suicidou. Me deixou muito abalado essa morte dele, né? E aí, um dia, eu sonhei que eu estava ali nesse lugar, aí ele falava pra mim: "Pô, Tião, eu quero te apresentar uma amiga minha, que ela é massa, ela é muito bonita. Ó, essa aqui é a minha amiga e tal". Uma mulher, a mulher era bonita. Eu lembro exatamente assim: que era mulher, assim, morena, morena, negra, quase da minha cor, com o cabelo liso, meio índio, né, liso, com um vestido azul, seguindo o corpo, que chamava antigamente de tubinho, parecia que era de linho, né? Ele fazia um desenho aqui, vinha até mais ou menos aqui no meio das pernas, né, às vezes tem aquele cortadinho aqui na frente da saia, pra facilitar o andar e era um vestido azul, azul marinho, com umas pequenas florezinhas brancas no vestido. E esse cara chegava pra mim, que era muito amigo, muito íntimo, a gente tinha mania de, às vezes, apresentar, aqueles amigos assim: "Pô, apresentou e aí terminou namorando com a pessoa que apresentou". Entendeu? Os caras: “Também, não sei o quê”. Então, termina a gente tinha um pouco essa questão, né: "Ah, vou apresentar essa amiga muito bonita". E ela era realmente uma mulher bonita. Aí o que eu faço? Eu penso assim, eu falo: "Puta que pariu, ela é bonita, mas eu não devo me encantar com ela. Essa mulher é a morte". Eu pensei, quando ele me apresentava, no meu sonho, eu falei: "Eu não devo me encantar com ela. Ela é a morte". Aí eu voltei. ((risos)) Entendeu? Ou seja, ele tinha conhecido a morte e estava vindo me apresentar.
P1: Muito bom. ((risos))
R1: Hein? Era. Aí, quando eu falei pra uma amiga nossa, que é __ (01:39:47), é uma pessoa mais velha também, essa sim é mandingueira, né, (risos) quando eu falei pra ela, ela falou: "Meu Deus do céu, pelo amor de Deus, ele que fique lá no lugar dele. Ele foi porque ele quis e a gente... foi opção dele. A gente não". Como quem diz assim: "Ó Tião, olha como a morte é bonita. O que você acha?". ((risos)) Aí eu falei: "Não". Aí depois passou um... sei lá, um pouco menos de uma semana, eu sonhei de novo com ele, mas era uma outra coisa, eu o vi pegando um caminho e desviando, pegando um caminho e indo embora, andando, assim, pra uma picada de mato. Aí eu falei: "Puta, agora ele foi, realmente". Tive dois sonhos com esse cara.
P1: Nossa! E você teve outros sonhos que te marcaram na vida, assim __ (01:40:34)?
R1: Ah, com certeza. Agora vamos ver... agora eu me lembrei desse aí, né?
P1: Aham.
R1: O caso desse aí. Mas com certeza teve sim, tem. Vamos ver se, qualquer coisa, eu lembro.
P1: Aí o...
R1: Já sonhei... eu lembro que uma vez eu... eu assisti o... Meno? Que era um desenho animado, Nêmuno, Nemo?
P1: Ah é, Nemo.
R1: Procurando Nemo, que era de um peixe.
P1: Sim.
R1: Peixinho. Uma hora eu sonhei também com o meu filho. Porque tinha o pai e o filho, né, tinha uma cena chocante do pai e o filho naquele coisa. Aquele filme ali eu chorei que só! Eu sou assim, eu choro, assisto filme. Até novela eu choro. ((risos)) Então, eu tenho essa coisa assim, né, choro, vejo cena assim, eu me emociono e tal. Aí eu sonhei também com a situação desse filme também, que eu perdia um pouco o meu filho também. Porque eu sonhei o filme, fiquei impressionado e fui assistir com o meu filho, aí teve uma hora que eu sonhei que eu o perdia, estava meio desesperado, que eu perdia.
P1: E aí você estava me contando que, quando você estava falando lá da capoeira... é... da coisa dos orixás e dessa questão da capoeira vir um pouco, às vezes, disso também. Queria saber se você também tinha alguma conexão, assim, com terreiros, com a cultura afro?
R1: Tenho, tenho sim. Eu tenho no Maranhão e tenho a Casa do Tempo em Salvador, que é do Tata Mutá Imê, que é o nosso líder espiritual lá. Então, tem a Casa Fanti-Ashanti, lá de São Luís e a Casa do Tempo, duas casas religiosas que eu frequento.
P1: E como que foi que se deu, assim, essa aproximação?
R1: Em São Luís, cara, porque eu acho que eu fui através de amigos mesmo, né, que eu fui meio que conhecendo, aí vai um, vai outro. Não foi a minha família, que a minha família é do interior. Então, foi mais amigo que foi fazendo e a gente chega e é bem recebido. O Pai, Pai Euclides, que já é falecido, fui super bem recebido. O Tata Mutá Imê é através dos meus mestres e minhas mestras de capoeira, Mestra Janja e tal, que são todas do terreiro e tal, virou nosso Pai e nosso amigo.
P1: E aí você mencionou também que seu pai era rezador, né? Queria te perguntar o que você lembra disso, do seu pai como um rezador? Se você tem alguma memória ?
R1: Eu tenho um pai rezador, muitas das vezes eles são meio mandingueiros. Eles falam pouco, né? Meu pai tinha um pouco isso aí, né, acho que ele era um pouco isso, assim. Não era o cara que, ah, eu estou aqui sentando, estou sentado aqui, aqui e as pessoas vêm benzer. A situação ou outra que ou ele armava, fazia, ou então alguém o chamava, né? Eu lembro que ele tinha muito coisa com barriga, ele conhecia muito a questão de barriga de mulher, ele dizia: "Ó, não sei o que, a sua barriga está muito baixa pra essa idade dessa criança, pra coisa, não sei o que e tal". Que tinha uma coisa assim, mas eu não... eu não... não tão palpável. Mas ele tinha um pouco essa questão da intuição também. Que um pouco eu tenho essa questão de também trabalhar com gestante. Tinha um médico homeopata aqui em São Paulo, já falecido, chamado Doutor Rosas. E tinha uma paciente dele que fazia aula comigo. Ela fazia aula comigo há um tempo e aí, quando ela engravidou, ela continuou fazendo aula, ela falava: "Pô, estou fazendo aula de dança e tal". Ele falava: "Como é que é a aula?". Pra ela, ela falava: "É assim" "Quem é esse cara?" "É Tião, Tião Carvalho". Ele falou: "Pô, mas você está tão bem e tal. Pô, que legal, não sei o que". E depois ele começou... outras pacientes dele: "Ah, eu quero fazer parto normal". Ele falava: "Ó, eu te aconselho fazer aula com esse cara chamado Tião Carvalho. Aconselho tu fazer aula com ele". E aí, quando ele começou a falar isso, eu comecei a falar: "Caralho, então o negócio é...". Porque tinha uma outra herança também, que aí é uma herança que acho que vem somar a isso, que é a parada do Klauss Vianna. Klauss Vianna era um grande professor de dança e um cara muito especialista em anatomia, né, um cara muito conhecedor de corpo, trabalhou com muita gente, com a galera da Globo, artistas da Globo, trabalhou com uma galera. E eu nem só toquei na aula dele, de dança e, vendo ele trabalhar o corpo das pessoas, movimento e corpo e não sei o que e fazendo música pra isso e aí observando as palavras dele, o que ele falava, como também eu fiz aula com ele, então eu aprendi bastante e aí fui desenvolvendo a minha própria linguagem também, né, porque eu já tinha todo esse lado mais de dançar mesmo, né, de ser dançarino, né, de... eu, enquanto dançarino, conhecer meu corpo e observava, que era discípulo dele também e fazia música e eu acho que é isso. E quando eu começo a dar aula de dança, né, de dança brasileira, começa a vir muitas mulheres pra grande parte do meu núcleo de alunos, né? Porque hoje em dia... hoje em dia não, homem nunca foi de fazer. Homem até dança, mas fazer aula de dança, fala: "Ah, é aula de forró, é não sei o que" "Mas, ó, vem dançar. Passa essa porta e vem dançar" "O que eu vou fazer?" "Entra e dança. É pra dançar". É mais raro do homem ir. Mas as mulheres vão. Então, eu fui também convivendo muito com mulheres, né, com mulheres e tal e sempre aberto também a aprender com elas, né, aprender coisa, observação, o tipo de reclamação e tal. Então, eu fui meio que, no mesmo tempo, aprender, né? Daí a questão também de dizer assim: "Ó, a relação pós-parto também, de saída da tua casa e só você sair desse universo da casa, que você está ali, sempre cuidando do filho, seu marido sai e você fica ali sozinha e não sei o que e tal, você sair já é legal e encontrar pessoas, né, ou outras mães, pessoas. Vai, né, fazer, mexer o corpo, alguém segura o seu filho pra você dançar um pouco, depois você vem". Então, isso também é um ambiente que não é só a dança em si, né? Tem toda uma filosofia em volta disso aí, né, procurar um bem-estar ou algo comum. Então...
P1: E foi esse momento que você começou a dar aula a primeira vez, assim?
R1: Não, não, eu já vinha dando aula. Quando eu cheguei em São Paulo, eu já... não necessariamente dar aula, mas eu já trabalhava, eu já dançava e eu já trabalhava. De repente: "Ah, tal escola quer dançar uma dança pra festa junina". Aí eu ia lá, falava: "Ah, aquele cara lá, o Tião, esse cara pode ser um cara interessante e tal". E eu bem simpático, não sei o que, respeitador, as diretoras gostavam de mim e tal: "Pô, que massa, que não sei o quê". Então eu fui também, eu também vindo, eu também me preparando, estudando, procurando fazer melhor, conhecer e também foi um incentivo pra mim, né? Foi um incentivo pra mim, pra eu ir descobrindo outras coisas. Então, essa do Doutor Rosas, que eu falava que ele começou a indicar paciente dele pra fazer, que queria fazer parto normal, a relação da dança, né, dança não sei o que, que eu tinha esse cuidado com a pessoa, de movimentar, mas o movimento pra cada um, trabalhar com a relação do limite das pessoas: "Ó, você tem o seu limite, você conhece o seu corpo. Ele é garoto, ele vai virar uma cambalhota aqui. Você não, você vai ver o que você vai fazer. Ele faz a cambalhota, você não precisa fazer. Vê o que você precisa, o que você faz, você consegue, você vai no seu limite. Não é obrigado a ter o mesmo corpo que ele, que ela, que não sei o quê".
P1: E quando foi que você foi ganhando essa consciência?
R1: No decorrer do tempo, decorrer do tempo. Assim, eu... faz... é, quando eu cheguei em São Paulo, há quarenta anos, eu comecei - quarenta, por aí, sei lá, trinta e poucos anos atrás - a dar aula de dança de novo em São Paulo e no Teatro Vento Forte, que eu já dava aula de dança e comecei... tinha um curso de formação de dança no Teatro Vento Forte, que era lá no Itaim, né, naquele teatro ali no... no Parque do Povo. Aquele... ali eu começo a dar aula de dança, curso de formação de atores e daí, depois do curso de formação de atores, não sei o que e tal, tinha pessoa que fechava o curso, acabava o curso, se formou, mas queria continuar tendo aula comigo: "Como é que eu faço pra ter aula?". Aí eu comecei a abrir uma turma extra, que não era só do curso, abri uma turma extra pra receber outras pessoas. Dava aula no curso num dia e outro dia recebia outras pessoas. Aí fui começando, começando, começando, aí depois a turma foi e falou: "Pô, não sei o quê. Professor, vem dar aula aqui, vem dar um curso aqui, não sei o quê". Viagem e tal. "Pô, vai...". Aí fui em vários lugares. Aí, uma época, eu fui pra um festival de... festival não, simpósio de educação, lá na cidade de Paulínia. Aí eu conheci umas... que é de educação, cheio de professores. Conheci umas três professoras, falam: "Puta, como é que a gente faz pra continuar tendo aula contigo?". Eu falei: "Porra, eu não sei" "Ah, eu moro em Paulínia" "Onde você mora?” "Pô, eu moro em Vinhedo" "Você?" "Eu moro em Campinas, não sei o que". Eu falei: "Pô" A gente achou que era legal arrumar uma turma, elas conseguirem... “A gente arruma uma turma e a gente consegue te pagar tanto e você vem uma vez por semana dar aula pra mim". Eu fiquei mais de dez anos indo pra lá, toda terça-feira dando aula. Surgiu daí.
P1: Isso em São Paulo?
R1: Campinas.
P1: Campinas.
R1: Eu dava aula lá em Campinas e aula em São Paulo.
P1: Mas voltando lá pra São Luís ainda.
R1: Bora.
P1: ((risos)) Qual que era a sua relação com a dança, lá? Você estava fazendo capoeira com quinze anos...
R1: Dança? Eu fui passista de escola de samba nessa época também, durante muito tempo.
P1: Como foi isso?
R1: Foi muito bom, muito interessante. Mas depois... é... depois eu mudei pra cá, pra São Paulo e aí o carnaval, em si, vai mudando também umas características, né? Então, aquela coisa de a turma parar de sambar, né, parar de sambar, as passista põe um salto desse tamanho, que fica difícil de sambar, de saltar, de não sei o que, os cara aquele negócio de tal, de pandeiro, tal, tal, tal, é legal, mas eu falo: “Não, eu sou do samba, eu gosto de sambar e tal”. E a escola, em si, foi perdendo também o swing da escola, a musicalidade também foi perdendo, né, aquele samba mais, né, de tal, que o Caetano Veloso falava de mão de preto no couro. Isso vai se perdendo com o tempo, né, ele vai virando muito essa coisa mais tradicional do nylon e coisa, uma coisa mais marcial do que swing africano. E aí isso é mais geral no Brasil, né? E lá também foi pra isso. Então, essas coisas... algumas coisas não foram mais. E os meus amigos, meus mestres também, com o tempo, também foram falecendo, morrendo e era toda uma galera nova que estava ali com outras ideias. E como eu não estava lá no dia a dia, eu não tinha mais um pouco aquela... foi perdendo um pouco aquela coisa de: "Pô, você chegou, aqui é a sua casa, faz o que você quiser, fica à vontade e tal". Até tinha um conhecimento, mas era diferente da turma mais velha que a gente tinha afinidade, que é no caso do Tabaco, e tal, e outros, outros artistas, mestres ali da... então, eu fui meio que afastando da escola, por causa disso. E outra coisa, eu comecei a trabalhar no carnaval também. Eu já estava preferindo trabalhar no carnaval, ganhar uma grana e até mesmo brincar o meu carnaval depois.
P1: Trabalhar fazendo o quê?
R1: Tocando música.
P1: Tocando?
R1: Cantando.
P1: Cantando também?
R1: Cantando, sempre... sempre... faz muitos anos que eu canto no carnaval e gosto muito.
P1: Qual foi a primeira vez que você ganhou um dinheiro com música?
R1: Com música? Eu fui tocar com a Alaíde Costa. Alaíde Costa é uma grande cantora brasileira, da época da bossa nova e um amigo meu, que ele chama Pipiu, que é músico, Arlindo Pipiu, músico, ele morou no Rio durante muito tempo, mas que ele estava em São Luís, ele... a Alaíde foi tocar e aí ele tocava, fazia o show em lugar meio chique assim, né, pequeno, era mais voz e violão, então era uma voz, um violão, um pandeiro e um tamborim, só. Ele me chamou pra tocar pandeiro e tamborim com ele, era a primeira vez que eu recebia o dinheiro trabalhando com música, ainda em São Luís. Devia ter meus vinte, vinte e poucos anos.
P1: Mas ali você, com quinze, dezesseis, o que que você estava querendo da vida? Você... como é que era? Eu quero entender um pouco esse pedaço da adolescência.
R1: Rapaz, é possível que eu estivesse querendo ser jogador.
P1: De futebol?
R1: É. É bem possível. Passou várias coisas na minha cabeça. Uma época a turma me... um lado da minha família queria que eu fosse militar. Tinha um tio meu que queria porque queria que eu fosse sargento do Exército. Agora deixa eu te contar. Esse cara era coronel do Exército. Ele era irmão desse pai de criação meu, da família do português, ele era coronal do Exército, cara... isso na época do Sarney, o período ali ditadura, pós-ditadura. Ditadura. Era ditadura ainda. Acho que nem era Figueiredo. E a turma dizia: "Não, porque ele é... ele é...". Como é que era o termo? Disciplinado. Eu era disciplinado e tal, obediente, não sei o que, e forte, então eu tinha a parada de ser militar. Mas ele... isso eu fui matar a charada depois. Na cabeça dele, eu já era militar, mas eu... porque eu era negro, eu nunca chegava num cargo... ele já sabia que eu não ia chegar num cargo, que eu ia ser coronel, que eu ia ser parará. Porque eu era negro. Ele já sabia. "Olha". Ele: "Tudo bem, beleza, mas ele vai ser, no máximo, um sargento. ‘Pererê’ e, se ele virar tenente, é uma coisa muito dele". Entendeu? Porque já sabe. Então, era pra sargento. Eu não fazia essa leitura. Eu fui fazer essa leitura, como eles viam, eu já adulto. Porque eu tinha... na época, eu era sargento e pra mim já estava bom: "Ô sargento". Eles até brincavam comigo: "Ô sargento". Então, ele me chamava de sargento. Eu tinha corpo: "Pô, eu posso ser um grande militar e tal". Eu lembro que isso aí um pouco mais novo. Depois, acho que a outra coisa foi futebol e tal, depois eu acho que a música...
P1: Foi o que te chamou, assim?
R1: É, a música me deu asas.
P1: E isso você...
R1: A capoeira e a música, né, que as coisas vieram mais ou menos juntas. Capoeira chamou muito a música também, pra profissional. Já tinha a música, mas esse lado profissional, de aprender a cantar, conhecer pessoas, foi a capoeira e o meu mestre, que me colocou aí nesse meio artístico, né, junto com os artistas, com os intelectuais da cidade e tal. E isso sempre fui carismático, de uma certa forma. Foram raros os lugares que eu cheguei e rolou confusão. Mas já rolou.
P1: Mas aí você estava morando com a sua tia, ainda?
R1: Minha tia, sempre morei com ela, lá em São Luís.
P1: E como é que era essa convivência, você crescendo morando lá? Ainda os filhos... tinha três meninos que moravam com ela também?
R1: Mais velhos. A essas alturas, tinha um que morava com a gente ainda e... um que morava, os outros dois já não, já estavam, inclusive, casados já, eram todos mais velhos que eu. O mais novo dos três ainda morava com a gente, depois casou também, foi embora, ficou eu. Mas era uma casa grande, sempre recebia gente da família, tanto a família vindo dos brancos e a família vindo dos pretos. Casarão grandão. Então, sempre tinha gente ali, sempre.
P1: E você sentia que tinha algum conflito racial, assim, na casa?
R1: Não tinha... não chegava a ter conflito, mas tinha, sim, uma determinada diferença, sabe? Um tratar. A gente não entrava tanto em conflito por causa disso, mas essa diferença existia e a gente terminava meio se adaptando e, às vezes, se acomodando, né?
P1: E seu mestre chegava a falar sobre isso também?
R1: Não. Porque o meu mestre também... eu já estava um pouquinho maior também. Já estava um pouquinho maior, aí eu já estava um pouquinho mais dono de mim, já saía com ele, né, já tinha um pouco aí, tal.
P1: E antes... agora que eu quero entrar como você... como ele foi abrindo, eu vi que eu não perguntei nada das suas lembranças do tambor de crioula. Então, queria saber como é que era o tambor de crioula.
R1: Tambor de crioula. O tambor de crioula é assim: na minha terra, Cururupu, na Baixada Maranhense, na região da baixada, que é a minha região, é chamada de Tambor Grande. Tem o Tamborim e o Tambor Grande. Tamborim é chamado de Tambor Grande, só na baixada. Meu pai já era cantador de tambor. Meu pai, meus tios, então eu já tenho isso desde lá. Mas, como eu falei, eu vivi aí até os meus oito anos de idade, então a memória é muito vaga. Então, eu tenho memória mais de São Luís do que de Cururupu, de oito anos pra cá, né?
P1: E lá de São Luís?
R1: De São Luís, eu fui conhecendo os grupos, o grupo tal, grupo do seu mestre Felipe, o grupo de mestre Leonardo, o grupo de mestre Nivu, né? Grupo do... a turma, né, a turma de Dona Terezinha Jansen, né? E eu lembro que um tambor que eu me lembro, que eu estava comentando outro dia, é de uma senhora chamada Dona Salomé. Dona Salomé era uma senhora, uma negra grandona, alta assim. Eu lembro que eu era criança e ela, grande, então a gente sempre tinha esse negócio assim, ((riso)) né, que é criança, tudo maior, né, parece um prédio. Então, tinha aquela coisa daquela mulher grandona e tal. Era qual que eu só vi ali, só com ela eu vi. Ela tinha um tambor... todo tambor de crioula tem um grupo grande de mulheres, as coureiras e homens que tocam no tambor dela, era só ela que toca... quem dançava, não tinha outras mulheres. Dona... Dona Salomé. E ela era uma grande doceira também, ela fazia doces e vendia doces na rua, não sei o quê. O caso, tambor dela, eu sempre lembro do tambor dela no carnaval, que acho que era um domingo de carnaval, sempre o tambor dela ia dançar uma rua abaixo da minha casa e eu escutava o tambor, saía da minha casa e ia lá ver o tambor dela e ela era dançando, só ela dançando, os caras tocando, só ela de mulher dançando. Mas eu... era os grupos assim, né, depois fui virando amigo desses mestres, né, naturalmente, vai pra coisa, aí tem a festa na casa de um, você vai, aí você toca, você canta, você conhece as pessoas, vai ficando um pouco conhecido nesse ramo, nessa área aí dos tambores. E...
P1: Chegou a ter algum episódio que te marcou, desse encontro com os tambores?
R1: Não, marcante não. Marcante não, que eu lembro. É... A única coisa que eu lembro do tambor, por último, na realidade, é o episódio que não é muito... mas era uma época que o tambor furou. Uma época a gente jogou... teve uma Copa do Mundo, jogou Brasil e Alemanha. Não é esse último jogo Brasil e Alemanha, final, não esse que ganharam da gente, o que a gente ganhou deles.
P1: Uhum.
R1: Antes da gente ganhar, foi 1990... acho que foi na década de 90. Será?
P1: O que ganhou a Copa?
R1: É, que nós ganhamos a Copa dos alemães.
P1: Foi 2002.
R1: Nós ganhamos dos alemães?
P1: É.
R1: 2002? É, então foi por aqui. Foi isso aí, de repente, acho que foi. Bom, de repente não, você sabe mais do que eu. Mas isso era um dia de domingo e o jogo foi de manhã. E o tambor de crioula tem um espírito, pelo menos tinha, hoje em dia já não tanto, é... ele é muito importante. O tambor de crioula é algo milenar, né, milenar, ele é infinitamente, ninguém sabe a origem, exatamente. Sabe que é africana, mas não sabe como chegou no Brasil, quando, nem onde, nem por quê. E ele tem o ato de sempre... é tocado em situações muito especiais, certo? Assim, desde que acabou uma guerra, acabou a guerra no Golfo: "Pô, vamos fazer um tambor, nós, pra comemorar que acabou a guerra lá não sei onde e tal. O Brasil ganhou uma Copa, vamos fazer um tambor pra comemorar que o Brasil foi campeão, não sei o quê". Então, você vai... se for muito... data muito forte, né? E muito profundo também. Nesse a gente ficou no dia, porque a hora do jogo, acho que era oito da manhã, ou sete, sei lá que hora era, a gente falou: "Vamos fazer o seguinte, vamos dormir. Se a gente não dormir, a gente não acorda pra ver o jogo. E nós vamos... o Brasil vai ganhar, nós vamos fazer o tambor. Se o Brasil ganhar, nós vamos fazer o tambor. Aliás, vamos fazer na praia". Fomos pra praia, passamos a noite bebendo, não sei o que e tal, fomos pra praia de manhã, acabou o jogo, não sei o que, fizemos a fogueira na praia e vamos tocar o tambor, porque o Brasil ganhou, na praia, mas já mamado. E aí o tambor esquentou, não sei o que, estava afinado, não sei o quê. Pois o tambor do meio estava quente, muito quente o couro, porque acendeu a fogueira pra aquecer, então o couro estava muito quente. O que o meu amigo fez? Ele falou: "Putz e se eu esfriar esse couro?". Pegou o couro e botou assim na areia. Fez assim. (risos) Quando ele botou o couro na areia, que ele mexeu, o couro "pau". ((risos)) E aí... aí puta, ((risos)) furou o tambor, né? E são três tambores, furou um, aí frustração, não rolou o tambor. ((Risos)) Não rolou o tambor. Aí a gente falou: "Pô, não sei o que, não rolou o tambor e tal". Coisa meio frustração de tambor, alguns episódios que eu lembro assim, de coisa, que a gente estava louco, passou a noite inteira pensando no tambor, era jogo do Brasil, o Brasil ganhou a Copa, ia tocar o tambor e... é isso. E uma outra coisa que eu falo meio que remete o tambor, em relação a... é uma... meio que uma metáfora que eu uso, que eu falo que fosse uma época... houve uma época que a gente acreditava que, tocando o tambor, chovia e hoje a gente não acredita mais. Então, a gente tem muita dificuldade pra apagar esse fogo todo. Se fosse na época que a gente trabalhava com a fé e realmente acontecia, porque a fé fazia com que acontecesse, a gente já teria resolvido o fogo daqui, talvez até lá na Califórnia. Entendeu?
P1: Era bom, né?
R1: É, agora a gente não acredita mais, a gente não toca. Se a gente não toca, não acredita, nós não tocamos, não chove.
P1: Interessante. E como é que era essa relação com a fé, assim, nas pessoas, em você mesmo? A sua relação com a fé?
R1: Eu só, apenas procuro só não ser religioso demais, mas a fé, sim, né, a fé eu acho que é fundamental. A fé vem no meu trabalho, né, nas coisas, a fé no conduzir a vida. A fé, né, conduzir a vida. Conduzir a vida, ela tem a ver com sobrevivência. Como é que eu conduzo a minha vida pra que eu sobreviva. "Eu sobreviver" que eu falo, é sobreviver com dignidade, entendeu? Sobreviver com dignidade, né, sabendo o caminho que eu fiz, né? Eu tive... vários garotos, que muitas vezes as pessoas falam pra mim: "Pô, Tião, você tá velho. Pô, cabelo branco". Às vezes até brincando, com ironia, eu falo: "Pô, graças a Deus". Sabe por que graças a Deus? Porque muitos amigos e amigas minhas gostariam de ter ficado velhos, ter envelhecido e envelhecer com dignidade, como eu estou fazendo. Que bom que eu estou ficando velho! Que bom! Certo? Eu até choro quando eu vejo amigos meus pra trás, que gostariam de ficar velhos também, como eu estou ficando. Não conseguiram, né, por vários motivos, porque morreram ou porque foram presos, porque bateram, porque apanharam, né? Porque roubaram.
P1: E nas suas amizades lá de São Luís tinha isso?
R1: Eu acho que tem, né? Eu conheço muita gente, então já teve de tudo, sabe? Já tive amigos cadeieiros, sim.
P1: E como eram os seus amigos lá?
R1: Amigos que morreram, foram mortos, amigo que matou alguém.
P1: Era a polícia ou era...
R1: Não, quase nunca a polícia. Polícia, eu não lembro de nenhum. Teve um amigo... acho que eu tive um amigo que era policial. Era policial e era capoeirista também. O cara o matou com a arma dele. Dois compadres.
P1: Ele era capoeirista e morreu com a própria arma?
R1: Com a arma dele. Que o amigo dele pediu a arma dele pra... e ninguém pegava na arma dele. O amigo dele pediu a arma pra ele pra ver, ele passou a arma e o cara atirou nele.
P1: O amigo dele?
R1: É.
P1: Nossa!
R1: Amigo não, compadre, só pra ser mais preciso.
P1: Caramba!
R1: É, pois é. ((risos)) Você falou... você falou pra eu falar.
P1: Não, tem que falar mesmo. Impressionante, né? E aí, continuando assim, a sua vida. Aí você falou que aí o seu mestre começou a te apresentar uns intelectuais.
R1: É, da cidade, pra mim também, né?
P1: Como é que aconteceu? Como é que foi isso?
R1: Apresentar, acho que era algo até intuitivo. A turma estava por ali, eu andava meio com ele, falava: "Não sei o que, eu conheço aquele". Uma vez ele me arrumou um emprego de ajudante de topografia.
P1: O que é topografia?
R1: Topografia é uns caras que trabalham num determinado censo. Acho que não tem mais isso, então isso é de outra forma. Eles trabalham num determinado censo de... acho que IBGE, que lida com... é... questão ali meio geográfica, local ali, então pra dizer: "Porra, esse quarteirão tem tanto até ali, daqui até aqui é tal. Aqui termina o bairro de Perdizes e aqui começa a Pompeia. Então, não sei o que". Então você vai ali e ajuda uns caras que não são topógrafos... não são necessariamente engenheiros, são topógrafos, que vão fazer isso aqui. Então, tu vai ficar ali segurando uma coisa, traz não sei o que e tal. Esse meu mestre me arrumou esse trabalho. Então, era um pouco assim, era mais meio que uma espécie de filho dele, que ele dizia: "Porra". Aí arrumava os empregos pra mim, né?
P1: E como foi que você ganhou esse nome de Tião?
R1: Tião é o seguinte: na década de 70 o... tinha um jogador no Atlético Mineiro... o Atlético estava muito bem nesse Campeonato Brasileiro. Isso acho que foi 1970, 1971, depois da Copa do Mundo de 70. Em 1970, eu tinha quinze anos. Depois da Copa do Mundo de 70... e tinha o jogador que chamava Tião. Tião Abatiá. Tião Abatiá foi jogador do Botafogo, depois ele foi pro Atlético. E até que era um cara novo assim, negro também, era um cara meio que lembra na época do Robinho do Santos? Que todo mundo falava: "Robinho, Robinho, não sei o que e tal"? Esse cara era o Tião da época, era o que tinha essa... carisma, não sei o que e tal e esse era o Tião. E a turma falava que eu parecia muito com ele, que eu era parecido, que eu jogava bola também, falava: "Pô". E ele foi jogar lá em São Luís, esse Tião. O Atlético foi jogar em São Luís, acho que contra o Sampaio Corrêa. Eu não assisti, mas a minha galera e tal: "Ah, pô, esse cara parece com o Tião, o Tião. Ó o Tião. Porra, chama o Tião. Ó, Tião! Não sei o que e tal. Tião, Tião, Tião". Começaram a me chamar de Tião no futebol. Aí quando eu fui crescendo, a minha galera me chamava de Tião, eu fui sendo conhecido por Tião. Aí, numa época, tinha um outro amigo lá em São Luís que chamava Tião, da capoeira. Esse cara era muito amigo meu, família dele gostava muito de mim, a gente era muito parceiro, assim. Ele tinha irmã mulher e não tinha irmão homem. O pai dele era da Polícia Federal, ‘seu’ Amadeu e a Dona Juraci. Juraci era a mãe dele. Eles gostavam muito - eu comia muito na casa deles: "Ah, o Tião está aí, não sei o quê" - de mim. E aí, então, no São Luís tinha dois Tiões conhecidos. Era um cara que era do handebol. Esse cara chegou a vir pra seleção brasileira jogar handebol, pra seleção brasileira, não demorou muito e tal, o dispensaram. E Tião do handebol e Tião da capoeira. E depois que eu fui meio que virando músico, não sei o que, artista e tal, eu falei: "Bom, Tião... a turma me conhece por Tião, eu não vou... Tião é mais legal do que José Antônio". Eu acho mais massa, mais viável, mais não sei o que, então eu botei Tião, Tião Carvalho, por causa do Tião Abatiá.
P1: Que é o do futebol?
R1: Do futebol.
P1: Que massa!
R1: Jogava no Atlético.
P1: Aí, me conta: você mencionou, assim, quando você era criança tinha o boi, aí tinha o tambor de crioula, mas aí você comentou uma hora que você estava tocando violão, outra hora, cavaquinho, outra que você foi chamado pra tocar pandeiro. Como é que se dava esse aprendizado, com tantos instrumentos diferentes? Você aprendia como, assim?
R1: Rapaz, era muito na roda. Era na roda. O cavaquinho e violão, eu tive o professor, né, esse cara que me levou, né, o Arlindo Pipiu, sempre os meus mestres, eu era garoto e ele meio que me levava pra me apresentar pra trabalhar, pra não sei o que, né, pra... e ele sabia também que eu era um cara que podia levar pra qualquer lugar, que eu não ia arrumar problema, sabe? Eles tinham um pouco essa coisa, eu não era de ficar mexendo, desrespeitando ninguém, tal, ele sabia qual era a minha. Então, eles meio que me levavam. Então, isso aí. E essas coisas de rodar, era muito da roda de samba, mesmo. A gente estava por ali, sobrou um instrumento: "Passa pra esse aqui". Aí o mais velho falou: "Ó, está errado. Pô, fica mais, não sei o que. Toca mais baixo. Ó, não sei o que. Pô, o toque é esse aqui ó, do pandeiro". Acabou a roda, fica ali a pessoa te passando, não sei o que, passando o toque, aí você vai meio aprendendo, né? Essa... um pouco essa versatilidade aí, eu acho que é um pouco típica, às vezes, dos artistas nordestinos, né? Até... eu acho que até, muito, que às vezes tem que se virar, né? Se virar nos trinta. Às vezes você encontra um cara, tinha aí o cara bonequeiro, toca viola, canta, compõe, dança. Né? Faz um monte de coisa ali o mesmo cara, é capoeira. Então, tem um pouco essa coisa. E eu trago um pouco essa herança aí, tocar cavaquinho. Isso tudo... foi meio problema pra mim quando eu trabalhei bastante com teatro, que eu fazia teatro e fazia música, então fazia teatro temporada. E aí, quando eu precisava, às vezes, fazer uma viagem musical, sei lá, ou, às vezes, um festival, ou fora, ou no Brasil, ou fora do Brasil, às vezes tinha que substituir, então era difícil compor, alguém... chamar alguém que ia me substituir, alguém que cantasse. Aí quando ia construir o espetáculo, eu construía: eu botava berimbau, botava não sei o que, eu tocava cavaquinho, cantava, atuava. Aí, quando ia botar alguém no meu lugar, (risos) o cara dizia: "Pô, mas essa música é com violão, essa aqui é com cavaquinho, berimbau, essa é com pandeiro, esse é atabaque, esse aqui é não sei o que, essa aqui é só efeito, essa é canto". Às vezes, uma pessoa só era difícil de conceber tudo isso, né, aí depois eu falei: "Olha...". Eu e o Wilian falamos: "Não, é melhor conceber __ (02:15:42). Eu estou achando que eu vou direcionar mais pra música aqui, porque teatro tá dando muito trabalho pra nós". Aí foquei mais na música também.
P1: ((risos)) Mas conta um pouco, você não contou, dessa aproximação com o teatro. Aconteceu onde?
R1: Teatro foi o seguinte: o teatro, eu... também em São Luís tinha um grupo de teatro lá, ainda existe esse grupo, chama Grupo Laborarte, que até é um grupo de capoeira hoje em dia também, é... eu sou um dos mestres da casa lá também. E esse grupo, eu conheci há mais de quarenta anos, lá em São Luís, né e aí eu fui fazer uma __ (02:16:19), tal, eu fui fazer... me chamaram pra tocar num espetáculo. Espetáculo do Tácito... era um texto do Tácito Borralho e Josias Sobrinho. Josias é um grande compositor também e o Tácito, um grande diretor de teatro e eles escreveram essa peça que chamava O Cavaleiro do Destino. Falava um pouco sobre a história, também, de Dom Sebastião, na Praia de Lençóis e tal, uma história bem bonita. Eu fui fazer esse espetáculo com ele. E uma época eles resolveram... e tinha um festival de teatro de boneco em Ouro Preto. Já fazia... já tinha feito algumas coisas lá em São Luís também, com teatro, mas com esse grupo tinha um festival de teatro de boneco em Ouro Preto. E aí a gente foi. Nessa viagem pra Ouro Preto, a gente foi pra Ouro Preto... é... foi pra Belo Horizonte, foi pra Mariana também, tudo isso Minas Gerais, nós fomos pra Mato Grosso, Goiânia e Cuiabá, nessa mesma viagem. E fomos pra esse festival em Ouro Preto, que era um festival de teatro de boneco, tinha povo de vários lugares do Brasil e alguns também da América Latina, aqui. E aí eu conheci esse grupo de teatro Vento Forte, que era do Rio de Janeiro, do Ilo Krugli, que é dramaturgo argentino e tal, faleceu aí faz dois anos atrás. Eu conheci esse grupo do Ilo. Fiz amizade com o Ilo e com a turma do grupo deles. Tinha dois maranhenses nesse grupo dele, que era o Ronaldo Mota, que é meu amigo e a Júlia, Júlia Emília, que era desse elenco do Ilo. Fiz amizade com ele, tal, tem um sanfoneiro chamado Teo e aí o cara super curtiu de mim, porque eu cantava, cantava forró, né, tocava pandeiro, triângulo. O cara falou: "Porra”. E não parava, junto. Aí ia a galera, onde a gente estava, "uh", enchia de gente, né, acabou o espetáculo: "Ah, vamos pra tal lugar à noite?" "Pá". Aí a noite e toca. Aí... é... a gente... conheci esse grupo, beleza, lá em São Paulo, a gente fez amizade, o grupo foi pro Rio, voltou pro Rio, eu voltei pro Maranhão. Mas ficou aquela coisa muito forte. Quando a gente chegou no Rio... quando eles chegaram no Rio, isso foi em... janeiro, acho, que eu conheci, aí em... janeiro, fevereiro, março, abril, eles escreveram pra mim falando o seguinte: "Ó, a gente tem uma viagem internacional pros Estados Unidos, fazer em maio e a gente está precisando de um músico percussionista. O que você acha? Você não quer vir pra ir com a gente? Vir pra cá, pro Rio? Vir com a gente? É isso aqui, tem um... vai receber, né, por isso, porque é um trabalho, né e você vai ter um contrato direto com o... o Inacen". Que é o instituto... era um órgão do Ministério da Cultura, Inacen, que é o de teatro, né, Instituto Inacen, Instituto Nacional de Cenas. Aí tinha um contrato com o Inacen, que era com o Ministério da Cultura, e eu, garoto de tudo, falei: "Pô, trabalho, não sei o que, vou pros Estados Unidos. Claro que eu vou". Daí o outro, eu falei: "Puta, eu vou. Como é que é?" "É assim, assado". Aí tal, comecei a correr atrás de documento que eu não tinha, comecei a me arrumar, né e tal. A turma da minha família me ajudou e eu fui pro Rio, pra fazer uma temporada com eles nos Estados Unidos. Isso foi em... isso aí, em maio de 1979. Aí eu fui pro Rio, passei dez dias no Rio e fui pros Estados Unidos, passei quarenta dias nos Estados Unidos.
P1: E como foi nos Estados Unidos?
R1: Estados Unidos foi doideira. ((risos)) Estados Unidos foi doideira. É... e aí eu fui pros Estados Unidos, mas dá pra falar, contar um pouquinho. Pros Estados Unidos eu fui... a gente chegou em Nova Iorque... vai vendo onde eu chego. Nova Iorque, depois de Nova Iorque a gente foi pra Washington... Washington... Washington, aí de Washington a gente foi pra Kansas City, fomos pra Tucson, Arizona e depois a gente foi pra San Francisco, é... na Universidade de Stanford, na Califórnia, San Francisco. E foi isso, passei esse... passamos esse tempo pra primeira viagem, aí eu fui pro... a gente voltou pro Rio. Quando a gente voltou pro Rio e aí a gente tinha mais temporada pra fazer no Brasil, tinha mais trabalho pra fazer no Brasil.
P1: Mas aí lá vocês apresentaram em inglês?
R1: Não, não, tudo em português.
P1: E como é que o povo entendia?
R1: Isso é pergunta boa. Aí é que está, pergunta é boa. ((risos)) Aí é que está, aí é que está a relação da fé. Isso aí também é fé. Você fazer... muita das vezes... isso, eu trabalho também isso, né, aí até... é o que eu trago aqui na manga. Muita das vezes você não precisa... aqui, né, você vai usar uma outra coisa, outros tipo de sentimento pra você fazer. Então, a gente fazia espetáculo, a pessoa sem entender nada, muita das vezes acabava o espetáculo, a turma estava chorando, certo? ((risos)) E falava mesmo. A pessoa fala: "Ó, eu entendi tudo". Muita dança, muita música, cores, movimento, sabe? Olho, gesto, fala com... sabe? Não tira uma, não faz pra inglês ver. Respeite as pessoas. Não existe "pra inglês ver". Inglês não gosta de ver, inglês gosta de ver coisa boa, sincera, verdade. "Ah, pra inglês ver". Não tem negócio pra inglês ver. Sabe? Respeite as pessoas, pra você ser respeitado, ser respeitada. Faça bem feito, seja sincero. É isso. A pessoa viu que você está fazendo, você está falando a verdade, não está tirando uma dele, nós estamos atuando, eles vão ver e vão dizer: "Pô, eu entendi, entendi tudo, do começo ao fim". E fala em português. Em nenhum momento... às vezes nego até podia armar uma coisa ou outra, tirando uma, falando uma palavra ou outra, não sei o que, em inglês, mas não tinha esse negócio de texto em inglês, esquece. Tanto isso como na música. Na música, todos os lugares que eu fui, todo lugar... e olha que eu já rodei, sempre cantando em português, sempre cantando em português. Era justamente isso que eu estava falando, justamente do teatro, né?
P1: Do teatro. Aí você voltou dos Estados Unidos, você disse que tinha mais temporada aqui no Rio, né?
R1: Isso. Quando tinha mais temporada no Rio. E falando __ (02:24:35) teve duas coisas interessantes, ou três, ou mais, mas tem algumas coisas assim. Uma: eu me perdi no metrô de Nova Iorque, sem falar inglês, sozinho. Não ri, véio. ((risos)) Ria não, véio, ria não. (risos) Você não acredita. Resolvi que eu ia era lá no... como é que é? Real Park, que eu ia no Real Park sozinho, não sei o que, pô. Mas uma hora dá aquele coisa e eu falei: "Puta, passei. Onde é que eu estou?". Aí eu falei: "Caramba, negócio é o seguinte: deixa eu concentrar aqui. Deixa eu descer". Desci. Aí fiquei falando: "Porra, conta a estação. E a minha sorte é essa: se eu conseguir sair do metrô, onde eu entrei, eu estou em casa. Se eu sair em lugar diferente, eu estou fodido". ((Risos)) Ou melhor, como diz o baiano: “Estou lenhado". Se eu sair em lugar diferente... eu contei. Eu acho que era mais ou menos cinco ou seis estações, aí eu voltei, quando eu saí, eu vi o prédio, saí na frente do prédio assim, eu falei: "Nunca mais. Vamos embora pra casa. (risos) Nunca mais. Eu me perco aqui e tal". Me perdi no metrô de Nova Iorque e estou aqui. Porque poderia não dar, se perder no metrô de Nova Iorque, sem falar inglês, metrô. Vai explicar o que, pra quem? Outra nos Estados Unidos também. Nós estávamos pegando um voo... esse lugar, não sei se era San Francisco, dentro dos Estados Unidos, de um estado pro outro. Pegando o voo de manhã, de manhã cedo, pegando aquele voo, aí eu chego num lugar. Ali eu andava com uma pasta, onde eu ia botando cartão postal, foto, coisa mais pessoal, naquela pastinha. "Tião mestre pastinha". Sempre com a pastinha na mão. Aí tal e chego lá na moça do check-in ali e tal, comecei a falar português, alguma coisa: "Ah, brasileiro e tal". Começo meio ali a conversar com a moça, não sei o que, meio que... sei lá, uma... assim, não chegava a ser uma paquera, mas alguém diferente que foi com a sua cara, estava meio conversando, mas nem parar muito, ela estava meio trabalhando, não tinha muito nada, era mais ou menos aquilo. Mas eu lembrei dela, ela lembrou de mim, não sei o que, pá, fui bem atendido, muito obrigado, entrei no avião. Quando eu entro no avião, entrei com a minha turma toda no avião, entro no avião, sento no... aqui no Brasil... lá tinha... naquela época tinha... já tinha aqueles tubos que vai aqui no avião e que depois tira do avião, tal, você... aquele corredor que cola no avião. Antigamente era só escada, subia a escada e entrava, agora tem esses tubões aqui, que você vai por dentro, tal. Lá já tinha, aqui não tinha aquilo ainda. Aí entro naquilo ali, sento na poltrona do avião aqui, todo mundo aqui do lado e eu pego o meu cartão de embarque, está aqui comigo, eu ponho aqui, coisa aqui, já ponho o meu cinto e tal. Aí eu penso assim: "Puta, esqueci a minha pasta lá embaixo". Aí, o que que eu penso? Eu falo: "Puta, esse povo aqui é burocrático pra caramba. Se eu for falar que eu esqueci a minha pasta lá embaixo, aí eu vou perder essa pasta. Vou perder essa pasta, os caras não vão recuperar essa pasta nunca. Eu vou lá buscar". Pra quê? Fui buscar, levantei, saí do avião, fui lá buscar, peguei a pasta, falei pra ela: "Esqueci". Excuse me, em inglês, né? Ela falou: "É, você deixou aqui, tal". Peguei a pasta. Quando eu vou passar lá, pra entrar no avião, um senhor assim, desse tamanho assim, do tamanho da porta: "Ãhn?". Eu falei: "__ (02:28:37)" ((Risos)) "Ticket". Eu falei: "Ticket? Não, está lá dentro". Ele falou: "Ué, está lá dentro? Aqui só com ticket". Aí eu: "Girl, tal. ((Risos)) Sorry. O cara aqui está querendo...". Foi falar lá pro cara: "Ó, ele tá lá dentro com os cara lá, alguma coisa, de brasileiro". Ele falava: "Não, mas aqui não é assim. Aqui é só com ticket". Aí ela falava: "Não, mas não tem... ele está, ele entrou com um grupo de brasileiros, eles estão lá dentro". Ele falou: "E eu? E eu com isso? Aqui tem que pegar ticket. Não interessa onde está o ticket dele, não sei o quê. Aqui é com ticket". Ele falou pra ela falar: "Pelo amor de Deus, o teu voo está pra sair. Esse cara tem que entrar. Não dá pra esse cara ficar aqui. Se ele ficar aqui, a polícia da imigração vai pegar e vai prender esse cara, que ele está sem os documentos dele, está tudo lá dentro, facilita. Vão perder o documento dele, está tudo lá dentro. A polícia da imigração vai pegar aqui e vai prender, porque está sem o documento, ele não fala inglês. Ele precisa ir". Aí o cara falou pra ela: "Leva ele pra sua casa". ((Risos)) Aí ela falou: "Filho da puta". Eu o entendi falar. Eu não sei falar inglês, mas eu entendi o que ele falou pra ela: "__ (02:29:59), não sei o que, conclusão, não sei o quê". Aí ela pega um... o fone e aí ela fala assim: "Fala lá pros seus amigos que tu está aqui, dentro do avião. Eu vou botar a tua voz no avião, você fala". ((risos)) Minha voz dentro de um avião, em português, seis horas da manhã, cheio de executivo americano querendo ir pra um lugar, entra uma voz. Pô, se fosse hoje em dia, o nego ia achar que era terrorismo, né? Aí os caras e eu ali falando: "Alô". Aí todo mundo dentro do avião cheio, mais de cem pessoas, cheio, aquele Boeingzão enorme, eu falando: "Alô, brasileiros, sou eu, Tião". Os caras: "Pô, Tião, Tião". Eu: "Sou eu, Tião, estou aqui fora, não sei o que". Ele: "Porra, cadê o Tião? Está lá fora". E eu falando e os americanos tudo olhando. Isso nunca aconteceu. Aí tudo olhando, falando assim, não sei que, eu falando, aí o cara, que era diretor da gente, chama Alberto Braga, que era o líder do grupo, responsável, produtor: "Ah, porque não sei o que". Chegou pro cara do coisa: "Tá aqui a minha credencial do Itamaraty, eu sou responsável por essas pessoas. Esse cara não pode ficar aqui, não sei o que, tal". Aí eu ali, nervoso, olhava pro avião. Aí uma hora eu vejo aquele tubo do avião saindo. Quando eu vejo o tubo saindo, eu falei: "Puta, agora fodeu. Agora já era. Não dá mais". Aí não sei o que, eu ali, não sei o que. Aí depois eu vi o tubo voltando, o tubo voltando. De onde eu estava dava pra ver o avião, né? Aí eu vi o tubo voltando. Aí não sei o que, aí eu acho que alguém veio do avião, saiu do avião com o ticket, aí veio alguém do avião, uma aeromoça ou aeromoço, veio: “Está aqui o ticket dele, não sei o que. Vem correndo". Aí eu fui correndo, entrei. Quando eu entrei, os caras do avião inteiro levantaram e bateram palma pra mim. Eles falaram: "Não tem que bater palma pra esse negão brasileiro aí. Pelo amor de Deus. Aqui nem o Nixon, presidente Nixon, os Kennedy, ninguém atrasa o avião aqui nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos não se atrasa avião. Esse cara vem atrasar? Não tem que bater palma. Para". (risos) Atrasamos ali uns três, cinco minuto o avião. Rapaz. Então, foi umas coisas nos Estados Unidos, assim, que ficou pra história. Essa do avião foi muito. E, por um outro lado, também teve uma outra coisa que aconteceu também em Nova Iorque, a gente fez um espetáculo no Teatro La Mama e tinha o diretor musical, que eu não vou lembrar agora, mas ele foi diretor musical de alguns filmes assim tipo Laranja Mecânica e tal. Esse cara assistiu o nosso espetáculo...
P1: Kubrick?
R1: Hein?
P1: Kubrick?
R1: Será que é ele? Não vou lembrar o nome dele. Mas é um diretor musical.
P1: Ah, musical?
R1: Musical. Aí esse cara colecionava espetáculo... espetáculo, colecionava instrumento. Ele era um grande músico que colecionava instrumento. Tinha um puta apartamento de cobertura lá em Nova Iorque, que tinha instrumento pra caramba, de tudo quanto é tamanho, tudo quanto é tipo de instrumento. O cara tinha muito mesmo, um puta colecionador. E ele viu... a gente entrava no palco tocando uma vassoura com guizo e uns coisas que eu tocava. E a gente, então, tocava com aquela vassoura, fazia uma espécie de um baião tocando, nós fomos batendo aqui e aqui, no ritmo. Quando ele viu aquilo, ele pirou. Ele foi falar comigo: "Pô, não sei o quê. Pô, você não quer ir na minha casa? Chama aí os seus amigos. Não, chama todo mundo do grupo". Aí chamou, fez uma festa lá pra gente e foi visitar a casa desse cara também. Mas naquela época... hoje em dia eu já sou um pouco... ainda tenho um pouco essa dificuldade de guardar nome, não sei o que, então eu conhecia, nem dava valor tanto, né? Conheci tanta gente importante, não sei o que, pra mim parecia que... tinha esse negócio: "Ah, tira uma foto comigo. Ó, tira não sei o quê". Então, não tinha essa parada. Conheci Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa, Ivone Lara, Luiz Gonzaga, é... tudo, João Nogueira, né, tudo essas caras aí eu tive oportunidade de conhecer. E não tinha aquele negócio: "Pô, tira uma foto, tira não sei o quê". Eu não tinha isso, não tinha essa parada de vaidade. Sempre passava, assim. Experiência. Isso aí é um pouco de Estados Unidos. Era um pouco isso. Voltando dos Estados Unidos pro Rio, ainda a resposta do teatro, aí rolou mais trabalho pra fazer. Como rolou mais trabalho pra fazer, eu já tinha trabalho, já tinha emprego, de uma certa forma, aqui em São Paulo e pra mim era mais viável, né, que eu queria realmente... já tinha um pouco essa vontade de andar, andar pelo mundo, né, de sair, não sei. Eu queria... desde que eu era criança minha mãe falava isso: "Não, você sempre falava pro teu irmão mais velho que você ia andar, que você ia visitar não sei o que. Você inventava até uns nomes que não existia, você falava que você ia nesse lugar e tal". E aí eu já tinha um pouco esse negócio. Nós chamamos de sina viageira. Então, eu já estava no Maranhão, tinha trabalho, estava trabalhando com música. Cheguei em São Paulo também, quando eu vim de São Paulo, a gente já estava trabalhando, ainda... eu ainda recebia por lá, mas eu comecei a trabalhar nos bares do Bixiga, em outros lugares, não sei o que, conhecer pessoas em São Paulo e tal, fazer amizade em São Paulo, aí eu fui ficando aqui e fui... aí sempre gostei muito do teatro, né, depois que eu conheci o teatro eu já me apaixonei, vi aí uma escola muito importante, né, pra nós, pra músico, pra dança, pra músico o teatro é muito.. né, maravilhoso, né, pra palco, pro cantor. Então, eu tenho essa fascinação pelo teatro. O que mais distante meu, é que eu não consigo cumprir temporada, então eu fico mais de passagem, faço uma coisa ou outra relacionada, às vezes faço uma direção musical.
P1: E antes desse teatro, você tinha alguma referência com... você já tinha algum contato com o teatro popular também?
R1: O teatro popular nosso é o Bumba-meu-boi.
P1: É um teatro?
R1: É um teatro, é um teatro. Inclusive, quando eu vou pra Grécia com o grupo daqui, fazer esse intercâmbio cultural, teatral, nós... é uma das coisa que nós levamos como cultura brasileira tradicional, é a história do Bumba-meu-boi e a capoeira, né, a história do Bumba-meu-boi, eu fiquei o quê? Uma semana, mais ou menos, trabalhando, um pouco menos de uma semana, na universidade na Grécia ali, Thessaloniki, com os alunos de teatro e, no final, a gente montou o texto do Pai Francisco e Catirina, né, com eles falando em grego. A tradutora passava pra eles, eles conceberam em grego e fizeram em grego. Quando eles acabaram, meu velho, eles estavam tudo chorando, os alunos. Como é que eles tinham conseguido fazer e entender tudo e tal? A gente estava falando um pouco dessa questão da língua, né? Eu lembro que uma vez eu fui também pra Moçambique, com o pessoal da capoeira e aí eu fui pra também dar aula na Escola Nacional de Dança de Moçambique e na Escola de Pedagogia de Maputo, escola nacional, Escola de Pedagogia de Maputo. É... e aí a gente recebeu... eu fui dar uma aula de dança e capoeira. Geralmente eu costumo, às vezes, juntar uma coisa com a outra. Antes de eu dar aula de capoeira, eu jogo dança, brincadeira e tal, desconstruo tudo os capoeiristas e tal, boto todo mundo pra brincar, sorrir, aí depois eu reúno a turma pra fazer a capoeira. E aí uma das coisa... tinha... eu recebi uma galera da África do Sul, uma turma da África do Sul que falava em inglês e não falava português. Eu não falava inglês. Tinha uma pessoa que ia traduzir, que não foi. Aí tinha uma pessoa que quebrava um galho, aí eu pedi pra essa pessoa quebrar um galho e falar pra eles: "É o seguinte ó, o mestre tá falando...". Eu falei, pra ela traduzir: "O mestre tá falando o seguinte: que é pra vocês não se preocuparem com o sentido da audição, certo? Trabalha com outro sentido, em especial o sentido da visão: olhar o movimento e procurar entender dessa forma. Não se prender. Que vocês vão entender __ (02:38:24)". Comecei a dar aula. Final da aula a turma falou: "Puta que pariu, entendi tudo. Entendi tudo". Então é a fé, certo? Eu disse assim: "Ó, faz assim, faz assim". A turma fala: "Pô, eu entendi tudo. Entendi tudo". Inglês, não sei o que, tal. Legal. Em Gales, no País de Gales, a gente estava viajando também e a gente foi fazer um... viajei pra cá. Cada situação é uma situação. Isso aí era uma amiga, ex-aluna minha que morava... foi morar lá, montou um grupo de dança lá e quando esse grupo completou dez anos, ela me chamou pra fazer uma temporada, tal, escreveu um projeto lá, aprovou o projeto e me chamou pra fazer uma temporada. Nós viajamos daqui em cinco, seis pessoas. Era a Graça, Ana Maria, Renata, eu, o Marquinhos e o Peixinho. Nós em seis. E a gente chegou, fomos em escola, muita escola, escola... trabalhamos muito com filho de refugiado, refugiado de guerra, não sei o que e trabalhamos com escola normal e muito escola de filho de diplomatas, entendeu? Galera nata, também a gente trabalhou. Mas tem uma escola também super de grã-fino, não sei o que, lá em cima do palco, o diretor subiu no palco, engravatado, cheio de alunos ali, acho que era perto do refeitório, sentado, cheio de aluno sentado, o diretor subiu no palco, falou assim: "Ó, estou parando aqui, eu queria agradecê-los, eu queria dar parabéns pra vocês, para os alunos. Sabe o porquê? Eu não sei vocês também... quando vocês, na vida de vocês, vão ver algo tão verdadeiro quanto isso que esses brasileiros estão trazendo aqui pra vocês. É, vocês estão de parabéns. Isso aqui é verdade". A gente lá com o boi, tal. Aí é danado, porque aqui também, às vezes, você está por aqui com esse mesmo boi, você para numa praça, o vizinho chama a polícia pra te prender. Aqui no Brasil, São Paulo.
P1: Lá no Gales...
R1: O diretor só deu esse depoimento pras crianças. Aqui nego fala: "A polícia, que isso? Não, fita, boi, tambor". Né?
P1: Você já passou por essa situação de chamar...
R1: Pô, claro. Pô. Muito. Muito. Uma vez a turma chegou pra mim. Uma vez eu estava tocando aqui na Cardeal Arcoverde, Cardeal Arcoverde e tinha o... você deve conhecer... perto do Ó do Borogodó. Ó do Borogodó vocês conhecem. Descendo o... (risos) saindo do Ó, não tem uma casa ali na esquina? Como é que chamava ali, rapaz? Zé Presidente. Zé... Eu estou tocando no Zé Presidente, chega o guarda municipal com a subprefeitura: "Ah, não sei o que, vamos fechar a casa". Eu acho que era o meu aniversário... era meu aniversário, acho. Isso era umas duas horas da manhã. "Vamos fechar a casa, não sei quê". Aí eu fui lá: "Pô, vocês vão fechar a casa? Mas você pode? Como é que vocês vão fazer isso? As pessoas pagaram, essas pessoas que estão aí dentro pagaram pra assistir o show, pra assistir a banda, não sei o que e tal. Por que vocês não vieram antes e não deixaram abrir as pessoas pra dentro? Vocês não podem fazer isso". Aí a moça falou assim: "Eu posso, sim. O senhor sabia que eu posso? E eu posso, inclusive, pedir reforço da polícia pra vir aqui fechar. O senhor sabia?", ela falou. "É, né, eu sabia sim, senhora. A senhora quer saber mais? Eu nem só sabia que a senhora pode isso, que eu sei que a polícia é capaz de acreditar na senhora e vir. Eu sei que a senhora pode chamar a polícia. O pior é que a polícia é capaz de ainda acreditar na senhora e vir até aqui. E sabe mais? Viu o que fazer comigo. Capaz de me prender, me bater e fazer mais lá... o que mais comigo. A senhora acha que eu não sei, eu não conheço? Será que eu não conheço o meu país? Agora, pior é ensinar pros meus filhos e pros seus filhos que a gente tem que... é educado dessa forma, onde a lei é traçada na calada da noite. Que vocês podiam ter vindo aqui de manhã. Tem que ensinar pro Brasil que é isso, que tem que multar, vocês têm que multar o carro escondido na praça, ali atrás. É isso que nós temos que ensinar pro nosso filho. Pros meus e pros seus". Que a polícia vem, é claro que vem, né, que nós... é... uma coisa é dizer assim... é que a nossa lei é malandra, ela funciona na calada da noite, sabe? Que podia vir aqui: "Ó, a tua casa está ilegal, não abre a casa, né? Aqui, sabe, não sei o que e tal, as pessoas vêm aqui, agora os músicos, né, a bilheteira, que veio lá do Capão Redondo, trabalhar, deixa o filho, de repente, com alguém, pra vir aqui trabalhar, receber o dinheiro dela e vai ter que voltar, porque vocês resolveram, agora, fechar a coisa". Então essas brigas assim, tem. E lá no dia que eu estava... a gente estava... atrás do Eldorado tem uma praça. Sabe o Eldorado? Você vai subindo, passando o Eldorado você vira à direta, você vem Rebouças, Eusébio Matoso, sentido Centro, passando o Eldorado, você vira à direita. Aí, lá na frente, tem uma praça. Aquela praça ali, a gente estava fazendo, tinha uma casa cultural ali, uma escola, não sei o que, que a gente tinha parceria, que era o... que era do Benjamin, Benjamin Taubkin e tal, que era... eu esqueci o nome do espaço agora. E a gente fez uma parceria ali, estava fazendo o boi na rua. Aí a gente... quando a gente viu, a polícia passou lá do outro lado. Aí parou, ficou, ficou, depois veio falar com a gente: "Não, não sei o que, que chamaram a gente, a gente veio que o vizinho chamou". Eu falei: "Pois é, o senhor vem aqui, né, que agora são o quê? Quatro hora da tarde de domingo. O que será que está acontecendo nessa cidade, que as pessoas estão precisando realmente da polícia? Quantos crimes não estão acontecendo na... aqui, nós estamos aqui com poesia, com música, com dança e as pessoas chamam vocês pra vir aqui prender a gente e vocês vêm". Ele falou: "Não, não, a gente não veio prender". Eu falei: "Eu sei. Mas, entendeu? Quanto estupro está acontecendo nas ruas dessa cidade? Quanto marido está espancando mulher por aí, pela cidade afora, nesse tempo que a polícia está aqui? E as pessoas... essas pessoas, às vezes, vê e não chama a polícia. Né?". Aí fala: "Não, isso aí é briga de casal. Marido e mulher, ninguém mete a colher". Aí quando vê a gente, né, uma cultura africana na rua, brincando com fita, não sei o que, ele chama a polícia, a polícia: "Ah, eu vou aí".
P1: Nossa! Então, quer continuar mais...
Entrevista de Tião Carvalho Parte 2
Entrevistado por Jonas Samaúma
Projeto Vidas Negras
Transcrito por Selma Paiva
P1: Então, Tião pra abrir essa maravilhosa segunda parte da entrevista, queria pedir pra você tocar uma música que tenha alguma relação com a sua história de vida, que tenha alguma importância dentro da sua história de vida.
R1: O negócio é o seguinte... engraçado, né, Jonas porque, de uma certa forma, eu... fez um caminho agora que me lembrou João do Vale, né? A gente falava, fala que João do Vale, quase todas as músicas dele tinha alguma coisa a ver, né? E quando você falou agora teve... ou seja, tinha alguma coisa a ver com algo que ele tinha... o que aconteceu com ele, né, alguma situação, né, o Peba na Pimenta, né, que fala que o povo é unido, seu Malaquia preparou cinco pebas na pimenta, povo de Campinas convidou Maria Benta, não sei o que, né? Tem a parada do Peba na Pimenta. O Pisa na Fulô, né, que é na Rua da Golada, que era a rua de Pedreiras que tinha... né, que é rua da Golada, que tinha o coisa ali, o meretrício e tal, da pisa na fulô, pisa na fulô, mas não maltrata o meu amor. Então, toda essa coisa aí, o coisa, o próprio Coronel Antônio Bento:
“Coroné Antonio Bento
No dia do casamento
Da sua filha Juliana
Ele não quis sanfoneiro
Foi pro Rio de Janeiro
Convidou Bené Nunes pra tocar
Oh lêlê, oh lálá
Neste dia Bodocó
Faltou pouco pra virar”.
Então era tudo... tudo tinha meio que uma história. Comigo é um pouco assim também, né? Tempo da própria (nós? 02:10), também, a mulher mais bonita do mundo, né? A mulher mais bonita do mundo é engraçado que ela... eu lembro que eu conheci uma amiga e... que morava eu, minha sobrinha morava comigo, naquela época era conhecida, amiga nova assim, né, talvez... seja talvez uma determinada paixão assim, né, é... momentânea. E aí ela falou assim para mim: "Olha, Vanessa ligou para ti e tal". Não: "Telefone pra você". Eu: "Pô, não sei o que e tal". Aí era justamente essa amiga falando: "E aí, Tião, o que você vai fazer hoje? Pô, não sei o que, vamos sair, vamos pro forró, vamos dançar e tal". Aí, conversando com ela, fiquei supercontente. Quando eu acordei... quando eu acordei não, que eu estava na cama ainda, né, ela me dando toque, acho que era uma sexta-feira igual aqui hoje e ela falando assim, me acordou e disse: "Pô, não sei o quê”. E eu acordei... quando eu acordei, não era acordar, eu já tinha acordado, que eu tinha falado com ela, mas quando eu soltei o telefone e aí eu peguei e fiquei inspirado e eu peguei o violão e comecei a tocar isso aqui, né, que é mais ou menos assim:
“Pa parárárá, parêraraeura
perêrêrêuê, parêurauê, parêráráááá
Ê parêrauê, parêrauêrá réré
parêrauê, parêráráá.
A mulher mais bonita do mundo me convidou pra sair
A mulher mais bonita do mundo me convidou pra entrar
A mulher mais bonita do mundo me convidou pra subir
A mulher mais bonita do mundo me convidou pra ficar
Êxtase, êxtase total
Vou embandeirar toda a minha rua
Vou iluminar todo o meu quintal
Êxtase, êxtase total
Vou embandeirar toda a minha rua
A lua iluminou todo o meu quintal ôô.
A mulher mais bonita do mundo me convidou pra sair
A mulher mais bonita do mundo me convidou pra entrar
A mulher...".
Por aí. Aí compus essa música, né? Assim que eu acordei, eu falei: "Pô, que massa, a mina me convidou pra sair, velho". ((Risos)) Aí eu peguei o violão e pá, e rolou, né, ficou assim. Então, é o momento. Mas quando você me perguntou agora, né, eu estou compondo um samba, ele está justamente na fase de composição, que não está pronto. Quando você me perguntou, eu fiquei até pensando, mas depois eu... quem sabe daqui antes da gente acabar, a gente o canta.
P1: Pode cantar, você quer cantar?
R1: É?
P1: Sim... não, mas está gravando aqui.
R1: Ele é mais ou menos assim... não, grava aí também, quer? Vamos ver, está em fase de composição, que aí depois você manda pra mim, eu vejo como fica.
"Viver também não vou sem fazer samba
O samba é uma forma de amar
Ela se foi, não vai voltar
Nem me deu o direito de chorar
As rosas
As rosas dos jardins murcharam
Aquela lua cheia se apagou
A noite bela era dos namorados
Hoje está mais pra um filme de terror.
Eu já cantei, cantaremos meu amor
O samba traz a paz e alivia a dor
Eu já cantei, cantaremos meu amor
O samba traz a paz e alivia a dor
Falou batucada
Viver também não vou sem fazer samba
O samba é uma forma de amar
Ela se foi, não vai voltar
Nem me deu o direito de chorar
As rosas
As rosas do jardim murcharam
Coro feminino
Aquela lua cheia se apagou
A noite bela era das namoradas
Hoje está mais pra um filme de terror
Eu já cantei, cantaremos meu amor
O samba traz a paz e alivia a dor
Eu já cantei, cantaremos meu amor
O samba traz a paz e alivia a dor
O samba traz a paz e alivia a dor".
P1: Aí, Tião!
R1: Está em fase de composição ainda. (risos)
P1: Nossa! Inédito, hein?
R1: É. Inédito, primeira gravação dele, viu?
P1: E aproveitando...
R1: Jamais Sem Fazer Samba.
P1: Jamais sem...
R1: O nome do samba: Jamais Sem Fazer Samba.
P1: E, Tião, do samba, qual que é uma memória impactante que você tem, dessa sua relação com o samba?
R1: Algumas assim, eu... a Bahia é muito especial, né, véio? A Bahia é muito especial. A Bahia é muito especial. Eu tenho muito... quando se fala de samba, é... não dá pra você não pensar no samba de roda, né? Samba de roda, samba chula. Eu tenho essa paixão aí pelo samba, eu gosto, reverencio muito, né? Não seria diferente, né? Os cariocas, né, de forma geral, os cara ali pegaram uma forma de fazer samba, que pelo amor de Deus, né? É, ali é foda. Os cariocas, né? Em todos os sentidos, né, estão tocando samba, cantando samba, tocando samba, fazendo samba, né? Compondo samba, né? Cantar o samba, eles têm uma forma de cantar, né? O sotaque, né? Tanto os cantores quanto cantoras, né, de samba. Carioca é diferente, né?
P1: Então, vamos aproveitar que você falou isso, queria dar um ponto de partida pra você contar, então, quando você mudou pro Rio de Janeiro. Como foi que se deu essa mudança?
R1: Certo. Vou só completar um pouquinho ainda essa questão do samba.
P1: Ah, sim. Pode completar.
R1: Porque, na minha terra, o Maranhão também tem uma forma especial de fazer samba. Eu lembro que a gente tinha uma roda de samba, não é? Que era o grupo Pega pra Capar, grupo Pega pra Capar. Era um grupo de rapazes que fazia samba, uma galera assim. Eu cheguei, essa turma meio que já existia, eu era um moleque, assim, mais novo, mas eu... sabe, eu fui meio me entrosando com eles e vivi muito tempo com esses caras. Eram todos mais velhos, mas que faziam um samba muito especial, né? Ali eu diria que eu... foi um lugar assim de roda de samba, né, que eu aprendi muito, né, aquele tal do grupo Pega pra Capar, que era da Praça da Misericórdia. Lá tinha ‘seu’ Nato, que era o compositor e cantor, né, tocava violão também, ‘seu’ Nato. O Toni, que era irmão dele, o... tinha um outro irmão, mas que morava no Rio o rapaz e tal que era, o colega, do bairro da Alcione, né, a turma ali da Alcione era a família dela, era ali da esquina dessa Praça da Misericórdia, né, o pai dela morava na esquina. E essa galera era a galera daquela praça ali. Eu não diria que era roda de samba dela, que ela saiu de lá, ela já tinha vindo pro Rio, mas era a galera ali, os irmãos dela e tal, que fazia samba ali. Tinha um pouco essa turma ali também que chamava Prego, né, que jogava futebol, também jogava futebol com a gente e que fazia samba. Tinha um outro negão grandão, conhecido como Alan do Vara, que tocava surdo, né, repique de mão e tal. Uma galera ali do samba, uma turma ali que eu acho... que eu convivi ali. E tinha um bairro também, que era o bairro da Escola de Samba da Madre Deus, que era Turma do Quinto, né, que eu também, né, essa era a minha escola de samba. Tinha os Mestres também, que era um bairro um pouquinho mais depois do que esse da Misericórdia, mas próximo também.
P1: Lá no Maranhão?
R1: Lá no Maranhão, tudo isso eu estou falando no Maranhão. Tinha a escola de samba que chamava Turma do Quinto. E a Turma do Quinto era o seguinte: um ano ela desfilava de azul e branco e outro ano de amarelo e preto. Única escola de samba que tinha duas cores. Eu não consigo dizer por que, mas o azul e branco, o amarelo e preto. Então, tinha essa parada do samba ali também, né, que era ali também os compositores de samba:
"Ai, ai, ai, eu vou descer pra cidade
Eu vou mostrar pra essa gente
Que eu sei sambar de verdade
Lá na vila tem, tem samba até demais
Lá na vila tem sambista de verdade
Ai, ai, ai, ai, ai, eu vou descer vou pelas ruas da cidade
Ai, ai, ai, ai, ai, eu vou descer pelas ruas da cidade, ai ai ai".
Que era uma escola de samba um pouco... nasce aí nessa época, ainda não tinha muito esse caráter de escola de samba, esse caráter de samba enredo, que você constrói o enredo e tal. Você fazia o samba e cantava o que você queria, né? Saía cantando e tal. Isso aí homenagem ao samba, né, várias coisas. Música que eram de samba, mas que não eram necessariamente de escola de samba. Essa coisa de enredo de escola de samba, é uma coisa mais recente, você contar ali uma história, né? E aí isso também tem a ver com... eu acho que tem tudo a ver com essa questão do... dessa determinada pressão social com os guetos do samba, né, com os grupos, na época era proibido e tal, que vai ver nascer as escolas de samba, escola de capoeira, grupo de capoeira, né? Vira academia, né? As escolas de samba também, se eu voltar, não sei o que: Acadêmicos do Salgueiro, Acadêmicos Unido não sei o que de Padre Miguel. Então você vai registrar, é um pouco assim... você é aceito, mas você, pra você fugir da marginalidade, você tem que fazer assim e assado, pra você registrar, pra você virar uma agremiação e tal. Então, você vai não sei o quê. Então vai, né, trabalhando um pouco esse sentido, né? E aí também você tem uma determinada responsabilidade de contar uma história pra ser... uma coisa ser séria, né? Cantava que...
“Ilu-ayê, Ilu-ayê, Odara
Negro cantava na nação nagô
Ilu-ayê, Ilu-ayê, Ilu-ayê, Odara
Negro cantava na nação nagô
Depois chorou lamento de senzala
Tão longe estava de sua Ilu-ayê
Tempo passou ôô
E no terreirão da casa grande
Negro diz tudo que pode dizer
É dança, é batuque, é reza, é festa, é ladainha
Negro joga a capoeira e faz louvação à rainha
É dança, é batuque, é reza, é festa, é ladainha
Negro joga a capoeira e faz louvação à rainha
Mas hoje...
Hoje, negro é terra, negro é vida
Na mutação do tempo, desfilando na avenida
Negro é, é sensacional
é dono da festa do povo
É o dono do Carnaval”.
Então, começa a arrumar um pretexto, falar do momento histórico, né, você começa a dizer assim: "Puta, tem mais responsabilidade ao compor, ao tal, pra você dar um respaldo pra isso”. É um contexto social aí, né? É o sincretismo, né, essa coisa, essa mudança aí do coisa, que eu acho que é época do Getúlio, né, pra coisar: “Vamos registrar a capoeira, você vai registrar a capoeira. Mas esse negócio vocês vão ter que tal...”. Daí vem a parada da regional, capoeira regional também vem de todo esse processo aí, né, de...
P1: E tinha alguma coisa de resistência no samba, você sentia?
R1: Ah, acho que sim, sempre sim, né? Sempre sim. O samba sempre teve... não só o samba, como todas as manifestações, né? Ela sempre tem essa coisa de resistência, tanto prova que resistiu até hoje, né? Então, por justamente tal. E por ter essa questão também da vez política, né? Ver essa questão política também vem contando, né? João do Vale tem aqui na parada que eu quero...
“Meu samba é a voz do povo
Se alguém gostou
Eu posso cantar de novo
Eu fui pedir aumento ao patrão
Fui piorar minha situação
O meu nome foi pra lista
Na mesma hora
Dos que iam ser mandados embora
Ô meu samba!
Meu samba é a voz do povo
Se alguém gostou
Eu posso cantar de novo”.
Por aí:
“Eu sou a flor que o vento jogou no chão
Mas ficou um galho
Pra outra flor brotar
As minhas pétalas, o vento pode levar
Mas o meu perfume fica boiando no ar.
Ô meu samba!”
Então é resistência, né? Resistência. São denúncias, né? É uma forma de você denunciar, é uma forma de você guerrear, é uma consciência, né? Os poetas acreditam, sim, no poeta... nós, poetas, não somos inocentes, a gente só não gosta de pegar arma, mas a gente sabe o que é lutar, a gente sabe... a gente considera essa outra forma também de lutar, de resistência, de tal. É uma forma de fazer, né? Então, é resistência, sim. O poeta, o samba, o Bumba-meu-boi, né? Tem uma história do João do Vale também que ele estava cantando: "Plantar pra dividir não faço...", que a turma ali estava cantando Pisa na Fulô e uma hora o dono da festa fala: "Ô João, canta um negócio diferente aí, pô, Pisa na Fulô toda hora". Ele começou a cantar alguma coisa que era mais ou menos assim:
"Mas que plantar pra dividir
Não faço mais isso, não
E Deus atento, ajudando
Está sofrendo no sol, no sertão
Mas plantar pra dividir, não faz mais isso".
Alguma coisa assim, que era uma música de protesto e o cara já falou: "Não, não, João, é... volta cantar Pisa na Fulô e tal". ((Risos)) Porque o cara estava indo, protestando e tal, na festa, na frente de todo mundo. Tem uma história mais ou menos assim. Então, o samba, a música, nossa música brasileira, tudo de uma certa forma é protesto, né? O Geraldo Vandré cantava:
“Fica mal com Deus
Quem não sabe dar
Fica mal comigo
Quem não sabe amar
Pelo meu caminho vou
Vou como quem vai chegar
Quem quiser comigo ir
Tem que vir do amor
Tem que ter pra dar
Homem que não tem valor...
Vida que não tem valor
Homem que não sabe amar
Deus que se descuide dele
O jeito a gente ajeita
Dele se acabar”.
São todo... é protesto, né, é luta do pé de guerra e que os caras disseram: “Não, tira esses caras daqui, que eles incomodam”. Né?
P1: E aí eu ia te perguntar isso porque você... até esse momento que a gente conversou agora, você está até os vinte, vinte e poucos anos e estava acontecendo a Ditadura Militar, o período dos militares assim, né? Queria perguntar se você já tinha alguma consciência que isso estava acontecendo, se isso tinha alguma manifestação na sua vida, se você conseguia ver isso na prática. Como é que você percebia esse momento?
R1: Não, com tanta clareza, não. Uma coisa ou outra eu lembro que a gente não sabia, mas a gente, na época, como a gente via isso em outros lugares: “Abaixo à ditadura" e a gente sabia que era proibido, a gente também escrevia no muro da escola, na lousa. Não sabia muito o que queria dizer, mas sabia que era proibido, não sei o quê. Então isso já via, né? A gente criança, às vezes não tinha muito essa noção e também a gente, por não ter essa noção, essa perseguição não chegava até nós, né? E eu diria até, eu não sei muito se isso... é... até onde isso, realmente... essa é uma observação apenas minha, mas eu senti que determinada classe social passava batido no meio disso, sabe? Eles perseguiam mais os estudantes, os intelectuais e tal, uma galera, né, que tinha uma noção ali do que estava acontecendo e que protestava. A turma que era mais simples, que estava por ali meio que jogando...
P1: Mas a cultura popular?
R1: ... o pandeiro, não sei o que e tal, não perseguia. No outro sentido, mas não nesse sentido da ditadura. Isso aí, essa perseguição nossa, vem antes da ditadura, né? Ela vem dali desde o período escravocrata e dessa transformação, né? Principalmente depois, né? Período escravocrata era uma perseguição, depois virou outra coisa, né? Perseguição justamente por questão da resistência, né, sabia que isso era resistência. Que o samba é resistência, que a capoeira é resistência, o candomblé, que as pessoas estariam unidas, ali estariam os mestres, né, os mais velhos ensinando, passando conhecimento. Então, eles... aquilo ali tinha essa perseguição. Mas a ditadura em si, eu acredito que ela ia pra um outro... tinha outro foco. Não sei se é ou não, mas a observação que eu tinha, talvez pode ser que seja... na minha idade eu não visse tanto, mas eu vejo dessa forma.
P1: E hoje você está como até candidato político, é até uma referência dentro da sua comunidade. E eu queria te perguntar quando que foi que você começou a ter esse olhar, assim: pesquisar história, ver que as coisas podem ser diferentes... se foi na sua juventude. Quando que se deu, assim?
R1: Essa coisa do que pode ser diferente, ela vem... cada hora ela vinha de uma forma pra mim, esclarecendo, desde garoto, né, desde garoto que eu tenho um pouco isso, né, de... esse senso de justiça, né? A sensação minha é desde criança, assim. Eu lembro que eu... muitas das vezes eu ia jogar bola, jogar bola na rua, nas praças, aí eu via dois times jogando ali e eu sempre queria entrar jogando pelo lado de quem estava perdendo. Certo? Eu sempre queria olhar, entrar jogando do lado de quem estava perdendo pra... sabe? Pra lutar, porque senão falar: "Pô, os caras já estão ganhando, se eu entrar eu sou só mais um. Eu quero entrar pra somar a galera, fazer uma diferença e ganhar”. E sempre tive um pouco esse olhar também em tudo, dizer assim: "Ó, se a gente... tudo bem que eles são melhores que nós, não tem problema, se a gente se organizar, a gente ganha deles. Certo? Nós vamos nos organizar, pra ganhar dos melhores". Isso, às vezes, acontecia no time de futebol mesmo, não sei o que, dentro do futebol ou na capoeira, ou no... sabe, num jogo qualquer, né, qual tipo de jogo, de peleja, né? Você pode, de repente, se você se organizar, você pode ganhar do melhor. Certo? Então, né porque os caras são melhores...
P1: O que é se organizar, pra você? O que era se organizar?
R1: Se organizar é tudo, né? Se organizar é estar junto, né? Cada contexto é uma coisa, é se fazer vários tipos de organização, né? Que a gente organiza ou na comunidade ou na família e tal, né? Se organizar acho... primeiro eu acho que é com você, é algo um pouco pra você, você se organizar, você concentrar e tal. Quer dizer, eu aqui, se a minha turma no futebol de salão, é dizer: "Ó, turma, vamos sentar aqui. Ó, o que que você achou do jogo passado? Ó, não sei o que, tal. Vamos fazer assim. Ó...". Né? Como aconteceu com ((risos)) aquele jogo, teve um jogo da... não sei se vou lembrar, mas daquele jogo da... do Brasil e Argentina, eu lembro que eu estava na Alemanha... não era na Alemanha, eu estava na Holanda e aí teve o jogo que era acho uma semifinal, que a Argentina ganhou do Brasil, com o gol do Caniggia, que o Maradona estava jogando. Aí eles arrumaram um esquema, Maradona arrumou um esquema e aí a turma saiu, combinou o negócio e jogo, né, combinaram um negócio lá com a turma sempre em cima deles, brasileiro em cima dele, ele “pá”, não sei o que, aí falou, combinou: “Ó, joga a bola pro Caniggia, não sei o que, que o Caniggia vai ficar só. Eu vou pra... vai todo mundo correr atrás...". Não deu outra, ele fez o esquema, o time do Brasil tudo correu pra cima dele e aí os caras jogaram uma bola pro Caniggia, que estava sozinho, Caniggia pegou a bola e fez o gol, ganhou de um a zero, os caras ganharam da gente. Isso é se organizar. Certo? Eles são melhores? Não, não só dizendo: “Eles são melhores? Tudo bem, vamos se organizar, massa, vamos treinar, vamos não sei o que, vamos criar jogada, não sei o que, pra gente ganhar dos caras”. Aí foram lá e ganharam, porque o Brasil viajou, tal, porque nós somos melhores e tal, pensaram que isso era o suficiente...
P1: E aí ia te perguntar...
R1: Nós pensamos, né, nós brasileiros pensamos que isso é suficiente.
P1: ... que você comentou que o futebol tinha uma grande importância na sua vida, né? Você viveu muito o futebol, só que você acabou não falando. Eu queria perguntar se tem mais alguma memória do futebol que você gostaria de partilhar, assim.
R1: Não, o meu futebol sempre foi muito de brincadeira, assim. Brincadeira. Eu nunca... nunca corri atrás de ser jogador profissional, né? Sempre foi brincadeira. Depois que eu fiquei... mais que eu vim para São Paulo aqui quando... depois... primeiro que eu fui, comecei na música já um pouco jovem também, né e já tinha esse dom com a música, conhecia muito. Então, eu fui muito pra música, pra capoeira e tal e não corri atrás de ser jogador profissional e tal. E... mas aí foi muito no Maranhão, mas a história muito futebol de praia, né? Pois joguei muito na praia, jogo até hoje, né? Quando eu vou pra São Luís temos uma galera de amigos, grupo de amigos que joga todo sábado, todo sábado à tarde, a turma, a galera joga na praia e tal. E eu vou para lá e jogo. Joguei aqui muito tempo na várzea também, né, nos times daqui do Morro do Querosene, muito tempo também. A lembrança mais esse aí. E sou torcedor, sou santista, né, gosto de brincar. Não entendo muito também de futebol, não sei o que, lembrar...
P1: Você chegou a acompanhar a época do Pelé?
R1: Não, não muito. Assim, acompanhei, né, vi... não vi pessoalmente jogar, mas assisti ao jogo e tal, né? Vi, vi toda a... eu cheguei a ver a Copa de 70, né, assisti a Copa de 70, primeira Copa, o primeiro contato que eu tive, assim, mais direto com o futebol, com... daí para cá acompanhar mais foi em 1970, né? Que aí começo da televisão também, né? A década de 70, a gente começou a televisão ali e... e aí cheguei a vê-lo jogando. Lembro da seleção de 1970, né, que era... pra mim, é a maior seleção de todos os tempos.
R1: E aí você falou da televisão e ia te perguntar se você sentiu que, quando a televisão apareceu, ela teve algum impacto dentro da vida das comunidades, das manifestações populares. Você sentiu que a televisão teve alguma diferença, depois que ela veio?
R1: Eu acho que isso é com o tempo. Eu acho que, quando ela chega, de imediato, acho que não tanto, porque nem todo mundo tinha televisão. Não é? Então, ela não tinha essa força que tem. Acho que, com o tempo, a televisão e o próprio... não sei se a palavra é bem essa, mas o capitalismo viu essa... a televisão como uma aliada importantíssima, né, pra vender, né? Não sei se o capitalismo, se eu posso empregar dessa forma, não sou... não sou nenhum sociólogo, mas, é... eu sinto que é um pouco isso. Essa influência vem no decorrer dos tempos, sabe? Do tempo da televisão pra cá, televisão de quarenta, trinta anos pra cá e tal, aí ela vem pra essa coisa muito de tal e de vender produto, né? Ela vem pra vender os produtos. E aí ela termina influenciando na arte, nos artistas que ela vende e nos artista que estão à mercê, que ela não vende, que somos, de repente, nós, esses artistas populares e tradicionais. E aí, sim, aí tem uma influência grande, porque aí televisão vende esses artistas dela e... quando ela vende esse artista, ela... hoje em dia, vocês... nós compramos o que a televisão nos manda comprar. Né? A gente conhece o que a televisão nos mostra e a gente acredita na televisão. Se ela falar pra você que esse aqui é melhor, você vai comprar esse aí, porque a televisão está falando que é melhor. Isso pode ser o sabão, pode ser o refrigerante, pode ser o cantor, a cantora, né, às vezes até o próprio político.
P1: E aí, Tião, antes só da gente chegar no Rio, eu queria te perguntar, pra não deixar... quais que foram os mestres do Maranhão, que você lembra, que tiveram alguma importância na sua vida?
R1: Rapaz...
P1: Vai fazer uma lista.
R1: Não. Não, não. Eu não posso deixar de falar do meu pai e da minha mãe. Certo? Hoje eu estava conversando com minha mãe, Dona Florzinha e fala assim... ela sempre fala para eu mandar abraço pra turma daqui, mandar um beijo, então estou trazendo beijo dela pra vocês aí, uma benção dela também. Eu estava conversando com minha mãe. Então, eu acho que minha mãe é uma grande sábia, assim, sabe? Que ela não te ensina a tocar um instrumento, mas ela te ensina a reverenciar as coisas, as pessoas, né? E isso tem a ver quando você vai tocar um instrumento, quando você vai... né, ela te dá toda uma educação, algo de casa, um amor, um carinho, uma segurança, uma verdade, que isso é a vida, você leva pra vida. Então, eu diria que, assim, a grande mestra é minha mãe. Meu pai que eu convivi pouco, mas foi uma grande fonte de inspiração pra mim, né? Fonte de inspiração desde como artista, como cidadão, como pai, né, como pai de família. Então, os mestres, assim, basicamente é isso. E também tem esse lado artístico do meu pai também, né? Que meu pai era cantor também, né? Cantor, era um cara conhecido, né, como grande cantor na região.
P1: Ele cantava o que, mesmo?
R1: Basicamente Bumba-meu-boi. Bumba-meu-boi e tambor. Ou seja, os ritmos mais populares, ali, nossos, né? Os mais presentes ali, que era justamente o Bumba-meu-boi e tal, né? Tem uma linguagem ali dos cantores de Bumba-meu-boi, né? Uma forma diferente de cantar, de...
P1: Tem alguma memória do seu pai, muito forte, que te marcou, assim?
R1: Eu acho que muito dele cantando, dele... assim, porque eu convivi com ele, falei, né, que só até os oito anos, né?
P1: Sim.
R1: Então, muito essa coisa dele cantando. Muito do cantar. Cantar, cantar, trabalhando.
P1: Mas você falou que, com oito anos, você mudou pra casa da sua tia, mas aí você não o viu mais?
R1: Não, fiquei muito tempo sem vê-lo.
P1: Ah, você não ia visitá-lo?
R1: Não. Eu fiquei dos oito aos vinte, vinte e poucos anos sem ver meu pai. Na adolescência, eu não via meu pai. É distante, porque eu não ia no interior, né, não ia. Sei lá, era babado, a turma não trabalhava isso, sabe? E eu, como eu estava bem, a princípio, né, eu também não cobrava, não era tão fácil de ir, fazer essa trajetória da capital pro interior. Não tão fácil. Mas se a turma quisesse, me levava e... mas não me levou, então eu fiquei esse tempo todo sem ver meu pai, durante a infância, depois só fui ver...
P1: E a mãe também?
R1: ... meu pai adulto. Minha mãe também.
P1: E você não sentia falta, assim, com dez anos?
R1: Sentia, cara, mas eu sentia... eu não sei, tinha outra coisa ali que me levava pro outro lado e eu não sei se aquele negócio do amanhã, sabe? “Amanhã eu vou. Ano que vem você vai”, não sei o que e tal. E aí ficou muito tempo sem... fica muito tempo sem ver.
P1: Mas você sentiu que você teve algum amparo nas figuras que te aconselharam, te cobriram isso?
R1: Era um ensinamento. Eu tinha ensinamento, né, tinha educação, né? Ensinamento, tinha essa educação e... era isso. Tinha alguém que fazia um pouco esse papel de minha mãe, o outro, papel de pai. Né? Tinha outra família. Então, eu quase não via... minha mãe, talvez, nesse tempo, tenha ido em São Luís pra me ver, uma ou duas vezes, mas sempre nós ficamos muito tempo, uns dez anos ou mais sem...
P1: Ah, quando foi que você os reviu a primeira vez, desde que você saiu?
R1: Isso aí já foi... eu já devia ter vinte... acho que uns vinte e dois anos pra vinte e quatro, antes... um pouco antes, uns dois anos antes de eu vir embora.
P1: E como foi esse reencontro?
R1: Foi legal. Eu lembro que eu me encontrei com meu pai de novo na casa do meu irmão, né? Eu lembro que ele estava lá dentro, não sei o que, aí eu cheguei na porta e gritei, né? Seu Pepê. “E aí, senhor Pepê?”. Ele falou: "Entra, rapaz, que eu estou sabendo que é tu". Ele ouviu minha voz, né? "E aí, senhor Pepê?”. Gritei da rua, eu sabia que ele estava lá dentro. Ele falou: "Entra, rapaz, estou sabendo que é tu". Aí foi, não sei o que, ficamos junto. Aí meu irmão, no dia seguinte, fez um almoço e a gente ficou cantando bastante samba, né? Eu lembro que o meu irmão, uma vez, falou: "Tião, canta...". Ele gostava de improvisar e ele falou: "Canta miudinho, com... canta miudinho pro papai cantar". Eu estava cantando um samba e ele me falou para cantar miudinho, que é um samba mais ou menos assim:
“Ô devagar miudinho, devagarinho
Ô devagar miudinho, devagarinho
Devagar...
Se eu soubesse eu tinha me preparado
Penteava meus cabelos, tinha meu quarto arrumado
Penteava meus cabelos, tinha meu quarto arrumado
Devagar...
Você, meu bem, assim se rebolando
Dessa maneira, está me matando
Dessa maneira, está me machucando
Ô devagar...
Ô devagar miudinho, devagarinho
Ô devagar miudinho, devagarinho
Eu canto samba, mas não é por valentia
É uma prova de amizade que eu tenho pela orgia
É uma prova de amizade que eu tenho pela orgia
Devagar...”.
Aí cantamos pra ver. Me lembro dessas coisas assim, meu irmão falar: "Ah, canta não sei o que e tal". Porque quando... também foi a primeira vez que ele me viu, eu já cantando, né, porque eu... ele, que o cantor de casa era ele e, da minha família, eu fui o primeiro. Os outros filhos cantam, né, meus irmãos, tenho um irmão que mora em Belém, né, conhecido lá, que canta e tal também, mas não é cantor profissional, mas canta. O outro irmão também canta, minha irmã virou cantora profissional. Mas eu fui um dos primeiros a vir... dos filhos, a vir pra parada da música depois dele, né, que era o meu pai, depois foi eu, os filhos. E aí eu... foi a primeira vez que a gente se encontrou.
P1: E aí você tinha um pensamento, assim, já de: “Vou viver de música"?
R1: Naquele momento, acho que eu já tinha por que eu lembro que... já tinha porque, quando eu venho pra São Paulo, quando eu saio do Maranhão - eu já vivi um pouco - isso ficou claro, entendeu?
P1: E aí você saiu do Maranhão por quê?
R1: ... na rádio, a gente foi seguir você, aí pegou o álbum, baixou aqui e começou a escutar, então essa música aí já conhece e tal, uma galera. Isso porque eles me contaram depois, eu disse __ (38:51) um cara desceu pra mim e falou: "Vem cá, e tudo bem? Pô, beleza, prazer". Aí ele falou: “Vem cá, você fuma um, dá uns pega?" Aí eu falei: "Você tem?” Ele falou: "Tenho, vamos aqui". Aí não deu outra, desci do palco o cara me levou lá pro estacionamento, ((risos)) a galera deles, aí ficamos conversando no intervalo. Então eu: "Porra velho, porra, que negócio legal. Pô, como é que a gente não conhece você?”. Eu falo: “Velho é foda, né?". Ele falou: "Porra, puta som, cara". Com essa música, ele fala: “Eu já fui até a lua...". Os caras cantando tudo. Nego fala: “Não, que os caras...”. Falo: “Não, velho, não tem essa não, vamos embora". Porque às vezes a gente separa muito, né? No Brasil, a gente separa muito, né? A sociedade, né, essas muitas diferenças, não sei o que, fica assim, aí o povo termina alimentando essa parada dentro dele, que não deveria, né? "Ah, que isso é diferente, esse aqui vem do nordeste. Então... não porque, não sei o que e tal, que é melhor, não sei quê. Não, nós". Porra, vamos aqui receber todo mundo, eu te recebo lá, você me recebe aqui e vamos que vamos, entendeu? E que nós vamos fazer nosso país crescer. Pra que separatismo?
P1: Que massa! Aí, voltando...
R1: Você ia falar do Rio.
P1: É eu ia te perguntar, pra você contar como é que aconteceu essa mudança.
R1: Pro Rio?
P1: Você saiu do Maranhão e foi pro Rio, não foi?
R1: Pois é, mas aí veja bem: o Rio foi justamente aquela viagem pros Estados Unidos. Eu fui pro Rio porque o Grupo Vento Forte me convidou pra ir pros Estados Unidos, né? Pra fazer uma temporada nos Estados Unidos. E, dessa temporada, quando eu voltei, eu ia só pra temporada, pra ir pros Estados Unidos, quando eu voltei pro Rio, a gente já tinha outra viagem pra ir pra Europa no mesmo ano. Acho que isso foi em maio, pros Estados Unidos e junho, julho... julho, acho que foi julho, a gente foi pra Alemanha e pra Portugal e... e aí, quando voltou pro Brasil, a gente já tinha trabalho, já estava meio que empregado com o grupo e eu fiquei morando no Rio.
P1: E ficou morando onde?
R1: Fiquei morando primeiro no Jardim Botânico, dividindo a casa com o diretor nosso lá, que era o Ilo Krugli e aí depois eu fui pra Glória.
P1: Isso era que ano?
R1: Isso foi em 1979.
P1: E aí, como é que era o Rio de Janeiro de 1979? O que o senhor lembra?
R1: Ah, lembro. Eu ia a alguns ensaios de escola, ia ali na vila, ia muito nas gafieiras, ia no Forró Forrado, jogava futebol no Flamengo, ali no... no Flamengo não no time, né? No aterro do Flamengo, né? ((Risos)) Batia uma bola ali no aterro do Flamengo e tal. E a minha vida era isso. E trabalhava, ensaiava, fazia teatro à noite, mais final de semana, que era teatro infantil. Durante a semana eu mais batia bola. Cheguei no final do meu tempo - porque eu não parava muito, né, eu viajava - lá no Rio eu conheci o Mestre Moraes, aí quase que eu entro na escola do Mestre Moraes lá, pra treinar capoeira, mas eu já estava... foi quando eu já fui mudar para São Paulo, que não deu tempo de treinar com o Mestre Moraes lá no Rio.
P1: Mas você quer contar um pouco como você conheceu o Mestre Moraes?
R1: Porque eu fui lá, eu soube dele, fui na escola dele. Eu soube dele, assim, do Mestre Moraes, que estava lá. Falou: “Ah, tem um cara da Bahia chamado Moraes, não sei o que e tal, de Angola, aí pá". Eu falei: "Pô, Angola". Aí fui lá: “Tudo bem?”. Me reconheceu. “Ó, se você quiser vir treinar, não sei o que, vem aí e tal". Mas aí não deu tempo aí... não rolou.
P1: Você ficou quanto tempo no Rio?
R1: Eu fiquei mais ou menos uns seis a oito meses.
P1: Ah, seis a oito meses.
R1: É, mais ou menos. Eu cheguei no Rio mais ou menos abril, maio, aí fiquei até novembro, dezembro. Aí dezembro, eu lembro que o Natal eu já passei em São Paulo, o Natal...
P1: E das gafieiras, você quer contar alguma coisa?
R1: A gafieira, eu ia na gafieira pra dançar, né, pra ver as músicas, né, ver as bandas, né? Ver as bandas. Quando eu mudei pra São Paulo aqui, eu montei uma banda de gafieira aqui em São Paulo, né? Uma banda da gafieira que fazia forró, forró e gafieira, música pra dançar. Não era gafieira só de samba, a gente fazia muito forró também junto, né, mas já tudo arranjado, né, com arranjo, com... eu com os músico daqui, né, alguns músicos: Toninho Ferragutti, Toninho Carrasqueira, o Swami Junior, o Adriano Busko, o Beto Melo, o Guelo, a Virgínia Rosa, né? O Pedro, que é meu irmão, que mora na França hoje, mas também foi um dos fundadores da banda aqui também, o Zé Fernando que é cavaquinista, era cavaquinista também, mas parou de tocar, porque teve um acidente também com ele, parou de tocar. Então, a gente montou uma banda chamada Banda Mexe com Tudo, a gente tocou muito tempo aqui no bar chamado Bar Avenida, aqui na Pedroso de Moraes. Começou lá no Teatro Vento Forte e tal, era todo domingo gafieira paulistana. Com essa banda a gente viajou pra Europa vários anos, a gente foi pro festival na Holanda, na Alemanha, na França, Inglaterra, Bélgica.
P1: Caraca! E você só tinha essa banda, aqui em São Paulo?
R1: É. Só era essa banda. Antigamente, era só essa banda, fazia música com essa banda. Não fazia nem carreira solo, eu tinha essa banda, eu era cantor da banda, eu e a Virgínia Rosa, casal de cantores.
P1: Ah, você era o cantor?
R1: Cantor. Cantor... eu sempre toquei percussão e cavaco também, mas mais cantor, percussão e cantava e fazia percussão e volta e meia eu fazia, como faço, cavaco.
P1: E você mudou pra São Paulo por quê?
R1: Mudei pra São Paulo, porque esse grupo de teatro mudou.
P1: Hum.
R1: O grupo mudou pra cá e tinha trabalho e eu tinha trabalho. Eu vinha trabalhando com um grupo de teatro, então eu já vinha com trabalhos já pra cá, né? Não eu vim pra São Paulo: “Ah, eu vou ver, vou procurar, não sei o quê". A única coisa, quando eu cheguei aqui, que eu fui procurar foi casa, mas trabalho eu já tinha.
P1: E qual que era o trabalho?
R1: Eu trabalho com esse grupo de teatro, né?
P1: Mas vocês estavam fazendo o quê? Estavam fazendo alguma temporada?
R1: Nós... a gente estava fazendo temporada, a gente fez temporada... alguns teatros. Fez temporada no... como é que era? Puta, a gente foi começando a fazer assim, né, a gente... já entrando em editais e tal, fazia temporada muito em teatro da prefeitura, tinha o Teatro Vento Forte, que a gente fazia espetáculo, que era no Itaim, que fazia espetáculo no final de semana ou de semana também. Montando um espetáculo ou outro, eu ia arrumando trabalho pra tocar também, dentro do decorrer disso, eu comecei, eu, tocar na noite também, né, que também gera trabalho, tocava não sei o que, tocava percussão, ia acompanhar um cantor ou uma cantora ou outro, ia gravar, tocava numa aula de dança, né, toquei com Klauss Vianna, toquei com Maria Dulce, né, com grandes mestres da dança de São Paulo, né, que eu trabalhei e estudei também com eles. Então, esse tempo meu era muito dinâmico também, né? Ia sempre aparecendo coisas pra fazer, trabalho e começava cedo a aula de dança também. Então, já era solicitado pra dar aula de dança e tal. Começa essa parada, também, da pesquisa, de começar também trabalhar e falar sobre cultura popular e falar sobre Bumba-meu-boi, ensinar pessoas aí pra essas... isso aí começa a criar grupos também, né? Eu começo dar aula nos lugares e tal, esses lugares vão virando grupos também e tal.
P1: Mas vamos por partes, você estava...
R1: Estava no Rio.
P1: Não, você foi... mas aí você foi morar onde, em São Paulo? Em que lugar você foi morar?
R1: São Paulo, quando eu cheguei em São Paulo, eu fui morar na casa de um casal aqui em Perdizes, né? Que era o Artur Cedrim e a Júlia Crisanta.
P1: E aí você ficou morando direto lá?
R1: Não, eu morei mais ou menos um ano e tal lá ou menos, talvez um pouco menos de um ano e que foi justamente de 1979, aí eu acho que... é, foi quando eu voltei pra cá, um ano. Porque eu acho que, quando eu vinha pra São Paulo, às vezes ficava - eles eram meus amigos - hospedado na casa deles também e tal. Então, eu fiquei meio que um tempo ali, morando na casa dele, depois eu mudei pro Morro do Querosene.
P1: E aí como foi a chegada no Morro do Querosene? Por que o Morro do Querosene?
R1: Rapaz, você sabe que não... essa sua pergunta é algo que quase não tem resposta. Por que a pergunta não tem resposta? Porque, na realidade, a gente não falou: “Ah, nós vamos escolher uma casa no morro". A gente era eu, o amigo, o Paulo Freire, que é violeiro, nós trabalhávamos juntos na época, né? Ele estava um pouco saindo da casa dos pais dele, né? Queria ir morar junto e eu também, chegando de fora, queria arrumar lugar pra morar, a gente combinou de alugar uma casa e dividir a casa. E aí a gente foi procurar no jornal e a gente achou uma casa no morro, que estava pra alugar. E a gente foi até lá, viu a casa e aí alugou a casa e foi no morro coincidentemente, porque não ia pro morro, coincidentemente porque o morro, realmente, eu não sei como é que seria eu na cidade de São Paulo se eu não tivesse ido para o morro, né?
R1: Como é que era o morro, naquela época?
P1: O morro é o seguinte: o morro tinha algo assim, ele sempre teve uma identidade muito forte cultural, mas ele tinha algo aí que era muito perigoso, que ele era muito violento. O Morro do Querosene, na época que a gente mudou pro morro, que eu cheguei lá, era um dos lugares da cidade de São Paulo a ser conhecido como mais violento, assim, da cidade, era ali aquela região, o morro, né? O povo não sei o que, a galera não queria ir no morro, mais: “Ah, vamos no Sapé, vamos não sei aonde”. A pessoa ia com mais facilidade... lá hoje, nós temos mais facilidade do que alguém ir no Morro do Querosene há quarenta, cinquenta anos atrás.
P1: É mesmo? Mas você via essa violência e, mesmo com essa violência, foi morar?
R1: Não, eu não sabia muito e não tinha noção pra lá. Também essa violência, de uma certa forma, a gente claro que foi vendo, mas... e aí não... eu estava em São Paulo, entendeu? Não conhecia São Paulo. Achei o coisa no jornal e fui para lá, talvez até os donos da casa tinham mudado de lá por causa disso também, né? Mas aí a gente foi pra lá e... foi também, a gente chegou, né, a gente tem um pouco esse pique também de passar na porta. Isso aqui é um cartão de visita, esse instrumento, violão ou cavaco, sabe? Isso é cartão de visita também, né? Você chega não sei o que, então chega nos guetos: “Pô, espera aí, você, não, toca e tal". A gente também, né, essa diplomacia de saber chegar. Então, a gente já fez amizade com todo mundo. Com os mais velhos, né, o senhor e senhoras, os anciões, é... com a galera do... né, com a malandragem, com a criançada, que a gente fazia teatro, começou a fazer teatro infantil lá na rua. Entendeu? Com a criançada. Então, a gente foi, né, pegando isso coisa. E, com isso, essa questão de fazer coisa, usar a rua do morro - isso é importantíssimo - com arte, com criança, com não sei o que, que foi crescendo, depois foi virando festa, festa do boi, gente fazia festa em casa, que às vezes tinha músico, tinha alguns amigos nossos que tocavam, tocavam na noite, uns tocavam no Chacrinha. E aí a galera vinha, os músicos vinham e as amigas deles, tal de Chacrete, que era lá do Chacrinha, dançarina do Chacrinha vinha na festa do morro. E tinha uma galera, né, de músico, de artistas, né, que a gente era da área de teatro também, da dança. Então, era um lugar muito de artistas, né? Então, foi criando essa coisa, tanto lá dentro de casa, como na rua, cresceu a questão da rua e, com isso, a gente acredita que, com essa ida de mais pessoas, não sei o que, a questão da festa, essa violência foi também indo embora, né? A gente ficou mais em contato com essa galera, jogava futebol ali com a galera, não sei o que, fazia o nosso samba, sabe?
P1: Você acha que a sua presença lá, de alguma maneira, fez com que essa violência diminuísse?
R1: É, com certeza. Não é nem achar não, com certeza. A minha... eu fui um dos primeiros, né, mas eu falo que a minha geração, né?
P1: Aham. Você foi um dos primeiros?
R1: É. Eu fui um dos primeiros ou talvez o primeiro, né?
P1: O quê? Maranhense ou artista?
R1: Maranhense e o primeiro artista, assim, né, a gente morou lá antes o Adão, que era um artista plástico, mas ele não tinha muito esse popularismo, né, de lidar com as pessoas, de estar com as faixas etárias junto e tal e chamar a galera, fazer festa, fazer festa na sua casa ou fazer a festa em rua, fazer teatro pra criança.
P1: Mas como foi que aconteceu? Você chegou, aí você foi morar na casa. Como foi seu primeiro dia lá?
R1: Primeiro dia foi faxina. ((Risos)) Primeiro dia foi faxina, foi duro. Não, mas, na realidade, eu não me lembro, né? Não me lembro. A gente sempre foi muito festeiro, a gente escutava música, escutava música, música boa.
P1: E eram seus amigos?
R1: É. A gente escutava. Aí foi depois que foi morar lá, primeiro foi eu e o Paulo, aí depois o Paulo saiu, foi e chegou o Pedrão, que era esse outro amigo, né, nosso, que mora na França e depois ele foi morar, depois foi acho que o Paulo saiu, depois foi mais um maranhense, depois chegou mais dois maranhenses, depois chegou mais dois maranhenses e um baiano. (risos) Aí foi crescendo, não sei o que, aí outros já foram olhar, morar também e aí tal. Então alugava, alugava quarto, um saía, tinha quarto vazio, ele pegava... a gente tinha três quartos, aí outro já foi morar, não sei o que, com a esposa, aí outro não sei o que, tinha namorada, aí a namorada já ia morar também e vai criando aquele negócio meio de comunidade, né? Novos maranhenses, em vez de Novos Baianos, Novos Maranhenses, né? Então, tinha um pouco essa questão ali da comunidade, né, da gente.
P1: E eles foram indo por que você foi pra lá também?
R1: É. Todo mundo era isso aí. Ali era chamado de Consulado do Maranhão e eu era o cônsul. ((Risos)) Eu era o cônsul. “Cônsul, cadê, o cônsul está aí?”. Me chamavam de cônsul.
P1: E você já se via como, assim, um ser que divulgava, assim, essa cultura?
R1: Já, já tinha, porque não tinha nem esse divulgar, eu optava por trabalhar com o que eu tenho na mão, né? Eu acreditava que isso é que era legal, né, que eu gostava, fazia o que eu gosto. Gosto de fazer samba, cantar, eu gostava de cantar Luiz Gonzaga, cantar João do Vale, cantar Cartola, Nelson Cavaquinho, Dona Ivone. Certo? Eu já gostava dessa galera, né? Já...
R1: E aí você conseguiu só trabalhar com arte?
P1: Já acreditava nisso. Rapaz, teve uma época que eu estava... o negócio apertou e eu tinha um amigo que era eletricista e aí eu andei tomando uns choques com ele também. ((Risos)) Aí foi um pouco trabalho, mas foi bem pouco tempo assim, falava... pô, estava sem fazer nada, ele falava: “Tenho uns trabalhos, não sei o que, quer me ajudar?”. Aí ia ajudá-lo também, aí me dava uma grana. Mas não foi... foi muito pouco tempo, o resto foi mais na... ou apertado ou não, foi mais na base da arte mesmo, de tocar, de tocar na noite, né? Vez ou outra temporada de teatro, era mais ou menos... segurava de teatro, que fazia temporada, ou as casas noturnas que eu tocava, né?
P1: E aí você disse que também era chamado pra falar da cultura popular já, em alguns lugares.
R1: Já tinha esse caráter também, né, de ir nas escolas, falar sobre o boi, cantar sobre, essa parada da educação infantil, né, eu já tinha um pouco isso, já tinha muito esse buscar, porque eu tenho, no meu ponto de vista, eu gosto muito de... eu falo que é ocupar espaço vazios, né? Querer fazer algo que pouca gente faz. Então, tem pouco professores que trabalham com cultura, com educação infantil, né, com dança, com não sei o que e tal, professores, professores negros, professores homens trabalhando com educação infantil. Então, eu vou nesse caminho. Então, eu já tinha a parada da educação infantil também.
P1: Uhum.
R1: E agora mesmo... eu vou fazer agora, eu tenho um festival que chama, é... musicali? Puta, agora esqueci. Um festival de música infantil, que é do Ministério da Cultura e Banco do Brasil e tal. E a gente fez esse ano e fez em Brasília, no início do ano, assim em janeiro, fevereiro, fez Brasília e depois foi Belo Horizonte. E agora era... era não, era em São Paulo, só que era ao vivo, né e agora a gente vai fazer no... é... não ao vivo, né, vai fazer lá no CPB, mas vai gravar, live, falando sobre educação infantil, cantando música infantil, falando dessa relação das pessoas, criança, pai, a música, né? Essa coisa afetiva que a música traz, de ensinamento, não só afetivo, mas de ensinamento, relação com jogos, essa pedagogia, da importância disso, do educar brincando, né? Valorizar essa brincadeira, que brincadeira você está estudando várias coisas, né? Está estudando Matemática, está estudando Física, está estudando Português, né? Com todo esse universo lúdico está trazendo vários ensinamentos pra você, além da relação de grupos, né? De grupo entre coisa, você e as crianças, entre elas, né?
P1: Aí você tinha comentado...
R1: ... relação do limite, do tempo, do tempo de espera, meu tempo, seu tempo, né? O meu limite. “Agora é sua vez, eu espero a minha vez”. Tudo isso, né? Relação dos combinados, regras, né? Bato muito na questão das regras, porém, o que é combinado, o que está acordado, que está combinado entre nós. Né? O que essas crianças... “Vocês crianças, o que você combinou com ele? O que nós, aqui, nossa turma, comigo, que sou professor, o que nós combinamos, não o que eu mandei vocês fazerem. O que nós combinamos?”. Diferente, né? “Que eu dei a ordem pra vocês fazerem, fui-me embora __ (57:43) minha turma falando aqui: “Pô, mandei vocês fazerem não sei o quê” De repente ninguém fez. (risos) Não. “Nós combinamos que você ia fazer isso, que aquele ia fazer isso e que eu ia fazer aquilo outro”. Tudo isso é numa brincadeira, né, no lúdico e tal, a relação do respeito com as pessoas, né, com o outro.
P1: E aí você comentou que tinha criado uma pedagogia, de certa forma, assim. Queria saber isso, como é que foi que você, dando aula pra criança, encontrou uma pedagogia? Se pudesse compartilhar isso.
R1: Na realidade, eu não sei, viu, velho? Eu não sei se é isso aí, beleza? Vamos de novo. Primeiro que eu falo assim, eu brinco também, eu falo que ninguém inventa nada. Se dissesse assim: “Eu inventei, eu criei”. Acho que tem um tempo assim, eu tenho... venho de uma escola, essa escola tem uma mestra nossa, que é a Dona Terezita Pagani, ela tem seus oitenta e pouco, quase noventa anos, ela vai na escola diariamente, né? E ela é uma mestra em relação a isso, só de escola ela tem quase sessenta anos de escola.
P1: Qual a escola que é?
R1: Te-Arte. Te-Arte, uma escola aqui na Vila Gomes. Ela era aqui em Perdizes também, durante muito tempo ele foi em Perdizes, depois ela mudou, aqui na Vila Gomes. Essa escola, é uma escola de... acho que uma escola pra todos nós, né? Eu também estudo nessa escola. Eu dou aula lá faz mais de trinta anos, mas eu também estudo lá, porque ali tem uma linguagem, ali tem uma pedagogia que a gente, né, nesse meio tempo, a gente pode até dizer que se desenvolve junto e tal. Mas a grande mestra é Dona Terezita. Né? Eu busco muito dela. Agora, eu tenho um pouco assim, né, dentro disso, né, tem a história dela, a escola dela e eu também que, pelo meu jeito, eu também pesquiso sozinho, eu ando pelo Brasil, pelo mundo também estudando, mas lá é um lugar de reciclagem também. Então, eu acho que a grande dádiva mesmo ali pra... pra escola.
P1: E você dava aula de que, lá?
R1: Eu não dava, eu dou.
P1: Dá?
R1: Isso.
P1: Ah. Mas a mesma aula que você dava há trinta anos?
R1: É. Porque o que acontece é o seguinte: eu trabalho com dança, com essas danças, jogos, brincadeiras, capoeira, música, né? Trabalho basicamente com essas coisas. Só que eu trabalho lá mais de trinta anos, então, há trinta anos eu tinha aluno de cinco, de quatro, que hoje tem trinta, trinta e quatro anos já, né? Que até, às vezes, tenho alunos que foram alunos que hoje eu sou professor dos filhos deles, entendeu? Então, é isso: eu vou trabalhar música, jogos e tal, meio que a vida inteira, não é algo que você fala assim: “Ah, não sei o que, que as pessoas...”. O que pode acontecer é: como você teve essa vivência na infância, então isso é algo que fica pra tua vida, entendeu? Alguns viram músico, mas pode virar... pode ser tudo, né, não sei o quê. Tem uma grande amiga, né, que... a Matilde, que foi aluna pequenininha, mas que virou amiga minha, ela, a família. Ela é, na realidade, brasileira, filha de suíço, o pai dela é suíço, eles moram hoje todos na Suíça e ela é médica lá, né, na Suíça, se formou em Medicina e eles que me levaram pro Festival de Montreux na Suíça, ela com o pai dela, que foi do... esse pai dela também, já que ele... quando recebi o título, ele foi no... que a gente virou amigo, era um coisa, empresário suíço, mas ele tocava piano, gostava muito... tocava não, toca piano, gostava muito de tocar piano, ele ia na escola, vendo que eu era músico, não sei o que, falou: “Pô, não sei que, vamos lá em casa”. Então, me convidou pra ir na casa dele. Chegou lá me mostrando, não sei o que, levei instrumento, a gente começou a fazer música e tal, ficamos muito amigos, eu, ele, da família e tal, eles me levaram no festival, falaram... eles já estavam morando lá, falou: “Porra, não gostaria de ir no Festival de Montreux?”. Eu disse: “Não sei o que, vamos levar, vou mandar material”. Aí pegou material, levou pro festival, o festival aprovou, a gente foi pra lá. História de... foram crianças na escola. Ela, hoje em dia, já é uma senhora, já. Então, há muito tempo. Então, você está me perguntando de que dá aula, eu falo aula de tudo, né, de como é. O que acontece? Nessa faixa etária, a gente quase... não vou dizer assim: “Ah, você está fazendo aula de... eu vou sentar pra fazer aula de...”. Você faz vivências, né? São vivências que você faz, está falando: “Então, a gente vai fazer uma vivência de música e vai tocar, vai...”. Sabe, aprender a estar junto, não sei o que, vai descobrindo o que é ritmo, brincar, todo um lado lúdico aí que é somatória, às vezes, ele vem no outro sentido mesmo, né?
P1: Então, Tião, eu queria te perguntar assim, que você dava aula pra umas crianças de até sete anos, né? E qual que você sente que era a importância de você estar ensinando e aprendendo também, com crianças dessa idade?
R1: É o aprendizado, importante que vai junto, né? Esse... que eu costumo falar, que essa escola em especial, né, que é a Te-Arte, é uma escola pra todos nós, né, pra nós professores, para as famílias, né, para a família, não só pra as crianças, né, pra nós, pra professores, pras família e pra a própria Dona Terezita, né, que é mais nossa matriarca, né, a mais velha, tal, que é a nossa grande mestra, até pra ela mesmo a gente quer... eu convivo com ela faz quase quarenta anos, trinta e cinco no mínimo eu diria e mesmo ela, a gente sente, com quase noventa anos, crescimento, né? Que ela continua crescendo, continua enquanto pessoa, continua, tal. Então, isso... e observar isso também é um ensinamento pra nós. E estava te falando, né, que esse primeiro septênio aí é muito interessante, que eu até lembrei, está falando que a relação do... que a primeira fase, que nós consideramos uma fase mais importante, né, da... nossa, né, da formação do ser humano. Eu, inclusive, em especial, coloco a formação do caráter, eu acho que nesse período aí, você sabe que você está se formando também. Daí que eu acho que daí o perigo, né, a gente, às vezes, bater na criança, ensinar a criança batendo e às vezes tem pessoas que batem, né, bate no rosto das crianças, tal, na cara das crianças. É pior coisa que pode acontecer, o pior ensinamento, né? Você acreditar, porque eu acredito, de uma certa forma, que eu vou crescer e que eu vou... que o certo é esse, é eu bater, é eu apanhar, né? Apanhar... você... eu estou ensinando meu filho a apanhar. Você entendeu? Eu estou ensinando o meu filho a apanhar, ele apanha, não sei o que e tal, daquilo faz coisa errada, né, apanha, né? Depois cresce e apanha, bate, bate na mulher, bate na namorada, né? Bate na polícia, apanha da polícia, né? Então, acho que... correr pra outro ensinamento, né? Procurar fugir dessa relação, dessa violência, né, principalmente essa violência física, né? A violência emocional também, né?
P1: E fugir para onde?
R1: Fugir? É, quando eu falo “fugir”, na realidade, eu queria dizer assim, fugir pra isso mesmo, pro diálogo. Diálogo. Né? Eu usei a expressão “fugir”, mas pode ser isso aí também: vamos para o diálogo, a gente acredita no diálogo. No diálogo, no combinado, nos limites, né? Se eu sou seu pai, eu tenho que expressar de ser firme, preciso ser firme com você, não necessariamente bater, né?
P1: Você podia dar alguma ilustração de algum episódio que aconteceu, às vezes, na sua turma, com alguma criança, que você sente que trouxe algum aprendizado pra você?
R1: Tem uma coisa engraçada. Aconteceu com a minha mestra Terezita, veja você. Ela é muito brava, né? Ela é tida como muito brava, mas até que ela é uma pessoa muito inteligente, não sei o que, ela é muito brava. Não é que ela é brava, ela é muito...
P1: Então, Tião, você estava comentando do episódio lá.
R1: Do episódio. Escuta essa. Então ela tem muito isso, então era muito... sabe, a coisa funciona, mas, sabe, funciona, não sei o que, com os pais, com as famílias, sabe? Ela não tem muito dizer assim: “Ah, porque não sei o que, meu filho e tal” “Pai, o que que está acontecendo lá? Não fiquem vocês dois, sabe, zoando com a cabeça da criança. É isso mesmo? Vocês vão separar? Certo? Vocês estão se separando? É isso? Então, fala pro seu filho, seja não sei o que, entendeu?”. Não tem negócio de: “Ah, porque...”. Tem que esconder dele: “Ah, eu vou sair, eu saio escondido do meu filho”. Isso não existe. “Eu vou sair escondido pro meu filho não chorar porque, se ele ver eu saindo, ele chora”. Não existe. “Filho, eu estou saindo, vou fazer tal coisa e vou voltar tal hora”. Ou então: “Eu não sei que hora eu volto”. Certo? “Eu não sei que hora eu volto. Ó, é isso, eu vou viajar, vou não sei o que, pai vai ficar tanto tempo fora e depois volta”. Chorou, a gente chora, você chora, eu choro também, a gente abraça, mas é isso que vai acontecer. Certo? Essa é a nossa educação. Não tem: “Ah, porque não sei o que, ‘pá, pá’, não sei o que, vai lá e pede desculpa para ele”. Tsi-tsi. Negativo. Desculpa vicia. Você vai lá, você puxou o cabelo dela, certo? Não vou falar pra você ir lá pedir desculpa, dar um beijo no rosto dela e amanhã você está fazendo a mesma coisa e o professor dizendo de novo pra você pedir desculpa e dar um beijo. Não. Você vai lá e explica pra ela o que você fez, que você errou e que você não vai mais fazer. Certo? Você chutou seu amigo, você vai dizer: "Ó velho, pô, foi sem querer, não leva a mal e tal". Ou então: "Foi sem querer mesmo, porque você me fez isso e isso, eu não gostei, eu fui lá e fui fazer em você. Certo? E se você fizer, eu vou fazer de novo, porque eu também não gosto de apanhar. Se você me bater, eu vou te bater. Bater dói". Certo? Bater dói, então não adianta você... se você me bater, você vai ficar... porque tem primeiro me bater, eu apanhar, tu nunca sabe qual a dor que eu senti, aí fica fácil pra ti ou para mim, né, se sou eu o opressor, né? Não, se me bater, você vai bater, véio. Ninguém bate em ninguém, esse é o combinado. Agora só eu pra apanhar e você pra bater, não, né? Eu só bato em você, eu bato, aqui eu sou o maioral, bato nisso. Aquele bate não sei o que e vira o dono do mundo? Não, negativo. Na nossa educação, não. Mas estava falando da Terezita. Estou dizendo assim como é que é a parada da pedagogia dentro da escola. A parada é essa, sabe? O dado é esse: tem que trabalhar com que é, com o que é; o que não é, não serve muito. Uma coisa é o lúdico, uma fantasia e tal, outra coisa é mentira, né? Bom...
P1: Teve alguma vez...
R1: Eu ia te contar. Aí de certo é que tinha uma criança, coisa não sei o que, uma criança, tinha uma criança, tal com a vó doente... numa hora dessa a coisa é tão engraçada, ((risos)) eu estou falando de morte, a gente fala que é tão engraçado, quando a gente lembra depois. Estava com a vó doente, aí tal, não sei o que, a vó da criança morre. "Pô, perdeu a tua vó, não sei o quê". Aí tu: "Ah, não sei o que, mas perdeu a avó" "Não, é porque a vó já estava velhinha, a vó já estava velhinha e morreu, né, estava velhinha e tal". Aí a criança não entendeu, né? "Opa, minha vó estava velhinha e morreu". Uma hora a criança estava lá pra escola, a escola não tem uma sala fechada, né, tem um galpão, tem umas coisa que é a secretaria, banheiro, uma sala cozinha, um salão grande, né, que tem algumas coisa, armário, que a gente costuma trabalhar muito nesse salão, duas salas só, as outras atividades quase são feitas ao ar livre, boa parte delas, na escola. A Terezita estava lá, sei lá o que estava fazendo ali, quando vê, aí a criança vacilou, ela deu uma dura na criança, essa criança que perdeu a vó, deu uma dura nela, né? "Pô, o que você está fazendo?". Aí a criança sai, dá uma volta, a criança volta por ali, ela está lá, que está fazendo trabalho manual, a criança chega perto dela e fala assim: "Terezita". Ela fala: "Ãhn?" "Você já está velhinha, né?". Ela fala: "Eu estou, mas eu só vou morrer quando chegar minha hora. Sua vó morreu porque era a hora dela". ((risos)) Entendeu? Aí a criança puta, quando falou: "Pô, minha vó estava velhinha, morreu, pô. Mas quem está me enchendo o saco, não morre". ((risos)) Quando a criança chegou pra ela e falou: "Você já está velhinha, né?". Aí ela falou: "Eu estou sim e eu vou morrer quando chegar a minha hora. Sua vó morreu porque era a hora dela". Né? Ou seja, é isso, né? É a inocência da criança e tudo, e a forma do mais velho, né, do idoso educar, né, com a verdade, né?
P1: E teve alguma vez que alguma criança te ensinou algo?
R1: Rapaz, tem umas coisas que eu sempre falo com as crianças, que é muito comum, né? A criança sempre fala assim: "Pô, Tião...". Às vezes a gente fecha... eu fecho atividade com eles, tal, vou embora, alguns saem, vêm abraçar, vêm agradecer. Eu acho que isso é ensinamento. Já tive alunos que, às vezes, fez aula comigo, às vezes eu dei bolsa, adulto, foi embora, uma determinada... virou as costas e nunca foi lá falar muito obrigado pra mim. Então, não é comum, mas já aconteceu e as crianças: "Porra, Tião...". Dá um abraço aqui na perna e tal: "Tchau, Tião. Ô, tchau, não sei o que, porra, obrigado. Ô, Tião, muito obrigado, tchau. Não sei o quê". Às vezes sai, ajuda a recolher coisa, os brinquedos, as coisas que estão por ali, os instrumentos, recolhe, recolher, botar tudo no lugar onde estava, onde começou, certo? Quando um ou outro já não está, a gente chama, fala: "Ó, já toquei aqui, seus amigos tão todos fazendo, você...". Entendeu? "Não é assim, não. Beleza, está tudo mundo aqui, todo mundo acabando de fazer, todo mundo colaborou, certo? Tu não colabora, não. Ó mãe, ó, não colaborou hoje, hein? Dá uma conversada com ele, com ela. Não está muito colaborando com as atividades igual que os outros, entendeu? Ele não está muito colaborando. Ó mãe, melhorou bastante, hein? Que bom, está de parabéns. Certo? Hoje deu uma força. Ô filho, que legal". Conversou: "Ah, que bom que conversou com a mãe em casa e tal, explicou. Ah, que bom, mãe. Muito bom, parabéns, viu? Que bom que você conseguiu. Hoje foi massa, igual com todo mundo, muito bom". É assim.
P1: Tem mais alguma coisa da escola que você queira compartilhar, alguma vivência que você teve?
R1: Rapaz, é muita coisa, né? Muita coisa, mas eu acho que são esses caminhos, né? Esses caminhos. A gente procura meio que correr aí dessa forma mais natural possível, né, acompanhar realmente a vivência dessas crianças, né, o dia a dia delas, o crescimento, né, compartilhar, compartilhar com a família, tipo a vivência da criança na escola: "Ó mãe, está brigando. Ó, hoje brigou, está brigando aí, ó. Você vê o que está acontecendo e tal, porque está brigando, bateu no fulano, mordeu, sabe? Hoje eu tive que tirar da brincadeira, separar, porque não estava conseguindo ficar com a turma, ficar com todo mundo hoje, tive que separar, certo? Teve que tirar, não sei o que, está muito zoando e tal". Aí, às vezes, a mãe, pá, não sei o que, já vem: "Ah é, isso aí aconteceu?" "Ah, aconteceu". Às vezes tu tem que saber, às vezes é uma babá nova que tem em casa, que não sei o que __ (01:15:32), às vezes está indo pra casa de um primo ou outro que tem uma outra atitude, não sei o que, que vai tal, ou é uma criança do vizinho que vai ensinando umas coisas, que vai pegando, que vai passando. Então, isso aí é um pouco assim... é meio o básico, né, o simples. Aí que é a importância desse primeiros sete, né, primeiros sete anos aí é isso: acompanhar, brincar, as atividades, né, o coletivo.
P1: É, que massa. Eu ia te perguntar assim, só pra gente voltar lá pro morro, mas isso tudo que você ensina hoje, você acha que tem alguma relação com o que você aprendeu nos seus primeiros sete anos?
R1: Eu acho que... eu não diria que é aprendizado, dizer: "Ah, eu aprendi nos primeiros sete anos". Eu acho que é o resultado de eu ter tido uma infância sadia. Acho que eu sou um pouco isso aqui que eu sou, porque acho a minha infância sadia, entendeu? Isso é o resultado disso. "Ah, porque eu aprendi isso, aprendi não sei o quê". Né? Ter brincado, né, ter brincado, brincado em casa, brincado com meus amigos, né, com meus irmãos, né, escutado as histórias, né? Lendo a história do lobo, (risos) escutado as histórias, né? Acho que isso aí é o resultado disso, foi importante ter mantido uma infância sadia, pra relação do caráter do homem maduro, né?
P1: Você utiliza histórias como pedagogia também?
R1: É... com certeza e também histórias e muito os provérbios, né? Os provérbios, o dito popular: "Quem come e guarda, bota a mesa duas vezes". Certo? "Quem tem padrinho, não morre pagão". Com esses caminhos aí, né?
P1: Qual que seria o provérbio da sua história de vida?
R1: "A calma é a mãe da sabedoria".
P1: Aonde foi que você ouviu isso?
R1: Mestre Pastinha.
P1: E voltando pra sabedoria da cultura popular, quando que foi que aconteceu a primeira festa do Bumba-meu-boi, no Morro do Querosene?
R1: É possível que tenha acontecido da seguinte forma: eu dava aula de dança - é bem possível que seja isso - e a gente brincava com essas coisas. Uma determinada hora, eu resolvi, com os alunos, brincar, quase que montar um Bumba-meu-boi, né? Como montar uma peça de teatro, que era o Bumba-meu-boi, eu com meus alunos de dança. E aí a gente fez e, sei lá, uma hora, não sei se uma festa de aniversário e tal, a gente resolve levar a coisa pra lá, subir o morro e fazer ou ir para rua. Foi algo que a gente foi meio que experimentando e tal e aí veio fazendo. Agora, eu acho que tem uma hora que essa Festa do Boi começa a ser consecutiva, então eu diria que talvez a primeira festa, talvez... se esse ano é trinta anos, foi no ano... primeira festa, assim, tradicional, com o nascimento, batizado e morte, foi no ano de 1990, 1990. É, primeira festa em 1990 e agora eu não lembro se foi já próximo ao batizado ou se foi na Aleluia, não lembro. Pode ser que seja no batizado e tal.
P1: E como foi que aconteceu essa primeira?
R1: Era muito simples também. Era a festa que era justamente esses alunos, que já faziam aula comigo e a gente resolveu ir pro morro, pra dentro de casa e a festa, de dentro de casa, sai pra rua. É um pouco assim. Não tem, assim, uma data específica, entendeu? Tem um ano, uma época. E aí depois dessa época, 1990, essa festa começa, porque senão a gente fazia esporadicamente, entendeu? "Vamos fazer uma fogueira, cantar Bumba-meu-boi e fazer um boi". Beleza. Aí depois a gente falou assim: "Não, isso aqui é assim". Aí vai chegando mais gente, a gente vai organizando. Quando começa a chegar gente, né? A gente vai organizando: "Puta, não dá mais para gente ficar, tem que botar banheiro, não sei o que. Ah, tem pessoas... então vamos vender coisa, botar barraca, que vai vender isso aqui, comida". Optando por comidas mais de uma forma natural, que você faça, não necessariamente você: "Ai, eu compro um monte de salgadinho, um monte de refrigerante, vou para festa e vendo". Não, procurar aí trabalhar em cima da coisa que a comunidade produz, né? Então, essa ideia aí também que vai... aí vai tudo meio que se formando junto, né, vai crescendo, cresce isso aí, organizado.
P1: E aí eu queria que você contasse um pouco, se possível, a trajetória do Bumba-meu-boi lá, até hoje. Desse momento que nasce com seus alunos, até já ser um marco, né, da cidade. Os principais pontos que te marcaram da evolução da festa.
R1: Não, eu acho que é um pouco assim: teve um momento que a gente ficou meio assustado assim... dois momentos que a gente se assustou, o resto, tudo foi tranquilo. Dois momentos. Um momento foi justamente quando a televisão foi. Uma época tinha um programa do Maurício Kubrusly, no programa dia de domingo passava no meio do Fantástico, que aí ele fazia... andava por alguns lugares do Brasil, ele resolveu fazer uma matéria com a gente. E ele fez essa matéria, foi antes da Festa do Boi. Quando ele fez essa matéria, botou na televisão, aí essa festa encheu, encheu de gente. Aí, daí, a gente resolveu cuidar de não divulgar mais a festa, pelo menos não divulgar na mídia. A festa não se divulga mais. Faz mais de vinte anos que a gente não divulga a festa. Então, teve esse momento que ficou meio assim, né, porque as pessoas vão meio que de qualquer... uma coisa é você ir para a Festa do Boi, mais ou menos sabendo, outra coisa é você pegar esse sentido efeito boiada, né? "Ah, está tendo a Festa do Boi no Morro do Querosene, não sei o que que é, eu vou". Sai a torcida do Corinthians, a torcida do Santos, São Paulo, vuuuuuuuuu: "Vamos para festa e tal, não sei o que". Aí chega lá... e outra época foi... a galera chegou pra mim e falou: "Porra, Tião, tem uns caras...". Maranhão é terra do reggae. "Tem uma galera do reggae que está querendo botar radiola aqui na Festa do Boi". Eu falei: "Pô, mas será que isso dá certo? Não sei o que. As coisas da gente são mais simples, mais orgânico e tal. Radiola" "Não, porque é uma galera não sei o que, é bom que vem... traz outras pessoas também, que poderiam não vir na festa, mas não sei o que e tal". Todo mundo insistiu, eu falei: "Beleza, vamos ver, vamos botar". Liberei pra vir. Mas aí foi outra forma também, também pintou muita gente e muita galera diferente. E uma galera diferente, outra coisa que eu observei, que é algo que a gente precisa tomar muito cuidado, é com a parada dos guetos. Guetos que eu falo assim, ah, é essa turma, por exemplo: é a turma do reggae, que tem ali a sua linguagem, certo? Mas quando essa turma vai com a sua linguagem pra uma festa de comunidade, onde tem criança, idoso, não sei o que, é uma galera que tem uma faixa etária, uma forma de se vestir, uma forma de não sei o que, um efeito, que tipo de apoio você tem, né, que tipo de apoio você tem, que tipo de droga você usa, né, como você usa, né? Por exemplo: a galera do reggae, quando chegou, puta, era um baseado atrás do outro e não tinha aquele negócio: "Puta, eu vou sair aqui de quebrada, eu vou ali atrás daquela árvore, eu vou... a gente vai, dá nossa bola lá e depois volta pra cá e está na boa". Não, está aqui, a velhinha está aqui, os caras estão na frente, né, não sei o que e tal, nem aí, entendeu? Até você explicar pro cara que... sabe, que é o lugar, tal, mas não é assim, entendeu? Que ninguém está proibindo nada, mas tem um contexto social, né, velho? Né? Tem aquelas pessoas, tem coisa que você... né? "Ninguém andou falando pra você não fazer. Agora, porra, né, não abusa, aqui não é assim, entendeu? Não é assim". Então, foi muito e foi muito mesmo, era muita galera. Então, termina predominando mais a turma que está chegando, do que uma turma que já está lá, que tem todo o efeito no conhecimento da localidade e tal, que não sei o que, toda a coisa da festa que acaba e começa de manhã e acaba no outro dia de manhã, pode durar vinte e quatro horas a festa, entendeu? Mas dentro de um determinado ritmo nosso, né, uma determinada administração nossa, né, combinado nosso, né, organização nossa. Aí a festa pode ir pra fora, porque está sob controle, né? Então, isso aí, esses dois momentos, que vinha gente meio que de qualquer forma. Aí o divulgar, a gente fez questão de não divulgar. Então, quer dizer, o que eu falo quando eu cito questão das torcidas? O que eu quero dizer é o seguinte: eu quero dizer, falar do efeito boiada. É... esse mesmo cara, esse mesmo torcedor, pode ir, não tem problema, porque não é ele, é ele com a turma dele, porque se ele for ele com um amigo, uma amiga, com a namorada, né, com o namorado, com pai, com mãe, com vó, ele vai de outra forma. Agora, se for ele e a torcida do jeito, aí é o mesmo cara que ele vai, como ele vai.
P1: Como você conseguiu, assim, apaziguar essa...
R1: Eu acho que foi um pouco nesse raciocínio, essa forma de pensar, diz assim: "Turma, vamos procurar não divulgar, não põe em rede social, nada". Se quiser dizer, ah, ligar, porra, mandar um WhatsApp, dizer: "Pô, hoje tem Festa do Boi. Vamos?". Aí é uma outra coisa. Outra coisa é a gente botar no Facebook que tem Festa do Boi e que não sei o que, que nós vamos chamar pessoa que passa a botar na televisão que vai ter Festa do Boi. Não, ela é meio... lá no Maranhão tem um bloco que chama Máquina de Descascar Alho, o nome do bloco de carnaval, Máquina de Descascar Alho, chamava Máquina, e a máquina é o seguinte: como é muita gente, eles nunca falam onde é que eles vão se encontrar, onde vai guarnecer na cidade. Vai a banda pra esse lugar e as pessoas, quando chegam, meio que dispersou, não, mas já saiu, então a banda já está andando. Se marcou um lugar, não cabe na cidade. Se você anunciar que a Máquina vai encontrar em tal lugar, não cabe, porque é muita gente. Virou um sucesso. Então, é um pouco essa coisa de aprendizado, você fala assim: "Puta, é melhor não...". Se a gente não divulgar, é legal, porque as pessoas vão numa boa. Vai a pessoa que já sabe o que é a festa, você vai, você leva alguém que não sabe, mas que está indo com você, entendeu? Porque diz assim: "Porra, esse efeito é perigoso. É festa". Então, faz com que ela sobreviva...
P1: E qual foi, assim, essa diferença de ter uma festa, assim, do interior do Maranhão, pra uma grande capital, assim? Até como é que o pessoal do Maranhão recebeu isso?
R1: É, pro Maranhão eu acho que é até um grande trunfo, né? Eu tive uns dois anos atrás, com o governador do Maranhão, Flávio Dino e ele falou pra mim, usou um termo assim, falou: "Tião, o Maranhão está perdendo pra São Paulo". Ele falou comigo. Ele assistiu um show meu, depois ele me chamou, né, ele estava no lugar, camarim, não sei o que, ali, tomando uma cerveja, não sei o que, me chamou: "Pô, chama o Tião pra vir pra cá". Então, fui pra lá conversar com ele, tomar uma cerveja, a gente ficou conversando e ele falou isso para mim: "O Maranhão está perdendo pra São Paulo. Você já recebeu dois títulos, três títulos em São Paulo e o Maranhão nunca te deu um título e eu gostaria de dar um título pra você". Então, ele fala um pouco isso, né? Eles têm noção que em São Paulo eu tenho essa coisa, né, que eu tenho esse trabalho e que é importante, que ele fala assim: "O Tião leva o nome do Maranhão pro mundo". Certo? E não é, ele leva o nome do Maranhão focado numa cultura tradicional maranhense, certo? Outra coisa é cantor. Mas eu sou cantor, tudo bem, não tem problema, posso ser pop, pode ser roqueiro, pode ser erudito, pode ser também e ser maranhense. Ele só falou: "Não, esse cara leva a coisa fazendo... trabalhando com cultura, em especial cultura popular maranhense". Apesar de falar várias linguagens, né? Já toquei com orquestra, com coral, com não sei o que, toco com todo mundo, mas tem essa parada da cultura tradicional do Maranhão. Então, acho que o Maranhão recebe muito dessa forma, entendeu? Dizendo assim: "Pô, está representando desde a relação da família, dos guetos lá de Cururupu, né, dos lugares, né?". Uma vez conversando com um amigo do meu pai, meu pai já falecido, conversando com os amigos dele, mais velhos, né, mais geração do meu pai, né, com os amigos dele, falando pra eles, assim, sentado na roda com eles, assim, na casa da minha mãe e eu falando para eles: "Ah, até queria falar com os senhores aqui, porque não sei como é que os senhores veem, mas eu trabalho com isso, né, com Bumba-meu-boi lá fora e tal, com essas coisas. A gente... eles cantando com a gente e tal e com o Bumba-meu-boi, né? Então, é uma forma de estar pedindo... queria pedir a permissão pra vocês, entendeu?". Falei pra eles e eles falaram pra mim: "Meu filho, isso aqui tudo é seu. Isso aqui tudo é seu". Entendeu? Aí veio um pouco isso, dizer assim: "É nosso, a gente tem que cuidar. Tem que cuidar, tem que cuidar. A cidade é nossa, o estado é nosso, o país é nosso, o continente é nosso, o planeta é nosso, nós temos que cuidar de tudo isso aí. Tudo é nosso, nós temos que cuidar". Então, é isso que a gente procura fazer: cuidar. Uma vez eu estava batendo boca com um ladrão, que veio me roubar na madrugada e aí ele... eu não sei que estava também, eu não sei se eu já tinha tomado umas duas, também estava com a cabeça meio... porque eu não quis engolir, aí porque diz que ficou batendo boca com ele. Aí ele falou para mim uma determinada hora: "É que eu estou na minha cidade". Eu falei: "Ah, é? Quer dizer que a cidade é sua? A cidade é sua, o estado é seu, o Brasil, tudo é seu, o planeta é seu? Quer dizer, tudo é seu; pra nós, nada? É isso que você está dizendo?". ((Risos)) Falei: "Não, meu amigo, você me desculpa. Eu estou achando você inteligente demais, viu? Desculpa. Você está pensando que a gente... vem falar pra mim que a cidade é sua, véio? Está de brincadeira, né?" "Pô, eu estou na minha cidade", ele falou. Quer dizer: eu estou na minha cidade e tu não é daqui. Eu estou na minha cidade, a cidade é sua.
P1: E qual que era a cidade?
R1: São Paulo. São Paulo. "Eu estou na minha cidade". Eu falei: "É, você está na sua cidade, beleza. Então quer dizer que a cidade é sua?". Ele não acreditou. "A cidade é sua, tudo é seu, não sobra nada para ninguém. Tudo é seu. Você está me dizendo... você é inteligente demais, rapaz. Desculpa. Cuidado, isso faz mal, viu?". ((Risos))
P1: Então, Tião, a gente estava comentando da questão de quando o Flávio Dino falou pra você que tinha que te dar um título, né, pra... como é que foi essas coisas do título, que aconteceu?
R1: O caminho do título veio assim, né? Eu recebi um título - foi acho que ano 2000, acho que foi no ano 2000 - de Cidadão Paulistano, né, pela Câmara dos Vereadores de São Paulo. Isso foi uma indicação da vereadora Tita Dias, né, que é amiga nossa, foi vereadora daqui, é daqui do bairro da Vila Madalena. Recebi esse título, o primeiro título. Depois, já em 2017, eu recebo um prêmio, que é o prêmio do governador do estado de São Paulo, né, que são pra várias áreas e aí foi indicar o de cada área, alguém recebe esse título, o da música foi eu, esse ano e 2018 eu recebo o título de Mestre de Capoeira Angola, também do Grupo Nzinga de Capoeira Angola, né, título, dado esse, pela minha mestra Janja, minha mestra Paulinha, mestre Poloca, mestre Jaime, mestre Plínio, esses mestres amigo por aí, mestra Gegê, que estava nesse círculo ali, são esses mestres que, naquele momento ali, me...
P1: Então aproveitando...
R1: ... me passava.
P1: Aproveitar esse... que você deu esse gancho, eu queria que você trouxesse um apanhado do que foi a sua história na capoeira. Porque você contou um pouco do... até você virar mestre e até hoje, né, até amanhã você tem uma oficina. A história nunca acaba, né?
R1: É.
P1: Mas você contar um pouco... é... que você contou um pouco lá do seu contato com seu mestre e depois como é que seguiu a sua história com a capoeira, que mestres você conheceu, como é que a capoeira impactou o seu modo de ver o mundo, de ser?
R1: Tá. Vamos pensar assim. É... eu não tenho... eu diria que eu tenho uma média de cinquenta anos que eu conheço a capoeira, né? Conheço a capoeira, que convivo, isso aí, por volta de cinquenta anos. Desses cinquenta anos pra lá, eu confesso que eu sempre tive essa capoeira próxima, sempre, sempre, mas, ao mesmo tempo, eu confesso que eu nunca fui aquele capoeirista disciplinado, né, que acorda cedo pra treinar e tal, por quê? Porque eu tenho muito a parada da música também, né, da música e o músico da noite também, né? Que aí você, às vezes, administrar, né, toca, acorda tarde, não sei o que, trabalho, não sei o que, juntar, então essa questão da disciplina foi meio, né, danada pra mim. Tanto prova que eu sempre tive esse processo todo, mas eu nunca tive essa preocupação de ser... entender tudo de capoeira, pensando em ser mestre. Nunca tinha isso, né? Sempre procurei ser um bom discípulo, eu sempre procurei jogar, né, jogar legal, jogar bem, porque é gostoso e me traz conhecimento. Mas... é... quando eu conheci a mestra Janja, né, que isso faz... não faz trinta anos, mas faz... eu acho que fazem quase trinta anos que eu conheci a mestra Janja, aí já tinha o mestre Kenura também aqui em São Paulo, também, que eu também treinei durante muito tempo, né, que foi um dos mestres que eu mais treinei, antes da mestra Janja.
P1: Você chegou em São Paulo, aí você foi treinar com quem?
R1: Com __ (01:37:17). É... quando eu cheguei em São Paulo, eu procurei o mestre Brasília, passei pelo mestre Brasília, depois eu conheci o mestre Grande, que tinha escola aqui em Pinheiros, ali atrás da igreja de Pinheiros, é... treinei um pouco com ele, treinei muito pouco tempo com o mestre Brasília também, né, era uma época que eu viajava e vivia essa relação da viagem também, era difícil você... que, assim, toda vez eu viajava e ficava três meses viajando, entendeu? Então, até você ficar com uma escola e tal. Aí tá. Mas certo é que o Kenura veio me focar mais, né, a fazer capoeira, voltar a fazer mais capoeira, mas isso eu nunca parei de fazer, mas, ao mesmo tempo, difícil essa coisa de administrar com a escola e com o Kenura, e depois conheci a mestra Janja, né, que já tinha um pouco essa Angola, né, esse estudo da capoeira... não da capoeira, mas o estudo da história da capoeira, né, o estudo da capoeira em relação a questão não só história, mas o contexto social, né, é... histórico-social. Então, isso aí veio meio que religioso, isso veio me fazendo a introduzir mais, né, a relação de montar o grupo com ela, né, ajudá-la a formar o grupo, a cuidar do grupo, não sei o que. Então, isso fez também eu amadurecer bastante nesse sentido e isso aí, meio que treinar já o tempo também, de tempo de capoeira, a coisa de treino e aí a turma resolveu me dar esse título aí. Eu já estava me envolvido tanto, não sei o que e a turma já me chamava de mestre, antes até de eu ser mestre, antes de ter recebido o título, já tinha um pouco uma pessoa ou outra, um aluno ou outro já me chamava de mestre, mestre, mestre. E que, naquele momento, eu meio que recusava também, mas depois eu resolvi meio que assumir, assumi e reassumi. Porque, a partir do momento que eu ganho esse título de mestre, eu sinto que a responsabilidade aumenta, né? Eu costumo falar pra as pessoas: quanto mais consciência nós temos, mais aumenta a nossa responsabilidade em relação às coisas, né, em relação à capoeira, em relação à cultura, né? Então, eu resolvo também, quando eu recebo esse título, assumir: "Ah, beleza, eu sou mestre? Então, beleza, eu sou mestre, está aqui os meus conhecimentos e vou trabalhar em cima disso e continuar estudando, né?". Continuar estudando, né, agora é mestre, está estudando, amadurecendo essa mestria, né?
P1: E como foi que veio esse título, assim?
R1: Foi espontâneo, eu não sabia, eu não esperava, eu estava lá no meio da roda, a gente fez o evento, que acho que foi Chamada de Mulheres do Ano, que sempre tem evento que chama Chamada de Mulheres, do grupo Nzinga. E acho que foi no meio desse Chamada de Mulheres do ano passado, retrasado, né, 2017/ 2018. Aí eu estava lá na roda, na roda final, aí alguns receberam alguns títulos, alguns (treinéis receberam o título, contramestres, contramestras e eu recebi esse título. Acho que eu e a mestra Manoela, que nós recebemos juntos. Então recebi... é meio assim também, né, você chega, a gente fala assim: "Ó, está aqui reunido... quem está aqui? Esse mestre? Ó, nós, tal, nós fizemos um conselho e nós estamos te passando esse título. A partir de agora você é mestre e tal". Não tem nada combinado antes.
P1: Mas eles dão algo físico ou é...
R1: Não, é isso aqui, é isso aqui. É um conselho que vai falar, vai te falar. Não tem diploma...
P1: O que que você sentiu...
R1: ... não vai assinar nada.
P1: ... na hora, assim?
R1: Ah, não conseguia muito ficar em pé, né? Não conseguia muito ficar em pé, porque... e aí foi engraçado que, nesse dia que eu recebi o título, eu tomei uma rasteira na roda, tomei uma rasteira de uma menina, assim, menor que eu, mais magrinha assim e ela me deu uma rasteira. E foi uma coisa interessante também, né? Isso aí que está um pouco a parada da maestria, por que o que aconteceu nesse dia? Eu estava assim, eu nunca tinha jogado com a menina, aí eu vi que a menina estava vindo para cima de mim, né e, toda vez que ela vinha pra cima de mim, eu me defendia e... pra meio que pra não machucar, né, porque eu fazia que ia dar o golpe, ela vinha, não sei o que, eu tinha que me defender e não sei o que, a menina vindo pra cima de mim. E uma hora eu sei que ela estava... não sei o que ela fez, eu acho que veio me dar uma cabeçada e eu meio que tirei, né, a cabeçada, meio na ginga, né, porque foi no meio da ginga, você não sei o que, tal, que você vê, a pessoa não está percebendo, sua mão está lá, né, porque ginga é ginga, né, você... e eu treino muita ginga, graças a Deus. Então a mão... parece que a mão tem um olho, né, o pé sabe onde vai e tal. Então, eu tirei. Aí eu brinquei, né, eu brinquei, fiz de conta que eu ia sair assim no aú, você conhece capoeira, vai saber, eu fiz que eu ia assim, no aú, ela não teve dúvida, ela veio na cabeçada, né, mas eu estava realmente era chamando. E aí, quando ela veio na cabeçada, eu cortei o aú no meio, porque a ideia é que eu fosse pra lá. Quando eu vi que ela viu que eu fiz aberto mesmo, justamente porque eu não queria ela viesse, ((riso)) né, que eu podia fazer mais fechado... queria justamente que ela viesse, né, com essa mão abertona, mas só que esse pé que tinha o olho, que ele vinha por aqui. Ela veio na cabeçada. Quando ela veio cabeçada, ela veio, eu rodei o pé, que eu girei pra eu não acertá-la, né, girei. Quando girei pra não acertar, né, aí eu meio que eu virei as costas pra ela. Quando eu virei as costas, ela me deu uma rasteira. E aí eu pensei o seguinte, eu falei: "Ó, na realidade..." - falei pra turma - "eu subestimei. Será que fosse eu que tivesse jogando com um mestre, será que eu viraria as costas para ele?. Né? Por que eu virei as costas pra ela? Não deveria ter virado as costas para ela, certo? Não deveria, porque se fosse mestre... de repente pode ter sido machismo meu, da minha forma, né, se a menina não sei o que, eu virei as costas, se fosse pro mestre, não sei o que, um desses aí, eu viraria? (risos) Não viraria, né?” Ela não teve dúvida, foi lá e pá e aí não sei o que e tal, todo mundo falou: "Caralho, não sei o que e tal e pá". E depois a turma falou pra ela, que era não era daqui. Ela falou: "Porra, não sabia que ele era mestre, não sei o que e tal". Ela ficou toda sem jeito e depois eu falei: "É isso aí. Não, está certo __ (01:44:18)". Então é isso aí, é mestre mesmo, né, saber dizer: "Errei, bem feito pra mim".
P1: Nossa! E qual que é...
R1: No dia que eu recebi o título.
P1: Depois?
R1: Não, antes, mas foi no dia, né? Depois, na mesma noite, eu recebi o título, já estava tudo preparado pra eu receber o título, só faltava a turma dizer: "Não, agora não vai mais dar, porque ele caiu". ((risos)) Mas é assim, né, é assim a vida. E é isso, recebi esse título, graças a Deus cuido disso aí, né? Pessoas me chamam docente, é isso aí, né? Eu tenho pra ir pros cinquenta anos ou mais de capoeira, né, que eu convivo com a capoeira, já viajei muito pelo mundo, né? Pra Moçambique eu fui pra... através da capoeira, duas vezes, foi a capoeira que me levou; pra Argentina eu fui ano passado, retrasado.
P1: Foi pra Moçambique através da capoeira?
R1: É.
P1: Podia contar um pouco mais disso?
R1: Posso, sim. A gente tem um núcleo lá em Moçambique, né? Tem um amigo nosso que foi aluno nosso aqui, a gente tem um núcleo. A gente tem um núcleo em Atlanta, nos Estados Unidos; tem um núcleo na Bolonha; na Alemanha; tem um núcleo em Buenos Aires, na Argentina, em Buenos Aires, em La Plata; tem um no Uruguai, né? Tem no México, Cidade do México; tem na Bahia, Salvador; tem em Brasília; tem em Fortaleza; tem no Rio; tem aqui, tem no __ (01:46:01) aula pra esse núcleo de todo lugar. Tem no Japão, em Kyoto, no Japão, que às vezes a gente até esquece. Então, tem alguns núcleos fora do Brasil. Eu dou aula pra todo mundo. E aí esse núcleo em Moçambique era um amigo nosso que foi pra Moçambique, né, trabalhava lá, é diplomata e lá ele montou um núcleo de capoeira, lá em Maputo, esse núcleo ainda existe, ele voltou pro Brasil, mas tem esse núcleo lá. E a gente tinha combinado já há uns tempos que era pra eu ir pra Moçambique, eu tinha muita vontade de ir também, conhecer a África e tal, algum lugar da África, aí fui pra Moçambique. Fui duas vezes pra Moçambique. Aí fui pra trabalhar com esse grupo de capoeira de lá, fui para Escola Nacional de Dança de Moçambique também, dar uma aula, fui para Escola Pedagogia de Maputo, Faculdade de Pedagogia de Maputo também, trabalhar, dar aula, falar sobre cultura brasileira, sobre capoeira, sobre cultura tradicional brasileira, de herança africana, né, falar sobre nossa cultura, qual a herança deles, mais essas coisas aí. E fui tocar também, fazer show, fiz alguns shows lá em Maputo, né, muito legal e tal. Toquei com a orquestra popular de Maputo, Moçambique também, participei de show com eles, concerto com eles, toquei com o show de um bairro musical, muito musical de músicos... é, músico de lá, chamado Mafalala, que é um bairro bem assim como tipo o Bixiga aqui, lugar de músicos, né? Eu lembro que eu fui um ano e depois fui no ano seguinte. Eu fui um ano, aí toquei, não sei o que, na casa, aí depois no outro ano eu fui, né, toquei, um subiu no palco: "Não, tem um brasileiro, pô, o cara legal. Pô, é Tião Carvalho". Os caras... aí fui, no outro ano eu fui, aí nego falou: "Ah, vamos lá, os caras estão sabendo que você vai lá, os músicos tão divulgando teu show". Aí os caras estão sentados, eu fui entrando, devagar. Quando eu entrei na porta, os caras estavam: "Tião Carvalho, Tião Carvalho, que maravilha! Pô, quanto tempo". Nem lembrava muito dos caras, os caras pá, me abraçando: "Pô! Felicidade tão...". Uma alegria dos caras de me rever, quer dizer, ficou... acabei essa noite lá com eles, né, que a gente passou tocando e tal. Então, é algo que fica assim, que você vê assim: "Porra, que maravilha!". E músicos, tocavam, palco grande. Uma hora eu vi, a gente tinha mais ou menos umas seis guitarra no palco, cada um com uma guitarra e eles vão lá, ligam a guitarra, ligam baixo, batera, a percursa, aí fazendo aquela jam sessions, que vai, que vai e vai chegando e muita música, muita música, muita vivência, muito aprendizado. E parada mesmo assim, viu? Sucesso, música brasileira, galera dançando, né? Tem um lugar lá que chamava Mercado do Peixe, que é maravilhoso aquilo ali, que é uma praça, uma espécie de uma praça de alimentação, uma casa assim, noturna, que só tinha coisa lá tocando, nego com violão, instrumento lá, aí chegou meu amigo e falou: "Ó, tem um músico brasileiro aí e tal". Ele falou: "Ô, brasileiro, porra, vamos fazer um som aí e tal". Aí peguei, peguei o violão, não sei o que, comecei a tocar, depois foi chegando gente, chegando gente, tal, aí os caras: "Não, brasileiro, não, a gente paga. Não, eu pago a cerveja". Passamos a noite no mercado. O dia, né? Chegamos no sábado à tarde e ficamos o dia inteiro lá tocando e tal, pessoas que nem conhecia a gente e nem nada também, mas a língua que favorece, né, também, bastante. Mas essa parada de língua é sempre tal, né? Eu sempre toquei, sempre toquei na Europa, na rua, né, também, né, em casa noturna sempre estava perguntando, sempre cantando música brasileira, pra ver se na rua sozinho... essa parada de ir pra rua, também sozinho, eu gostava muito de fazer, né, de saber muito como é que eu me viro sozinho, sabe? Como é que eu me viro sozinho, se eu ficar só eu...
P1: __ (01:50:05) artista de rua?
R1: É, de rua, onde você... é, a parada da rua, eu gosto muito da rua, eu aprendo muito, né, aprendo muito com essa questão do... a parada da rua me trouxe uma lição muito importante, que é como você administra, um pouco, essa forma de pagamento, como é que você paga, você vai pagar ou pode usar pagamento ou contribuição, o quanto você quiser, sabe? A rua tem isso, assim. Na rua você não tem um preço, assim: “Ó, é dez, está aqui, está escrito uma coisa aqui, você vai botar, é dez contos, é vinte contos, é cinco”. Não tem isso, uma pessoa vai ver o quanto quiser. O que aconteceu na Europa, como eu era um músico de rua que fazia uma diferença, a turma me dava valores maiores. Por que também que eu fazia a diferença? Meus instrumentos, eu tocava vários instrumentos, canto, canto bem, ia bem vestido pra rua, sabe? Bem vestido, elegante, sempre bem arrumado, né? Não falava inglês, que não falo, mas aquela simpatia, que dá pra comunicar, arriscando um francês aqui e ali e tal. Então, tinha algo ali que você dizia: "Pô, não, esse cara é bom". Teve uma vez que eu estava em Amsterdã, aí um cara passou por mim, ele voltou e me deu uma grana assim, acho que devia ser mais de... era no dinheiro deles, mas era mais de cinquenta reais, uma nota que valia mais de cinquenta reais, sei lá, quase cem, talvez. O cara voltou, ele falou: "Porra, esse cara canta pra carai". Ele falou: "Não, está aqui ó, está aqui". Aí eu olhei pra ele e falei: "Não sei o quê". Ele falou: "Nada disso, é seu, você é muito bom. Está aqui, é seu".
P1: Nossa! E onde mais você teve essa vivência de fazer arte na rua? De onde partiu isso?
R1: Não, eu já sabia que a galera fazia. Quando eu fui pros Estados Unidos, eu já fui no parque também, a gente já tinha um pouco... eu e o amigo, gente já ia, já vi que a turma fazia isso lá. E aqui é importante, porque aqui no Brasil, isso aqui, pra nós, não é tão comum. No Brasil é muito... quando você está na rua falando, vendendo seu produto, tem muito essa relação do... do esmoler, sabe? Nunca vê qual é o artista que está fazendo e que você, tal, sempre dá pra... "Ah, pererê, está pedindo esmola". Sempre uma... sabe? Eu estou te dando, você coisa... como um cego que está tocando e ____ (01:52:43) você assim: "Não, ele faz isso aí porque ele não enxerga e ele sabe tocar e aí a gente vai dar, para ajudar". Eu não penso assim. Tudo bem que o cara não enxerga, mas ele faz uma música legal, eu vou assistir e vou pagar, vou contribuir. Isso, no Brasil, é algo mais raro, né? A gente tem um pouco muito essa sensação de quem está naquela coisa, está pedindo esmola, não vendendo o seu trabalho, de uma certa forma. Então, isso foi algo que eu aprendi bastante, isso aí também e também, por exemplo: quando hoje eu faço live, mesmo a live de amanhã que eu vou fazer, outra que eu fui fazer também, a live passa... a primeira live que eu fiz, a turma falou: "Não, você tem que fazer live, você tem que fazer live, todo mundo está fazendo live". Eu falo: "Isso, está todo mundo fazendo, eu não vou fazer". (risos) Todo mundo está fazendo, é suspeito. Mas brincadeira. E aí demorei um pouco pra fazer a primeira live, até mesmo pra ir amadurecendo e ver como é que era, que as pessoas estavam fazendo, de que forma estavam fazendo, pra eu ir, um pouco, sondando. Qual foi minha ideia? A turma falou: "Quanto é que nós vamos pedir?". Aí eu falei: "Não, nós não vamos pedir" "Não, Tião, tem que saber quanto é que você vai pedir. Quanto é que você vai precisar? Você quer arrecadar tanto. Você está duro, você vai precisar pra pagar seu aluguel, pagar água, luz, telefone, internet, não sei o que, vai ser as suas despesas pra pagar. Você... quanto é que você precisa?". Eu falo: "Não, não quero trabalhar dessa forma". Então teimou, teimou, eu falei: "Não vou fazer, não vou pedir. Eu vou fazer... nós vamos fazer o seguinte: nós vamos fazer... eu, ao invés de pedir, vou trabalhar com uma relação de troca, eu vou trabalhar... o que eu vou fazer? Eu vou falar sobre Bumba-meu-boi, tocar cantiga de Bumba-meu-boi, falar sobre Bumba-meu-boi, sobre os sotaques e vou pedir uma contribuição por isso. Fazer uma espécie de um show, uma palestra, um show palestra e vou pedir uma contribuição e cada um vai contribuir com quanto quiser" "É mesmo, Tião?". Eu falei: "É, acho mais viável contribuir com quanto quiser". Não deu outra, foi muito melhor, sabe por quê? Vamos supor assim: se eu pedir cinquenta reais, podia pedir cinquenta reais, aí vamos supor que você tivesse vinte, você tivesse dez, você não ia dar, nem você, nem ele, como outros poderiam não dar, porque eu pedi cinquenta, você fala: "Puta, cinquenta eu não posso dar". O outro ali: "Ah, eu não posso dar porque é cinquenta, eu só tenho vinte, eu não posso dar mais do que isso, só posso contribuir com vinte". E quem deu mais de cinquenta, que deu cem, duzentos, deu... doou, né, doou, contribuiu com duzentos, mil reais, daria só cinquenta, porque eu só pedi cinquenta, entendeu? Teve gente que deu mais de mil reais. Teve uma amiga que falou pra... mandou uma coisa pra mim, falou: "Tião, eu depositei trezentos e agendei trezentos pra mais dois meses". Você entendeu? Se você desse cinquenta reais, eu quero cinquenta, aí nego: “Cinquenta. Ah, está aqui os cinquenta, não sei o quê". Ninguém disse: "Não, eu vou botar tanto, porque não sei o quê". Isso era difícil passar, porque eu tinha pedido cinquenta. E o que me deu isso, esse ensinamento? A rua. Foi como que as pessoas contribuem, qual é o sentimento das pessoas e tal, a rua, a vivência, isso é vivência, a rua é prática, é experiência vivida, né? E aí eu peguei esse aprendizado. Então, eu trabalho assim na minha live. Agora mesmo a turma falou: "Mestre, como é que a gente faz?". Eu falei: "Ó, eu tenho feito assim". Ele falou: "Ah, a galera gostou da ideia de deixar mais à vontade, cada um contribui com... tal". Inclusive tiveram duas alunas lá da Alemanha que cada uma mandou cento e vinte, das duas escolas, uma mandou cento e vinte, outra mandou cento e vinte, a galera de Buenos Aires se juntou e mandou quinhentos reais, não é? Deixei as pessoas à vontade, então...
P1: Ô, Tião, só pra... você falou dessa coisa, da experiência vivida e aí a gente estava conversando era sobre a capoeira, né? Queria te perguntar quais foram as experiências vividas, que você sentiu, né, que fez com que você fosse um mestre? Tipo: cinquenta anos é muita coisa, mas teve algumas experiências que você sentiu que foram esses passos da escada, pra você virar mestre?
R1: É... eu acho que não. Eu diria que tem um pouco ali do sobreviver, entendeu? Sobreviver. Eu acho que aí tem muita coisa a ver ali com o tempo, só com o tempo. Sobreviver, a perseverança, sabe? Eu acho que é isso, a perseverança. E muita das vezes as pessoas me perguntam: "O que você precisa pra ser mestre?". Aí eu falo: "É, você precisa ter discípulos, pra você ser mestre e você ter discípulos, isso é perseverança, né? É tempo, amadurecimento, né? Você tem que ter discípulos, senão ninguém, quem que vai falar pra você que você é mestre? São os seus discípulos. Você não se candidata: ‘Ah, agora eu sou mestre, não sei o quê’. Os seus discípulos te reconhecem como mestre, tuas atitudes, né? As atitudes”. Pelo menos eu vejo dessa forma, as suas atitudes que vão dizer que você é mestre, né? Seus discípulos, suas discípulas ali, essa turma que vai dizer pra você: "Pô, está aí, isso mesmo, aí sim, gostei”. Aí: “Ô mestre, muito obrigado, isso é realmente coisa de mestre".
P1: Então, eu estou perguntando se teve algumas atitudes que você poderia, por exemplo, destacar.
R1: Eu acho que isso é uma somatória. Eu não sei se eu colocaria uma em si: isso aqui me fez. Não. São minhas virtudes, minha perseverança, vinte e cinco anos num grupo, ter criado um grupo, né, ser reconhecido por onde eu ando, né? A pessoa: "Ah, não sei o que, você conhece?" "Conheço". Ah, né? Visitar as pessoas, deixar mensagem boa por onde você anda. Né? As escolas que você vai visitar, né? Porque a parada é um pouco ficha limpa.
P1: E aí eu ia te perguntar, mestre, qual que é o grande aprendizado que você sentiu que a capoeira te deu na vida? Os, né?
R1: Eu acho que muito esse contexto social. Contexto social, saber lidar com situações, sabe lidar com pessoas. Né? Ter calma, ter um olhar amplo em todos os sentidos, né, sensibilidade de olhar, enxergar as coisas, enxergar, fazer leitura de situações, de problemas, né? Quando fala “olhar amplo” é olhar para cá, mas saber o que está acontecendo aqui atrás de você, se sentir em relação de perigo, de segurança, não só você, mas as pessoas, né? Tem uma coisa que também que acontece comigo que nem eu, né, saco, mas eu falo: “Porra”. Algumas paradas de capoeira. Eu lembro que eu estava aqui na Vila Madalena, eu e meu amigo Marquinhos Mendonça, que é músico, a gente estava tocando ali na frente do Bambu Brasil, era madrugada, a gente se despedindo, ele botando as coisas dele no carro e eu indo lá, né, pra coisa, pedal, guitarra, violão, não sei o que, levando. Eu indo lá com ele, que a gente ia viajar acho que, talvez, no final de semana e a gente estava ali até o carro com ele pra gente fechar os últimos detalhes da nossa viagem. E a gente... ele botou a coisa no carro, fechou na mala do carro, nós ficamos os dois atrás do carro. Isso era umas três, quatro horas da manhã, atrás do carro. E aí eu falei assim: “Marquinhos, chega aí, vamos... chega aqui”. Aí puxei pelo braço, fomos pra calçada. Foi pra calçada, passou um minuto, veio um carro desgovernado e entrou atrás da traseira do carro dele. O carro estava aí, estava eu aqui e ele aqui, o que ele tinha botado e virou, ficou nós dois atrás do carro conversando. Fechou a mala, que ele já ia embora, eu falei para ele: “Vamos pra cá pra calçada, pra gente fechar”. Quando a gente foi pra calçada, o carro entrou ali. Quer dizer: um minuto, se a gente não tivesse saído, o carro tinha arrebentado, no mínimo quatro joelhos tinha ido pras cucuias, dois meus, dois dele. Então, são coisas que às vezes vêm junto com a gente, com guia, com a capoeira e essa coisa de ficar atento às coisas, ter noção do perigo. Uma vez eu estava com esse filho meu também aqui na Cardeal, no Cardeal, chegando ali no... perto do Largo da Batata, tem um monte de salão onde corta o cabelo ali, cabeleireiro, na esquerda. Aí eu estava ali, tem uma senhora, que faz tempo que eu não vou lá cortar o cabelo da gente, meu cabelo, o cabelo dele, aí ele estava... eu entrei pra cortar cabelo, era garoto, devia ter uns sete anos ou menos, ele estava ali na calçada, tem aquele sinal da Cunha Gago que vai embora, continua seguindo ali, Cunha Gago. Sabe qual é ela? A última rua antes de chegar na Faria Lima. Aí tem aquele coisa, vai pra cá e aqui vão ter os lugares que tem o salões aqui. Aí ele estava ali na calçada ali, coisa... no meio dela cortando o cabelo, eu falei: “Puta, botar esse moleque pra dentro”. Falei: “Filho, passa pro lado aqui de dentro, fica aqui dentro”. Ele entrou e tal, veio outro carro desgovernado, tcheeeeeeeeee, “pá”, passou direto, assim, subiu na calçada onde ele estava e tal. Algumas coisas assim, (risos) que é... né? Uma vez eu, dentro do ônibus, vi um cara agredindo uma pessoa, né, uma mulher e aí eu levantei, não sei o que e tal e eu levantei, eu não falei nada. Quando ele viu que eu levantei, eu fui andando meio pro o lado dele e dela, não sei o que, ele começou a falar algo pra ela, que eu acho que a parada foi o seguinte: ele ia fazer um roubo, um furto e ela viu. Quando ela viu, ela não gostou, ele só falou asneira pra menina, ia sentando. Aí eu fui chegando, assim, meio perto dela, né? Fui me aproximando dela assim, ele falando não sei o que, ele veio assim, levantou e veio assim. Quando ele viu que eu estava ali, ele falou alguma coisa comigo, eu sei que... sei lá o que ele fez, que ele levantou a mão. Quando ele levantou a mão eu já o peguei, já dei um golpe, já duas cacetadas, botei pra fora do ônibus e tal. E é um pouco assim, né, quando você vê, meio que já foi. Né? E nisso aí teve... tem uma loucura também que eu fiz. Fiz uma loucura. É, uma loucura que não se faz e eu não vou mais fazer. Eu estava uma vez no sul e a gente estava num lugar, que eu tinha feito o show à noite, a gente saiu. Sabe quando diz assim: “Ah, vamos de madrugada, comer no lugar”. Sabe aqueles lugares que era aqui, tipo Sujinho da vila... aquele Sujinho daqui, que fica na madrugada, os lugares que têm comida, TV, não sei o que, que fica na madrugada, tem sinuca. A gente foi pra lá e tal. Mas só que ali, naqueles lugares ali, que eu não conhecia tanto, rola algumas funções pelo lado, umas brigas ali com polícia dos caras e a gente estava do outro lado, saiu, terminou de... pegou uma cerveja e foi pro outro lado da rua. Eu estou lado do outro lado da rua conversando, tinha um terreno baldio aqui, do outro lado conversando. Do outro lado tinha uma galera, tinha um cemitério aqui, o bar do outro lado, esse lugar chamava Pé na Cova. Por que era Pé na Cova? Porque era em frente do cemitério, eles chamam popularmente Pé na Cova. Pé na Cova. Quando eu vi, estava a polícia lá nos caras, dando geral, cara lá, não sei o que, pá, pá, tal. Perna pra cá. E a turma falou... eu falei pra turma: “Turma, vamos entrar. Vamos entrar que esse negócio aí...”. Eu já pensando: “Eles estão lá, eles estão vendo, eles sabem que nós estamos aqui, nós estamos vendo o que eles estão fazendo. Se eles saírem de lá, não der nada, eles vão vir aqui”. Eu pensei. Aí eu falei pra turma: “Vamos entrar, turma”. De novo, né? Estava eu, dois caras e três meninas. “Não, não sei o quê”. A turma falou umas duas vezes: “Não, Tião, que nada, fica frio. Fica frio. Não, não esquenta, Tião”. Estou lá. Quando eu... não deu outra, os caras chegaram: “Mão na cabeça, não sei o que e tal. Põe a mão na viatura”. Aí eu vou saindo devagarinho, o cara: “Ow!”. Eu fui devagar, né? Olhei pra ele, entendi o que ele estava falando. “Põe a mão na viatura, rapaz. Não sei o que e tal”. Eu falei: “Ô senhor, calma”. Ele falou: “Calma o que, rapaz. Estou mandando você botar a mão na viatura e tal”. Ele pegou... um cara forte, né, pegou pelo braço assim, nesse meu braço esquerdo aqui, meu, a viatura estava assim, ele fez assim pra mim, me pegou: “Estou falando pra você __ (02:07:07) da viatura, está de brincadeira”. Pegou pelo braço e me puxou assim, me jogou em direção à viatura. Só que ele me jogou em direção à viatura, que ele fez isso, aí me soltou. Quando ele me soltou, velho, eu já dei uns dois, cinco passos e vuuuuuuuuuuu, entrei no mato, no meio da madrugada. Entrei no mato, sumi. Ele ficou puto. Puto. A galera do lado, não sei o quê. Conclusão: eles levaram o cara detido, os caras não fizeram muito... as meninas que: “Não, porque não sei o que, não pode minha bolsa, não sei o quê”. Trataram mal as meninas, não bateram, mas trataram mal, puxaram pra levar, porque levaram até a delegacia, depois elas vieram embora, mas elas foram até a delegacia, porque elas falaram que eles não podiam mexer na bolsa delas, não sei o que e tal. Eles falaram: “Então está beleza, não vou mexer, você vai lá, lá vai ter feminina, que vai não sei o quê. Não, agora vai, agora você vai”. Falou: “Lá não, elas têm que vir aqui e tal” “Não, não sei o que” “Não, agora você vai”. Aí levaram as meninas lá, trataram super mal, depois os meninos foram lá, não sei quê. Eu fui, entrei, dei uma volta no quarteirão, saquei, fui embora, não sei o quê. Sumi. Fui embora. Por isso que eu estou falando, nunca mais eu vou fazer, mas isso foi loucura que eu fiz, mas loucura. Mas é um pouco isso, né? É também... quer dizer, habilidade pra fazer isso, Deus me livre. Isso não se faz.
P1: Ia te perguntar também do...
R1: Mas foi também coisa de capoeira, né? Capoeirista que tem um pouco... teve essa habilidade de fazer que...
P1: Quer dizer, o pulo do gato ali no...
R1: Pô, foi um pulo do gato, da onça lá o que eu fiz, que não deu tempo, o cara nem viu. Quando ele viu, eu já tinha sumido. Ele não ia sair atirando a esmo no escuro.
P1: E eles não foram nem atrás?
R1: Não. Os caras não iam entrar no mato pra me achar - puta matagal, não sei o que - eu não fiz nada pra eles, pra dizer: “Ah, não sei o quê”. Sabia que eu não era bandido, que eu não tinha... sabe? Sabia que eu não tinha nada, só queriam era... Sabe? Encher o saco, não sei o que, pra mostrar autoridade. Né? Não era fugitivo, dizer assim: “Ah, está no mato, vamos atrás, vamos caçar”. Não. Eles sabiam que eu era galera. Né? A turma do coisa, eles conheciam. Quem era a galera do tráfico, eles já conhecem. Né?
P1: E ainda nesse bloco de capoeira, eu ia te perguntar assim, quais foram os encontros com mestres que foram importantes pra você? Além dos seus mestres mesmo, do... por exemplo: o Jaime, você falou Canjiquinha. Quais que foram...?
R1: Mestre Canjiquinha foi importante. Eu conheci o mestre Canjiquinha no Rio de Janeiro, num encontro de capoeira também. Esse encontro eu conheci o mestre Canjiquinha, conheci o mestre Cobra Mansa, conheci o mestre Moraes, revi o mestre Moraes na real, né, porque eu já conhecia o mestre Moraes. Mestre Moraes, Cobra Mansa, Boca do Rio. Alguns mestres, mas tinha o mestre Canjiquinha que foi mestre do meu mestre. Eu o conheci naquele momento, né? Foi a única vez que a gente se viu, foi nesse encontro de capoeira. Foi muito importante, conhecido, quando eu fui pra ele me apresentar, falei que foi... era discípulo do Sapo, né? Ele falou: “Pô, então você é meu neto e tal. Que legal. Pô, que bom. Prazer”. Conversamos um pouco, conheci ele ali. Acho que um pouco essa questão aí mais do mestre Canjiquinha e os outros mestres ouvindo, né? Mestre Jaime, que graças a Deus, virou amigo. Mestre Jaime, mestre Plínio, mestre Limãozinho, mestre Jogo de Dentro, mestre Pé de Chumbo, né? Esses... mestre Valmir, mestra Dedê, mestra Tereza lá do Rio, mestra Janja e Paulinha, que são minhas mestras. Né? São os mestres, mestres que a gente vai conhecendo, que vai somando, né?
P1: Uhum.
R1: Mas os meus mestres foram esses aí, mesmo. Mestre Sapo, mestre Kenura, né? Que eu tive uma sequência, né, vivência com eles, né? Que viraram amigos de andar junto, sabe assim? Mas é meio pra amigos mesmo, pai e filho, de aprendizado, não só de ensinar capoeira em si, mas vai aprendendo coisa na vida, né? Quanto mais velhos.
P1: E aí, voltando à sua vida, você que chegou aqui em São Paulo nos anos 80, aí fez toda essa viagem pelo mundo da capoeira, da escola e que mais que aconteceu na sua vida, né? Teve a música. Você podia contar um pouco como se desenrolou a sua vida desse momento que você chegou em São Paulo?
R1: A música. Música, o teatro e a música, fazia teatro infantil, rodei muito, né, pelos teatros, né, às vezes periferia de São Paulo. A música à noite. As bandas que eu fui criando, a Banda Mexe com Tudo, que eu já falei dela também, de importante. Depois criamos outra banda, a Banda Mafuá. E, em 1986, eu viajei pra França, pra um festival de cultura tradicional na cidade de Nantes... Nantes, francês, tal, mas ali. E quando eu volto de lá, tem coisa importante, que a gente monta o Grupo Cupuaçu. Duas coisas importantes nesse período aí: é o Grupo Cupuaçu e o nascimento da minha filha, que... minha primeira filha, né? Que... a Ana Flor. Quando eu viajei, eu viajei pra França, pra esse festival, a minha ideia, na época era, talvez, ficar um tempo na França. Eu ia pra França, viajei, aí eu estava indo, não sei o que, eu queria, sei lá, ficar um tempo na Europa, experimentar como é que era morar na Europa e tal, né? E aí só que, quando eu fui pra lá passar a temporada e quando eu estava lá, eu fiquei sabendo, minha namorada me avisou que ela estava grávida. Estava grávida da minha primeira filha. Aí eu falei: “Aguenta aí”. Né? Mudou tudo. “Aguenta aí. Estou voltando”. Aí voltei pro Brasil. Aí tive minha primeira filha, que é a Ana Flor, que...
P1: Que foi... com quem que você teve, quem foi a mãe?
R1: Com a Andaraina. Na realidade, o nome dele é... de batismo era Adriana, depois ela, na época, não sei o que, todo mundo chamava pra ela de Tuca, que foi na hora que eu... quando eu a conheci, chamava-se Tuca, depois ela mudou o nome dela pra Andaraina. Então, a primeira filha foi com Andaraina. Né? Até então... até já tinha algumas namoradas em São Paulo, né? Cheguei de 1979. Cheguei em 1979 pra 1980. 1979, 1980 até 1986, por aí, seis anos meio de... às vezes solteiro, às vezes atrapalhado, uma namorada ou outra, tal. Aí, quando foi aí, ela já era isso, aí ela veio e a gente juntou. Eu vim justamente pra ficar com ela, a gente juntou, aí tivemos a Ana Flor juntos, depois mais o Noel. Ela tinha mais dois filhos - antes da gente juntar, casar, juntar - que é o Artur e a Emília, casal, mais velhos que a Ana Flor, mas que viraram filhos meus também, né? Vivendo, né, meio que adotei, né, a criançada, que foi muito bom, muito maravilhoso. Hoje a gente tem muito carinho, afeto muito grande, né, um respeito muito grande de pai e filhos, mesmo. É... eles dois. Aí depois nasceu mais o outro. Aí depois a gente teve mais um filho, chamado Noel, que mora lá em Goiânia, que é músico também, formado em Música também. Tem um grupo de Bumba-meu-boi lá também, lá em Pirenópolis, Goiás. E o Noel. Aí depois a gente separou. E depois eu tive um filho com a Luciana, que é o Yuri, mais novo. Que é o mais novo agora. Né? Também casei com a Luciana e tal, namoramos, ficamos juntos um tempão. Depois juntamos, tivemos Yuri, passamos um tempo juntos, depois a gente separou. Né? Isso aí parada desses trinta e poucos anos, quarenta anos, né? Depois separou e aí eu casei com a Mauren. A Mauren não era paulistana, a Mauren é do Paraná, ela é de Maringá. Conheci a Mauren em Londrina, morava em Londrina, fui pra Londrina trabalhar, fui algumas vezes em Londrina, já fui muito pra Londrina, né, vou muito pra Londrina na real e aí namorei com a Mauren, não sei o quê. E a Mauren, a gente teve um... também um filho, mas foi um filho que não vingou, né? O nosso filho viveu vinte dias só, já veio... a gente já sabia que ele ia nascer com problema e tal. A gente teve um filho, o Bento Luiz, que era o mais recente de todos, mas não vingou, não sobreviveu. Esse é um pouco essa história dos filhos.
P1: E aí, o que ser pai te ensinou, de diferente?
R1: Duas coisas: responsabilidade. Pai é muita responsabilidade, né? Ensinar isso aí, a parada de pai, né? É... a gente bem brinca assim: “É pai, não é padrasto”. Eu, em casa, costumava falar muito pros meus filhos, filhas, né, principalmente as filhas: “Ah, não sei o quê”. Eu falo: “Não, não. Isso não, não pode” “Ô pai. Pai, você é chato, não sei o quê”. Eu falo: “Claro que eu sou chato. Ué, eu não sou pai? Não sou pai de novela. Novela é que está tudo direitinho, não sei o que, os caras já acordam com o cabelo arrumado, né, maquiado, tudo direitinho, não tem nada errado. Aqui, não. Aqui é realidade, não pode. Não é mais horário. Acabou, não pode. Não, não pode, não vai beber, não tem idade pra isso. Estou na idade... nessa idade já está bebendo um vinho, não sei o que, quando você tiver na minha idade, você está tomando etanol”. Entendeu? ((Risos)) “Álcool não serve mais para você”. Cada coisa na sua época, sabe? No seu tempo, se aqui pra um, pra tal, não vai adiantar o processo das coisas. Né? Então, pai é um pouco isso, né? Dizer assim: “A parada é essa, né? Não... não, pai vai responsabilidade de pai”. Certo? Pode esses dois também. Os dois que não eram meus filhos biológicos, era um pouco nessa pegada mesmo assim, tal: “Não, não, não, não, não sei o quê. Ó, não, não, isso não é hora de estar andando sozinha, não é idade pra ficar andando sozinha no morro. Negativo” “Não...” “Negativo. Não rola. Né? Não rola. Dá pra conversar, dá pra conversar, mas não dá pra rodar, sozinha não, esperar coisa acontecer pra gente ficar não sei o quê?” “Pô, pai, obrigado. Pô, foi importante você na minha vida, ensinamento, que foi dar dura, que não sei o que e tal”. Então, o pai ensina isso, né?
P1: Massa.
R1: Né? Tem umas coisas __ (02:19:09), né, de pai, de mestre. Eu lembro que uma época a gente tinha uma criança, mas quando a gente faz assim: tinha uma criança no meu grupo, duas crianças, a Morena e a Tainá, pequenas. Tainá magrinha, não sei o que e tal e a Morena já morena, forte, pá. Sempre, volta e meia, a Morena mordia a Tainá. Um dia, Tainá vinha lá, adulto, a mãe, não sei o que: “Que feio, você mordeu ela”. E: “Ai, ai, não sei o quê”. Falei: “Que foi?” “Foi Morena mordeu Tainá” “Morena, não pode. Isso é feio e tal, não sei o quê. Pede desculpa pra ela” “Ah, desculpa, não sei o que” “Dá um beijo nela”. Escutando aquilo e eu volta e meia: “Pô!”. Na época, eu lembro que a gente estava viajando pro Maranhão, o Grupo Cupuaçu saiu daqui pro Maranhão, estava as meninas no coisa. Depois do almoço, eu estou deitado aqui, (risos) almocei, pegando a estrada pra ir pra São Luís do Maranhão de ônibus. ((Riso)) Aí eu deitado aqui, querendo ter aquele sono, aí que eu escuto: “Ai, ai, ai, ai”. Aí eu fui: “Ah, o que foi?” “Morena mordeu a Tainá de novo. É feio”. Eu falei: “Quer saber de uma coisa? Espera aí. Calma todo mundo. Ô Tainá, Morena... Tainá vem cá”. Peguei o braço da Morena, fazia: “Aqui ó, morde, pode morder. Ela morde você toda hora, pode morder, que ela vai saber”. “Tau”. Aí a Morena: “Ai, ai”. Todo mundo ficou assim, né? Aí ela: “Ai, ai, ai”. Eu falei: “Está vendo? É isso que ela sente quando você a morde. Toda hora fica mandando que é feio, que é feio e você continua mordendo”. Nunca mais mordeu. Se eu fiz certo, eu não sei, não vou falar que foi certo, eu sei que ela nunca mais mordeu. Certo? E a mãe dessa criança, que é minha grande amiga, todas elas. Tanto as crianças, criança ou adulto, quanto a mãe dela, todos são amigos meus, amigos, pai, tudo amigo, as crianças me adoram. Essa semana eu vou estar na Unicamp, estudando lá, às vezes eu chego lá, ela sabe que eu vou pra lá, ela arma todo o esquema de divulgar, não sei o que, vai me receber, “tarara”. Essa que machucava a outra, que eu, na hora, falei isso pra ela. Ela nunca mais mordeu a outra criança. Né? “Ah, não, o Tião fez certo”. Eu não sei, mas que nunca mais mordeu, nunca mordeu. E as duas me agradecem. Agora, não sei se é certo. Não vou dizer: “Ó, o caminho é esse. Faz assim”. Mas naquele momento foi e ajudou nesse sentido. Então, a parada é um pouco isso, né? Tem esse sentido de pai, de justiça e tal, ele vem meio junto, entendeu? E às vezes a gente vai pra esse caminho. Diz: “Ó, você está sempre batendo, a gente vai segurar você e ele vai bater em você. Certo? Você é maior, então vai precisar dois pra segurar você. Porque você acha que não sei o que, vai criar crescendo, você bate, você é espancador, vai crescendo esse tipo, vai fazendo isso com as pessoas?”. Não. Então, é um pouco isso, né? Eu estou... você que perguntou. (risos)
P1: É bom. Já teve algum contato com o povo indígena?
R1: Bastante. Bastante.
P1: Poderia contar um pouco como... esses contatos.
R1: Eu... assim, bastante, no caso, uma época, eu conheci um cacique Xavante, fiquei muito amigo dele. Não vou lembrar o nome dele, faz muitos anos e a gente ficou - ele é Xavante aqui do Mato Grosso - muito tempo se comunicando, eu cheguei a ir na coisa dele, ele vinha muito pra São Paulo. Eu lembro que eles tinham... faziam algum movimento aqui de arrecadar coisas e eu era cantor da banda Mexe com Tudo, conhecia bastante pessoas, tinha muita influência. Então, às vezes, sempre o chamava junto, pra falar da etnia deles, né, botar ele em contato com as pessoas, como é que as pessoas poderiam estar colaborando, ajudando, entendendo a situação, conhecendo os povos indígenas, né? Eles... eu lembro que, na época, eles também fizeram alguns festivais, encontro de jogos indígenas em São Paulo, eu ajudei um pouco nesse sentido também, de organizar isso junto com outro também, que agora eu não vou lembrar, mas que morava numa aldeia também e também pedia, mas que estudava aqui na USP também. É... uma época eu viajei pra Porto Seguro também, eu fui visitar uns... Xavantes?
P1: Pataxó?
R1: Pataxó. Obrigado. Olha, está vendo? É, que às vezes a cabeça vai... tá. Mas os Pataxós. E fui para lá, né? A gente foi visitar umas três vezes lá também, escutar um pouco as histórias deles, eles falando como as histórias, contando as histórias deles e algumas coisas da história e algo da cultura, né? Falando sobre a cultura deles, né e tal, a forma de sobreviver, os ataques sofridos, né, pelos órgãos governamentais, né? Né? O governo, né, o governo da Bahia que pede apoio pro Rio de Janeiro, na época que o Rio... que a capital era no Rio e eles lembram, que uma época, eles fizeram algo que eles estavam meio que reivindicando e tal. Aí os caras falaram assim: “Ó, o negócio é o seguinte: tal, vamos no Rio, não sei o quê”. Eles foram no Rio de Janeiro a pé de lá, foram até o Rio, voltaram a pé e conversar com o governador, não sei o que, arrumar as coisas deles, os caras armaram, mandaram eles voltar, que iam mandar uma tropa pra fazer a demarcação de terra, não sei o que e tal. Chegaram lá, lincharam todo mundo, quase que extinguiram, o Exército, mandou o Exército do Rio de Janeiro, da Bahia, Salvador, não sei o que, pra lá e tal, pra extinguir, matar, não sei o quê. Alguns sobreviveram, mas morreram muita gente e tal. Eles vão falando sobre histórias deles e tal, que é um pouco essa questão. E hoje em dia, eu sou o próximo também dos Guaranis, aqui do Pico do Jaraguá, né? Sou muito próximo da Dona Irene, do Daniel, que é cacique mais novo, mas a líder cacique mesmo é ela e tal. Então, a gente é muito próximo deles. O Cupuaçu, ano passado, antes da pandemia, a gente foi... faz uns, sei lá, uns dois anos que a gente vai pra lá e tal, às vezes faz festa lá. Já levamos boi lá pra fazer, vai pra lá, faz comida com eles, fica tocando, cantando e dançando e comida, né? Compra uns peixes, uma carne pra assar e faz música, escuta as coisas dele. O que a gente pode ajudar e colaborar, a gente ajuda, procura fazer, às vezes traz eles pra festa do boi pra vender as coisas deles, falar deles também, mostrar a dança deles e tal. Então, é um pouco por esse caminho aí, mas eu... pra ter uma ideia que eu tivesse muito mais, né? Eu... é um grande aprendizado, né, essa cultura, né? Importantíssimo. Né? Inclusive, falando aí dos povos indígenas, eu lembrei que outro dia, a turma estava me perguntando, a gente estava falando nisso, perguntando um pouco assim: “Tião, como é que o teu partido - você é do PC do B - colocou a favor da galera dos... quer abolir, né, os impostos que as igreja ficaram devendo”. Entendeu? A turma falou isso aí, tal. “Como é que é isso? Como é que as igrejas vão ficar? Como você vê?”. Fizeram a pergunta. É o seguinte: agora pergunta está boa, como eu vejo. Eu falei: “Eu vejo, eu acho que é o seguinte: eu acho que, por mim, tudo bem abolir, se for pra todo mundo. Se for para todo mundo, tudo bem. Só que é o seguinte: só que não para aí. Vamos supor: vocês... cada __ (02:28:04) se por acaso você... eu vou trazer agora pra uma casa, você construiu um templo, vou trazer pra uma casa. Vocês dois têm duas casas aqui, dois terrenos, vocês dois. Eu sou a União, você (concordou) você faz assim, você chega pra sua família, aí você fala assim: “Ó, nós vamos construir aqui, nós vamos gastar cinquenta mil, cem mil pra construir nossa casa e vai ficar grande, não sei o quê”. Você não tem esse dinheiro, você vai se endividar. Você fala pros seus filhos: “Ó, aqui...”. Você está devendo, mas você fala seu filho, seu neto, não sei o quê. “Tudo isso aí é seu”. Que é dele, aí você morre, eles vão acreditar que é dele. Já ele, ele faz assim: “Puta, dez mil, a gente está do lado, mas está se endividando”. Fala: “Eu não vou fazer isso. Eu vou gastar só dez ou só cinco”. Certo? Ele falou: “Só vou gastar só cinco só, porque eu não vou me endividar, não vou deixar dívida pro meu filho, meu neto, não sei o que, quando eu morrer. Eu vou gastar só esse aqui”. Eu falo: “Beleza”. Só que é o seguinte: aboliu a sua, você tem direito, o que você não gastou, você vai gastar. Tudo bem, você ficou cinco anos, dez anos sem pagar imposto, esse aqui também vai ficar cinco, dez anos, igual que você. Se esse templo não gastou, ele tem direito. Essa grana que ele não gastou, ele vai gastar. Certo? Alguma forma... esse aqui que gastou, ache alguma forma de distribuir, porque a grana não é minha, não é sua, é da União. O mesmo tanto que um tem direito, o outro tem direito. Se eu não gastei, não é porque eu sou bobo. É que eu não quis me endividar. Se fosse pra me endividar e depois não pagar, eu me endividava”.
P1: E, Tião, aproveitar que...
R1: A questão dos templos, né? Os templos de candomblé, você vai ver... você não vê os caras gastando, fazendo coisa alta, torre, não sei o que e tal, gastando não sei o quê. Não. Os caras pegam o maracá dele, né? O indígena pega o maracá dele e a fé dele está aqui, as coisas dele estão tudo coberto aqui de palha, não sei o que e tal, não gastou nada. Nós estamos falando de capital? Então, capital, quem tem, põe, quem não tem, tira. Certo? O capital, eu não gastei, então agora a União vai me dar esse aqui que eu não gostei, já que está dando pra ele, né? Por que vai dando, está dando pra ele?
P1: E aí você comentou, quando perguntaram isso, né, porque era coisa do partido. Eu queria te perguntar como é que aconteceu isso, a sua entrada pra política e...
R1: Isso.
P1: ... e o que está te motivando. Não, primeiro como entrou.
R1: Tá. Não, a entrada é o seguinte: de uma certa forma, eu falo que eu sempre fiz política. Sempre fiz política. Eu sempre tive essa relação de senso de justiça, de estar do lado da elite, contei a história de futebol, que depois que eu me toquei que eu sempre queria estar entrando do lado de quem estava perdendo, se eu vejo dois times que estão jogando, que gostam de esporte, eu vou torcer para quem está perdendo. Automaticamente eu vou querer torcer, né, ver esse aqui e tal. Instinto. Né? Então esse... eu acho que isso é política, né? Isso é contexto social. E eu tenho um senso também de organização e também de carisma. Sabe? De ter pessoas e juntar pessoas. Né? Não é à toa que eu junto pessoas, que eu junto grupos de pessoas, um grupo aqui, um grupo em Londrina, um grupo em Brasília, um grupo não sei o que, sempre um coisa, um grupo em Belo Horizonte. Geralmente, são os discípulos meus, que não sei o que, que às vezes eu vou lá e que eu coiso, mesmo de fora, eu não morando lá, eu vou, eu... tal. Tem um amigo meu que tem um grupo de Bumba-meu-boi em Curitiba, volta e meia, ele me fala como é que estão as coisas, conversa comigo. Então, isso... tudo isso é política. Tudo isso você está tendo... sabendo com isso. Acho que, com o meu amadurecimento, né, enquanto pessoa, né, enquanto cidadão, enquanto homem, tal, e esse conhecimento na cidade de São Paulo, fora em São Paulo, mas agora eu estou falando especial da cidade de São Paulo, conhecer bastante gente, né? Acho que tem... eu tenho eleitores pra isso, pra confiar. Né? Que ou eu ganho ou chego perto, a não sei que eu não esteja muito organizado, eu e a minha equipe, mas se nós estivermos, a tendência é essa, porque é diferente, né? Eu sei que tem gente... outro dia, um amigo me falou: “Tião, tem candidato que tem trinta anos e trinta e cinco anos de vida. Trinta e cinco anos atrás, você já fazia cultura, está aqui falando de cultura, você já fazia cultura há muito tempo”. Certo? Você... eu não sou o tipo que cara que diz: “Ah, eu vou fazer, eu vou fazer, eu vou fazer”. Não. Eu não estou falando que eu vou fazer. Eu estou falando o que eu fiz, eu estou mostrando o que eu fiz. Está aqui, está pronto. O que eu estou querendo é fazer isso melhor, agora, com mais qualidade, tal. “Ah, vai receber mais?”. É, vou receber mais também, até isso também eu posso. Não posso? Eu sempre fiquei, né, não sei o que, com meu vermelho na conta, pra eu poder realizar isso aqui, agora se eu puder receber pra fazer, né? Que esse bem-estar que eu faço pra cidade, fazer melhor, mais organizado e puder receber por isso, ótimo, né? Não estou devendo nada, não vou ficar devendo nada, né? Eu estou... não estou fazendo: “Ah, porque eu vou fazer”. Não. “Está aqui, ó. Está aqui, ó”. Então, isso faz esse dar um passo e eu me sentir animado. Eu estou com uma equipe muito legal, muito bacana, são alunos meus, meus discípulos e discípulas do Nzinga, outros amigos e tal, da comunidade do Morro do Querosene, pessoas não sei o quê. Muito apoio vindo de fora, né? Os artistas. Sou muito conhecido nos artistas de São Paulo, né, pra ter esses apoiadores. Então, tudo isso aí que me faz tal, querer e tal. E administrar e estar lá no meio, pra poder falar de algo que eu sei que sou eu que vou falar. Por que sou eu? Porque eu que vivi. Eu vou falar com essa questão, né, questão de causa. Eu vivi isso, eu vivo isso, eu sei do que estou falando. Certo? Eu sei do que eu estou falando. Né? Vou falar da cultura tradicional, a forma que a cultura tradicional é vista, é tratada hoje em dia, principalmente com esses fins de meio de comunicações, né, pelo estado, pelo município, pela União, né? O... a verba, o capital pra essa cultura tradicional, cultura brasileira, cultura __ (02:35:05), ele é muito menor, é berrante a diferença, né? Isso precisa ser revisto, porque é um dinheiro de todo mundo, não é o dinheiro desse, daquele ou daquele. Então, a secretaria ver com quem, vai pela cara, não sei o que, esse aqui se é formado da televisão, aí tem que receber tanto; se você não é formado da televisão, não interessa tua idade, se o seu trabalho é bom, não sei o quê. Independentemente, pra você fazer um bom trabalho você tem que está bem alimentado, você tem que ter bom instrumento, você ter bom estudos, tem que estar seguro das coisas. Então, pra isso você precisa receber. Que todo mundo vai dizer: “Ah, ele faz malfeito”. Aí eu te dou migalhinha, migalhinha, você vai ficar fazendo com migalhinha fazendo malfeito, aí vem o teu filho, ou faz mal feito com migalhinha igual com você, ou então ele vai dizer: “Pai, eu não vou fazer isso aí. Eu não quero estudar samba, porque samba, se eu estudar samba, não vão me pagar o que eu mereço, que não sei o quê”. Que eu estou falando que aquele ali que faz aqui tal coisa, tal tipo de música, ganha muito mais. Eu não vou fazer samba, não vou fazer Bumba-meu-boi, eu não vou fazer capoeira, né? Eu não vou ensinar capoeira pras pessoas porque, né, não me pagam, eu não vou estudar capoeira, porque se eu for estudar capoeira, uma que aí eu não pago o meu mestre, se eu não pago o meu mestre, eu estou... meu mestre está me ensinando a eu não pagar e eu também não receber. Certo? Eu estou aprendendo a não pagar e não receber, porque eu não pago. Eu vou acreditar que isso aqui não é pago, eu não vou cobrar do meu aluno. Ele vai dizer: “Pô, eu não vou fazer, meu mestre não ganha nada fazendo, eu vou... eu tenho que fazer alguma coisa que eu ganhe”. Então, esse tipo de raciocínio que nós vamos ter que trabalhar lá dentro. Não é fácil, né? Mas é mudar um pouco esse raciocínio das pessoas. É um trabalho mais longo, né? Chegar: “Não, vai ser assim, assado, não sei o que” “Ah, porque o racismo. Ah, porque vai ser assim, agora nós vamos mandar prender, porque não sei o que e tal”. Pô. Quer dizer, eu não sei também se é isso. Né? Como é que nós vamos trabalhar a questão do racismo, não sei o quê. Não sei também, sabe? Porque se a cadeia, né, ensinasse as pessoas, né, ensinasse, cuidasse de criminosos, não estava cheio de criminosos na cadeia. Então, o que nós vamos... como é que nós vamos trabalhar pra trabalhar essa questão das pessoas parar de praticar esses crimes, que eu não sei se a cadeia, se é batendo, não sei o quê. Acho que nós temos que achar uma forma aí de educar. Educar e que essas pessoas estejam juntas, porque a tendência de nós separarmos, deixa um contra o outro, um com medo do outro. Né? Uma classe social com medo da outra, o branco com medo do preto, o preto com medo do branco. Né? Um desconfiado com o outro. E essas classes sociais precisam se encontrar, as pessoas precisam fazer essa parada, sabe? Se encontrar em harmonia. Você encontra não necessariamente dessa forma, hoje em dia mais não tanto, antigamente era mais berrante, né? Quando encontrava os negros, era sempre uma questão servindo, né? A gente podia até estar junto, mas nós estávamos na universidade, eu estaria varrendo e você ou quem tivesse, né, o branco, o negro varrendo, limpando o banheiro, não sei o que, cozinhando e o branco se formando, fazendo doutorado, fazendo não sei o que nas universidades. Está se encontrando? Está se encontrando, mas não... queremos outra forma. Né? De encontro e tal. Que os grupos de cultura tradicionais ensinaram muito, bastante... bastante isso, né? As escolas de samba, né? A escolas de samba foram os lugares que as pessoas se encontravam de igual, né? As pessoas se encontravam igual, os grupos de Bumba-meu-boi, as escolas de capoeira, né? Onde o negro está em outra circunstância também. Onde o branco pode chegar e dividir: “Eu também cozinho. Hoje é meu dia de cozinhar, né? Pra todo mundo”. Então, é isso aí que nós vamos pegar. Por quê? Pescando da cultura popular, das tradicionais. Pro Brasil foi superimportante essas manifestações, pra esse encontro de brasileiro, pra trabalhar a questão antirracismo, né? A gente já está falando de antirracismo. Faz tempo que nós estamos falando de antirracismo, mesmo não sendo do grupo do movimento negro. Nós fazemos uma outra espécie de movimento, o movimento negro de forma diferente. A gente inclui. Nós também temos isso aí, é também movimento negro. Né? A gente inclui todo mundo, procura botar todo mundo junto e conversar.
P1: Nossa! Tantas perguntas, que eu não sei qual fazer. Mas eu queria te perguntar, assim, se teve algum motivo... mas o que eu entendi que... queria... você estava falando desse papel do... tanto tradicional quanto do racismo, mas queria saber se teve algum momento algo que te motivou, falou assim: “Não, eu quero entrar na política”. Tipo institucionalizadas?
R1: Não, eu acho que isso foi no decorrer do tempo, não foi uma coisa especial. Eu acho que, ao decorrer da minha vida, o que me cerca e a possibilidade que eu acho que eu tenho. Se eu soubesse que eu tivesse tanta dúvida, se eu acho que não, que eu vou entrar, mas não sei o que e tal, eu não iria. Né? Eu acho que tem isso aí também. Eu acredito também nesse potencial, acredito em mim, tem que trabalhar isso com as pessoas e, se for trabalhar, armar, chegar, tudo bem, mas não teve um momento especial. Eu tinha... eu lembro que muitas das vezes... e algumas brincadeiras de amigo. Falava assim: “Ah, esse cara é vereador”. Os caras me chamavam de cônsul, né, que era não sei o quê. Eu falava representante do Maranhão em São Paulo, representante da cultura maranhense em São Paulo, prefeito do morro. Né? Tudo isso são coisas que a turma meio vem brincando, mas vem ______ (02:41:12). É porque eu tinha pensado, né, no Partido dos Trabalhadores e tal, mas depois, eu vi algumas coisas que eu também fiquei meio inseguro e tal, já estava meio desistindo e aí, quando chegou uma galera do PC do B, né? Justamente a deputada Leci Brandão, o governador Flávio Dino, que é do meu estado. É... outras pessoas que são filiados do partido, que são amigos e amigas minha, que são filiados do partido, que estavam junto comigo e começaram e tal. A Leci Brandão foi um passo muito grande também, ela falou: “Pô...”. Né? A turma foi meio assim: “Não, o Tião é um bom candidato. Acho que vai ser não sei o que. O que você acha?”. Eu falei: “Ah, eu não sei e tal”. E Leci falou: “Porra, como é que é? Vai sair e tal?”. Eu falei: “Ah, nós estamos vendo”. Falou: “Ó, a parada, vê aí por que o negócio tal, esse ano. Pererê. Acho que você é um cara importante, é importante você lá na Câmara de Vereadores, você... suas ideias, suas ideias são importantíssimas. Não tem muito negro fazendo isso, principalmente o negro como Tião Carvalho. Sabe que tem isso aqui, você é uma pessoa muito forte e tal, importante ir lá”. E isso aí foi me fazendo eu ir, assumindo e trazendo e dei esse passo. Mas foi toda uma construção, quer dizer, não foi de uma hora pra outra.
P1: Aí eu ia emendar que você falou na questão da cadeia, de achar outra forma de educar, quando você disse que o Morro do Querosene, por exemplo, era um lugar muito violento e hoje já...
R1: Já não tanto.
P1: ... já não tanto. Teve alguma percepção nessa questão do morro, da violência diminuindo? Quando é que você sacou que a cultura começou a diminuir com a violência?
R1: Eu...
P1: E emendando: existe algum método pra você utilizar a cultura, não só pra se beneficiar como ser humano, mas como uma coisa que transforma socialmente?
R1: Eu acho que é o seguinte: eu vejo que existe uma forma... eu estava falando um pouco do combinar e da ordem. Eu acho que existe uma forma de nós trabalharmos, que tem a ver com o que eu estava falando, que é o combinar e da ordem. A cultura abre mais pra um diálogo. Você fica... você não fica, necessariamente, dando ordem e tal. Muitas das vezes, a gente não usava capacete. Quase não usava o capacete. Capacete, cinto de segurança. Tudo isso foram conquistas nossas. A gente fumava... é capaz, eu não sei, se a gente estivesse aqui dentro, de um de nós ter um cinzeiro aí do lado e fumar aqui dentro. Há um tempo. Certo? Isso são conquistas nossas, com o tempo. Então, isso por quê? É a fé. Ou às vezes muda, a gente precisa de leis pra isso ou às vezes você precisa de educar as pessoas, não necessariamente a lei. E às vezes vem a lei primeiro e depois que as pessoas foram ver que cinto de segurança realmente salva vida, sabe? Não sei o quê. Agora, pra você pegar o carro, você já se sente mal, se você não... você não fica à vontade, se você não põe o cinto, né? Você fica meio desconfortável pra você. Então, é coisa de hábito. Eu acho que a cultura leva esse... favorece um pouco esse diálogo, de ir esclarecendo pras pessoas essa questão do racismo, como trabalhar essa questão do racismo, questão da educação, da pedagogia, né, do cigarro, né? Antigamente, era muito mais comum fuuuuuuuuuuuu fumar. Né? Hoje em dia, ainda tem. Hoje mesmo eu fui tomar café __ (02:45:04) e estava brigando lá com o parceiro lá. Aqui está o isqueiro. O isqueiro não, o cinzeiro, está aqui do lado. O cara fuma, joga o cigarro no chão e a dona da casa, que está lá atrás, ou de manhã cedo, à tarde, vem pegar todas essas pontas de cigarro que nós jogamos no chão, cara. Pra quê? Está entendendo? Nós precisamos ter... trabalhar: põe aqui que ela não precisa vir varrer, cara. Ela pode fazer outra coisa nesse meio tempo, que estar varrendo algo que vai jogar no chão. E é um pouco essa cultura, né? Parada com o lixo, com reciclar o lixo, com... né? É educação. Educação. E aí procurar meios que você, às vezes, eu... tu vai falar isso através de um teatro de boneco, através de show artístico. Né? Falar sobre algo, botar coisa, a violência, fazer encontros na rua, usar o centro da cidade pra fazer festa pra brincar, sabe, pra trabalhar, recolher, estar mais próximo dessas pessoas. Quem sabe o artista chegue mais próximo do cara da Cracolândia e tal, às vezes, convence com mais facilidade do que o assistente social ou do que a polícia. Então, tem que trabalhar com essa parada da arte aí. É preciso que tenha conhecimento. Isso é uma veia. Isso é uma veia. Isso pode até ser um... não sei se é um plano A ou se é um plano B, mas vale a pena pensar.
P1: Mas aí chegou uma hora que você se ligou, assim, tipo, que pensou assim: "Nossa, será que o Bumba-meu-boi foi o que diminuiu a violência aqui no morro?".
R1: Eu acho que mais isso é no decorrer do tempo. Aqui, né? Quando outras pessoas de fora observam isso, quando a gente... eu podia dizer pra você também, dizer assim: "Ó, se você pegar...". Nós estamos no ano de... vamos esquecer esse ano agora, por causa da pandemia. Em 2019, pegar o jornal de 2019. 2018, 2019 pegar, dar uma... como quem faz uma pesquisa de um jornalista, uma jornalista, uma equipe de jornalismo de São Paulo, pra entrar nas manchetes, os jornais, da imprensa da cidade inteira. Vou fazer esse ano de 2018 e 2019. Se a gente fizer, é... 1968, 1979 ou 1969 ou 1978, 1979... 1978 e 1979. Você pegar esses dois anos e vai pesquisar o que os jornais falavam do morro em dois anos. Com certeza isso aí vem também de uma forma palpável, não só o sentimento de nós, moradores, que estamos ali, que vemos, né, a gente para de ver não sei o que, as pessoas que você conversa mais, você vê as pessoas espancando a outra, o marido espancando mulher, tráfico, um que morre e o outro, não sei o que, né, que mata, que rouba. Questão de roubo, furto. Né? Desova. Desova, pega alguém não sei aonde, que vai matar num lugar que podia ser o Morro do Querosene, porque é o lugar... quer dizer, a relação das pessoas que frequentam o morro, as pessoas que frequentam o morro sempre da classe média de estudante, não sei o que, as pessoas que mudaram pra lá também. Claro que, junto com isso, vem uma especulação imobiliária também. Mas não é só isso. Nós estamos falando especial, agora, de uma outra coisa: questão da violência, não da violência, né? Agora, o fato de eu não estar vendo violência, o cara ver... o cara tem a casa dele, aí chega alguém com um dinheiro, oferece pra ele, alguém com poder aquisitivo, oferece pra ele, ele vende essa casa e vai comprar uma casa mais longe do perímetro urbano, da cidade e tal, né? Vai pra mais longe também. Isso também é um risco, mas não é... é algo, nós temos que combater a violência onde nós estamos, né? E a nossa forma foi essa.
P1: E ia te perguntar, na sua vida também, como é que você sentiu que você combateu o racismo. Você falou disso, que é uma das coisas que te motivou.
R1: Eu acho que combater o racismo, pra mim, é isso aqui. Acho que eu estou... eu uso a arte pra falar disso, né? Eu! Né? Pra falar disso. Eu como fonte de inspiração, né? Eu sou professor de escola de classe média há mais de trinta anos. Isso é combate ao racismo. Né? Porque eu me coloco e tal e espero que outros negros estejam, professores de escolas de classe média, de universidades, de tudo, né? Que as crianças pequenas, negras ou não negras, se inspirem em mim e falem: "Pô, que legal, que bom que a gente viu o Tião aí. Puta, eu quero fazer isso aí também. Eu também... que bom, então eu vou fazer outra coisa, mas eu posso. Tião, como é que você conseguiu assim, assado? Mestre, se acontecer isso comigo, o que eu faço?" "Ó, você deve tratar assim, assim, assado, não sei o que e tal". Isso aí é combater racismo. É dialogando por lugares. Né? Tem o sim e o não, tem o limite, né, também, pro racismo, pra tudo, às vezes com a polícia, né? Como lidar com a questão da polícia também. Eu lembro que uma vez eu fui no... na... a gente estava fazendo a festa no morro e aí a gente fazia uma festa no morro, pedia liberação na polícia pra tal e tinha um capitão, capitão Valmir, já é falecido ele e aí a turma falou assim... ele que assinava lá pra a gente e tal e ele falou: "Ó, Tião, o capitão Valmir falou que quer falar contigo, pra você passar por lá pra falar com ele, que ele quer saber mais da festa e tal, não sei o que, que parada é essa festa de rua. Diz que a galera fica fumando um e tal". Fui lá. Cheguei lá até na porta, tinha uma senhora, era sargento e tal, chamava Alcione, na época, faz mais... uns quinze anos mais ou menos ou mais. Estava na frente e comecei a conversar com ela e ela falou: “Ah, não sei o quê. Já ouvi falar na festa. Como é que é?" "Assim, assado". Comecei a falar pra ela. Era negra, né? Aí: “Pô, que coisa legal, tradicional. Pô, que lindo”. E conversando: “Pô, eu vou levar até o capitão". Chegou no capitão: "Ô capitão, tudo bom com o senhor? Tudo bem?” “Tudo” "Ô. Tião, tudo bom? Senta aí, vamos conversar um pouco” “Pô, tudo bem" "E aí, como é esse negócio de festa?" "Ô, capitão, é assim, assado. Eu sou assim e tal, eu viajo alguns festivais fora do Brasil, né, vejo como é que essa cultura é traçada fora do Brasil. Estou trazendo algumas experiências pra cá”. E tem... ele foi ficando assim e tal. “Mas, pô, fica os caras fumando maconha lá em cima". Eu falei: "Espera aí, capitão, o negócio é o seguinte: a cidade inteira fuma-se maconha, então". ((Riso)) Falei pra ele: "A cidade inteira fuma-se maconha". Isso aí não é... a gente não dá pra eu chegar e dizer: "Ó, você, não sei o que e tal". Imagine qualquer lugar que __ (02:52:22) isso não existe. Mas ele estava querendo pegar meio que no pé da gente por ali também. Ele falou: "É, tudo bem e tal". Eu não sou polícia, não falei isso pra ele, né? “A função da gente é outra, não ficar aqui cuidando de vida dos caras, não é isso aí. Aqui é festa que tem criança, tem idoso, sabe? Tem não sei o que, pode ter uns caras por ali que vai dar a bola deles, mas, sabe, isso aí a cidade inteira eu sei e o senhor sabe que tem. Certo? Não vem dizer que pra eu tomar conta, não sei o quê. Beleza?" "Bom, beleza". Aí tal, beleza. Ele ficou assim: "Pô, que legal e tal". Pra mim: “Porra, está bom. Não, beleza, eu entendi agora. Que bom. Parabéns, não sei o que e tal". Pra mim assim. Quando eu fui sair, ele falou... foi até a porta comigo __ (02:53:05) estava do lado assim, tinha mais gente do lado e ele falou pra mim, falou assim: "Cuidado comigo, hein, negão? Que eu te prendo, pô". Ele falou pra mim. “É o seguinte: está tudo certo, mas não vacila não, que eu te prendo". Falei pra ele: "Ô, capitão, o senhor vai prender nego véio? ((Risos)) Pô, são oito filhos, aliás sete filhos, né? Desses sete filhos, quatro homens, nenhum de nós nunca foi preso e olha que eu já entrei em várias fronteiras desse mundo inteiro. Sempre atravessei. Nunca entrei numa cadeia. O senhor vai me prender, capitão? Vai prender nego velho?". Ele riu. Falou: "Está bom, vai embora". Eu disse assim: "Também não vai, capitão. Até pode prender. Até pode, injustamente. Certo? Mas na minha educação - Deus me livre e guarde, ninguém sabe o dia de amanhã - pela nossa experiência, não tem hábito de ser cadeeiro, na educação da minha família. Vai prender, pode prender, se for injustiça. Se for tipo de policial que acha negro, olha pra cara de um negro, não sei o que, acha que vai prender e prende mesmo, aí o senhor vai me prender, eu vou fazer o quê?". Não falei isso pra ele, mas o que eu quis dizer pra ele era isso. Certo? Então, você tem que ter essa coisa, combater o racismo é combater. Sou eu, se posicione e ajude outras pessoas. Quando a gente não tem consciência, é uma coisa; quando a gente tem consciência, a gente é outro papo, aí é responsabilidade. Eu tenho consciência, então eu vou falar. Que eu podia ficar com medo: “Ah, o senhor vai me prender? Ah, nossa!”. Não sei o que e ri e fiz uma brincadeirinha. Eu falei: "Capitão, olha lá. Já andei, eu ando, eu sou negro, eu sou quilombola. Não sei o que, não é fácil pra eu andar esse mundo inteiro e nunca ter sido preso, viver em São Paulo tanto ano e nunca ter sido preso. Não é fácil. Sou preto, eu estou ligado". Eu estava aqui na Cardeal, era um dia de aniversário... eu falei, eu contei pra vocês isso aí também na semana passada, que meu aniversário que está lá e que o policial chegou, não sei o que, fechando a casa na madrugada. Não sei o que, ela falou pra mim: "Ah...". Eu falei: "Pô, mas você não pode fazer isso, aqui não sei o que, as pessoas estão tudo trabalhando __ (02:55:27)". Ela falou: "Eu posso sim. Você acredita que não só eu posso, como, se eu quiser, eu posso pedir auxílio da polícia, a polícia vir". Quando ela falou isso pra mim, eu falei: "Bom, eu sabia sim, que você podia, sim. O pior não é isso, que a senhora é capaz de chamar a polícia e a polícia acreditar na senhora e vir. E vir e me prender, me bater, saber o que vai fazer comigo mais. Acha que eu não sei?".
P1: E aí...
R1: Então, uma das coisas a combater racismo é isso: você tem que estar... isso e você tem consciência. Tem pessoas que não têm e precisam ser ajudadas também, né? Tanto o negro quanto o branco, porque não adianta eu cuidar só do oprimido e deixar o opressor à vontade. Eu tenho que cuidar do oprimido e do opressor. Certo? O opressor tem que ser educado ou reeducado também.
P1: E era disso que eu ia te perguntar quando você... você é mestre, né, de duas tradições negras, né? Capoeira e o Bumba-meu-boi. Como é que você vê a questão da apropriação cultural? O que você acha, por exemplo, da relação com os brancos e os negros na capoeira, nessas festas de tradição popular? O que é apropriação, o que não é, qual que é a sua visão disso, experiência disso?
R1: A minha coisa... eu acho fundamental esse encontro. Acho que é fundamental. A apropriação é muito relativa. O que eu acho que não pode é eu chegar aqui, o roubar. Ou seja, eu aprendi e não devolvo. Você é branco, você tem que saber... não adianta eu chegar aqui e zoar, não sei o que, aproveitar desse espaço, né, dessa branquitude minha, pra eu adquirir vantagens dentro desse espaço. Né? Porque eu posso conseguir vantagem dentro desse espaço ou qualquer espaço. Então, eu tenho que saber que muita gente, no passado, importante... eu tenho que saber, eu não sei, mas é importante saber: muita gente perdeu a vida, apanhou, né, pra que você, nós estivéssemos fazendo capoeira hoje. Foram presos, muitos, pra que isso chegasse até mim e até você. Porque poderia não ter chegado essa herança pra nós, mas alguém lutou pra que a gente tivesse isso hoje em dia. Então, eu tenho que saber, algum lugar eu tenho que devolver esse conhecimento. Isso, às vezes, eu não sei se é questão, um detalhe. O que eu acho é que não pode é o seguinte: eu não cuidar. Nós estamos aqui, nós todos, a escola é nossa, nós temos é que deixar, eu chego aqui, você chega faz sua aula, não sei o que, paga e tal e vai embora, entra e sai, não sabe quem é seu mestre, como é que estão as coisas, quem que vai limpar aqui pra você ver... arrumar, como é que são as contas de água, de luz, né? É um pouco a gente administrar isso. Aí tudo bem. Aí é meu, é seu, é de todo mundo. Eu não posso... ainda tem mais uma: essa cultura, esse raciocínio, que não deixa você chegar na minha escola, porque tem um raciocínio que fala e você não vem, que vai dizer: "Ah, eu não vou, porque vou me apropriar. E estão falando que eu vou me apropriar e aí eu não vou, sou branco, mas eu não vou, eu vou ficar por aqui, eu não vou estudar lá”. Lá, aquelas pessoas, vocês, pela nossa tradição, sempre o poder aquisitivo teve... foi maior do lado dos brancos, a gente sabe disso. Se eu não levo esse poder aquisitivo pra pagar na escola de capoeira, eu vou continuar esse poder aquisitivo aqui. Esse mestre de capoeira não recebe, porque alguém acha que eu não posso ir lá pagar, porque eu sou branco, eu não posso aprender capoeira, porque eu sou branco, eu só... eu não posso aprender Bumba-meu-boi, cantar, dançar, né? Eu não posso degustar desse conhecimento, desse ensinamento, dessa música, dessa dança que é do Brasil, é de nós, todo mundo. "Ah, porque... ah não, porque o boi é do Maranhão. Aqui é outra coisa, esse negócio não dá certo”. Mentira. Isso é conversa pra boi dormir. Eu cheguei aqui, a turma falava que não gostava de forró. Eu fui um dos primeiros maranhenses ou nordestino, não fui o primeiro, já tinha o forró do ‘seu’ Pedro Sertanejo, tinha não sei o que, mas era muito periferia. Os grandes, os primeiros forrozeiros nordestinos, não sei o que, que vem cantar forró no Centro de cidade, primeiras bandas de forró surgidas no Brasil foram criadas por mim e pelos meus amigos, a Banda Mexe com Tudo. Daí veio surgindo outras bandas de forró, depois Falamansa, não sei o que e tal. Banda, banda de forró. As primeiras bandas de forró foi a gente. E escutando dizer: "Ah, mas o povo daqui não gosta disso". Falo: "Não, gosta sim. Calma. O povo gosta de coisa boa. O povo não conhece ainda. Quando o povo conhecer, o povo vai gostar”. E não deu outra. E a turma começou a ir no forró, pagava, a gente recebia. Recebia bem. Né? Ia bastante gente. Era pra uma elite, era pra elite, mas não tocava só pra uma elite, eu toco pra elite e eu toco, eu sempre fiz meu samba na periferia, na esquina. Né? Aqui, quem me viu fazendo samba, simplesmente chegando um lugar. Então: “Ah, porque você só toca pra essa elite”. Não, eu toco pra todo mundo e toco para quem tem dinheiro também. Porque se eu não tocar pra quem tem dinheiro, como é que eu fico, né? Ainda tem mais uma, perigoso ainda, que fala: "Ah, porque não sei o que...". Muitas das vezes o cara chega pra você, que é músico, pra mim, aí eu vou tocar pra um político, aí nego fala assim: "Pô, você vai tocar pra esse cara, não sei o quê". Eu falo: "É, estou tocando, estou trabalhando pra ele, ele está me pagando. Então, estou tocando sim, trabalhar..." "Não, mas não pode". Falei: "Beleza, tudo bem. Vou fazer o seguinte, vamos supor: você está falando que eu não deveria estar tocando pra ele. Se você fosse um médico parteiro, a mulher dele está esperando um filho, se chegasse pra você, pra você ir trabalhar na tua profissão, você ia falar que não ia? Se fosse advogado, advogado, advogada, estivesse precisando de trabalho, pra trabalhar pra ele, você não iria? Se fosse padeiro, fizesse pão, a empregada dele fosse comprar o pão, tu ia dizer assim: ‘Não, não vou vender, porque eu não gosto do teu patrão. Seu patrão é não sei o que, eu não vendo’. Por que eu sou músico, você acha que eu tenho que seguir o teu raciocínio dentro da minha profissão, dentro do meu ofício, se eu estou trabalhando e cobrando honestamente?". Né? Não é? Porque chega pra você, que está enfraquecido, às vezes o cara tem o não sei o que, tem uma casa na praia, tem um carro do ano e tal e chega pra você que está puxando sua __ (03:02:29) e fala que você não tem que fazer esse tipo de trabalho, tu está fazendo um trabalho honesto, dentro da profissão, dentro do teu ofício, pra pagar a escola do teu filho, pagar, né, livros, comida e tal. Então, são raciocínios muito que... né, acho que um pouco tudo isso. Tudo isso tem a ver com essa primeira pergunta que você me faz, desde do combater a questão do racismo, a questão do... como é que se chama a expressão?
P1: Apropriação.
R1: Apropriação, né? Se apropriar. Não sei se é apropriar. É você chegar lá. Agora, o que eu não posso é isso: chegar, usufruir, chegar, aprender, aprendo, não sei o que, vou me embora pra Alemanha, passo dois anos aqui, um ano fazendo capoeira comigo, você passa aqui, vai embora pra Alemanha, eu estou aqui puxando minha carreira, você vai pra Alemanha, ganha um rio de dinheiro e não lembra do seu mestre que te ensinou, que está duro aqui, fala assim: "Pô, estou ganhando dinheiro aqui, caralho. Eu tenho que mandar algo pro cara que me passou isso aqui, eu tenho que ter um diálogo com ele, eu tenho que falar dele pros meus alunos aqui, pras minhas alunas: ‘Ir no Brasil vai conhecer o mestre Tião Carvalho, faz aula com ele, conversa com ele, senta com ele, faz um rango, uma comida, conversa com ele sobre a história dele’". Assim é que a parada é. Né? Não só eu ganhar dinheiro, aí eu estou me apropriando. Mas se eu tiver essa devolutiva, não, é normal, é de todo mundo, o que nós temos é que cuidar. Essas heranças não foram deixadas só pra nós, africanos, é para os brasileiros e brasileiras. E agora nós vamos ter que administrar isso, não vamos dizer: “É só nosso”. Só nosso é só querer separar mais uma vez, ter que esse aqui é desse aqui e esse mesmo povo que não deixa você vir na minha escola, aprender capoeira, porque você é branco ou não sei que, você tem dinheiro e tal, mesma coisa essa pessoa ficar incomodada com minha filha, falar: "Não, eu vou pros Estados Unidos que eu vou fazer mestrado, né, em tal lugar”. Isso também incomoda, que é o negro, falar: "Ó, vai para os Estados Unidos, está metida, vai estudar não sei o que. Ah, foi pra Holanda, está metido, né?". Está metido, porque você vai pra Holanda estudar, você é negro, a turma fala: "Esse cara está muito metido". Eu já escutei essa expressão. Uma vez escutei um cara, chegou pra mim, estava conversando na roda com... era advogado ele. Era não, é, espero que esteja vivo. Estava conversando com meu amigo no mercado lá no Maranhão, assim final de tarde, conversando aqui, meu amigo já tinha convivido aqui, chama César Peixinho, estava conversando e tal, aí ele chegou na mesa assim, chegou, sentou do lado, eu estava ainda com o papo na mesa, no meio da nossa conversa, fala assim: "Tião, e aí, como é que estão as coisas lá em São Paulo e tal, no morro?". Eu falei: "Puta, beleza. Ó, sua pergunta é boa, mas espera aí que eu vou terminar de fechar esse diálogo com ele, aí a gente já entra nesse outro". Ele ficou puto. E sabe o que ele falou pra mim quando __ (03:05:33) com ele, falou para mim: "Não, eu acho que você deveria ser mais humilde" "Ãhn?". Ele falou: "É". Eu falei: "É mesmo, véio? Você sabe que eu acho que não, véio. Eu acho quem devia ser humilde era você, sabe por quê? Você sabe quem eu sou, você sabe que eu sou... meus antepassados, pra você vir falar pra eu ser humilde? Eu estou no Brasil, cara. Eu sou negro, eu estou no Brasil, vem pedir pra eu ser humilde? Você sabe o que a gente sofreu, pra ser humilde nessa terra? Pros meus antepassados falaram, pra você viver numa coisa, num final de tarde desse aqui, na primavera, falar que eu preciso ser humilde, porque eu te dei limite. Seja humilde você. Eu acho que você precisa ser humilde. Eu não. Eu não preciso, eu vou ser o que eu quiser ser. Humilde, não".
P1: Nossa!
R1: Aí é capoeira. Aí é capoeira. Você entendeu? Aí é capoeira, aí o mestre, aí é um golpe de mestre. Porque tem mestre estúpido, que já dava uma na lata dele. É, dependendo qual for o mestre: “Humilde?”. “Pau” e resolve depois, mas já dava, entendeu? Mas aí você: "Não, você".
P1: Capoeira do diálogo, né?
R1: Claro. Que aí os estúpidos acham que a gente aprende capoeira pra bater e pra apanhar. Negativo. E aí, sim, aqui está a capoeiragem.
P1: Uhum. E aí...
R1: Preparar o espaço hoje, não acordar em cima da hora.
P1: Bom, eu ia te perguntar última coisa só sobre o racismo. Assim, que você falou bastante da polícia e queria saber, assim, o que mais que você sentiu que te impactou no racismo, assim, pra você.... que você gostaria de deixar registrado. Até pra ser feito todo esse estudo do antirracismo, é preciso olhar como ele acontece e, na sua experiência, assim, de vida, como é que você olha?
R1: É, na realidade, quando fala de experiência de vida, essa palavra racismo é... a gente acredita que a gente não precisasse mais estar usando tanto, né, nos dias de hoje. Né? Isso é algo que a gente não precisava. Ela é muito forte, ela... que a gente que está usando, sabe? A gente parece que já está tão acostumado com ela, que a gente usa meio de qualquer jeito, mas sempre que eu a escuto, sabe? Ela incomoda, né? Ela não é algo simples de falar, de se tratar, de não sei o que, sabe? É muito doído, né, complicado. É... racismo, preconceito racial, né? E eu acho que ele não vem de uma vez só, né, não é algo e tal, tem algumas coisas incomodado, né? Incomodado ou então coisa meio que do dia a dia, né, que você sente, às vezes, assim, você vê que é discriminado, que o tratamento é um pouco isso, porque você é negro, né, que o tratamento foi desse jeito, né, entre as pessoas. Isso você vê no dia a dia, né? Eu lembro que eu uma vez eu estava com meu filho no colo, desci o morro, era um dia domingo de tarde, não sei o que, aquela coisa vazia, não sei o que, parado no ponto de ônibus, esperando o táxi. Meu filho, São Paulo meio garoando, passando... passou uns dois, três táxis você... psiiiiiii com a mão e os caras passam direto, passam direto. Quer dizer, pô será que o cara imagina que eu estou com filho no colo e vai eu e meu filho de colo, mas bebê de colo, assaltar o cara? Né? É porque o cara não queria te levar, né, não querer trabalhar para ti, não querer não sei o que e tal, porque não é. Porque muitas vezes a gente: "Não, eu fiquei com medo, não sei o que e tal." Né, que também já está errado, né? Se a gente ficar com medo um do outro, não tenho culpa se você tem medo de mim. Né? Então, isso não é uma culpa minha, isso não é um problema meu, é problema nosso. Então, essas coisas, eu, alguns momentos, tive alguma... não seria desavença, né, mas, geralmente, quando eu me aproximei, muito comum eu às vezes me aproximar das famílias, né, brancas e tal, né, fazer amizade e tal, frequentar a casa. Algumas vezes, quando isso trata do namorar, juntar, não sei o que, é... às vezes aconteceu, né? Porque geralmente eu e minhas parceiras, a gente é muito fincado, né e se gostava mesmo, não sei o que. Então, muitas das vezes isso está mais... algumas das vezes isso veio a incomodar determinada família, né? Essa parada de entrar na família e lidar com a família, lidar com os negros dentro da família, né? De família de branco, descendência europeia e tal, algumas coisas. Mas, geralmente, a gente levou, mas isso não foi sempre, né? Muitas das vezes, muito pelo contrário, né, muito carinho, muito... recebeu. Eu lembro que a minha... que não é sogra, né, mas meu último casamento, ela já é falecida, né, a vó da minha mulher, né, que era uma velhinha assim, loirinha, de olho azul, né, sempre pegava na minha mão e falava: "Não, você é meu filho, ó esse aqui é nosso, não sei o quê”. E me botava do lado dela, pegava na minha mão e tal e sempre a coisa de carinho. Dizia: "Não, esse aqui é nosso, você é da nossa família, você é nossa, esse aqui já é”. Sabe? E então tem um pouco as duas coisas, né? Tanto esse lado que alguém fala: "Não, na nossa família, não. Isso não vai dar certo e tal”. Isso aconteceu umas duas vezes também, questão aí de família também, né, de você falar sempre que, no Brasil, né, a gente, o negro, tem que ser duas vezes, né, você tem que ser bom e duas vezes bom dentro do que você faz, pra você ser bom, não sei o quê. Se for num time que está todo mundo na média, né, você pode não passar numa peneira, porque você é negro, né, ou numa outra... ou de futebol ou de uma coisa ou tal, ou de beleza, pra fazer um comercial ou para fazer uma novela ou para fazer, né, o trabalho, às vezes, dentro do... mas eu falo até que eu queria falar ali dentro da Marinha, Exército, Polícia Militar, né? Você também tem essa cara, você pode até ser, mas você... eu vou trabalhar mais do que você, pra eu ser... se você for tenente e eu também, eu tenho que trabalhar mais, a minha nota tem que ser melhor que a sua, sabe, não sei o que, senão a tendência é um ou outro achar uma forma... uma vez eu estava conversando com o cara, foi o ano 2000, que a Eco 99, não sei o que, lembra da Eco? E aí é o tempo que eu fui com um cara, que ele era um educador, mas ele era ex marinheiro e ele falou que ele saiu da Marinha, porque ele via que ele estudava para caralho, ele era o jovem, ia pro lugar, agrupamento, chegava lá, ele, os colegas dele ali, ele chegava dava aula pros cara: "Pô, não sei o que, tenho esse problema aqui, não sei o quê”. Ele chegava: "Não, cara, isso aqui não sei o que, vamos ver. Não, isso resolve assim, assado”. Sempre ensinando os caras, sempre ensinando o cara, aí passava iam pra um lugar, outro pra outro, chegava lá, os cara já tinha duas patentes na frente dele, ele falava: "Pô, mas como é que você... não sei o que" "Não, é porque eu não sei o que, recebi não sei aonde, não sei o quê". Ele falava: "Pô, tô vendo só os caras... e eu não saio daqui, eu que ensinei os caras”. Ele falando pra mim, o cara mais velho do que eu, né e tal, ele estava falando assim, que tinha feito carreira assim, foi até sargento, não sei o que da Aeronáutica ou Marinha, não sei o que ele era. Ele falou: "Os caras já eram tal, tenente, não sei o que e eu...". Né? Então, você vê assim, né? Eu vejo... rola um pouco, uma brincadeira, piada, mas tem isso também, né? Pô, eu lembro que o Edilson do futebol, que ele ganhou o apelido de Capetinha, né? Aí o cara jogava bem pra caralho, bem pra caralho, sobressaía: “Não, é um capeta, é não sei o quê”. Umas brincadeiras, não sei o que, que ficou... o coisa lá, o Galvão chamando o cara não sei quanto tempo de Capetinha, porque o cara não sei o quê. Aí, já o Kaká bonitão, vira galã, vira não sei o que, (risos) vira “tererê”, entendeu? E o negrão sempre fica... isso é uma coisa meio que de Brasil, entendeu? A gente, então, tem essa parada, né, o negro vai ter que provar. Então, às vezes, na família, é isso mesmo: “Você é negro, você é o quê? Você é um grande artista pra casar com minha filha? Você é um grande médico? Você é um grande... né, um grande diretor de jornal, de que você é grande?”. Né?
P1: Você teve alguma aproximação com movimentos negros, além da capoeira?
R1: Tenho, mas eu nunca fui de fazer parte, assim. Tenho, conheci algumas pessoas do movimento e tal. Outro dia, o ano passado esse... o movimento fez um... o... é uma das festas do Movimento Negro, não sei o que, mas me fugiu o nome agora, fez uma homenagem pra nós, o Cupuaçu, entendeu? Então, é isso, tenho... mas eu sempre achei um pouco... a galera um pouco radical, assim, né? Meio fechada. Radical e muita das vezes não... esse conflito com a cultura tradicional também é uma coisa meio que não é muita trabalhada com os movimentos negros, né? Você não vê a galera do movimento negro sendo capoeirista, né, fazendo samba, não sei o que e tal, com essa parada da cultura, o que essa galera escuta, onde é que essa galera está, dentro também uma classe média que escuta uma determinada... um tipo de música, né? Outra influência, não sei o quê. Tem lugar que não admite que chegue... festa que não admite que vai branco, festa fechadas. Entendeu? Então, tem um pouco essa coisa e eu sou um pouco... acredito numa outra forma de fazer, de combater, que é justamente dialogando e trazendo as pessoas junto e dialogar junto e tal. Isso é a forma que eu acredito e eu busco aqui a parada da música, da arte e tal, pra aglutinar pessoas, pensadores e pensadoras, pra nós procurarmos melhoras pra todo mundo, né? Tanto pra um oprimido e pro opressor. Não dá pra deixar o opressor, pelo amor de Deus, cuidado com o opressor, não deixa ele solto. Aí... uma vez, pô, cara me acertou um soco, estava numa briga, eu não tinha nada, eles arrumaram uma briga, acho que arrumaram porque queriam me bater. E a pessoa que foi preparar a briga, me segurou. Cara foi preparar a briga e me segurou, o outro me acertou um soco. Entendeu? Então, é... não pode deixar o opressor solto. Prender o oprimido. Não posso tirar a cultura da rua... cultura popular é deixar a rua pro bandido, pra malandragem, pra não sei o que, terminando, porque a cultura popular não pode ir para rua, não posso brincar na rua, porque a rua está violenta. Pô, tira a violência, véio, me deixa então.
P1: Ô mestre, a sua vida é um oceano, se deixar eu fico aqui até eu ficar com setenta anos, que você é muito vivido, mas então só pra... como é um registro, se tem alguma coisa que você acha que aconteceu, que não pode ficar de fora, pra gente fechar, assim?
R1: Rapaz, eu acho que... eu costumo falar que nossas bandeiras são infinitas, né? Com certeza, a gente, se a gente for ficar aqui, realmente, você fala, nós vamos ter muito tempo pra fazer, pra falar, mas eu acho que não tem muito... o que eu coloquei, né, falei dos meus filhos, falei da capoeira, falei da comunidade, falei da música, falei da minha terra, da minha ancestralidade, né? Como eu vejo a vida, o que eu... como eu procuro contribuir. Eu acho que é mais agradecer vocês, agradecer a casa, né, por essa ideia, né, do...
P1: O que você achou de contar a história, aqui no Museu?
R1: ... Museu da Pessoa, né, essa ideia do Museu da Pessoa é fabulosa. Eu lembro que eu não estava... não era muito próximo, já tinha escutado falar, mas não entendia muito o que era e tal e como era. Eu acho que queria, primeiro, parabenizar, né, a mentora, que eu acho que a senhora sua mãe, né? Como que chama mesmo?
P1: Karen.
R1: A Karen, né? Queria deixar aqui registrado esses parabéns pra ela, aí sensibilidade e que eu acho que é uma mestra aí de juntar pessoas, né? Que tem habilidade de juntar pessoas, pra uma causa tão nobre. E a ideia do projeto também, agora mais recente, no qual eu estou incluído também, eu acho que é maravilhoso. Então, pra mim, é só agradecer e agradecer em nome da família, né? Em nome da minha família, né, dessas pessoas que eu... todos que eu citei, minha família, das amigas, amigos e da comunidade, né? Em nome da ancestralidade e tal. Queria super agradecer e tomara que esse museu, tudo isso aqui perpetue, né, muito tempo. Agradecer vocês dois, né?
P1: Vamos fechar com uma música?
R1: O Luiz e o Jonas. Não é isso? Agradecer as meninas também, que me receberam, né, que ligaram pra mim, tal, muito gentis, né? Que cuidaram desse... disso aqui, pra que acontecesse. Certo? Então, é isso. Vamos cantar? Nós vamos fazer...
P1: Pega uma importante pra você, pra sua caminhada.
R1: Tá.
P1: Só uma pergunta: que nem, pra ser mestre de capoeira, você ganhou o título de mestre. Pra Bumba-meu-boi, existe essa coisa de receber título?
R1: Não.
P1: Você é considerado na... você foi considerado?
R1: É, porque, na realidade, essa questão de mestre é algo um pouquinho mais recente na cultura popular. O mestre de capoeira, sim. Esse mestre é algo mais recente e tal. Geralmente, o cantador de Bumba-meu-boi tinha __ (03:21:48), que era o cantador, né? E eu acho que isso vem com o tempo, sabe? O tempo te dá isso e acho que isso tem a ver com perseverança, que muitas vezes a gente começa a fazer algo e, no meio da nossa trajetória, a gente desiste, né? “Ah, agora eu vou fazer, por vários motivos”. Às vezes até são motivos religiosos, né? É muito comum o cantador de Bumba-meu-boi ou um mestre, uma mestra de capoeira e tal, assim: “Não, não, agora eu virei evangélico e tal, sempre, não vou mais cantar boi, que a minha religião não permite mais”. Então, não sei o que, você começa a fazer capoeira e fala: “Puta, eu comecei capoeira, mas eu não quero mais, agora eu quero fazer boxe, quero fazer muay thai, quero fazer karatê e tal”. No meio do seu processo de aprendizado, né? Cada um vai seguindo pra um lado e você vai perpetuando e acreditando e passando isso aí, acreditando e passando seus ensinamentos, aí você vira mestre, né? Que eu falo mestre é quando você tem discípulos, sem discípulo não tem mestre. Né? Sem discípulos você não é mestre. Mestre é quando você tem discípulos, uma coisa tem a ver com a outra.
P1: E aí...
R1: Pode falar.
P1: Pode tocar. Não, eu ia te perguntar assim, tem um exercício de um filme que fala, assim, que quando a pessoa morre, falavam que ela fosse... um filme japonês, chama Depois da Vida, se ela só tivesse uma memória, ela escolhia aquela memória e ficaria a eternidade vivendo uma memória. Queria te perguntar: se você só pudesse levar uma memória de toda essa vida que passou, qual seria a memória que você levaria?
R1: Rapaz, eu levaria a memória da minha mãe. E a memória da minha mãe, tenho algumas memórias da minha mãe. Mais recente era uma foto dela que eu vi hoje. Eu vi uma foto da minha mãe, ela sozinha, no fundo do quintal, sentada numa cadeira, com o pé aqui em cima da coisa e tal. Essa memória e tal. Acho que ali uma memória, mas uma memória mais uma fotografia, né? Mas... eu penso... memória, eu penso na minha mãe, como quem volta, sabe? Como quem volta. Se tivesse que voltar pra onde, não sei o que, eu diria assim, no colo da minha mãe. Sabe? Eu acho que era um pouco essas coisas. Agora, tem... tem algo um pouco, assim, não tão resolvido na minha cabeça: eu tenho uma foto com uma amiga, né, que foi minha namorada durante muito pouco tempo, né? A gente namorou muito pouco tempo, namorou muito mais à distância do que junto e a gente tinha uma foto junto. Então tem uma outra, essa outra é uma outra foto, né, de algum afeto assim, que eu lembro, é uma foto meu e dela. Né? Na realidade... ela chamava Alice. Foto minha e da Alice assim, a gente abraçado, é até uma foto que fica na minha cabeça e tal, imagem, tal. É um pouco isso, né? Talvez até aproveitando aqui, que a gente está solteiro, que pode realmente escolher alguém que... dessa trajetória toda e dizer: “Pô, eu lembro dessa aqui”. Mas muito, né? Eu sempre fui... sou muito amigo, né, das minhas ex, né? Sou muito amigo, mas não tem quase ninguém que a gente não se fale, não sei o que, tem uma coisa e tal. Geralmente, coisa de amizade, respeito, de família. Não. Mas isso, mas lembrei dessa amiga aí que... que é um pouco, assim, a última, né? Mas é um pouco isso aí. Hoje, algumas coisas, algumas rodas, né? Rodas de capoeira, né? Shows, né? Eu lembro que eu estava uma vez num lugar, na Inglaterra, e... eu não lembro a cidade, o nome da cidade, eu acho que eu lembro, não lembro a pronúncia, mas era do lado de Liverpool, cidadezinha bem lado de Liverpool. A gente foi fazer um show muito cedo, show de manhã, acho que era umas dez da manhã, uma coisa assim. Inglaterra, na Inglaterra é problema, né, porque lá não tem atraso, não existe, né? É tanto, é quarenta minutos, vinte minutos de show, começa na hora e acaba na hora. Eu lembro que a gente, fazendo um show, era de manhã e aí eu vi que tinha umas pessoas na frente, uma menina ali ________ (03:26:53) não sei o que, quando ficou na hora a gente fazer a última música cantando, eu cantando, ela não sei o que, olhava no olho da menina e ela chorando. Ela chorando, porque a gente ia embora. Eu não conhecia a menina, nunca tinha visto, ela nunca tinha visto a gente na vida, ela chorando. Eu lembro dessa. Por falar em choro, outra circunstância também, esse foi fora do Brasil também, nessa viagem que a gente fez pra Nantes, lá no sudeste da França. Que aí teve um dia que a gente fez um encontro na igreja, uma catedral da cidade, então vários... todos os países estavam ali, né, grupos que era um festival, todos os países ali. Um grupo pequeno de dança, dança tradicional, não era nada de tipo um Bumba-meu-boi do Maranhão, enorme, nós devíamos estar mais ou menos umas nove pessoas, no máximo dez, ou menos e aí tinha um grupo de vários lugares, aí tinha... todo mundo tocou, eu lembro que a gente tocou, cantou também, nós cantamos, cantamos uma música religiosa, eu lembro que a gente cantou uma música de Iemanjá e tal, nós brasileiros. Aí tinha o pessoal do Peru, cantou o Condor Pasa, conhece essa música? Espera aí, como é que é?
“Orê, orê, orê, orê, orê, perorê, perorê, porebobebobe”.
Eles tocando com __ (03:28:22), aquelas coisas deles, dentro daquela catedral, não sei o que e essa música fala o seguinte: pra nós, que somos latinos e tal, a gente conhece um pouco a história, fala que... por isso que ela chama Condor Pasa, porque quando os espanhóis tiveram, invadiram o Peru e tal e mataram os incas, não sei o que e tal, o condor... essa música significa o voo do pássaro, né, do condor, que é um pássaro enorme, sobre o corpo daquelas pessoas, né, ali no chão, mortas e tal, a música significa... conta justamente isso. E aí, quando eu olhei pro pessoal da Noruega, tinha uma menina também chorando, enquanto tocava essa música. E ela é muito emocionante pra nós, que conhecemos a história; agora, pro povo lá da Noruega, uma menina adolescente da Noruega chorando, tocando aquela música, eu fiquei na minha cabeça. Falei: “Pô, como é... e pra ela, como é que é isso, será que ela sabe dessa história? Não, né?”. Aí eu fiquei, assim, impressionado. São cenas da vida da gente, né, que a gente... é... que fica, né? Que você diz assim: “Pô, como é que o povo faz essa leitura, né? Como é que a música chega no coração das pessoas, sem...”. Que era só instrumental também, né? Não tinha ninguém cantando, traduzindo, nada. Mas eu vou cantar aqui pra você uma composição minha, chama-se Quando Dorme Alcantara, de minha autoria.
“Deu meia noite, Alcantara dormiu
Deu meia noite, Alcantara dormiu
Quando a luz já se apagou
Mãe da lua já cantou
Um galo cocorocô, canção de amor
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
Deu meia noite, Alcantara dormiu
Deu meia noite, Alcantara dormiu
Do fundo de um poção
De um casarão colonial
Um espírito de um preto velho
Escravo de Portugal
Na praça do pelourinho
Junto com outros espíritos
Cantam um canto não dito
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
Deu meia noite, Alcantara dormiu
Deu meia noite, Alcantara dormiu
Surgindo de vez em quando
Um fogo longe, no campo
Maria toda de branco
Por Alcantara passear
Aquela morena bela
Filha do rei de Castela
Andando na lua cheia
Parecendo uma sereia
É bonita e eu não vou lá
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
Só passando...
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor...
Cabeça de nó
Tá só passando.
Quando a luz já se apagou
Mãe da lua já cantou
Um galo cocorocô, canção de amor
E o tambô?
Tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
Deu meia noite, Alcantara dormiu
Do fundo de um poção
De um casarão colonial
Um espírito de um preto velho
Escravo de Portugal
Na praça do pelourinho
Junto com outros espíritos
Cantam um canto não dito
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
Deu meia noite, Alcantara dormiu
Surgindo de vez em quando
Um fogo longe, no campo
Maria toda de branco
Por Alcantara passear
Aquela morena bela
Filha do rei de Castela
Andando na lua cheia
Parecendo uma sereia
É bonita e eu não vou lá
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
Só passando...
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
E o tambô tá tocando
Só passando
Eiê, Eiê, Eiê, Eiê, Eiê, Eiê, Eiê, Eiê.
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Cabeça de nó
Tá só passando
fishhhhhhhhhh
Pá, pá, bum.
Tá, tá, tá, tá, tá, tá tá prrrrrrrrrrrrrrrrr pa pa
Cabeça de nó
Tá só passando
Só passando.
Fishhhhhhhh bum pa pa pa
Só passando.
E o tambô tá tocando
Senhor tá olhando
Fishhhhhhhhhhhh bum pa pa ta ta ta ta ta ta ta ta ta
Só passando
Trrrrrrrrrrrrrrrrrrrrraaaaaaaaaaaa
Só passando
Deu meia noite, Alcantara dormiu”.
P1: Gratidão, viu?
R1: Obrigado, vocês. Museu da Pessoa!
P1: É. A gente do Museu da Pessoa, quer te agradecer profundamente, mesmo. Foi uma aula. Eu, particularmente, mais de quase cem entrevistas, uma das mais marcantes na minha caminhada. E te agradecer e dizer que essa casa é sua, né? Agradecer o seu tempo, a sua disposição, a sua escuta mesmo, não é só de título que você é mestre, não. Você é um mestre de verdade, na forma como você trata as pessoas, sentir e sendo tratado por um mestre, né? Então, muito obrigado por partilhar sua sabedoria e com todo mundo que vai ouvir.
R1: Que bom! Muito obrigado. Isso aí está gravando?
P1: Está.
R1: Está, né? Que bom! Obrigado! Não, então está ótimo, meu medo era não ter gravado essas coisas. E você quer falar alguma coisa, aí, Luiz? Agradecer você, que bom pela companhia aí com a gente também.
P2: Tião, muito obrigado. Uma grande aula. Foi um prazer imenso te conhecer. Já tinha te visto uma vez, né, pela noite de São Paulo. Foi um prazer. Descobri que era você, que é uma pessoa que me encantou cantando. Prazer em estar aqui.
R1: Boa. Muito obrigado. Felicidade aí pra nós todos, pra nossa família, tá bom? Axé.
P1: Axé.
R1: Tudo de bom.
P1: Beleza.
R1: Beleza.
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