P/1 – Andreza, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Primeiro eu gostaria de agradecer de você ter vindo até aqui pra essa entrevista.
R – O prazer é meu.
P/1 – E pra gente começar eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Ann’Andreza de Carvalho Martins. Eu nasci no Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1967.
P/1 – Andreza, fala pra gente o nome dos seus pais.
R – Meu pai é Tertulino Ferreira Martins e a minha mãe é Cleusa Marina de Carvalho.
P/1 – E você sabe a origem do seu nome?
R – Sei. A minha mãe que quis colocar esse nome. Ambos meus pais são de Minas, minha mãe é de uma cidade pequena de Minas, de Fama, sul de Minas, e lá a avó dela, Andreza, era dona de uma pensão na estação de trem. E quando a minha mãe era pequena, a minha mãe com os pais dela, a minha avó Ana Amélia e meu avô se mudaram pra Paraibuna, meu avô veio plantar café aqui em São Paulo e a minha mãe separou da avó e a minha bisavó fez uma bonequinha pra ela. A minha bisavó Andreza deu à minha mãe uma boneca e a minha mãe Cleusa veio com a mãe dela, Ana Amélia, pra São Paulo. E ela deu o nome da boneca o nome da mãe e da avó, Ann da mãe e Andreza da avó, Ann’ Andreza, todas as bonecas dela tinham esse nome. E quando eu nasci ela deu o mesmo nome, Ann’ Andreza.
P/1 – A boneca dela.
R – A boneca dela (risos).
P/1 – Certo. Fala pra gente, você falou já o nome dos seus pais, fala um pouco o que eles faziam.
R – Meu pai é da região de norte de Minas, sul da Bahia, que é uma região de garimpo. Meu pai trabalhou primeiro em garimpo, depois trabalhou como lapidário e quando eu cresci meu pai já era exportador, tinha negócio de exportação de pedras preciosas, ele veio pro Rio de Janeiro jovem trabalhar na exportação. E a minha mãe, que nasceu em Minas e depois foi criada no interior, no Vale do Paraíba, foi pro Rio de Janeiro estudar porque na cidade dela só tinha Normal, não tinha Clássico, ela não queria ser professora e ela veio pro Rio de Janeiro fazer o clássico. Mas ela nunca teve uma atividade profissional, ela se casou jovem, foi sempre dona de casa, mãe.
P/1 – E você sabe como seus pais se conheceram?
R – Minha mãe foi pedir um emprego na empresa do meu pai. Meu pai é 27 anos mais velho que a minha mãe. Ela foi jovem procurar um emprego de secretária e ela falou que ele dava folga pra ela todo dia e só mandava entregar flores na casa dela (risos) e aí foi, eles se casaram.
P/1 – E conta pra gente dos seus avós. Você chegou a ter contato com eles?
R – Não. Quando eu nasci todos meus avós já haviam falecido. Porque a minha mãe é a caçula de 11, quando ela nasceu a minha avó já tinha 48 anos, minha mãe me teve com 26, 27, então já não tinha mais meus avós. E meu pai, quando eu nasci já tinha 60 anos, então também não tinha. Se bem que a minha bisavó Andreza morreu um ano antes de eu nascer, ela morreu em 1966. E a minha avó Maria Ferreira, mãe do meu pai, morreu no ano que eu nasci, 1967, a minha bisavó morreu com 107 anos e a minha avó com 98, as famílias são bem longevas. Mas o que eu sei deles é pelas histórias que os meus tios, família grande, a gente sempre se reunia final de ano. Eu sempre achei muito bonito que meus tios sempre falaram no pai e na mãe, “o papai e a mamãe”. “Ah, porque o papai e a mamãe”, era sempre aquela maneira muito carinhosa, muito idolatrada dos pais. E a mesma coisa com meu pai em relação à mãe dele. Quando a mãe dele ficou idosa veio pra casa do filho mais velho no Rio de Janeiro pra minha mãe, nora, cuidar, aquelas coisas. E a minha mãe falava sempre com muito carinho da sogra dela, Maria Ferreira, uma mulher muito lutadora. Meu pai contava da avó dele que era índia e foi laçada no mato no sul da Bahia. Essas histórias de casa que eu sei e tenho muito carinho pela figura dos meus avós. O que acaba acontecendo na prática é que meus tios mais velhos meio que tinham essa função de avós, as irmãs mais velhas da minha mãe e o irmão mais velho da minha mãe são as pessoas que eu tenho o mesmo carinho, essa relação de avô e avó.
P/2 – E dessas histórias que você ouvia, tanto do seu pai, dos seus tios, qual foi a história que te impressionou mais em relação aos seus avós, que foi guardado com carinho? Você lembra de alguma história?
R – Eu acho que o que na verdade me impressionava mais eram as histórias que as pessoas não queriam contar, você sempre sentia que tinha alguns segredinhos no ar, que as pessoas começam a falar de alguma coisa. Alguém começava a contar: “Ah, deixa de ficar reclamando do passado! Deixa essas coisas pra lá!”, umas histórias assim. E eu e meus primos, a gente: “Ué, mas o que tem aí? O que eles não querem falar”. Tinha umas coisas assim que é o que eu tinha mais curiosidade. Pra mim foi muito interessante porque claramente na família da minha mãe, o meu avô é Otoni, ele é de uma família italiana, mas a minha avó era mulata, e a gente ficava assim: “Mas e a vovó Andreza?”. A vovó Andreza nasceu em 1908. Eu tenho uma prima que é historiadora. Lei do ventre livre em 1800 e pouco, como é que foi isso? Essa coisa de como é que esse filho de italiano casou com essa filha de escravos, essas coisas que a gente tinha curiosidade e eles não gostavam muito de comentar. Isso eu achei muito interessante porque a minha bisavó Andreza é filha de escrava com o dono da fazenda, ela foi criada na casa da família e ela se casou com um homem livre e foi ter um comércio, ela foi ser dona da pensão da estação de trem, que era uma coisa bem prestigiosa na cidade. O padrinho da minha mãe era um senador de Minas, que batizou a minha mãe, essa coisa. E ela tinha uma mentalidade assim, a minha avó e meus tios, filhos dela, meus tios-avôs, todos estudaram, ela botou todas as meninas no colégio interno, colégio de freiras e aí eles abasteciam com a fazenda, levavam os produtos, ovos, verduras, era assim que eles pagavam o estudo das filhas. Minha mãe fala: “Meus irmãos quem alfabetizou foi minha mãe, a vó falava francês”. Porque eles tinham esse valor da educação, a primeira coisa que eles puderam fazer, educar os filhos. Isso que eu achava bem legal, essa visão da minha bisavó lá atrás pra ter tido essa coisa: “Não, as crianças vão estudar, as meninas vão estudar”. Eles contam uma história que meu avô quando começou a se interessar pela minha avó passava pela pensão e assoviava. E aí a minha bisavó falou assim: “Ó, a gente assovia pra chamar cachorro. Se você quer conhecer a minha filha você entra e pede um café” (risos). Era assim, ela era bem despachada. São essas histórias que eu acho bem interessante, a gente vai descobrindo. Agora que os tios estão mais velhos, estão ficando com a língua solta, vão contando mais e mais histórias, então é muito legal (risos).
P/1 – Você tem irmãos, Andreza?
R – Tenho. Eu tenho um irmão, mas na verdade ele faleceu, ele faleceu com 21 anos. Mas nós fomos criados [juntos], ele mais velho, um ano e sete meses que eu. Ele morreu com 21 anos, ele nasceu em 66 [1966], eu nasci em 67 [1967].
P/2 – Ele morreu do quê?
R – Um acidente de carro.
P/2 – No Rio de Janeiro mesmo?
R – No aterro do Flamengo. Voltando para casa de uma festa com um amigo.
P/2 – E ele que estava dirigindo?
R – Não. Graças a Deus morreu só um, não precisa duas famílias passarem por isso.
P/2 – Andreza, vamos voltar um pouquinho. Você estava contando um pouco dessa história do seu avô, que era descendente de italiano. Você sabe da história de como eles se conheceram?
R – Eu acho que eles se conheceram na pensão da minha bisavó em Minas. Porque o que a mamãe conta é que a estação de trem ali de Fama era um lugar muito movimentado porque a capital era no Rio de Janeiro, o sul de Minas tinha uma importância política e econômica grande pro Brasil, o trem era o meio de transporte. As pessoas paravam na pensão e ali é que se davam os encontros, os jantares, era um lugar importante naquele pequeno lugarejo, naquele universo. Meu avô conheceu provavelmente a minha avó ali. E meu avô sempre foi fazendeiro, ele tinha fazenda em Minas. Mamãe diz que ele era muito inquieto, ele vivia comprando e vendendo, comprando e vendendo, comprando e vendendo, terra, não sei o quê. E minha avó, eles tiveram 11 filhos, imagino que já estava cansada de ficar se mudando, ela falava: “Ai, sossega José”. Ele comprou essas terras aqui em São Paulo, Paraibuna, que depois também teve a represa, como teve a represa em Fama, teve também represa em Paraibuna. Mas aí ele veio plantar café e foi fazendeiro aqui por muitos anos. Minha mãe veio pra cá acho que já com sete anos e foi criada aqui.
P/1 – Você falou que nasceu no Rio de Janeiro, que seus pais se conheceram lá e um pouquinho da atividade deles lá. E fala pra gente da sua infância, como é que foi a sua infância no Rio de Janeiro, onde é que era a sua casa, o bairro?
R – Eu nasci no Leblon. O apartamento dos meus pais era ali, a cobertura, pertinho da praia, moramos ali até uns três anos e quando minha mãe quis mudar para uma casa com a gente pequeno, meu pai então comprou uma casa na Ilha do Governador onde nós ficamos até entrar pro primeiro ano na escola, fez jardim lá e quando foi pra começar a vida escolar a gente voltou pro Leblon, para um outro apartamento, então é ali que a gente foi criado. Eu morei ali a vida toda enquanto morei no Brasil. Mas era uma vida assim, como minha mãe e nem meu pai tinham irmãos, a gente não tinha essa coisa de tio, primo no Rio, a gente sempre ia pro interior de São Paulo pra ficar com os irmãos da minha mãe, meus primos, e a gente tinha um sítio em Teresópolis, na serra. Na infância era um pouco isso, era um pouco praia durante a semana, mas fim de semana a gente ia pra serra, pro sítio, e nas férias a gente vinha pra casa dos tios passar aqui, tanto julho como dezembro. As férias eram longas quando a gente é criança. E mamãe não trabalhava. Papai ficava, meu pai viajava muito, ele sempre foi empresário, nunca trabalhou pra ninguém, então também nunca tira férias. Quem não trabalha pra ninguém não tira férias (risos). Ele deixava a gente e vinha nos finais de semana, coisa e tal. Mas foi muito gostosa a minha infância, curti muito casa, curti muito brincar, curti muito a coisa do irmão, a gente era muito próximo, foi gostoso.
P/2 – Você morou até quantos anos no apartamento no Leblon, quando você nasceu?
R – Eu tenho fotos ali da minha primeira bicicleta, coisa do triciclo, uns três, quatro anos. Depois a gente foi pra Ilha, ficamos uns três anos e eu voltei pro Leblon na primeira série primária, então foi pouco tempo que a gente ficou na Ilha. Mas era uma casa muito gostosa.
P/2 – E com quem você brincava, do que você brincava?
R – A gente brincava muito sozinho e muito de inventar brincadeira. E também eu acho que sendo essa coisa de família mineira que tem alguém no Rio de Janeiro, de vez em quando tinha um primo que vinha morar com a gente, vinha morar porque vinha estudar ou porque vinha trabalhar, então me lembro muito de vir sobrinhos do meu pai que vinham trabalhar no Rio e ficavam em casa e a gente tinha primos mais velhos, sobrinhos da minha mãe que vinham ficar um ano no Rio porque iam estudar para algum concurso. Mas a gente tinha uma vida meio nossa, não tinha tanto amigo. A gente foi ter mais isso quando eu vim morar no Leblon de novo, maior, fui crescendo e fazendo amizades. Mas era uma vida bem nós e quando a gente estava com alguém. Acho que tem essa coisa, mineiro é meio reservado também, a gente conhecia outras famílias mineiras dos sócios, parentes do meu pai que vinham vender pedra e ficavam em casa. Era uma coisa assim, era mais uma estação de trem (risos) de Minas Gerais, era mais um pouso entre Minas e Rio em casa, vinha muita gente. Ficava um dia, dois, a gente tinha quarto de hóspede, tinha uma outra casa no fundo do quintal, ficava Fulano um tempo, Fulano um tempo, tinha muito essa coisa. Isso eu me lembro bem, eu gostava dessa coisa de receber as pessoas, ficar um tempo, ouvia história. Era muito bom.
P/1 – E você falou da pré-escola. O que você se lembra? Você já tem memórias desse tempo?
R – Tenho. Eu me lembro que eu amei essa coisa da alfabetização. A gente tinha um método da abelhinha, era uma coisa muito lúdica. Eu me lembro as apresentações de teatro de fim de ano, que eu fui o bule, que eu era a letra b e eu adorava, fiquei encantada que eu ia ser o bule. E eu me lembro que o meu nome é um nome complexo de escrever, quantos nomes tem apóstrofe? “Mãe, onde você inventou essa?” “Ah minha filha, eu estudava latim, no meu tempo a gente tinha apóstrofe”. Então é Ann’ Andreza. E foi complicado aprender a escrever meu nome todo. E eu era uma menina muito alegre, muito leve e eu inventei um nome pra mim, era Anna Andreza de Carvalho Martins Feliz Pra Sempre, era assim que eu gostava. Aí a professora chamou minha mãe, ela falou: "Olha, você precisa conversar com ela porque ela fica inventando nome, ela tem que entender que o nome dela...”. E eu tinha essa coisa, eu queria que meu nome no final fosse uma coisa bem assim, dramática, Feliz Pra Sempre (risos). E por um tempo eu assinei assim. E eu tinha essa coisa de ser a caçulinha, de ser o xodozinho da casa, tinha um pouco isso. E uma outra coisa também que eu me lembro bastante, a gente na Ilha tinha essa coisa de Iate Clube, na Ilha frequentava, uma coisa meio provinciana. Tinha bailes, Rainha da Primavera. E eu tinha um padrinho e no Iate Clube tinha a menina que era a Rainha da Primavera. Mas na verdade, pra você ser Rainha da Primavera você tinha que vender um monte de convites. E meu padrinho chegou lá em casa, comprou os convites todos e eu fui a Rainha da Primavera. E aí aquela coisa, tinha que fazer um vestido, tarará, e eu me lembro o drama que foi porque minha mãe tem o cabelo liso e eu na mistura com meu pai que também tem uma coisa de afrodescendente, por isso meu cabelo é bem cacheado, minha mãe não sabia o que fazer com meu cabelo, se ia com cabelo enrolado, de trancinha, não sei o quê. Ela falava: “Como eu vou arrumar essa menina pra ser Rainha da Primavera?”. Aí ela tentou o dia inteiro enrolar o meu cabelo e eu sei que no final das contas deu um cinco minutos nela, ela tinha uma peruca meio que do tipo Jovem Guarda, lisa, comprida, castanho claro. Ela me enfiou uma peruca e lá fui eu, uma menina de cinco anos de idade com uma peruca até aqui (risos), com um vestido, um cetro. E eu fiquei assim, hoje em dia eu olho aquela foto, eu falo: “Mãe, como você teve coragem de botar essa peruca em mim? Era tão bonitinho o meu cabelo” (risos). Tinha essa coisa de ter que usar sempre bobes, fazer touca... Aí ia na natação, tinha essa coisa também de ter um cabelo mais domado. Que por isso hoje em dia eu não ligo muito e me gosto. Mas eu me lembro dessas coisas, da escola, dos amiguinhos, do clube. Era bem gostoso. Minha mãe estava sempre em casa, a gente tinha um pastor alemão, brincava com o cachorro. [De chegar] em casa e minha mãe sempre estar,. “Mamãe tá aí? O que tem pra almoçar”. Era bom.
P/2 – E Andreza, você comentou que seu pai era bem mais velho.
R – Sim.
P/2 – Como era essa relação com uma mãe mais jovem e um pai mais velho, mais avô do que pai?
R – Eu detestava que, quando eles chegavam em algum lugar pra me buscar as pessoas falavam: “Seu avô chegou” “Meu avô está no céu, esse é meu pai”. Eu não gostava que eles chamassem, porque ele já tinha o cabelo mais grisalho. Mas meu pai era um cara muito tranquilo, eu gostei muito de ter tido um pai mais velho, porque ele era muito, sei lá, ele não pedia nada da gente. Mamãe era aquela coisa de disciplina, isso, aquilo, meu pai não pedia nada da gente, ele só queria ver a gente e se divertir com a gente. Ele comprava disco do Roberto Carlos, Jovem Guarda, queria que a gente aprendesse a cantar e brincar, levava pro cinema de dez da manhã na Odeon aqui na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Tinha uma sessão só de desenho às dez da manhã, quando ele estava em casa, que ele viajava muito, e mamãe gostava de dormir, ele acordava a gente: “Vamos pro cinema”. Dez da manhã a gente ficava vendo desenho da Disney, ou às vezes filme do John Wayne. Papai era muito lúdico, eu gostei muito desse pai divertido. Agora, hoje eu fico imaginando como deve ter sido pra eles enquanto casal, porque minha mãe também ouvia isso: “Esse é seu pai?” e ela: “Não, é meu marido”. Então era complicado. E meu pai frequentava muito a família da minha mãe, meus tios, todo mundo gostava muito do meu pai. Era um cara muito generoso, muito bacana. Eu entendo o encantamento que ela deve ter tido, até porque uma moça jovem morando no Rio de Janeiro distante da família, chega um cara assim e vai cuidar de você. É meio irresistível (risos), meu pai era um cara irresistível (risos).
P/1 – E como é que foi o colégio? Depois dessa experiência de pré-primário com uma casa, tal, como é que foi voltar pro Leblon e começar a ir pra escola?
R – Olha, primeira coisa que eu me lembro é que quando eu voltei pro Leblon a gente foi morar num lugar que hoje chama-se Selva de Pedra, porque é ali bem na Afrânio de Melo Franco, perto do Clube do Flamengo, tem um complexo de apartamentos ali. E ali foi uma coisa que foi o boom da coisa imobiliária no Rio, eu inclusive tenho uma memória que ali era uma favela, chamava Favela do Pinto. Quando a gente morava na Afrânio mesmo, mais pra frente, na cobertura, a gente tinha passadeira, e a passadeira, tia Estér, morava na Favela do Pinto. E um dia ela chegou lá em casa no meio da noite, porque tacaram fogo na Favela do Pinto, foi assim que eles tiraram as pessoas de lá pra depois fazerem os prédios. E depois a gente veio morar no prédio ali. E quando eu entrei eu falei assim: “Mamãe, aqui é a casa das minhas bonecas e a gente vai morar onde?”, porque era um apartamento, eu não estava mais acostumada a morar num apartamento. Hoje, comparado com o que eu moro é super espaçoso (risos), mas na época, comparado com a minha casa. Eu falei: “Nossa”. Então foi isso, de morar. Sabe a coisa: “Não chega perto da janela”, no sétimo andar. Foi outra coisa, parece que você foi jogada meio na cidade, era morar no sétimo andar, não pisar pesado que embaixo mora gente, não chega perto da janela. Essas frases eu já passei a ouvir, que eu nunca tinha ouvido na minha vida, né? E a coisa do cuidado também, passou a ter isso, porque como tinha muitos prédios construindo ao mesmo tempo ainda tinha meio na pracinha, que hoje é uma praça, era um canteiro de obras. A gente não descia no play pra brincar, minha mãe era assim, não gostava muito do que ela chamava de ‘misturar’ os filhos dela. A gente brincava em casa, na casa de amigos, mas descer pro play, ficar lá embaixo. Muito mineiro. E eu passei a me dar conta disso também, de quanto essa mineirice dentro da minha casa era diferente da carioquice do lado de fora da minha casa, que eu estava a duas quadras da praia. E era totalmente diferente, você passa a frequentar casa de amigo, as pessoas não necessariamente têm bolo à tarde, que sai pão de queijo (risos). Eu tenho uma grande amiga que é engraçado, Adriana, que é madrinha da minha filha até. Que quando eu comecei a ir na casa da Adriana os pais dela eram de Caratinga. E eu falei assim: “Nossa Adriana, na sua casa tem bolo, na sua casa tem abóbora, na sua casa tem couve”, as coisas que eu comia na minha casa. Quiabo. Na casa de carioca não tem essas coisas. E a gente começou a se dar conta que a gente tinha uma outra maneira de viver, que nossas mães eram diferentes. Esse primeiro contraste de ser filha de mineiro, mas ser carioca e morar no Rio de Janeiro, foi aí que eu comecei a me dar conta que isso era diferente.
P/1 – E conta da escola. Como era essa escola, onde você foi estudar?
R – Olha, primeiro foi uma escola pertinho da minha casa onde eu fiquei um ano, que hoje nem existe mais. Mas eu me lembro que me marcou muito naquele ano que teve um rapto de uma criança que ficou famoso no Brasil, o tal do Carlinhos que foi raptado. E eu me lembro que a escola teve uma coisa que você não podia ficar lá fora esperando sua mãe chegar, você tinha que ficar na sua cadeira, na sua sala de aula, só quando sua mãe chegasse eles vinham na sua sala te buscar, te entregar pra sua mãe. A minha mãe voltava com a gente pra casa correndo porque tinham raptado uma criança. Foi uma coisa que marcou muito aquela época. Depois eu fiz prova pra um outro colégio, pra cursar da terceira série em diante, que era o Colégio Aplicação da PUC [Pontifícia Universidade Católica], que é o Teresiano. E era uma escola só de meninas. Meu irmão foi para uma escola só de meninos, que é o Santo Agostinho, e eu fui para uma escola só de meninas, que era o Teresiano. E eu amei, amei o Teresiano. Ainda amo o colégio, é onde tenho as melhores recordações de escola. Porque é ali na Gávea, naquele bosque, passa um riacho, eu reencontrei um espaço que eu tinha perdido na minha casa. A gente podia subir em árvore no colégio, era um colégio religioso, mas não são freiras, são irmãs leigas. E era um colégio muito livre, encorajava muito a criatividade, a gente tinha aula de expressão corporal, a gente tinha aula de francês. E tinha uma coisa de ser só menina que, não sei, sem nenhum comentário da separação, mas eu gostava. Eu gostava porque a presidente da turma era sempre uma menina, essas lideranças, tudo tinha que ser uma de nós, não tinha outra pessoa pra ser. E eu gosto muito, ainda tenho amigas dessa época. Eu lembro que eu comecei essa coisa de língua estrangeira. E hoje, há pouco tempo eu comecei a me dar conta, de que era considerada uma escola um pouco de vanguarda, mas um pouco de elite, de boas famílias. E a gente não se dava conta disso porque a escola não tratava dessa forma. A chamada era o seu nome inteiro, era Ann’ Andreza de Carvalho Martins, Cristiane Magalhães Pinto, tudo assim. Mas nós éramos tratadas como um corpo, as pessoas. Sei lá, algo mais ocorria naquela escola porque a gente ainda se reúne, a gente se encontra, tem um carinho pela escola enorme. Foi um lugar muito importante na minha formação. Tinha uma coisa que começou já na minha vida que foi a música, que tinha um festival de Maria, a gente compunha música, a gente fazia teatro, uma escola muito legal. E eu fiquei lá até o fim do que seria hoje o nono ano, antes de ir pro Ensino Médio. E no Ensino Médio eu vim estudar de novo no Leblon, no Santo Agostinho, que era o colégio onde meu irmão já tinha estudado a vida toda porque no Ensino Médio o colégio era misto. E aí você podia fazer prova e ingressar no Santo Agostinho. E foi uma escola que me formou bem, mas não tinha essa relação afetiva que eu tenho com o Teresiano, que era uma escola muito criativa, muito construtivista, numa época que isso ainda não era...
P/2 – Essa escola existe ainda?
R – Sim, é o colégio de educação da PUC.
P/1 – E nessa sua meninice o que você queria ser quando crescer? Você já tinha alguma ideia, algum sonho?
R – Eu queria ser atriz, eu queria ser chacrete quando eu era pequena, adorava ficar imitando chacretes. Eu queria depois ser jornalista. Eu quis ser um monte de coisa ao longo da minha vida, muitas coisas diferentes. Quando eu fui para o Ensino Médio tive que começar a pensar e decidir, aí foi ficando mais confuso. Mas o que tinha lá em casa é que você tem que estudar. Meu pai tinha até a quarta série primária, a minha mãe tinha se formado no Ensino Médio, eu sou a primeira geração de universitários na minha família, meu irmão e eu, isso era muito forte. Meu pai falava: “Marido não é emprego, você tem que estudar, tem que se formar, quero ver meus filhos doutores”, ele tinha essa coisa bem assim, era prioridade. Eu me lembro que ele tinha preocupação de ser um pai velho e se ele viesse a faltar, o que ia acontecer? Eu lembro, o papai tinha um seguro, que era um seguro escola, que caso a gente não tivesse a escola estava paga até o fim da escola. Então tinha essa coisa, essa preocupação com educação, a gente tinha um compromisso muito grande com isso. Que tinha que estudar. Mas não tinha uma pressão do que você precisa escolher, mas tinha que estudar.
P/2 – E Andreza, nesse colégio que você fez até o nono ano, que matéria ou que professor que te marcou?
R – Eulália, professora de História. Egito antigo. Aquilo foi uma das coisas que eu mais me lembro. Ela e a Abigail, professora de Francês. A Eulália tinha uma coisa que eu admirava muito porque ela conhecia muito de História, detalhes. E ela tinha essa coisa de tornar a história uma história social, viva, de fazer a gente imaginar como é que as pessoas viviam e não só os fatos e as datas e quem era o faraó. Mas era assim: “As cidades eram assim, então as pessoas dormiam nesses lugares, o que elas comiam”. Era muito legal. E eu me lembro que eu fiquei fascinada, eu cheguei em casa: “Mamãe, você lembra quando construíram as pirâmides?” (risos) Ela falou: “Não”. Aquilo era tão presente que parecia que era uma coisa que estava acontecendo em tempo real em algum outro lugar, eu adorei. Ela era uma excelente professora, gostei muito. E a professora de Francês é uma coisa que me trouxe o amor ao trabalho. Ela era uma pessoa de uma classe alta, morava ali no Jardim Pernambuco no Leblon e dava aula de Francês numa escola porque ela gostava de francês e gostava do convívio das meninas. Mas de vez em quando ela convidava a gente, que era tipo na aula prática, a tomar chá na casa dela. E a gente podia sentar no Rolls-Royce que ela tinha no quintal. Era assim. Mas ela dava aula de francês. Mulher que trabalha pelo prazer de trabalhar, fazendo uma coisa que ela gosta. E isso me marcou muito. E ela fazia peça de teatros com a gente, me chamava de Cacilda Becker. “Você vai ser uma Cacilda Becker”, eu nem sabia quem era (risos). E ela viajava muito, trazia coisas pra mostrar pra gente, era uma mulher encantadora. Essas pessoas me marcaram muito.
P/1 – E como foi ir chegando no final do colegial, tendo mudado de escola, estar na classe com meninos.
R – A gente ficava na expectativa de que ia ser uma coisa de outro mundo poder estudar com meninos. E realmente assim (risos) não achei tudo isso que tinham. Não foi tudo isso, era muito mais divertido quando éramos nós, as meninas, no Teresiano. Mas eu gostei do Ensino Médio, sei lá, porque eu andava pra escola, porque no recreio ia pra praia, começar a jogar vôlei na praia. E tem essa coisa bem carioca da proximidade. Na hora do recreio a escola abria e a gente ia pra praia, comer um biscoito Globo, tomar mate e voltar pra escola, terminar. Já começa essa coisa mais... Lá já era um colégio agostiniano, diferente a visão, tinha um foco muito grande na época no vestibular. Mas o que aconteceu de legal pra mim no Ensino Médio foi que eu comecei a fazer Tablado, que é a escola de teatro da Maria Clara Machado, ali no Jardim Botânico. Na verdade o que eu mais gostei daqueles anos da minha vida foi o Tablado, não era tanto a escola ou o ambiente escolar. Os meus amigos na época era mais o pessoal do teatro. Na escola tinha o pessoal do festival de música, do Grupo Semente. Tem algumas pessoas que eu fiz vínculos fortes ali, mas foi mais essa coisa de diversificar, da arte, etc. E foi ali que eu comecei a pensar o que eu ia fazer, Jornalismo, Comunicação. Mas não sei, não é uma época da minha vida... Teve uma reunião no ano passado de 30 anos de formatura. As pessoas lembravam tanta coisa, eu falava: “Gente, eu não lembro nada disso” (risos). Eu não estava muito conectada com o que estava se passando lá. Mas, enfim, era uma coisa que tinha que cumprir e foi um pouco isso. Eu tenho alguns bons amigos, lembro de algumas coisas. Lembro muito, uma coisa que me marcou ali, que foi bem naquela coisa das Diretas Já, de ir com a escola pro centro da cidade, essas coisas eu gostava. Do grêmio, da organização estudantil, de organizar os eventos, isso eu gostava bastante. E foi nessa época que eu comecei a pensar em fazer intercâmbio e comecei a perturbar meu pai e minha mãe que eu queria fazer intercâmbio, começou a surgir essa ideia de intercâmbio, isso foi em 86 [1986], por aí, 84 [1984].
P/1 – Antes do intercâmbio, fala pra gente do teatro, se teve alguma peça, uma apresentação que ficou marcada, ou a emoção da primeira vez de subir no palco. Conta um pouquinho dessa experiência ou dessa fase.
R – Eu gostei muito. Acho que pegou um pouco daquela coisa lá da professora de Francês que a gente fazia as peças, festival. Comecei a fazer aula de teatro ali no Tablado e era uma época que tinha muito grupo de teatro. E a gente montou alguns musicais. A gente montou musicais do Chico Buarque, a gente montou a Ópera do Malandro, um pedaço. A gente montou também Nelson Rodrigues, Beijo no Asfalto. Eram umas peças fortes pra uma menina bem filha de mineiro. E eu me lembro a minha preocupação de meus pais irem ver as peças. “Ai papai”. A gente montou Pixote. E eu fazia uma prostituta. E eu fiquei no dia da estreia, meu pai, minha mãe, meu irmão, vinham ver. “Ah, o teatro da Andreza de fim de ano”. A gente foi, eu falei: “Meu Deus, o que eu vou fazer”. Eu fiz, quando acabou, eu cheguei com aquela cara: “E aí, papai, gostou?”. Ele falou: “Minha filha, mas não tinha uma outra coisa?” (risos) Eu falei: “Você viu a peça, não tinha outra”. Mas eu era a chefe das prostitutas (risos), porque tinha uma que era a dona. Eu falei: “Papai, só tinha prostituta na peça, mas eu fui a chefe”. E ele: “É, bem pensado. Realmente” (risos). Já ficou mais tranquilo com o fato de que pelo menos era um escalão um pouquinho maior (risos). Mas ele ficou um pouco perturbado com essa coisa: “Minha filha, mas só essas peças, só essas coisas”. Acho que ele queria me ver fazendo uma coisa mais A Moreninha, mas não era essa a pegada do Tablado, era outra coisa. E isso foi muito legal, foi muito legal pela música, que eu comecei a ler muito, essa foi a parte mais interessante da minha adolescência. Primeiro namorado no teatro, aquelas coisas assim. Mas era um conflito, um pouco, com essa vida do lar, que era muito TFPzinho [Tradição, Família e Propriedadade], bem tradicional. Era tradicional mas não era careta, meus pais falavam de política em casa. Meu pai tinha lidado sempre com política também, que essa coisa do mineiro é meio entranhada. Meus primos são todos prefeitos de uma cidadezinha aqui, vereador de outra cidadezinha ali. Mais essa coisa do bons modos e de ser uma moça fina, isso era importante.
P/2 – E me diz uma coisa, Andreza, você estando num colégio, se preparando para vestibular, fazendo teatro. O que você fazia pra se divertir fora o teatro, mas de alguma forma você tinha uma obrigação ali porque era uma escola. O que você fazia e com quem você saía?
R – Eu saía com meus amigos de teatro, a gente ia assistir muito teatro, assistir muita peça, eu gostava disso. A gente ia ver show. Era uma época que a gente ia pro Morro da Urca ver rock brasileiro começando, a gente ia pro Parque Lage ver concerto de música. Era uma época muito gostosa no Brasil. Sei lá, o Brasil pra mim era o Rio de Janeiro. Era uma época muito bacana, efervescente pra juventude, eu acho. Era a época de Baixo Gávea, era a época de Baixo Leblon e a gente ia. Eu tinha hora pra voltar, eu era das que saía mais cedo, mas eu ia com meus amigos. Com o pessoal da escola, que não era o mesmo pessoal do teatro, tinha algumas pessoas que eram dos dois mundos, mas a maioria não. Às vezes eu saía com o pessoal da escola, era geralmente casa de alguém que a gente fazia Queijos e Vinhos (risos), a gente levava aquele Liebfraumilch, que era o único vinho que tinha, uma garrafa azul. E a gente ficava conversando. Mas os meus amigos gostavam muito de música, tinha uma que tocava muito piano. A gente tinha um Song book do Paul Simon e do Garfunkel, a gente sabia aquelas músicas todas de cor, a gente cantava aquilo a noite inteira. Era um grupo bem saudável, a gente ia pro Parque Lage tomar banho de cachoeira, era uma vida de adolescente de zona sul do Rio de Janeiro, era bem isso. E de vez em quando a gente vinha pra Caçapava, Taubaté, pra Minas. Foi bem tranquilo aquela época, mas a gente estava todo mundo engajado nessas coisas, o teatro foi bem importante pra mim. Eu cheguei a pensar em continuar, depois que eu saí do Tablado a gente tinha um grupo de teatro em separado. Mas tinha uma coisa do teatro que eu acho que ia um pouco contra aquela coisa que eu sempre ouvi que você tem que estudar, você tem que ter uma profissão. E foi o suficiente pra mim, eu não tenho nenhum arrependimento, nem acho que o teatro brasileiro perdeu nada, mas foi importante, foi bom que aconteceu. Conheci muita gente, fiquei muito independente também, acho que foi bacana. De certa forma acho que me preparou bem para o meu intercâmbio. Porque eu já tinha assim, estava acostumada a ter um protagonismo, de ter uma voz, de ter uma independência. Porque quando eu fui fazer intercâmbio a gente tinha que fazer muita palestra, então as pessoas falavam: “Você fala bem em público, como você fala desenvolta, não é tímida”, isso pra mim foi bom, foi uma boa preparação para outras coisas da vida.
P/1 – Conta como foi esse processo de ficar sabendo que existiam programas de intercâmbio, ir atrás de um, chegar num acordo com seus pais.
R – Eu achei que fosse ser impossível porque eu só podia dormir na casa de duas amigas e não podia viajar com os amigos. Isso eu perdia muito na minha adolescência. “Ah, vamos pra Búzios”, eu não podia viajar com os amigos. Mas eu tinha duas amigas só que eu podia passar férias ou ir pra casa da família dela. Eu achei que eles nunca iam deixar. Mas aí, e quando fui então eu fui pelo Rotary, meu pai falou assim: “Deixa eu ver alguma coisa porque eu acho que eu conheço alguém que mexe com isso”. E tinha um conhecido do papai do Rotary de Belo Horizonte, seu Manuel. E ele falou: “Ah, eu falei com o seu Manuel, ele falou que tem uma prova lá, você quer vir comigo?”, porque papai às vezes ia comprar pedra, vender e às vezes eu ia com ele viajar, a gente vinha pra São Paulo, ficava num hotel aqui. E eu fui pra Minas com ele, pra Belo Horizonte, pra fazer esse processo. E eu falei: “Ah, como é uma coisa que tem que fazer, tem que passar, vamos ver como é”. Eu fiz o processo e passei, mas eu não achei que meus pais, principalmente minha mãe, fossem deixar eu ir. E não sei também se foi meu pai que convenceu minha mãe, eu acho que foi meu pai que convenceu minha mãe porque eu fui bem na questão, tinha que fazer um discurso, uma coisa assim e por essa minha experiência de falar em público eu acho que eu fui bem. E o seu Manuel falou com o meu pai: “Nossa, mas a sua menina é muito...”. Meu pai ficou foi orgulhoso e aí ele quis: “Não, ela ganhou o negócio ela vai”, eu acho que ele teve alguma coisa com a mamãe também de que ele envolveu pessoas conhecidas dele, eu fui bem, ele ficou orgulhoso e eu acho que foi um pouco assim que eu consegui. Meu irmão tinha ido um ano e meio atrás, mas lá em casa era muito diferente a criação de menino e menina. Meu irmão podia viajar pra qualquer lugar com os amigos. Eu me lembro, ia sair fim de semana. Meu pai sempre dava dinheiro extra pro meu irmão, depois sai com a menina que ele tinha que pagar, não sei o quê, não sei o quê. Pra mim ele falava: “Minha filha, não aceite nada de ninguém, você tem pai”. Eu falei: “Pai”. Ele: “Olha só. Se o menino está te pedindo pra comer um hambúrguer e você quer comer um camarão, você vai comer hambúrguer por causa disso? Não! Você leva o dinheiro do seu pai e você come o que você quiser, você vai embora a hora que você quiser”. Ele nunca deixou ninguém pagar nada pra mim, era uma coisa assim. E meu irmão já era o contrário, era bem assim em casa. Então meu irmão tinha ido, mas eu nunca imaginei que eles fossem deixar eu ir. Mas deixaram. Eu terminei o Ensino Médio e viajei em janeiro.
P/2 – E seu irmão tinha ido pra onde?
R – Pros Estados Unidos. Tinha ido pra Iowa. Mas ele ficou só seis meses. Meu irmão era muito mais caseiro que eu. E muito assim, os amigos dele. Porque ele estudou na mesma escola desde o primeiro ano até o fim do Ensino Médio, ele sentia muita falta daquela coisa. Ele ficou seis meses. Ele foi junto com o amigo dele, o melhor amigo dele. A gente chamava ele de Júnior, porque é Tertúlio Ferreira Martins Júnior. O Júnior e o Teo, que eram grandes amigos, foram na mesma época de intercâmbio para os Estados Unidos e foram seis meses. E se visitaram na época e tudo. Mas o Júnior, eu me lembro assim, quando ele voltou, naquela época era tudo diferente, você tinha uma restrição de dinheiro que você podia mandar, de coisa que podia trazer. Ele trouxe tanto disco que eu sei o que meu pai pagou de multa na alfândega era praticamente o preço da passagem aérea. Juninho era bem assim. Comprou um monte de blusa de rock, foi ao concerto do Bruce Springsteen, trouxe um monte. Primeira vez que eu vi um álbum duplo, porque disco alguém tinha que trazer de fora. O Júnior trouxe muita coisa de música, trouxe baqueta de bateria, comprou um três em um, era um som que você tinha toca fita, disco, tudo num só. Meu irmão comprou um monte de coisa, trouxe. Ele foi mais assim. Mas ele ficou em Iowa, numa cidade pequenininha. Ele falava: “Mãe, aqui só tem, sabe quando você vai no mar e vê assim? Aqui é o milho, mãe. É só milho, milho, milho”. A cidade que ele foi tinha 1100 e poucos habitantes. Quando ele chegou até trocaram na plaquinha mais um. Mas era uma família super fofa que a gente conhecia por carta, tinha cinco filhos, uma família bem católica que adorava ele. Até inclusive quando ele faleceu eles ficaram super... Minha mãe foi lá visitar essa outra mãe, ela precisou fazer um luto com a outra mãe dele. Elas fizeram o luto dele juntas. Mas pra ele foi uma coisa legal, ele voltou e caiu na vida dele de Rio de Janeiro de sempre, de jogar futebol.
P/2 – E ele foi por qual associação?
R – Pelo YFU [Youth for Understanding], que é uma outra organização que ainda existe, que também tem essa mesma característica de ser educativos, ser famílias voluntárias. Ele foi seis meses pelo YFU. Eu fiquei aqui me descabelando, falei: “Gente”. Que aí não tinha outro irmão pra dividir a atenção era só eu, eu fiquei sufocada (risos) e falei: “Agora eu preciso ir pra algum lugar quando ele voltar porque agora ele tem que passar o que eu passei”. Se bem que ele nunca passou o que eu passei. E quando ele voltou eu comecei a fazer o meu processo. Só que na época eu fiz vestibular, entrei pra faculdade, passei pra Jornalismo na PUC, tranquei e fui fazer meu intercâmbio. E ele foi fazer... eu me lembro que ele passou pra Economia na PUC, Direito na UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], papai ficou super orgulhoso. Tinha uma foto que papai andava com ela na carteira muitos anos porque na época era o Cesgranrio, uma prova só pra todas as públicas do Rio. E era no Macaranã que saía o resultado. E na capa do jornal daquele dia tinha os alunos correndo a rampa do Maracanã pra ver as listas de quem tinha passado. Meu irmão estava nos primeiros da frente, tinha saído no jornal isso. Nossa, era o orgulho dele a gente ter entrado na universidade, essa coisa toda, ele ficava muito orgulhoso.
P/1 – E conta pra gente como é que foi quando chegou a hora de você fazer a sua mala pra ir.
R – A mala não! O enxoval da viagem porque aí a minha mãe vai fazer roupas pra mim, que eu tinha que me preparar. E aí eu fui pra Califórnia. A família que chegou a carta, eu tenho guardada a cartinha que chegou a foto deles. Primeira coisa que foi muito interessante é que eles eram uma família mórmon. Eu não tinha nem ideia do que era, a não ser católico. Até tinha do que era ser espírita, mas mórmon não era uma religião muito difundida no Brasil. Mas o pai hospedeiro tinha sido missionário no Brasil e daí o interesse dele em receber alguém do Brasil. E ele era rotariano também, na Califórnia. E no modelo do Rotary você troca de família três vezes, você vai pra primeira família, fica um período, depois na segunda e depois na terceira, sempre na mesma escola, mas três famílias. E eu sou a caçula. E eu me lembro que eles tinham três crianças pequenas. Pra mim também foi assim: “Gente, uma religião diferente, três crianças pequenas”. E eu nunca convivi com criança”. E eu fiquei decepcionada que foi a Califórnia porque eu queria que fosse um lugar muito diferente do Rio de Janeiro e eu achei que a Califórnia fosse ser igual. Eu queria que fosse Colorado, Michigan, então eu fiquei meio assim, Califórnia, Rio de Janeiro é a mesma coisa. Ledo engano. E eu fui em janeiro. Eu me lembro que a gente começou fazendo enxoval. Comprei botas. Mamãe mandou fazer pra mim, para eu viajar, eu viajei com um tailleur de couro branco, era uma saia reta de couro branco com blazer de couro branco e uma bota que era uma salto desse tamanho, um cabelo. E aí você tinha que ir a todos os médicos, fui ao dentista, oculista, fazer um check-up geral pra embarcar (risos). Quando a gente foi no dentista ele olhou e falou assim: “Ih, volta aqui semana que vem pra gente começar a tirar seu siso”. Eu falei: “Não, eu estou viajando daqui a três dias”. Ele falou: “Ah?! Você está com os quatro sisos nascendo, você não vai poder viajar desse jeito”. E naquele dia ele arrancou meus quatro sisos. E era o dia que a gente tinha marcado uma despedida de amigos lá em casa. Eu cheguei em casa com a boca desse tamanho (risos), não podia comer nada, mamãe fez uma mousse de aipo para mim para eu comer alguma coisa (risos). Então eu viajei assim. Mas muito no supetão, eu não tinha ideia do que ia ser. Tinha essas criancinhas lourinhas, branquinhas, essa Califórnia. E era tudo por carta, você não tinha mesmo muita noção das coisas. E eu me lembro que a minha grande preocupação, porque aí papai já tinha 78 anos, estava trabalhando, tudo, mas era minha preocupação, eu tinha esse pacto com meu irmão: “Olha, qualquer coisa com papai você me avisa”, que sempre foi minha preocupação de que acontecesse alguma coisa com papai e eu estivesse longe. E aí fomos. E a passagem era da Pan Am e era uma passagem meio bolsa que você ganhava, a gente ia pro aeroporto e não sabia se ia embarcar naquele dia mesmo ou não, dependia. E foi a primeira vez sozinha. Eu tinha ido à Disney com 15 anos, era aquela: “É festa ou viagem?”. E na época eu fui pra Disney. Então já tinha tido uma viagem num grupo mas nunca tinha ido sozinha a lugar nenhum, então estava tudo... Um jogo de malas, aquela coisa assim, parecia que eu estava embarcando no Expresso da Meia-Noite (risos).
P/1 – E como é que foi chegar lá e reconhecer essa família?
R – Olha, eles foram pessoas muito, muito queridas. Eu cheguei no aeroporto de Los Angeles e eu me lembro que também nessa época não tinha regulamentação de poluição, era aquele fog, aquela coisa cinza, era janeiro. Eu falei: “Gente, ninguém vê o céu nesse lugar?”, e eu achei que fosse parecido até em termos de clima porque tem essa coisa de Califórnia. Mas não, era bem frio. Eu cheguei, eles estavam me esperando, o casal, Robert and Ladonna e ele me deu um abração. Ele era um homem enorme de dois metros e cinco de altura, grandão. Me deu um abração, falou português comigo, eu respirei um alívio. Ele era muito querido, ele tinha morado um ano em Fortaleza e um ano no Rio, ele soube me fazer sentir bem. E ela era a criatura que mais ri na vida, era uma risada só, uma risada muito feliz, muito bubbly. E aí me pegaram e já tinham planejado que iriam parar numa churrascaria que tinha lá e eu falei: “Não vou conseguir comer um pedacinho de carne”. Tomei uma sopa. E aí foi mais ou menos duas horas e meia do aeroporto de Los Angeles até Porterville, que era a cidade. Era uma cidade que era assim, na verdade bem central na Califórnia, longe do mar. O que você tinha ali muito era plantação de laranja, uma imigração mexicana grande, pequenas cidades industriais e Bakersfield, era uma parte mais árida. E foi muito legal, mas eu cheguei na casa deles e eu achei assim: “Nossa, aqui tem mesmo aquela caixinha de correio”, aquelas coisas que você constata que é de verdade, que não era só filme, no Grease, que você via. E as crianças assim, todas olhando pra mim com aquele olhinho, falando, eu não entendi nada. E já era mais tarde, eu fui me deitar e era janeiro. E pra mim estava muito frio. Eu sei que eu abri a minha mala e eu botei tudo o que eu tinha, eu botei meia, cachecol, botei toda a roupa que eu tinha pra dormir porque eu não conseguia me sentir quente, mesmo tendo calefação na casa. E eu deitei e falei assim: “Amanhã de manhã eu vou ligar pra mamãe e papai e falar assim: ‘Olha, eles são muito simpáticos, eu gosto muito deles, mas não tem como ficar aqui’”. Pra mim, as primeiras três ou quatro noites eu fui dormir dizendo amanhã eu vou embora. No primeiro dia que eu acordei, eu acordei com aqueles pares de olho em cima de mim: “Hey!”, as crianças dentro do meu quarto, já acordei com aquelas crianças em cima de mim, me levando pra ver desenho e tomar cereal, coisa e tal e o dia passa. Eu acho que foi muito legal ter tido as crianças porque elas tinham a maior paciência comigo, a gente assistiu muito desenho, muito Vila Sésamo em inglês. E eu descobri que eu adorava criança, que eu não tinha ideia que eu gostava de criança. E era uma família muito legal. E no primeiro dia, no domingo, do jeito que a igreja mórmon funciona você passa uma boa parte do domingo na igreja. Você vai, tem um encontro geral, depois tem encontro só pra mulheres, só pra homens, só pra crianças, passa a parte da manhã toda e você volta praticamente no fim do dia. Ainda mais que ele tinha um cargo de liderança, ela era a regente do coral, todos eles tinham funções. E aí ela falou assim: “Se arruma então pra gente ir”. Eu falei: “O que eu vou vestir?”. Eu botei uma sainha que era até parecida com o uniforme do Teresiano, era uma saia xadrez tipo kilt, vermelhinha, umas franjinhas assim, botei um suéter vermelhinho com uma blusinha branca por baixo. Quando ela me viu assim, ela ficou tão aliviada que eu estava arrumadinha de uma maneira que era apropriada pra ir pra igreja que eu fiquei imaginando o que ela pensou que viria. “Aquela menina do Rio de Janeiro vai chegar aqui de minissaia”. Eu me arrumei e ela se encantou comigo aquele dia. A gente foi pra igreja e eu curti muito passar o dia com eles, conversar com as pessoas, eram uns amores, eu gostava. E tinha uma coisa na família mórmon que era assim, toda segunda-feira era o Monday Family Evening, então na segunda à noite ninguém saía pra lugar nenhum, ninguém ligava, a gente fazia jogos, a gente sentava em volta do piano e cantava. Era uma outra dinâmica familiar, muito diferente da minha. E eu achei aquilo encantador, eu adorava ficar com a minha família, não precisava de mais nada; eu gostava da escola, gostava dos amigos, mas eu ADORAVA as crianças. E ele falava assim: “Você sabe cortar a alface bem fininha?”, acho tipo couve que a gente faz? Ele tinha saudade, falava de comer alface da salada. Aí ele pedia pra fazer a salada cortando bem fininho, assim, ele gostava de eu fazer algumas coisas pra ele. Eu ajudava na cozinha. Porque na casa a gente sempre teve empregada, nunca fui pra cozinha ajudar a fazer nada. Então aprender carne assada, tem aquela panela que cozinha devagar, quando você chegava da igreja no fim do dia a carne estava assada porque você deixou a panela elétrica ali cozinhando o dia inteiro (risos), eu achava aquilo impressionante. E eu ligava pra minha casa geralmente, telefone, quando ligava: “Oi, tudo bem?” “Tudo bem” “A mãe tá aí”, “Beijo, tchau”, era aquela conversa rapidíssima porque era carésimo falar no telefone. E adorei, adorei a família, adorei conviver com as crianças. Comecei a cantar no coral da igreja com eles, eles tinham os primos, tinham os avós, eu gostava demais daquela convivência, porque aqui a gente nunca teve isso, família perto, estar toda hora junto e lá a gente tinha. Eu, por mim, não precisava de mais nada, minha família me bastava, muito bem.
P/1 – E aí você teve que trocar mais duas vezes?
R – Tive que trocar mais duas vezes. E a cada vez você também, acho que é parte do que acontece, você aprende: “O que eu tenho que fazer pra me adaptar”. Uma outra família eu passei só o verão e a terceira família fiquei também o outro semestre. E cada uma era diferente. A outra família era uma família com uma filha só, foi quando eu tive o meu terremoto (risos), passei por um terremoto na Califórnia. Estava na cama, começa a cair tudo, corre no meio da rua. A gente fazia treinamento pra terremoto na escola. E a terceira família também era uma família que tinha crianças, mas era um outro esquema de família que não tinha esse envolvimento com igreja, tinha muito envolvimento com atividades, as crianças faziam esportes, meu pai corria e eu comecei a correr com ele. Depois adotei isso por muito tempo, fazer meia maratona, porque comecei a correr com esse meu pai. Eles tinham motorhome, a gente viajava naquele motorhome. Cada uma me mostrou coisas diferentes. E a escola foi muito legal porque na escola tinha os outros estudantes estrangeiros e tinha o coral da escola também, eu cantava no coral da escola, eles tinham um outro grupo à capela, que eu fui selecionada pra cantar à capela. A gente também tinha atividades, eu tinha amigos, depois comecei a namorar um menino da Finlândia, que era outro intercambista de outras organizações, a gente se encontrava. A mãe desse menino da Finlândia era coordenadora do YFU lá na cidade, a gente fazia coisas juntos. Foi muito bacana os primeiros seis meses. O que acontece é que eu cursei o segundo semestre deles, aí fui pro verão e aí voltei, os amigos todos já tinham se formado, ido embora e eu voltei pra fazer o segundo semestre, meio invertido assim. Mas o primeiro semestre foi mais cheio de novidades. Eu gostei muito do sistema educacional, de poder escolher aulas, de poder fazer coisas diferentes. Eu gostava muito da rigidez dos professores. Tinha uma aula que eu me lembro que chamava de Life Skills, você aprendia a conferir seu talão de cheque, ver se sua conta estava batendo. Porque na realidade deles muitos daqueles meus colegas iam sair de casa no próximo semestre e morar na faculdade. Abrir conta bancária, esse tipo de coisa. Então tipo de coisa assim, balance your check book, está batendo seu saldo, seu orçamento do ano. Eu adorei isso, aqui a gente não tinha essa vivência prática nenhuma aqui. E esse tipo de coisa me encantou. A gente fazia muito serviço comunitário. A minha mãe da última família, Terry, ela trabalhava numa escola que era para alunos que não conseguiam ter êxito na escola regular. E ela trabalhava com Child Development. E eu também não tinha exposição a esse outro aspecto de educação e eu adorei, eu ia muito com ela pra escola. Foi muito rico pra mim, passou voando. Minha mãe foi me visitar, minha mãe foi com uma amiga dela me visitar, o que foi bem gostoso. Eu me lembro também dessas coisas, foi muito engraçado que quando eu estava na primeira família, que foi onde eu passei a Páscoa, ela mandou uma caixa de bombons de licor de cereja. E os mórmons não tomam nada de álcool (risos). E me chega essa caixa de bombons de licor de cereja. E eu falei: “Ai meu Deus”. Porque eu estava falando pra eles: “Olha, vai chegar uma surpresa da Páscoa! Vai chegar uma surpresa da Páscoa!”, e quando chegou eles não podiam partilhar. Tinha essas coisas que aconteciam. Eu falei: “Mamãe, você manda” “Mas é chocolate!” “Mamãe, mas é com álcool, é com licor, eles não vão tomar”. Era muito essas surpresinhas e a coisa de você ir se tornando proficiente na língua, se sentindo cada vez mais à vontade. Foi muito legal.
P/1 – E como você encarou o período de escola? Você já tinha terminado a escola aqui. Como é que foi pra você?
R – Foi muito legal porque eu fazia parte do grêmio lá, que eles chamavam Student Council, que era um tempo de aula. Aqui a gente fazia reunião depois da escola, lá era um tempo todo dia pra você fazer Student Government, então eu gostei. Eu fazia coral. Eu fazia natação porque eu tinha nadado muitos anos no Flamengo, cheguei lá e fui nadar também. Só que a natação lá, você fazia natação, não era federado coisa e tal, lá eles tinham que treinar antes da escola e depois da escola, ou seja, tinha que sair cinco horas da manhã naquele frio e pular na piscina. Durou um mês. Eu falei: “Não, não vou fazer natação aqui, deixa pra lá”. Achavam que por eu ser brasileira sabia jogar vôlei, mas nunca fui boa de vôlei. Eu fazia História Americana, que eu gostava muito. Fazia Literatura Americana, que eu gostava muito. Eu escolhi as coisas que eu tinha interesse, foi bem tranquilo. Eu estive sempre interessada, eu nunca fiquei entediada com a escola. Eu gosto de estudar.
P/1 – E como foi o processo de final do tempo de intercâmbio? Se vai voltar ou não vai, como é que vai ser a faculdade, o que vai acontecer.
R – Nunca teve esse ‘se’, eu sempre soube que eu ia voltar e eu sabia que eu ia voltar já pra universidade. Eu acho que foi mais marcante foi mesmo me despedir das pessoas. A gente não tinha essa perspectiva que a gente tem hoje que é tão fácil manter contato. Eu tinha me apegado muito às crianças e de não ver eles crescerem, eles vão esquecer de mim. Eu tinha essa coisa que eles vão esquecer de mim. Isso foi o mais difícil. E a minha primeira família fez questão de me levar no aeroporto, me levaram de volta no aeroporto, meu pai e minha mãe, me abraçaram. E uma amiga, que foi a Elizabeth, foi uma das melhores amigas, ela foi também comigo até Los Angeles me levar no aeroporto. E essa coisa de: “Bom, agora acabou essa fase da vida e agora começa a minha vida de gente grande”, pra mim era isso. Eu já tinha 18 anos, já sabia que eu estava voltando pra faculdade. Foi assim, como se fosse: “Fechei uma etapa”, etapa da adolescência, mais lúdica assim, eu curti muito.
P/2 – E me diz uma coisa, Andreza, você chegou a viajar pra outros lugares?
R – Viajei, viajei! Porque a minha família mórmon, a minha mãe era de Utah e o meu pai era da Califórnia, mas ele era advogado que trabalhava com imigração, um advogado muito conceituado na nossa cidade e ela tinha irmão que ia se casar em Utah. Nós fomos de carro da Califórnia pra Utah. Nós fomos a Las Vegas. Ele era um cara muito inteligente, mas muito distraído. E eu me lembro que no dia que a gente ia viajar o carro fundiu o motor porque ele tinha passado mais de um ano sem trocar óleo. Ele teve que sair no dia da viagem e comprar um carro novo pra gente poder viajar (risos). E a minha mãe assim (fala calmo): “Robert”. Ela que era a pessoa mais prática da administração da família. E tinha outra coisa, ela era que dirigia. Ele sempre saía de casa dirigindo, meia hora depois ele começava a fazer assim, ela sabia que ele ia ficar com sono. Aí ela trocava de lugar com ele e ele dormia o resto da viagem toda e ela dirigindo. E eu com as crianças. Então a gente passou por Las Vegas, passamos por todo o deserto da Califórnia. E eles gostavam muito de cantar. Eles gostavam de Beach Boys, daquelas coisas, a gente cantava a viagem inteirinha. Fazia segunda voz, as crianças cantavam. E lá com ar condicionado a mil porque era no verão, passando pelo deserto, quando a gente chegou lá no irmão dela ninguém mais conseguia falar uma palavra, estava todo mundo rouco. E a gente foi pro Yosemite Park, de ver os gêisers, a gente foi pro Grand Canyon. Nossa, eu vi muita coisa com eles, foi muito bacana deles me apresentarem também. E depois com a minha família do meio, a mãe dela morava em Pasadena, eles eram médicos e moravam em Lake Tahoe e a gente foi pro Lake Tahoe. Lá até eu me machuquei porque eu mergulhei. Mas muita coisa bonita da Califórnia eu conheci. Na terceira família eles tinham esse motorhome e a gente ia sempre para alguma praia e meu pai, Frank, a gente foi pra São Francisco no ano novo. Nessa época uma das minhas colegas, que já era o meu segundo semestre, estava em Stanford, eu passei por Stanford pra vê-la, comprei um sweatshirt, vi aquele câmpus maravilhoso, fiquei fascinada. E a gente foi pra São Francisco e ele queria descer a rua mais íngreme do mundo naquele motorhome. Pra morrer. E aquelas coisas daqueles filmes que você tem que ficar prendendo tudo porque as canequinhas caem. Mas era tudo arrumadinho, tudo cor de rosa, era muito lindo. Então passeei muito com eles, eles eram muito generosos comigo. E por outro lado hoje, como adulto, eu vejo que eu era uma pessoa fácil também de lidar porque tudo estava bom, curtia tudo, estar com eles pra mim era uma delícia, gostava demais das crianças. Isso foi uma coisa. Porque eu achava que eu nunca ia querer casar e que eu nunca ia querer ter filhos, eu dizia isso: “Não vou casar nunca, não vou ter filhos nunca”. A minha primeira família, e eu já disse isso pra ela, foi ela que me fez pensar que um dia eu ia querer ser mãe. Porque eu adorei essa coisa de descoberta que é as crianças, das palavras, das coisas, daquela vivacidade, daquela alegria, foi onde eu achei: “Um dia eu vou querer isso pra mim”, que eu não tinha essa ideia.
P/1 – E fim desse processo como foi chegar aqui, ou a faculdade?
R – Aí que ia um pouco aquela coisa assim: “Acabou, agora você tem que cair na real”. Mas eu gostei, eu gostei de voltar pra casa. Voltar pra casa você sempre volta diferente, você se coloca diferente em relação aos teus pais, ao teu espaço. A primeira coisa que eu fiz foi arrumar emprego, eu fui arrumar emprego num curso de inglês pra dar aula de inglês, porque eu queria ter meu dinheiro. Então estava na PUC e arrumei esse emprego dando aula ali em Ipanema num curso chamado Feedback. E eu cheguei em casa e falei pro meu pai: “Pai, onde é que tira carteira de trabalho pra arrumar emprego?”, ele: “Quê???”. Não queria. “Você tem pai, você é estudante, você não precisa trabalhar, filha minha só trabalha depois de formada”. Cortou minha onda de trabalhar. Eu falei: “Como é que eu vou fazer pro papai deixar eu trabalhar?” Porque pra mim era um ponto certo que eu tinha que trabalhar. Porque eu já tinha planos de visitar meu namoradinho na Finlândia (risos), eu tinha que comprar passagem de avião (risos). Meus amigos lá todos trabalhavam part time, alguma coisa. Eu falei: “Pai, você fez esse investimento todo, eu passei um ano nos Estados Unidos. Como é que eu vou fazer pra praticar o inglês, pai? Não é que eu vou trabalhar, é uma coisa para eu não esquecer o inglês, pai”. Aí ele começava a pensar: “Bom, vendo por esse lado, talvez” (risos). Deixou eu trabalhar dando aula de inglês porque era como se fosse um prolongamento do meu estudo, para eu manter o meu inglês... E aí assim eu consegui. Eu comecei na PUC e comecei lá no trabalho. Muito entusiasmada com a coisa de trabalhar. Conheci muita gente legal no trabalho, fiz amigos de trabalho. E eu me lembro do meu primeiro cheque que eu recebi, o meu primeiro salário. Eu saí dali de Ipanema, era ali onde era o Bones ali, passei pelo Bar 20, era dia de feira. Eu peguei meu dinheiro e falei assim: “Ah, queria levar coisa pra casa, queria comprar coisas com meu dinheiro”. Eu comprei uva, meu irmão adorava uva: “Uvas pro meu irmão”. Comprei fruta do conde pra minha mãe, que ela adora fruta do conde. Comprei, não sei se foi umas mangas pro papai. Passei na Cantão que era uma loja que tinha e comprei uma calça, uma blusa, um cinto. Cheguei em casa toda contente: “Papai, olha só, ganhei meu primeiro salário, comprei isso”. Ele olhou assim: “Primeira coisa, você não precisa pôr comida em casa que você tem pai” (risos). “Quando você recebeu, minha filha?” “Tanto” “Quanto custou isso? Minha filha, o dinheiro não deu” “Não, papai, eu abri um crediário na Cantão” (risos). Olha, ele me pegou e falou: “Vamos nessa loja”. Me passou pela mão, fomos lá na loja, chegou lá e passou um sabão na gerente. “Como é que ela vai abrir um crediário pra uma menina dessa, tá vendo que é uma criança. Como é que ela vai justificar se hoje eu estou trabalhando e amanhã não estou, dou um calote. Quanto ela está devendo?”. Fez um cheque, pagou minha conta e falou assim: “Você nunca mais vai gastar dinheiro que você não tem pra comprar coisa que você não precisa porque seu armário está cheio de roupa e você tem o que vestir”. E foi a minha lição. Ele e a [professora da aula Life Skills] ajudando no check book balance e meu pai com essa: “Dinheiro que você não tem pra comprar coisa que você não precisa”. Abrir crediário e fazer dívida naquela época, tinha até juros. Não era assim, no cartão. Você fazia lá um talãozinho e tinha que pagar todo mês. Ele ficou possesso comigo. Aí ele começou, toda vez que eu recebia: “Você vai guardar tanto”, e começou a me ensinar a mexer com dinheiro. Mas foi muito legal. E aí eu comecei na PUC, eu gostava bastante. E era coisa de estudar Sociologia. Eu gostei bastante mas eu estava bem inquieta, eu estava inquieta porque não era mais o que eu queria. Eu tinha ficado encantada com esse trabalho da minha mãe Terry na escola de Child Development, pra trabalhar com pessoas com habilidades diferentes. Era quase o que hoje a gente chama de educação especial, mas não tinha esse nome na época. E eu descobri que era isso que eu queria fazer. Eu queria fazer, mas no Brasil não tinha. Eu estava inquieta. Eu estava fazendo a faculdade, eu gostava, eu gostava das pessoas mas não era aquilo mais que eu queria. E eu queria fazer Relações Internacionais, voltei com essa ideia. Só que relações internacionais naquela época só tinha na UNB [Universidade de Brasília] em Brasília e era praticamente uma preparação para o Itamaraty, que também não era o que eu tinha em mente, estudar pra carreira diplomática. Bom, aí eu me lembro que teve um dia que eu fui pro Ibeu [Instituto Brasil Estamos Unidos] porque eu queria fazer uma prova de certificação pra você ter um certificado de inglês, que a prova se não me engano era Michigan, tinha uns certificados. Fui lá fazer as inscrições pra fazer a prova do Michigan e no que eu fui fazer a inscrição tinha lá um aviso: “Último dia pra inscrição no processo de bolsa do Ibeu”. Porque o Ibeu, que é Associação Brasil Estados Unidos tinha uma parceria com um instituto de educação em Nova York que eles faziam seleção pra bolsistas fazer universidade nos Estados Unidos. E eu tinha o dinheiro certinho de pagar o Michigan, que era mais ou menos o dinheiro certinho de pagar a inscrição pra essa bolsa, eu falei assim: “Eu não vou pagar o Michigan, eu vou pagar a inscrição pra essa bolsa”. Paguei, fiquei sem um tostão, voltei a pé pra casa, de Copacabana pro Leblon, e não contei nada lá em casa que eu tinha feito essa inscrição pra essa bolsa. Aí fiz a primeira etapa, passei. Fiz a segunda etapa, passei. Na terceira etapa eu precisava fazer uma prova paga, eu fui pedir dinheiro pro meu pai: “Mas eu não te dei dinheiro pra fazer?”, eu contei pra ele. Aí de novo: “Mas pra que é isso?”, eu falei: “Papai, é para eu fazer universidade nos Estados Unidos” (risos). A minha mãe olhou, ele olhou, mas é aquela coisa: “Ela passou, é estudo, ela vai”. Ele deixou eu ir. Eu ganhei a bolsa pra estudar nos Estados Unidos. Eu tranquei a PUC com um ano e fui pra West Virginia University fazer Child Development, que era uma formação específica. Eu conversei com a minha mãe Terry, falei o que ela tinha feito, ela fez Child Development. Eu fui pra lá fazer faculdade. Eu estava com 20 anos nessa época já, aí eu fui. Eu tinha um namorado na época, que era o Fernando, que era meu colega do trabalho. Ele tinha 30 anos, era mais velho do que eu (risos). Ele era filho de moçambicanos que na época da revolução tinha ido pra Europa, então ele foi criado na Alemanha, só que ele não tinha passaporte, quando ele fez 18 anos ele teve que sair da Alemanha, veio pra cá e dava aula de alemão e de inglês. E era um cara assim, lia Nietzsche, gostava de Frank Zappa, um cara bem, gostava muito dele. E quando eu ganhei a bolsa ele me pediu em casamento (risos). Eu falei: “Olha, te adoro, mas acho que não é a melhor coisa pra gente”. Depois ele casou com uma menina que é super legal. E eu fui pra West Virginia fazer faculdade. Foi em 88 [1988] que eu fui pra começar o curso e foi a mesma coisa, a minha preocupação, nessa época meu pai já estava com 80 anos. Trabalhando, andando na praia todo dia, super ativo, mas ele já estava com 80 anos. E aí eu combinei com meu irmão, falei: “Olha, você não faz segredo de nada, me conta tudo, não quero meias palavras, se papai não estiver bem você me chama que eu venho. Agora, se alguém morrer eu não venho. Eu venho se ficar doente, eu venho se precisar de mim, mas pra enterro eu não venho”. Fizemos esse combinado, eu viajei em junho. Em outubro meu irmão morreu num acidente de carro e eu não vim. E foi justamente assim, nunca pensei que a pessoa bem mais nova, a minha preocupação sempre foi papai, como é que vai ficar papai, e aí ele teve esse acidente. Minha mãe ligou pra faculdade, a minha mãe na verdade estava nos Estados Unidos visitando um primo meu que estava em New Jersey. Ela ligou e falou assim: “Minha filha, eu vou aí na sua faculdade te ver”. Eu falei: “Mas mamãe, eu estou na semana de prova”, eu ia passar Thanksgiving com ela. Ela falou: “Não, mas eu estou morrendo de vontade, teu primo está aqui, a gente vai pegar o carro”. E assim, era uma viagem longa. E eu falei: “Mas mãe, você vem”. Bom, eu tenho que terminar esse trabalho, virei a noite estudando, arrumei meu quarto que ela ia falar que estava bagunçado se essa chegasse e encontrasse meu quarto daquele jeito. Arrumei o quarto, limpei tudo, fiquei estudando e aí telefone tocou três da manhã, era meu primo: “Ai, a gente está perdido aqui na estrada” “Deixa eu falar com a mamãe” “Não, a tia está dormindo”. Quando ele falou, eu falei: “Mamãe, dormindo no carro?”, minha mãe não dorme em viagem de carro. Eu comecei a achar aquilo muito estranho. Liguei pra casa. No que eu liguei pra casa a empregada atendeu. Eu falei: “Queria falar com papai”. Ela falou assim: “Ele está no hospital com teu irmão”. Aí que eu fiquei sabendo que tinha alguma coisa acontecendo. Na verdade a minha mãe não estava no carro, ela tinha pego um avião pra voltar correndo pro Brasil porque ele estava em coma, ela conseguiu uma passagem, que eles têm umas passagens de emergência. Meu primo estava sozinho no carro, viajando dez horas da noite pra vir me contar pessoalmente porque ela não queria que eu ficasse sabendo. Isso é que eu detesto nessas coisas desses meninos, era tão mais fácil ter dito eu já tinha chegado lá, me atrasou. Então meu primo chegou de manhã, me contou o que tinha acontecido, eu entrei no carro com ele, voltamos na mesma hora porque West Virginia eram oito horas no avião no voo internacional. Voltei pra New Jersey, consegui uma passagem pra embarcar naquele dia. Eu ia embarcar à noite. Aí quando foi cinco da manhã o padrinho do meu irmão que era médico, o padrinho Gouveira, ligou lá. Mãe ligou: “Andreza, nosso menino está no céu”. Ele ficou em coma três dias e faleceu. Tinha greve de médicos. A história foi que eles bateram, o Vinícius dirigindo, o Júnior no carro, eles bateram. Levaram pro Miguel Couto, Miguel Couto estava em greve. Deixaram eles lá. Um amigo do meu irmão do Santo Agostinho que fazia Medicina estava lá de residente, passou e reconheceu meu irmão. Ligou para um outro amigo, que ligou pro meu pai, meu pai estava em Teresópolis. Meu pai desceu, pegou Juninho e levou pra Clínica São Vicente. Mas aí também, enfim, ele teve uma fratura cerebral, foi grave. E aí mamãe falou: “Nosso menino está no céu”. E aí o padrinho pegou o telefone e falou: “Andreza, eu vou te pedir uma coisa: não vem. Teus pais estão pele e osso, eles estão há três dias sem dormir no hospital, tua família está toda aqui, já veio todo mundo. A gente precisa fazer esse enterro hoje, você só consegue sair daí à noite, você chegar aqui amanhã. Teus pais não têm condições de esperar, eles precisam descansar. Não vem”. Ai papai falou comigo, falou: “Não vem, você está estudando, agora é isso que você tem que fazer, não vem”. E eu não vim. Voltei atrás pra faculdade, terminar minhas provas naquele semestre. Fechei com 4.0 em todas as minhas matérias porque eu não fazia outra coisa a não ser estudar. E de certa forma aquilo pra mim estava num mundo do irreal porque nada ali te lembra ninguém, então não parece que essas coisas aconteceram de verdade. Em dezembro eu quis vir pra casa passar o Natal e meu pai não deixou, ele mandou minha mãe. E eu só me dei conta que meu irmão tinha morrido quando eu estava no aeroporto esperando minha mãe. Minha mãe é uma mulher muito bonita, ela é alta, mais de um metro e 70. Minha mãe tinha na época 48 anos, a idade que eu tenho hoje. Nossa. Eu tenho hoje 48 anos e uma filha de 21 anos. Quando eu vi a minha mãe, ela devia estar pesando uns 45 quilos, cabelo branco, parecia um fantasma. Quando eu vi a minha mãe eu entendi o que tinha acontecido. E eles só me deixaram vir ao Brasil depois em julho. Meu pai não queria que eu voltasse porque o medo dele é: “Ela vai voltar, ela vai ver a gente sozinho, ela vai querer parar os estudos. Ela não vai deixar a gente aqui sozinho”. Ele por um bom tempo não deixava eu ir em casa porque ele tinha medo que eu não voltasse pra faculdade, que eu provavelmente não teria mesmo. Se eu tivesse ido não teria conseguido voltar, tinha ficado aqui com eles. E foi isso, foi esse meu primeiro ano na faculdade. E pra mim foi, eu conheci muitos estudantes internacionais lá, comecei a fazer Relações Internacionais porque a gente tinha possibilidade de fazer um Double Major, eu comecei a fazer Child Development e International Relations, os professores disseram: “Mas uma coisa tem nada a ver com a outra”. E hoje em dia tem tudo a ver com as coisas que eu faço. Fiz essa graduação em três anos e meio, eu terminei tudo. E foi nessa época que uma pessoa que foi muito bacana comigo foi o meu primeiro marido, que ele era o counselor do andar que eu morava, que tinha feito AFS, a família dele hospedou oito estudantes, ele tinha sido AFS na França. Ele tinha uma coisa com acolher os estrangeiros, dava muita atenção pra gente, quando aconteceu isso com o Júnior ele me deu muita atenção. E a gente acabou namorando e foi meu primeiro marido, pai da minha filha. E foi assim, três anos e meio. Mas eu adorei minha faculdade. Eu vinha ver o papai, eu escrevia pra ele todo domingo. Engraçado que minha mãe se mudou agora, eu estava ajudando na mudança, todas as cartinhas, é muito legal, porque todas as cartinhas que eu escrevi pro meu pai está tudo aí. Era sempre assim, o dia e o tempo que estava fazendo, se estava fazendo sol, se estava fazendo chuva, dia da semana. E eu sempre tinha aquela coisa de que eu tenho que sempre foi meu papel em casa ser a menina alegrinha da casa, Feliz Pra Sempre da casa. Então meu papel era esse, aquelas cartas toda semana eram para alegrar meu pai. E meu pai faleceu em 90, um ano e pouco depois do meu irmão. Ele ficou muito abatido. E quando ele faleceu eu já estava namorando o Justin, eu tinha falado pra ele isso, e ele falava pra mim: “Olha, você tem que seguir tua vida, sem que fazer tuas coisas, marido não é emprego. Estuda” (risos). Essas coisas que ele falava. Ele faleceu eu estava aqui de férias. Ele quando faleceu, quando eu soube o que ele tinha, que eu vim rapidinho porque ele ia fazer uma cirurgia e eu já fiquei preocupada porque ele falou: “Minha filha, eu estou com diverticulite, Tancredo morreu disso”. Pra ele já foi assim. A única vez que eu vi meu pai chorar foi quando morreu Tancredo. Meu pai tomou meia garrafa de whisky e chorou igual criança em frente da televisão, que ele tinha falecido. Nunca vi meu pai bebendo, nem meu pai chorar, nesse dia foi as duas coisas. Até o padrinho do meu irmão, que era gastroenterologista, falou com ele: “Não, tem que operar”, ele já colocou aquilo ali, que ele ia morrer igual Tancredo. E foi. Papai faleceu quando eu estava aqui de férias em julho de 90 [1990]. Juninho tinha morrido em outubro de 88 [1988], papai morreu em julho de 90. Eu voltei pra faculdade, seis meses depois eu me casei. E me formei seis meses depois. Eu acabei me casando antes de me formar. O pai da Marina foi pra Guatemala trabalhar no Peace Corps, eu fui pra lá encontrar com ele, voltamos. Eu liguei pra minha mãe e falei: “Mamãe, você pode estar daqui um mês, que eu vou casar”. Aí ela foi.
P/1 – E como foi esse processo de fim da faculdade, casamento, onde que você foi morar, quais foram os primeiros passos de vida após a faculdade?
R – Olha, os primeiros passos eu tinha adorado a faculdade, eu tinha ido muito bem na faculdade, gostava muito de toda forma que o estudo se dava lá. Foi a época de maior sucesso acadêmico. Eu nunca fui má aluna, mas lá eu tinha um outro... Também faculdade, você faz só o que você quer e tem todo tempo, você mora no câmpus, eu me envolvi muito, gostei muito da faculdade. E tinha ido muito bem. Aí eu resolvi que eu ia trabalhar um pouco antes de fazer uma pós-graduação. Porque eu sempre soube que eu ia voltar, na verdade quando Justin e eu fomos ver que a gente ia se casar eu tinha dito pra ele: “Olha, com uma condição, você sabe que eu vou voltar pro Brasil” “Não, tudo bem”, porque ele já tinha morado na França, já tinha morado na Guatemala, no Sri Lanka, também tinha feito Relações Internacionais, História, não sei o quê. Ele: “Não, por isso, não” “Você sabe que eu não vou ficar por aqui, eu não sou imigrante, eu sou estudante internacional. Imigrante eu não vou ser” “Não tem problema”. Eu fui trabalhar na creche do hospital da universidade, na parte de Child Development, como head teacher das crianças um ano enquanto eu ganhava um tempo. E ele tinha voltado do Peace Corps, tinha voltado com ideia de que na verdade ele queria ser fotógrafo e falou: “Você se importa?”. Eu falei: “Não, te dou cinco anos pra você conseguir fazer o que você quiser pra gente planejar, se der certo, né?”. E aí ele começou a trabalhar num jornal local. Ele trabalhava numa pizzaria, num jornal local como fotojornalista e eu trabalhava nessa creche do hospital, que foi muito legal porque também pra mim era uma outra visão porque a creche é do hospital. Todo mundo usa creche do hospital, o filho do servente de limpeza e o filho do chefe cirurgião cardíaco, todo mundo na mesma creche”. Isso eu achava muito legal. Eu gostava de trabalhar com crianças, eu entrei como assistente, virei head teacher em um ano, tinha minha turma. E aí eu comecei a ver o que eu queria fazer de pós-graduação e eu resolvi que eu queria trabalhar com comunidades, com famílias, com crianças, e fui fazer, minha candidatura foi pro programa de Serviço Social. Mas eu queria fazer logo, essa coisa de poder fazer duas ao mesmo tempo é muito bom pra mim, pra quem é uma pessoa indecisa. Mesma coisa eles tinham uma coisa de duplo mestrado em algumas universidades, que era Saúde Pública e Serviço Social. Então eu só apliquei pro programa de dupla diplomação (risos), dois mestrados em três anos. E aí era em Michigan, em Boston e em North Carolina. E eu entrei pros três e escolhi ir pra Boston porque eu tinha uma bolsa e porque em Boston tinha uma coisa eu não tinha... Nessa altura eu já tinha morado um ano nos Estados Unidos, voltei pra casa e fiquei um ano, voltei pra faculdade e eu estava lá há quatro anos, eu não tinha convivência com brasileiro mais, eu já estava... E o português já estava ficando difícil de lembrar as palavras porque em West Virginia não tinha ninguém do Brasil, tinha uma família que era de um cirurgião plástico e uma família de um pessoal que foi fazer doutorado, um pessoal que era de Fortaleza, de Brasília, que estava fazendo doutorado em Psicologia lá. Como é que a gente se conheceu nessa cidade? Um dia eu estava descendo a rua pra comprar um sorvete, aí alguém fala assim, no meio de West Virginia: “E aí, gostosa?” (risos). Eu olhei pra trás, ele assim: “Viu, não falei pra você?”, o marido e a mulher. “Falei pra você que ela era brasileira!”. Ele estava com uma blusa do Flamengo na rua (risos). E ele fez uma aposta com a mulher: “Quer apostar que ela é brasileira?”, aí ele mandou essa. Eu virei pra trás, ele falou: “Viu?”. E aí passei a frequentar a casa deles, coisas e tal e eram três famílias, família de um cirurgião plástico com a esposa, que ele estava lá na escola de Medicina, esses dois que ela estava fazendo doutorado em Psicologia e ele em Economia e tinham dois filhos, era um casal de pós-graduando, e eu. Então quando saiu pra Boston, eu fui lá visitar a escola e tinha brasileiro pra caramba, tinha loja, tomei guaraná, comi coxinha, falei: “É pra cá que eu ponho”. Porque eu estava com saudades do Brasil, eu estava com saudades disso. E aí o Justin conseguiu um trabalho no Boston Herald, que também já foi super legal e eu fui pra BU [Bonston University] fazer meu mestrado. E aí eu fui trabalhar com comunidades de imigrantes ali. Eu fui frequentar uma paróquia da arquidiocese de Boston, tinha paróquia de imigrantes, missa de brasileiro. Eu encontrei aquela coisa que eu não conhecia que era aquela mineirada toda que tinha saído daqui na época do Collor, aquelas pessoas todas que imigraram. E a mineirice entrou pelos poros. Porque a comunidade de imigrante tinha a comunidade de estudantes internacionais e tinha a comunidade de imigrantes. Então Boston University, Harvard, MIT [Massachusetts Institute of Technology], nós éramos estudantes e tinha a comunidade dos imigrantes. Mas eu frequentava a comunidade dos imigrantes porque eu ia à missa, porque eu trabalhava com serviço social, fui fazer estágio num hospital que atendia saúde materno-infantil, visitava casas, fazia orientação, então eu vivia nas duas comunidades e era muito legal isso. E foi nessa época que eu acabei ficando grávida da minha filha, tinha terminado o primeiro ano de Serviço Social, no segundo ano de Serviço Social e primeiro ano de Saúde Pública eu fiquei grávida da Marina, que foi de repente. De repente (risos), não tinha planejado. Minha mãe tinha ido me visitar, eu tinha ido ver mamãe na Páscoa, a gente tinha ido a New Jersey na casa de uma amiga, voltei pra Boston, no que eu voltei fiquei grávida. E foi aquela surpresa, a gente não estava preparado pra isso, mas a gente estava casado já há quatro anos praticamente e, claro, tivemos nossa filha. Mas eu gostava demais. Mas o casamento já estava dando defeito porque eu acho que tinha funcionado muito bem enquanto era só a gente. Aí essa coisa, o Brasil começou a me chamar demais, eu só queria estar com a comunidade, eu gostava muito. E a minha casa virou casa de brasileiro, eles batiam qualquer hora, eu estava lá. E pra ele isso era difícil, incomodava um pouco. Eu comecei ter um pouco das expectativas de família que é... Ah, eu vivi como estudante esses anos todos, agora que eu estava grávida eu queria outra estrutura, eu queria casa e o Justin não pensava nada disso. Começou a ter uma divergência muito grande do que a gente achava que precisava ter, precisava preparar. E quando a Marina nasceu, quando ela estava com cinco meses a gente já se separou, quando separou ela estava bem pequena. E eu fui morar na casa de uma família brasileira, que a gente tinha apartamento que estava vencendo. Fui morar com essa família, aluguei um quarto com a Marina que foi a casa do Joe e da Zilda, eles tinham duas filhas, um casal de mineiros, na verdade ele é de Alagoas e ela mineira, com duas crianças. E eu morei lá até a Marina fazer três anos, aí aluguei apartamento pra mim e pra ela. Porque quando a gente se separou o que aconteceu? Como é que eu vou voltar pro Brasil agora? Mas sempre foi, nunca tive outro plano. Então a gente fez uma separação e a gente fez um acordo, o acordo dizia o seguinte, com cinco anos ela pode voar sozinha, independente, então quando ela estiver com cinco anos eu vou. A gente fez um acordo extrajudicial e entramos nesse acordo. Foi super difícil, mas depois de dois anos conseguimos fechar esse acordo. Porque eu tinha falado pra ele, se ele não permitisse eu nunca ia vir fugida com minha filha, nunca ia fazer uma loucura dessas, eu ia ficar lá, mas eu ia tentar vir. E como ele acabou concordando ela fez cinco anos no dia seis de dezembro, dia 12 eu vim embora. Mas foi muito bom lá, porque aí eu trabalhei no Harvard Health Community Center fazendo atendimento de saúde pública na casa de gestante. Depois eu fui trabalhar pro Departamento de Proteção à Criança do Estado de Massachusetts, eu trabalhava numa área enorme, era auge de crack, aquelas coisas todas no centro urbana, trabalhava com famílias americanas, mas muitas famílias imigrantes de muitos países diferentes. América Latina, El Salvador, Nicarágua, aquele povo todo tinha vindo. E essa questão da imigração é por ondas. E os portos de entrada são sempre os mesmos. Por que tinha tanto brasileiro em Boston? Por causa dos portugueses que estavam lá, os açorianos que estavam lá. Eu trabalhava como medical interpreter no hospital. Eu tinha meu trabalho fixo, mas eu também ficava de plantão como intérprete. E aí cada história. Eu me lembro de uma vez, as coisas culturais começaram muito a bater pra mim, mais ainda nessa época. Fui chamada, fui lá atender, tinha uma moça e um médico, uma mineira. Ela falou assim: “Ai, eu estou sentindo uma coisa, um mal-estar, uma coisa”. E eu falava pro médico: “She’s feeling something, she’s not feeling well”. Ele estava tentando e ela muito difusa na maneira como ela contava as coisas. Ele falou assim: “Tell her to put her finger where hurts”. Aí ela fez assim. Eu falei pra ela: “Faz assim” (risos). Ele falou assim: “Chame a emergência psiquiátrica” (risos). Porque ele tentava. E era muito engraçado, ela: “É uma coisa...” “Põe o seu dedo onde está te incomodando”. Ela fez assim, ó. “Chama a emergência psiquiátrica, isso não é comigo” (risos). Então era muito legal. Porque também tem essa coisa de que uma consulta médica o nível de privacidade é muito grande. E você poder estar ali mediando entre um e outro. Tinha vezes uns velhinhos açorianos que eu não entendia metade do que eles estavam falando porque com aquele sotaque, sem metade dos dentes, eu não conseguia entender nada. Era aquela coisa, tinha que chamar os filhos. Eu gostava muito desse trabalho. Tinha também uma organização da sociedade, a comunidade brasileira em Boston, de mobilização social pelos direitos, eu ajudava naquele trabalho, era muito legal. Mas eu tinha essa coisa assim. Eu comecei a namorar um outro cara do Brasil depois de uns dois anos, a Marina tinha dois anos, na Copa que a gente perdeu pra França (risos). Eu comecei a namorar o Daniel que é um psicanalista mineiro que tinha ido pra lá fazer pós-graduação na escola de psicanálise de Boston. E foi interessante porque ele não era nem o cara do MIT, de Harvard, da BU, mas também não era o imigrante. E era muito legal, foi muito bacana porque ele tinha vindo do Brasil recentemente, ele tinha vivido todo esse momento aqui, então foi muito bom porque me preparou pra voltar. Porque os imigrantes só falavam de como o Brasil não tinha mais jeito, ninguém queria nunca mais vir pra cá; os estudantes que estavam no MIT, em Harvard, em sua maioria não era como eu que tinha feito graduação fora, eles eram geralmente doutorandos, estavam lá com suas bolsas de Capes, que estavam já engajados aqui, que tinham feito toda a graduação deles aqui, já tinham uma rede de contatos, uma rede profissional. Eu tinha saído muito cedo e ficado fora, eu fiquei fora 13 anos no total. Eu tinha alguns amigos, mas não tinha contato profissional nenhum, não tinha colega de faculdade nenhum, tinha feito Serviço Social que a minha mãe falou assim: “Minha filha, você vai viver do quê?”, e eu queria muito conseguir voltar pra casa. Então o Daniel foi muito legal porque ele me mostrava coisas: “Ah não, tem isso, tem isso, você pode fazer isso aqui”, foi muito bom, eu comecei a construir a minha ponte de volta por esse relacionamento com ele. E quando a Marina fez aniversário eu estava pronta pra vir embora. Nessa época eu já tinha meu próprio apartamento, morávamos só eu e ela, sabia que eu dava conta da minha filha e mamãe já tinha mudado pra nossa casa de campo em Teresópolis, já tinha vendido o apartamento no Leblon, tinha mudado pra Teresópolis e eu falei assim: “Quer saber? Tenho a casa da minha mãe, tenho a minha filha, se eu tiver que plantar mandioca dá pra viver, de fome a gente não vai morrer. Então eu vou”. Quando a Marina nasceu eu nunca tinha tirado, lá licença maternidade são seis semanas. Marina nasceu eu não estava trabalhando, estava fazendo estágio, estudando pra prova de Bioestatística, nunca tinha tido um intervalo assim, aí eu falei: “Eu vou tirar um ano sabático, vou tirar um ano de licença maternidade. Vou voltar pro Brasil e ver o que acontece”. E eu acho até que foi por isso que o pai dela concordou porque ele não achou que eu ia conseguir ficar. Porque tinha muita história de gente que vinha, ficava, não se adaptava e voltava. E eu tinha uma carreira lá, eu tinha muitos contatos, tinha coisa e eu falei: “Não, eu vou pro Brasil”. Eu na minha cabeça sabia que eu estava voltando, me desfiz de tudo, vendi meu carro e vim embora pra casa da mamãe. Mas eu acho que as pessoas achavam que eu não vinha pra ficar, porque eu já tinha ficado muito tempo: “Você não acostuma mais, você está aqui desde os 18 anos praticamente, você não vai acostumar mais no Brasil”. Mas eu nunca tive dúvidas que eu ia acostumar no Brasil. E eu queria muito criar a Marina aqui. Tinha uma coisa que eu via no Serviço Social que era aquelas crianças divididas, porque era um pouco como eu fui quando criança, você é criado só na sua família, naquela mineirice, naquela mineirice, naquela mineirice. Quando você vai pra vida você vê: “Eu estou em outro país, aqui tem outras regras, outros costumes”. Tem uma questão da criança que é filha do imigrante, é meio que um cidadão de segunda classe, naquela época era aquele debate, pode ou não pode ter espanhol como segunda língua, pode ou não. Eu falei: “Ai não”. Eu tenho que confessar que eu fui criada com muito privilégio e eu queria isso pra minha filha. Privilégio de se sentir muito à vontade aonde quer que você estivesse e eu via que isso era complicado lá. E a Marina já era bilíngue desde sempre, a gente veio aqui algumas vezes, duas ou três vezes enquanto ela estava pequena. E eu falei assim: “Eu vou pra ficar, a única razão pela qual eu não ficaria é se a Marina não se adaptasse. Se ela Marina não se adaptar eu volto porque eu não sou perversa, abandonar a geração passada e a futura não dá, a minha filha eu tenho que cuidar, se ela não se adaptar eu volto” porque eu sei que eu consigo viver em qualquer um dos dois lugares. Mas a gente veio pra morar em Teresópolis na casa da minha mãe, tipo, vamos tirar um ano. Matriculei ela na escola. Aí o primeiro dia eu levei ela na escola e ela ia voltar na van. E a gente morava nessa época numa casa grande na Granja, tinha varanda, eu estava na varanda esperando a van chegar, primeiro dia: “Mamãe vai te levar, mas você vai voltar na van”. Aí ela voltou na van, a porta da van abriu, ela saiu e gritou assim: “Mamãe, mamãe, o que eu sou, o que eu sou?”, eu falei: “Como assim?” “Flamengo, Botafogo, Vasco, o que eu sou, mamãe?”, eu falei: “Flamengo, minha filha, você é Flamengo!”. Ela virou pra trás: “Flamengo!”, aí os menininhos, um fez buuuu, o outro fez aaaa. Eu falei assim: “Meu Deus, qual a criança que no Brasil no primeiro dia de aula não sabe pra que time torce?”. “Mamãe!” “Quê?” “Flamengo, Botafogo, o que eu sou?” “Não, você é Flamengo”. E minha mãe brinca até hoje se ela estivesse lá Marina tinha sido Botafogo, que a culpa da Marina ser Flamengo é que a vó não estava na varanda naquele dia, porque eu sou a única flamenguista da família. Mas como eu nadei no Flamengo. Meu pai falou: “Botou aquele maiozinho vermelho e preto acabou com a menina”, porque aí eu virei Flamengo. E a Marina se adaptou super bem, super bem, nunca... O espaço. Casa de vó... Foi muito legal pra ela e eu fiquei em casa com ela praticamente tempo integral seis meses que eu não tinha ficado. E a Marina, mesmo nos Estados Unidos, quem cuidava dela enquanto eu trabalhava era uma senhora, dona Nair, capixaba, que tinha ido pra lá cuidar dos netos dos filhos que imigraram. Então Marina cresceu comendo sopa de macarrão com feijão. Quando a Marina começou a ir pro YMCA [Young Men's Christian Association] quando ela tinha três anos, que eu falei: “Não, tem que botar a menina na escolinha, não pode ficar só nessa coisa de... Vamos começar pela escolinha”. Ela ia dois dias pra vovó Nair, três dia pra YMCA. No primeiro dia eu fiz sanduichinho, peanut butter jelly, iogurte, queijo, maçã, porque ela ficava o dia lá. Aí eu liguei pra professora, e a Marina sempre foi assim: “Tchau, mãe”, nunca teve esse problema, entrou pra escolinha e foi. Aí eu liguei e perguntei: “Ah, como é que ela está, ela está bem?” “Não, ela só não quis comer”. Eu falei: “Ôpa”, ela tinha muita infecção de ouvido, a única coisa que assim, Marina não comer ela tem que estar doente. Eu falei assim: “Posso falar com ela?”, que ela está napping, descansando. Eu chamei e falei: “Filha, o que foi?”, ela: “Mamãe, é hora do almoço, só tem sanduíche”. Aí eu falei: “Você quer um bifinho?” “Ah, eu quero”. Eu falei pra professora: “Você se incomoda...”, porque tinha muito restaurante ali, “de eu mandar entregar um pratinho de comida pra ela aí? Porque eu acho que ela está estranhando o almoço frio, que ela está acostumada a comer comida”. Ela falou: “Não, pode mandar entregar”. Eu liguei pro restaurante brasileiro e mandei entregar lá arroz, feijão, bife acebolado, uma saladinha e batata frita pra ela. Aí chegou lá, daqui a pouco eu liguei pra professora: “Tudo bem, ela comeu? Posso mandar comida?” “Só se você mandar sempre isso pra nós duas, que come eu e ela” (risos). Aí assim, todo mundo levava sanduíche mas ela levava marmita, porque Marina, o negócio dela é comida, negócio de sanduíche, queijinho, iogurte na hora do almoço nunca foi com ela. Então ela veio pra cá muito adaptada e eu estava na beira da piscina um dia, falei assim: “Está na hora de eu começar a fazer alguma coisa”, lendo os classificados e tinha um anúncio: “Procura-se pessoa pra trabalhar em intercâmbio”, era o AFS que estava procurando uma pessoa pra começar a parte do suporte à experiência do intercâmbio. E eu tinha ouvido que no Brasil se você não conhecia alguém você não arruma emprego... E eu não conhecia ninguém que pudesse, o meu primo era juiz, o outro não sei o quê, não tinha quem pudesse me arrumar emprego. E eu não queria dar aula de inglês e não tinha muito um caminho pra mim. Eu fiz meu currículo e mandei. Me chamaram para uma entrevista, eu fui e me contrataram. Eu fiquei chocada: “Gente, eu arrumei um emprego!”. E foi meu primeiro emprego no Brasil, o AFS, depois de 13 anos fora. Foi muito bom. Porque era um lugar fácil de eu fazer uma transição porque era um lugar que eu falava inglês o dia inteiro (risos), trabalhava com pessoas que estavam em outras culturas, eu tinha que dar apoio, desenvolver manual de adaptação, era tudo o que eu fazia de outras formas em outros temas que eram mais voltados à Saúde nos Estados Unidos eu vim fazer aqui com uma outra pegada, conversar com pais, trabalhar com famílias, lá no escritório as pessoas que tinham toda essa questão internacional, era uma organização que tem essa estrutura, essa ética de trabalho internacional. Todo mundo que trabalhava ali era porque tinha sido, não era essa coisa de, ‘ah, era...’, não tinha isso. Foi muito bom pra mim. E aí fiquei lá dois anos.
P/2 – Andreza, você foi pra esse emprego pra poder dar suporte tanto pra família como para os intercambistas?
R – Isso.
P/2 – O que você viu de diferente que a AFS proporcionava e que de alguma forma você ajudou a estruturar em relação ao intercâmbio que você fez pelo Rotary?
R – Pois é. Era essa a questão que eu achei muito interessante porque o que o AFS proporcionava uma oportunidade das pessoas refletirem, aprenderem durante e não só depois de anos de processar, de convivência, análise, como eu tinha tido que fazer (risos). Isso que eu achava que era muito legal, essa coisa de você ter uma preparação, ter os acampamentos, ter o suporte, ter a quem recorrer, saber, tudo isso era diferente. E como eu tinha trabalho em serviço social, muito tempo em casos, suporte de caso. Eu me lembro, quando eu era intercambista, às vezes meus colegas tinham problemas de convivência, de família, de relacionamento que a gente não tinha muito uma estrutura de resolução, era meio... Por falta de outra palavra, meio amador. Se der certo deu, se não der certo não deu. E o AFS não, já havia essa preocupação de que ali tem um aprendizado, que tem um amadurecimento, que não é só... O acampamento não é só tipo todo mundo se encontra e vai acampar, é divertido e volta, tem uma aprendizagem que tem que acontecer ali. Que a minha eu tive que fazer em 13 anos, muito mais diluído, muito mais posterior do que fazer durante, eu achei aquilo fantástico. E tinha uma coisa legal que eu achei, que era assim, poxa, eu sabia que os avós da minha filha tinham sido família hospedeira do AFS muito tempo, então já conhecia a organização. Eu me lembro que foi a primeira pessoa pra quem eu contei, pro meu sogro, avô dela: “Olha, eu estou trabalhando pro AFS!”, ele ficou todo feliz: “Ah, que legal!”. Tinha essa coisa também de ter saído dos Estados Unidos, ter saído dessa vida internacional e ter vindo pra cá, mas não ter rompido com esse tipo de convívio, de experiência e poder agora, de alguma forma, trazer uma contribuição. E como essa área não existia antes, era a primeira vez que eles estavam montando essa área, acho que até em toda rede essa foi uma época de dar uma estrutura específica, eu pude montar a equipe, compor manual, ajudar na construção de muita coisa. Eu acho que foi a transição mais simples que eu poderia ter feito. E foi muito legal porque também passei a ser mãe de uma menina que estava vivendo agora também entre duas culturas, porque tinha toda a questão de que ela tem uma família nos Estados Unidos, ela tem família aqui. E eu fazia um trabalho que tinha um caráter profissional, mas também aprendia muito do que eu podia fazer como mãe, pra adaptação da minha filha, pra intermediar as culturas, foi muito rico pra mim assim, muito bacana.
P/2 – Você colocou uma coisa interessante, que de alguma forma o que você veio desenvolver dentro do AFS era uma coisa que você tinha desenvolvido no seu trabalho nos Estados Unidos com as comunidades de imigrantes e até com a questão da saúde. O que você trouxe de lá, além da questão de aprendizado, além da questão profissional, mas o que você falou: “Olha, isso eu não posso perder, isso eu posso aplicar aqui dentro do AFS que eu sei que vai dar certo”. Eu estou querendo pegar não tanto uma questão técnica, Andreza, mas o que você acha que foi um aprendizado dessa forma de agir com imigrantes, mesmo dentro da saúde, que você falou: “Essa pegada eu tenho que colocar dentro do AFS”?
R – O que eu acho que eu me dei conta vivendo nessas comunidades, nessa dualidade, é porque cada vez mais eu tinha certeza que o fato de você estar transportado para um outro local por si só não vai fazer você aprender nada. Muitos dos problemas que eu ajudava a intermediar lá tinham a ver com pessoas que estavam em um outro lugar, mas ainda fechadas em si mesmas, na sua cultura, nas suas coisas. Eu tinha certeza que a mobilidade por si só não é o aprendizado, o aprendizado é outra coisa. O aprendizado requer interação, requer envolvimento, requer troca. E eu acho que é isso que poucas oportunidades de mobilidade deixam claro, a pessoa acha que por esse mero fato dela sair de ponto A e ir pra ponto B, que ela vai aprender tudo sobre o lugar. Pelo contrário, muitas vezes essa exposição intensa numa cultura muito diferente te torna mais fechado, mais preconceituoso, mais defensivo do que você estava antes, porque você se sente atacado por aquilo, você sente que está sendo dominado por aquela cultura predominante. Eu vi isso muito na comunidade de imigrantes, são aquelas pessoas que têm uma resistência enorme ao país onde elas escolheram ir pra viver. E não assimilam, não trocam, não dialogam. As pessoas que eu vi que tinham mais sucesso nas suas experiências de imigração e de adaptação foi as que conseguiram fazer uma... Interação. Permear, que se deixaram permear e conseguiram contribuir. Porque o contrário é a receita da frustração de todos, as pessoas não te veem de forma positiva e você começa a ficar muito amargo, é isso que acontece. Eu tinha a certeza, eu falei: “Aqui uma coisa que a gente pode trabalhar, e precisa trabalhar mesmo, porque senão isso não acontece, esse aprendizado”, pelo contrário, você volta pior do que você foi, muitas vezes. Era muito comum isso, as pessoas, estereótipos mais fortalecidos. E isso eu achava uma oportunidade, achava isso muito triste quando isso acontecia, as pessoas endurecidas nessa posição de imigrantes. Eu acho muito bacana isso, essa permeabilidade, como você trabalha isso, oportunidade de você ganhar e oferecer também.
P/1 – E conta um pouco então do seu primeiro time, ou a equipe, do AFS quando você chegou, como é que foram essas primeiras atividades.
R – Quando eu cheguei o diretor era o Eduardo Assed e o diretor de programas era o Marcos Sodré. O Marcos Sodré tinha recém começado a trabalhar também lá, o Eduardo já estava há um pouco tempo. E tinha duas pessoas que estavam trabalhando meio com suporte, mas não era uma equipe ainda e eu cheguei como a coordenadora já dessa área, para coordenar e contratar as pessoas. Foi muito bom porque eu vim de uma visão de Serviço Social que trabalha de uma forma muito sistêmica, essa coisa de trabalhar de uma forma sistêmica é muito interessante pro AFS porque a gente trabalha em sistemas em todos os níveis, micro, da família, dos comitês, mas também com os parceiros. Eu pude formar uma equipe que foi bem bacana. Era um escritório super bem humorado! As pessoas eram divertidas, a gente ia numa coisa leve. Mas ao mesmo tempo eu acho que a gente estava numa fase, o AFS teve várias fases ao longo do tempo, que a gestão era muito competente, havia uma sensação de que... Tinha uma ética de trabalho bem forte. A gente tinha ideias novas, implantava, tinha essa coisa bem da gestão por ferramentas, a gente tinha avaliações, a gente tinha feedback. Era muito bacana porque os meus outros trabalhos antes em hospitais e depois no serviço social não [tinham] uma gestão corporativa de uma organização. Foi bom poder trabalhar assim, sem CEO [Chief Executive Officer], sem gerente, aquela equipe que é pequena, mas muito bem estruturada. E cada um fazia muito bem a sua parte, cada um tinha muita clareza de como a gente contribuía com aquilo, então dava muita segurança trabalhar lá. E a gente começou também a ter essa coisa da interação de vontade, entender a organização. E como quando eu era estudante de intercâmbio e depois na universidade, a bolsa que eu tive na universidade era uma bolsa de extensão, nas minhas férias eu tinha que viajar e visitas as cidadezinhas do interior de West Virginia e fazer palestra. Era muito como se faz como comitê, de reunião de comitê. Você falar assim, ah, tamanho da cidade. Eu sei que o tamanho da cidade não tem nada a ver com o quanto eu vou me divertir lá. Porque eu gosto é de encontrar gente e quem mora nesse lugar e como é que são essas pessoas, o que vão me oferecer pra comer. Eu gosto dessa coisa de chegar na casa do outro e receber na casa do outro e ver um pouquinho da vida dele. Eu já tinha feito isso na faculdade, já tinha feito isso no intercâmbio. E no AFS também foi um pouco isso porque você vai pra reunião de comitê não é num escritório tal, sala tal, é na casa de alguém em algum lugar. E isso pra mim era muito confortável, eu sabia que eu estava ali na sala de alguém, mas aquilo era meu trabalho. Eu tinha sido assistente social, visitava famílias, batia em porta na casa das pessoas pra entrar, eu gostava dessa quase intimidade instantânea que você tem com as pessoas no espaço privado delas, mas com respeito pelo estado privado delas, isso pra mim era legal, até hoje eu gosto muito de visitar comitê, de ir na casa das pessoas.
P/1 – E conta um pouquinho do desenvolvimento da sua carreira. Já chegou coordenando esse grupo, formando essa área.
R – E como era um início tinha muita coisa pra fazer, muita escritura de manual. Eu tive uma oportunidade de ir pra Viena, um treinamento internacional, foi a primeira vez que eu fui à Europa, nunca tinha ido pra Europa. Eu achava que Estados Unidos era primeiro mundo e fui pra Europa, Viena. Eu falei: “Ah, meu Deus” (risos). Fiquei chocada, tinha umas crianças de cinco anos entrando sozinhas no ônibus pra ir pra escola, eu falei: “Como deixa?” (risos). Eu tive um treinamento lá que aí você tem pessoas de outras partes do mundo, foi na época o primeiro treinamento de interculturalidade do ponto de vista teórico que eu tive, pra mim foi uma espécie de muita síntese, síntese de vida, de poder ter alguém, apresentar um conceito teórico de um monte de coisa que eu tinha vivido, foi muito bacana, e entender que hoje em dia existe uma área de educação, de pesquisa que focava nisso, eu achei isso muito interessante. Gostei muito de conhecer as outras pessoas da organização, dos outros países, desses colegas de outros lugares, o tipo de pessoa. O tipo de pessoa que gosta de trabalhar com jovem, o tipo de pessoa que gosta de trabalhar com família, gosta de trabalhar com educação é o tipo de pessoa que eu me identifico muito e gosto. Rapidamente as pessoas fazem elos, fazem equipes de trabalho, eu gostei muito dessa diversidade. Me lembrou de novo meus amigos estrangeiros na universidade que a gente tinha, meus amigos de intercâmbio no high school. Essa oportunidade de trabalhar num time bem diverso é uma coisa que eu gostava e pra mim não era novo e era legal poder crescer e continuar fazendo as coisas que eu gostava, com as pessoas que eu gostava, de uma forma profissional, isso pra mim era bem confortável. Eu fiquei um ano e meio, dois anos. E um dia eu estava almoçando, chegou um fax de uma amiga minha que tinha sido minha amiga que dava aula de inglês comigo lá no meu primeiro emprego, a Bel, que é minha amiga até hoje, ela falou assim: “Andreza, eu vi um anúncio nos classificados, eu lembrei de você. Posso te mandar?”. Eu falei: “Olha, não estou procurando nada, mas me manda”. E era um anúncio da Fulbright, que era do governo americano procurando uma pessoa pra ser o que eles chamam de Educational Advisor, não é orientador educacional mas é orientador pra estudo nos Estados Unidos. Estavam procurando uma pessoa pra ingressar no escritório do Rio de Janeiro. E naquela época eu estava trabalhando já com Ensino Médio há bastante tempo e falei assim: “Poxa, será que não seria legal trabalhar com isso, mas com universitários?”, aí eu me candidatei à posição e vim falar com o Eduardo, que eu falei: “Eduardo, apareceu uma oportunidade”. Eduardo era um chefe muito legal, muito sério, eu gostava muito de trabalhar com ele. Ele falou assim: “Olha, há alguma coisa que eu possa te oferecer pra você não ir?”. Eu falei: “Não, eu acho que realmente é uma coisa que eu quero fazer”. Ele me agradeceu muito, não sei o quê e falou assim: “Mas você tem alguém pra recomendar?”. Na época eu tinha contratado a Renata Malizia, que era também assistente social e ela tinha tido uma menininha, Bianca, estava em licença maternidade. Eu falei assim: “Olha, eu acho que a Renata seria uma pessoa que eu recomendaria pra minha posição. Eu acho que ela entende isso aqui muito bem. Mas ela está em licença maternidade, eu posso dar uma ligada pra ela, sondá-la, se você quiser”. E foi isso que eu fiz. Liguei pra Rê e falei: “Olha, Rê, eu tive uma proposta, estou procurando uma outra coisa, vou sair, mas eu acho que você seria uma ótima pessoa pra ficar no meu lugar”. Ela ficou meio assim, zonza, mas aceitou. E eu aí fiquei tranquila porque quando você passa um tempo construindo uma coisa você quer deixar aquilo em boas mãos, você quer ver aquele trabalho continuar. Eu tinha esse zelo também: “Quem vai cuidar disso?”. E quando também a Renata aceitou eu fiquei bem tranquila. E eu estava animada com essa coisa de poder passar pro próximo estágio da minha vida que é poder fazer a mesma coisa pros universitários que eu tinha feito. E foi bem legal que eu fui me despedir, fui falar com o Eduardo no meu último dia. E ele falou um negócio pra mim que eu fiquei bem feliz, ele falou assim: “Andreza, muito obrigado porque você não esmoreceu na saída”. Sabe aquela pessoa que quando vai sair começa a já não dar mais tanta atenção às coisas, ou parece que já está no final, sabe quando está cansada antes de terminar os 45 minutos? E foi uma coisa que me deu um toque assim profissional de que é muito importante a gente fazer até o fim. E as pessoas notam isso. E foi muito legal, eu saí muito bem, saí bem com a organização, saí bem com as pessoas, saí sentindo orgulho do que eu tinha feito lá pra começar uma outra coisa, que também foi muito importante mesmo, fiquei na Fulbright oito anos, foi o emprego mais longo. Eu me lembrava que eu falava assim: “Gente, eu trabalho aqui há mais tempo do que eu fui casada (risos). Fui casada cinco anos, eu estou aqui há oito anos” (risos). Então foi muito legal isso.
P/1 – A gente estava falando do seu retorno pro AFS. Conta pra gente como aconteceu isso, como que chegou esse convite, se foi você que foi procurar.
R – Eu fui pra Fulbright e fui bem animada pra essa coisa de trabalhar com universidade, que era o próximo estágio. E foi uma escola enorme pra mim porque lá eu trabalhava com indivíduos, orientando as pessoas pra estudar nos Estados Unidos. A minha chefe, a Rita Moriconi, que é uma amigona e uma pessoa que é referência pra mim, que era coordenadora de todos os centros. Porque a embaixada americana tem dentro dos Ibeus e outros lugares centros que orientam as pessoas para os Estados Unidos. Quando eu ganhei a minha bolsa do Ibeu é que eu fui me dar conta, quando eu ganhei a minha bolsa do Ibeu lá em 88 [1988] foi exatamente num centro desses, que você tinha os catálogos pra você ir lá folhear as coisas, pra escolher as faculdades. Eu comecei a fazer a mesma coisa, a pessoa chegava lá: “Eu quero estudar tal coisa”, você tinha que pesquisar onde tinha nas universidades, entender as pessoas, ajudar no processo. E como a Rita, logo que eu cheguei lá, depois de um ano e pouco ela foi chamada pra fazer um cargo de coordenação da América Latina, do Conesul, ela então me indicou para o cargo de coordenadora nacional, eu passei a coordenar 23 escritórios que tinha no Brasil, com um time de pessoas maravilhosas e o State Department, tem uma coisa que eles investem na formação das pessoas porque é uma área que ninguém vem pronto, eu passei a frequentar as conferências de educação internacional nos Estados Unidos todo ano, a NAFSA [Association of International Educators], que é uma conferência pra sete mil pessoas do mundo inteiro sobre educação internacional. Eu passei a trabalhar com várias instituições no processo de coordenação. Eu conheci um trabalho com uma colega de Zimbábue, que trabalhava num processo que ela começou um programa de acesso pra estudantes de alto potencial acadêmico mas de baixa renda pra ganhar bolsas integrais nos Estados Unidos, ela veio numa conferência que eu estava, falou desse programa. Eu e Rita, a gente se olhou e disse: “No Brasil a gente tem que fazer isso, lá deve ter. Se em Zimbábue tem, no Brasil tem”. E a gente começou um programa que a embaixada tinha, um programa de jovens embaixadores que eles selecionavam meninos de escolas públicas e a gente, no primeiro ano a gente falou assim: “Quem de vocês gostaria de tentar fazer com a gente um processo de ir pra universidade nos Estados Unidos?”. A gente fez o cálculo, o que a gente ia precisar de orçamento, precisava pagar o Toefl [Test of English as a Foreign Language], pagar o SAT [Suite of Assessments], pagar as taxas da universidade. A gente olhou pra embaixada: “Vocês têm algum recurso que tem aquela coisa de vai fechar o orçamento?”, eles tinham o que eles chamam de Recycling Money. E eles falaram assim: “Tem 2 mil e 500 dólares”. A gente: “Dá pra gente”. Naquilo a gente trabalhou com nove meninos e sete ganharam bolsas integrais pros Estados Unidos. Um foi pra Stanford, um foi pra UPen [University of Pennsylvania], mas assim, primeiro ano. A gente falou: “Não, então a gente vai começar esse programa”. E a gente começou a fazer essa programa que hoje em dia é um programa enorme e eu adorei trabalhar com aqueles meninos, com aqueles programas, conhecer essas universidades a fundo. E outra coisa muito legal que a gente fez lá é que a gente começou a trazer feiras de universidades americanas pra cá, porque sempre teve de universidades internacionais, mas só de universidades americanas, com patrocínio do governo americano e a gente começou a operacionalizar isso no Conesul todo. No primeiro ano a gente fez Chile, Brasil, Argentina, Equador. No segundo ano eu já estava coordenando essa feira também, aí eu coordenava a nossa feira de educação das universidades que com dois anos tinha 50 universidades vindo na feira com a gente. E coordenava esse programa e coordenava os centros. Foi uma época de aprender muito essa questão de gestão, foi uma época de aprender muito a trabalhar com o próprio governo americano, com o centro diplomático, de entender tudo isso, sempre investindo em formação, que eles sempre fizeram, a gente tinha treinamento todo ano. E de trabalhar com os meninos, com os estudantes. Em oito anos que eu estava lá, eu estava até falando com a Rita, esse ano faz dez anos que a gente mandou o primeiro grupo. E onde esses meninos já estão? Hoje tem doutorado em Yale, doutorado em Harvard. Essa coisa me dá esperança. Não que são só eles, mas que você vê as histórias de vida deles, a gente tem que fazer um projeto desses (risos) que é muito legal, e ver a capacidade da educação propiciar uma trajetória nova também, totalmente diferente pras pessoas, pra elas poderem desenvolver o seu potencial humano. Isso é muito especial, eu gosto demais disso. E aí o que aconteceu da minha volta é que na verdade depois de oito anos eu recebi um telefonema do Eduardo, que me ligou e perguntou: “O que você está fazendo?” “Estou fazendo a mesma coisa que eu saí daí pra fazer oito anos atrás”. E ele falou que eles estavam em um processo de buscar um novo gestor. Na verdade havia havido um processo. Quando o Eduardo saiu houve um processo de seleção pra diretores, na época alguém fez contato comigo e eu botei meu currículo, eu fiz até uma entrevista, mas não. E eu sou muito grata de que naquela época não fui pro AFS porque eu tinha muita coisa pra aprender na Fulbright ainda. E quando o Eduardo me contatou eu pensei bem, eu me interessei por uma série de questões, mas uma das coisas que eu me interessei, que estava me dando muita saudade é porque todo trabalho que eu tive era Brasil e Estados Unidos, Brasil e Estados Unidos e eu estava sentindo falta de trabalhar com gente do mundo todo, lugares diferentes, abrir de novo o leque. E também de ter uma posição diferente, de poder pensar na estratégia da organização, trabalhar na gestão e não só no foco específico como era na parte do monitoramento. E quando ele falou isso eu falei: “Ah, eu vou pensar”. Eu estava até nos Estados Unidos quando veio a primeira, a segunda entrevista eu estava em Buenos Aires em uma outra questão. E eu lembro que eu liguei pra Renata, eu falei: “Renata, ainda está lá?” “Tá”. Liguei pra Renata, marquei um café com ela. “Rê, oi, sou eu, Andreza”. E a Renata e eu... São aquelas pessoas que você tem uma afinidade que eu posso ficar dez anos sem ver Renata e vou sentar, a gente tem uma conexão que a gente senta e conversa sempre no mesmo nível como se nada tivesse se passado. Eu acho que isso é amizade, né? Então nós somos amigas, a gente não se vê muito, mas somos amigas. E eu marquei um café com ela, era ali no Humaitá, que ela estava de interina, Diretora Interina. Eu falei: “Rê, você tem interesse em ficar? Porque se você tiver interesse em ficar eu não tenho nenhum interesse”. É tipo assim, se você tiver está em boas mãos, a mesma coisa que eu tinha pensado oito anos atrás quando eu deixei ela no meu cargo de coordenação. “Se você tiver está em boas mãos, não precisa eu vir pra cá”. Ela falou: “Não. Eu estou aqui, mas eu não quero ficar nessa posição, não é o que eu vejo pra mim”. E ela me contou que a organização tinha mudado muito nesses anos, o que tinha acontecido... E eu fiz assim com ela: “Olha, eu venho se você ficar. Você vai ficar?”. Ela falou assim: “Olha, já faz um tempão que eu estou aqui, você já saiu, já fez um monte de coisa, por que você está me pedindo isso agora?”. Eu falei: “Não, é porque a gente precisa de uma parceria, pra você entrar num lugar novo, complexo como é o AFS, sem conhecer as pessoas, pra mim seria melhor. E você é uma pessoa que eu sei como é que é, você pode me dar esse histórico, me atualizar e a gente pode ver as coisas juntas”. E ela topou: “Eu vou estar aqui quando você chegar, se você vier”. E foi assim. E eu fui pra lá, fiz um processo de entrevista com o Conselho Diretor. Foi interessante também porque quando eu trabalhava no AFS eu não tinha contato Conselho Diretor, essa gestão voluntária, eu tinha contato com trabalho voluntário, mas não com a gestão voluntária. Foi interessante ver as questões. E outro momento, aí já tinha tido Ciência sem Fronteiras, já tinha trabalhado pra caramba com esse Ciência sem Fronteiras, já tinha trabalhado com um monte de outros projetos de educação internacional. E outro momento pro Brasil. Essa coisa que a gente fazia que era tão pioneira já não era mais, todo mundo já queria isso, todo mundo já falava de um monte de oportunidade e eu achei que a gente podia fazer algumas coisas bacanas no AFS. E aí eu voltei, eu comecei no dia três de setembro de 2012, teve a Convenção em Porto Alegre no dia sete de setembro. E aí eu me despedi da Fulbright, que foi difícil pra caramba me despedir lá também, eu saí um mês antes da feira, mas deixei também gente muito boa lá, tá todo mundo lá até agora e vim fazer essa outra coisa que é gerir uma organização, que era novo pra mim. E a Renata estava, eu trouxe Marcos que era o diretor financeiro, que era na época que estava com o Eduardo, estava lá e eu convidei ele pra voltar. De certa forma um A-team, uma coisa que tinha sido um pilar, umas colunas que tinham sido bacanas de um tempo que o AFS estava muito bem do ponto de vista da gestão e eu remontei aquela mesma equipe e a gente começou a trabalhar dali pra frente. Então foi muito bom.
P/1 – Andreza, queria que você contasse pra gente, antes dos desafios ou de outras questões, que você contasse como é que foi o EDS [Executive Development Seminar] na Costa Rica, essa volta? Então quando você voltou, aí teve esse evento na Costa Rica, de treinamento executivo. O que aconteceu lá, como é que foi essa?
R – O que é muito rico no AFS é isso, você trabalha com pessoas do mundo inteiro e gente muito boa, gente muito boa. Eu tenho colegas, tanto voluntários quanto profissionais, você trabalha com gente muito boa. E a organização tem um olhar muito bom pra desenvolver a liderança da organização, se preocupa com isso. Então uma das atividades regulares, esse Executive Development Seminar, que é feito para os diretores nacionais, foi na Costa Rica e lá... O AFS, uma das coisas que eu gosto muito é que as pessoas vão inovando, mudando, mas não esquecem o que é a essência, de onde vem. Pode ser um congresso mundial, entra na programação vai ter lá: “Você quer ficar na casa de uma família hospedeira? Você quer visitar alguma escola?”, ele te dá oportunidade de estar numa coisa muito macro mas poder se aprofundar e ver ali, chegar naquele lugar. Porque quem tem isso não gosta de viajar do aeroporto pro hotel, você quer ir na casa de alguém, você quer chegar naquele nível humano, naquele nível local. E a gente sempre tem essa transversalidade, você consegue fazer isso em um evento do AFS. E pra quem quiser. E aí tinha a oportunidade: “Você quer ficar numa família hospedeira?” “Eu vou ficar na família hospedeira. Gente, faz 30 anos que eu não vou pra uma família hospedeira” (risos). Antes da gente começar o seminário, ir para um hotel e ficar lá fechado quatro dias com a facilitação eu fui pra San José e fui pra Puriscal que é uma cidade a uma hora e pouco de distância ficar com uma família. E cheguei lá, eu com minha malinha. E eu acho que eles não disseram que as pessoas eram... Eles acharam que era uma voluntária do AFS que estava indo. E aí eu vou dormir no quarto com as crianças e vou pra cozinha cozinhar com a mãe. Sabe, te dá oportunidade, é como se você voltasse à infância, te dá oportunidade de lembrar de tudo o que é mais essencial e importante, se apaixonar pelo valor daquela experiência. Cheguei lá chamando essa mulher de 30 e poucos anos de mamãe, papai, as crianças. Levei lata de leite condensado e fazia brigadeiro pra eles. E você ter ido pra casa dessa família antes de ir pro Executive Seminar já te deixa no lugar certo pra pensar como que a gente faz outras coisas diferentes, mas trazendo isso, lembrando disso que a gente faz tão bem. E aí foi muito gostoso porque eu já tive oportunidade. Eles tinham uma menininha da família, a Jimena. E a Jimena com uns nove anos. Foi muito engraçado porque eu via nela os meus irmãozinhos hospedeiros, só que aí não era mas eu com 18 anos, já era adulta. E no dia que eu estava indo embora ela virou assim: “Andreza, você acha que a Costa Rica é um lugar bom pra viver?”, eu achei a pergunta grande para uma menina pequena. Eu falei assim: “Eu acho que é muito bom aqui”. Ela falou assim: “Se você fosse nascer de novo você queria nascer aqui?”. Eu falei: “Olha, eu gosto muito do lugar de onde eu venho, mas aqui é muito bom. O abacaxi aqui é uma delícia, o clima aqui é uma delícia”. Ela falou assim: “Eu também queria nascer aqui de novo, eu gosto muito daqui” (risos). Mas eu achei tão fofo, ela queria que eu validasse, ela sabe que eu já vi outras coisas, que eu validasse que o que é dela é bom. E eu falei assim: “Se eu fosse você eu também ia querer nascer aqui de novo. Eu gosto de onde eu nasci, mas você tem toda razão de querer nascer aqui de novo, porque aqui é muito bom”. E ela ficou feliz, sabe assim, que eu não estou indo embora porque isso aqui é ruim, eu estou indo embora porque eu tenho o meu lugar, mas aqui onde você está é muito legal. E é gostoso você ter essa outra visão ouvir essas perguntas, entender o que elas querem dizer e poder... E essas pessoas, a família, por exemplo, o pai dessa família, ele é família hospedeira porque ele teve, quando a mãe dele era professora em uma escola local ela recebeu uma americana do AFS, que era uma americana espana, nos anos 70, que eles eram amigos até hoje, ele quando teve a família dele quis fazer a mesma coisa com as filhas dele porque foi marcante pra ele e assim vai. E quando eu estava lá com essa família eu falei assim: “Gente, é isso que está faltando pra mim, eu quero ser família!”, que era uma coisa que eu nunca tinha feito, eu fui intercambista, trabalhei no AFS, estava na direção, mas eu nunca recebi na minha casa a minha filha hospedeira. Daí eu cheguei em casa e falei com meu marido e com minha filha. Eu cheguei em casa, que a gente tem uns applications, os meninos com foto, perfil, eu cheguei em casa e botei quatro, botei na mesa assim: “Olha que fofuras, quem vocês acham que a gente podia receber?” (risos) Comecei a levar essa ideia e meu marido é super na dele, meu atual marido, já sou casada há quase dez anos de novo, ele é super na dele, mas ele também tem uma vivência, ele fez faculdade nos Estados Unidos, fez mestrado nos Estados Unidos, a gente tem essa coisa meio em comum. E a Marina, quando a Marina fez 15 anos eu quis que ela fizesse intercâmbio, eu falei: “Filha, seu pai fez intercâmbio, eu fiz intercâmbio”. Ela: “Mãe, eu já tenho duas famílias em dois países, pra mim tá bom, eu não preciso fazer intercâmbio, eu não quero fazer intercâmbio” (risos). Eu fiquei meio frustrada porque ela nunca quis, mas ela passa três meses do ano fora, na casa do pai dela. E a Marina é filha única. Então tinha essa coisa assim, ela: “Hum, dividir meu quarto?”, porque mora num apartamento que ela teria que dividir o quarto com outra pessoa, enfim, fui trazendo isso uma, duas, três vezes. Na terceira vez a gente tinha uma menina que vinha para um programa mais curto de três meses e eu falei pro meu marido: “Se for pra dar certo a Marina tem que escolher porque vai dormir no quarto com ela, ela tem que achar a menina legal”. Aí a Marina topou, ela falou: “Gostei dessa menina aqui”. Eu preenchi um application de família hospedeira e falei: “Olha”, falei com o pessoal do comitê do Rio, “aqui eu sou família hospedeira, quero que faça tudo igualzinho”. Os voluntários vieram na minha casa entrevistar minha família, tudo direitinho, a gente preencheu o application, botamos lá. Eu não quero botar que eu sou do AFS. Eu não quero que ela pense: “Ih meu Deus, eu não quero ir pra casa do... Vai ser chato ir na casa da mulher que é diretora” (risos). Preenchemos tudo e eu estava, na verdade, na Malásia numa reunião o dia que ela ia chegar aqui. E aí meu marido e minha filha que foram recebê-la no avião. E eu estava numa ansiedade de lá, no WhatsApp: “Cadê, ela chegou, tudo bem?” Ela chegou aqui no dia oito de outubro, eu cheguei no dia nove ela foi embora agora no dia cinco de janeiro, Lisa. E aí assim, eu entendi. Eu falei: “Gente, como a gente pode, em tão pouco tempo, criar esse tipo de vínculo?”, o dia que ela foi era o dia que Marina estava indo pra casa do pai passar as férias, embarquei as duas no mesmo dia. E eu não sou postar coisa de Facebook, mas nesse dia eu fiz uma postagem. Eu botei uma foto das duas no aeroporto. “A filha que eu dei vida e a filha que a vida e o AFS me deram. Como é que vocês ousam ir embora no mesmo dia e deixar tudo vazio”. Mas meu coração transbordando de gratidão. O primeiro comentário que apareceu foi da minha hospedeira da Califórnia, a Terry Williams. Ela botou assim: “Confia no teu amor. Eu sei que é difícil”. E foi assim, ela foi minha mãe. E hoje a menininha dela mora na Austrália; ela diz que fui eu que a botei a perder porque ela faz Serviço Social e mora lá na Austrália, casou e mora lá. E ela falou assim: “Andreza”, a minha mãe hospedeira veio me consolar porque a minha filha hospedeira estava indo embora (risos). E aí hoje eu acho assim, eu já fiz, eu sinto que fez sentido pra mim essa trajetória, que eu fiz um pouco de tudo, que eu vivenciei essas coisas todas. E eu até escrevi pra Lisa, eu falei: “Olha, de todas as coisas que eu já fiz no AFS, o que eu mais gostei foi de ser mãe hospedeira” (risos). Adorei ser mãe hospedeira. Ela fala assim: “Você não pode mais receber ninguém, né mãe, só eu”, não quer que eu tenha outra filha (risos). Eu falei, todas minhas filhas querem ser filhas únicas, ninguém quer mais ninguém (risos). E você entende o que acontece. Claro que isso não é, tem o diretor da Costa Rica, o Rolando, que é o meu colega que eu gosto muito, ele já foi pai hospedeiro do AFS OITO VEZES! Eu falo: “Rolando”. Ele pega e fala assim: “Ah Andreza, o casamento começa a ficar chato, você traz uma pessoa pra dentro de casa é a coisa mais legal que tem” (risos). E meu marido falou assim: “Você está achando que o casamento está ficando chato?” “Não, não é isso” (risos). Mas é que é tão legal assim, porque eu fiquei pensando: “Por que a gente se apaixona? Porque é igual ter um bebê só que já vem grande, você ensina a falar, você ensina a andar nos lugares, você ensina como se comportar, você aprende um monte de coisa com eles, você começa a criar mesmo, para aquele mundo é você que está criando. E é assim. E você vê eles desabrocharem (risos), é teu filho, aqui a mãe dela sou eu. Logo em seguida a mãe dela botou um comentário, a mãe dela lá da Áustria, Barbara: “Você foi a melhor mãe que a Lisa podia ter tido no Brasil” (risos). E daqui a pouco uma outra mãe hospedeira do Estados Unidos que ficou um dia na minha casa, que veio aqui visitar o filho dela também postou: “Ai, não é legal ter esses laços especiais?”, então assim, parece que agora eu entrei pra sempre pro clube, de carteirinha (risos). Muito bom, faz todo sentido pra mim.
P/1 – Andreza, eu queria aproveitar até o clima pra você dizer pra gente o que significa o AFS pra você nesse trabalho, em ter recebido, como é que você definiria?
R – A questão é que eu acredito nisso, eu acredito no que o AFS faz. Eu acredito porque eu acredito na ideia de que você pode conectar vidas e compartilhar culturas e que isso pode fazer um mundo melhor. Eu acredito porque eu já vi isso acontecer na minha vida, de várias formas diferentes. Eu vejo isso acontecer na vida de um monte de pessoas e eu sei que a gente pode escalar o efeito disso para outras pessoas de outras formas. Essa é uma forma de fazer isso. E a gente pode pegar a essência disso e pulverizar de muitas outras maneiras, dar a outras pessoas pílulas disso, efeitos disso. A gente fala hoje em dia de fazer intercâmbio sem sair de casa. Porque eu como família hospedeira que não saí da minha casa tive uma transformação na minha família, meu marido, minha filha, eu acredito nisso. E é muito bom você trabalhar com uma coisa que você acredita.
P/1 – E eu queria que você falasse um pouco da experiência de colocar uma aluna que veio de intercâmbio pro Brasil num colégio público. O que isso impactou, como é que foi pra você essa experiência de acompanhar esse movimento?
R – No comitê do Rio de Janeiro que está mais perto da gente, a gente às vezes assessora com algumas coisas e a gente fez esse ano uma parceria muito legal com o Colégio Pedro II, que é um colégio super tradicional do Brasil, principalmente do Rio de Janeiro, mas que nunca tinha tido uma experiência de receber no colégio intercambista. E aí tem aquelas coisas que são os caminhos. Quando nós fomos lá, eu e o Comitê Rio fazer uma visita, a gente estava procurando um colégio para uma das intercambistas que ia chegar, o assessor de intercâmbio, o professor Fábio Balod falou assim: “Olha, a gente aqui ainda não recebeu, não sei como é isso”. E ele falou assim: “De onde ela é?”, aí o Andres falou: “Ah, ela é da Alemanha, de Berlim” “Ai, eu fiz meu doutorado lá”, então assim, instantaneamente, porque era uma menina de uma cidade onde ele tinha feito doutorado ele já falou assim: “Ai meu Deus, como é que eu posso não olhar isso com mais carinho?”. A gente fez a colocação da Clara Marie lá e voltamos na escola algumas vezes pra visitar e conversar com ele. E ele estava falando do efeito que isso tem na turma e nela, porque os comentários dos meninos pros colegas acende a luz de umas coisas. Uma coisa que ela falou assim: “Gente, uma coisa que eu não estou entendendo sobre o Brasil, como é que a casa das pessoas é tão limpa e a rua é suja?”, e quem vai explicar isso pra ela? Os colegas têm que explicar isso pra ela. Ter alguém te olhar pela primeira vez e te fazer perguntas de coisas para as quais você já ficou cego, boas ou não. Eu me lembro, com a Lisa teve uma experiência que, a despedida dela, até o vigia da rua foi lá dar beijo e abraço nela, desejar boa sorte. E ela achou aquilo assim. Porque o nível das relações humanas que a gente tem com todas as pessoas foi uma grande surpresa pra ela. Como foi uma grande surpresa pra ela a questão de como a gente cuida do que é de todos de uma maneira muito diferente do que a gente cuida do que é nosso. Ou não. Eu acho que esse tipo de contato que a gente tem, que os alunos têm é que começa a abrir aquele olhinho, começa a dar o brilho naquele olhinho, de como é o outro mas também como sou eu, que o outro te faz pensar sobre como eu sou. E a nossa educação precisa mais disso, precisa muito mais disso. Hoje a gente tem essas questões da cidadania global e dos objetivos da Unesco e a gente está se aproximando em trabalhar em conjunto com as escolas parceiras da Unesco em todas os sistemas de cidadania global, mas cidadania global começa no dia a dia, a cidadania global e o ser local têm que andar juntos. Eu acho que é isso, tirando essas coisas do abstrato e trazendo para o concreto, trazendo pros relacionamentos, trazendo pras conexões, é assim que as coisas fazem sentido.
P/1 – Andreza, conta um pouquinho dos seus desafios agora, cuidando da gestão.
R – Eu acho que meu desafio é esse da escala, de encontrar formas de levar pra outros públicos de outras maneiras, pra outras pessoas as experiências e os aprendizados que o AFS dá, de outras formas. Por exemplo, todo o nosso trabalho agora que a gente está querendo trabalhar mais com escolas e fazer oficinas em escolas, e oficinas de interculturalidade nas escolas. O intercâmbio sem sair de casa. A gente está agora vivendo um momento onde essas coisas estão mais, o sair de casa, até os programas universitários agora estão passando por momentos de mais retração. Mas a gente precisa necessariamente da mobilidade? Da mesma forma que a mobilidade por si só não traz o crescimento, a não mobilidade não te impede de crescer, você pode ter o crescimento localmente, com as ferramentas certas, com as pessoas certas, com a interação certa. Eu acho que esse é o nosso desafio agora, pegar esses aprendizados, essas pílulas, esse módulos e levar pra mais lugares. Hoje, na nossa estrutura, a gente tem pela primeira vez uma pessoa focada em parcerias escolares. A gente tem uma pessoa focada em projetos e captação pra projetos que não são só projetos de mobilidade, mas o projeto de ensinar a conviver. E esse ano foi um ano onde a gente sentiu isso muito de perto, essa questão dos atentados novamente, com a questão da escala da tensão entre os diferentes. E eu estava fazendo uma carta de fim de ano para os voluntários e eu estava falando: “A sensação que muita gente tem quando vê isso na televisão é de impotência, que não tem nada que eu possa fazer. E o voluntário do AFS, o AFS tem o privilégio de não precisar se sentir impotente, a gente sabe o que a gente pode fazer. E a gente sabe o que a gente faz, então a gente tem que fazer mais disso pra mais pessoas porque se não existisse tinha que ser inventado”.
P/2 – Você trouxe essa coisa do ano sabático que acabou virando só seis meses. Como é que se deu essa sua mudança pro Rio de Janeiro porque quando voltou você estava morando com a sua mãe em Teresópolis, né?
R – Sim.
P/2 – Como é que se deu isso e como é que se deu a adaptação da sua filha.
R – Na verdade eu continuei morando em Teresópolis porque eu descia e subia por um bom tempo. Depois, só no meu segundo ano é que eu vim com a Marina pro Rio de Janeiro. Porque também tinha questão de escola e tudo. Mas quando eu vim pro Rio foi já quando eu fui pra Fulbright porque aí era na Gávea, no câmpus da PUC, e a distância. Porque Rio e Teresópolis as pessoas faziam tranquilamente, tinha transporte pra fazer. Quando eu vim pro Rio, também já estava pronta pra sair de casa de novo, já tava pra vir morar no Rio. Tinha uma coisa também que é assim, quando eu pensei em trazer Marina também era coisa pra morar onde eu cresci, então, Terê sempre foi nosso lugar de final de semana, mas não me via criando a Marina lá. Foi muito bom vir pro Rio. E também eu comecei a namorar meu atual marido que já morava aqui, que eu conheci no ônibus indo pra Teresópolis (risos). Eu sentei de um lado de um cara que estava com um discman, eu falei: “Esse cara não vai falar comigo”, eu estava com dor de cabeça. Tinha uma senhorinha, que geralmente puxa um papinho, eu gosto muito, mas nesse dia não queria conversar e tinha um cara ouvindo música, eu falei: “O cara está ouvindo música, não vai falar comigo”. E abri um livro, só que um livro em inglês. Aí ele começou a ficar, começou a puxar papo, eu falei: “Ah, é que eu morei em Boston”. Ele: “Ah, eu também”, porque ele estudou na Berkeley, fez música lá, enfim, estamos até hoje. E também o AC estava aqui no Rio, eu vim com ela pra cá. E foi muito bom também porque aí a minha filha foi estudar no colégio que eu tinha estudado, essas coisas de ir voltando aos poucos. Porque meu plano é, eu vou estudar fora, eu vou aprender coisas e eu vou voltar pra casa. O sentido que fazia pra mim, longe, de por que eu estou fazendo educação, no máximo: “Vou trabalhar pra Unicef”, alguma coisa assim, era a única coisa que eu conseguia imaginar. Mas depois que eu descobri a educação, era só o que eu queria fazer. Tem essa sensação também de voltar pro teu lugar. Hoje eu moro nesse mesmo microcosmo, mas como é que você dá uma volta tão grande e chega tão diferente, né? Muito distante do que quando eu saí.
P/1 – Pra gente ir encerrando eu queria perguntar pra você o que você acha dessa iniciativa, desse projeto, contar a história do AFS assim, por meio da trajetória de vida das pessoas que estão ligadas a esse cotidiano, a esse desenvolvimento?
R – Olha, eu acho que é uma coisa que honra muito a organização porque uma das coisas que eu tenho grande admiração é pela história da organização. Porque ela torna real essas coisas que um indivíduo pode fazer a diferença, uma ideia pode fazer uma diferença. E mais do que um indivíduo, um grupo de pessoas, aquela coisa da Margareth Mead, nunca duvide que um grupo de pessoas pode mudar o mundo, na verdade é a única coisa que pode, um grupo de pessoas com uma intenção. A organização tem essa trajetória sólida mas dispersa, porque a história dela está nas pessoas, está em quem constrói. E esse projeto tem a capacidade de fazer isso, de pegar essas histórias e trazer elas pra algo concreto, palpável, que você vai poder voltar, rever. É uma forma de honrar a história da organização, eu acho muito bonito. E as pessoas no AFS, como vocês já devem ter percebido, gostam de contar suas histórias. E cada história tão multifacetada, tem tantas outras coisas, que eu acho muito bonito, com essa ideia de conectar vidas, compartilhar culturas, mas deixar, eu acho que a história registra o fruto do que o AFS é. Eu acho que é uma coisa que a gente não pode nunca mais parar de fazer porque a organização vai continuar a transformar as pessoas.
P/1 – E pra terminar eu queria saber quais são seus sonhos, o que você pretende ou quer, vislumbra?
R – O AFS me proporcionou oportunidade de concluir agora a minha formação em treinadora intercultural, porque a gente tem metodologia, tem capacitação de treinadora e eu quis fazer. E eu achei muito legal isso porque alguém falou assim: “Você é diretora”. E alguém falou assim: “Deixa a mulher fazer o que ela gosta!” (risos). É uma das coisas boas de você ser diretora é você poder escolher um pouquinho. Escolher o que eu gosto, guardar pra mim um pouco do que eu acho legal. Uma das coisas que eu tinha interesse era nessa parte de treinamento de educação que eu pude fazer, concluí agora a formação. Foi puxado pra caramba, prova, não sei o quê, não sei o quê, fiz. Uma das coisas que eu sonho é justamente nessa próxima etapa. Quando eu sonho com o AFS eu sonho de ver o AFS em todas as salas de aula, eu sonho de ver o AFS formando grupos de professores, eu sonho nesse efeito multiplicador que alguém, não sei se foi o Lucas que falou isso uma vez que eu estava com ele, que a gente tem que crescer em escala exponencial, não dá mais pra ser um a um a um. A história do indivíduo é importante, mas a gente precisa desabrochar um monte de coisa nesse momento porque o tempo urge, esse momento é crítico e a gente precisa alavancar e ganhar, ganhar muitas pessoas pra isso que a gente acredita. É isso que eu sonho.
P/1 – Em nome do Museu da Pessoa e também do AFS a gente agradece a sua entrevista, muito obrigada.
R – Obrigada vocês pela oportunidade.
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