P/1 – Dona Anna Maria, você pode começar falando o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Eu me chamo Anna Maria Amato Nardelli, eu nasci em Messina, Itália, cidade que se encontra na Sicília, ilha localizada na região sul da península italiana. Nasci em 24 de maio de 1933.
P/1 – Seus pais são de Missina?
R – Toda a minha família materna e paterna é de Missina.
P/1 – Você sabe como o seu pai e a sua mãe se conheceram?
R – Eles eram primos. Acredito que se conheceram quando as famílias se encontravam. Nessa época, na Sicília, era comum casar entre primos. Primeiro porque tinham a oportunidade de se verem nas festas e tudo, ocasião de se conhecer alguém, namorar etc.! Então eles casaram e 1925.
P/1 – O que os seus avós paternos e maternos faziam?
R – Os pais dos meus pais, ou seja, os meus avós, eram irmãos. Toda a família era composta por sete irmãos e uma irmã. Eu tenho conhecimento de três ou quatro irmãos que trabalhavam juntos. Eles tinham um curtume em Messina. Essa fábrica durou até pouco antes da guerra mundial.
P/1 – Essa fábrica era da família?
R – Era. Mas eu sei que meu pai, depois de fazer o serviço militar, se casou e teve a primeira filha, Phina, ele foi para Genova. Porque naquele período se vê que o trabalho já era escasso. Então eu pai queria ver outros lugares etc. Então ele se mudou para Gênova, ao norte da Itália, que já era mais industrializada do que a cidade dele. Messina não tinha indústrias, tinha pouquíssimas coisas. Então em 1936, junto com a família, ele foi buscar algo melhor.
P/1 – Ele foi para lá com a sua mãe e a sua irmã, é isso?
R – Isso. Nós somos em três irmãs. Meu pai teve um primeiro filho que morreu ainda pequeno, e depois teve só meninas: a minha irmã Josepha é a maior, que no diminutivo nós falamos Phina. Depois vem a minha irmã Maria e depois eu, Ana. Eu disse que não, mas eu já estava nascida quando ele foi para Genova. Desculpe, foi um lapso. Eu tinha três anos. Nos ficamos por lá até a guerra, em 1939, quase quarenta. Eu fui a escola lá, minha irmãs também, foram alfabetizadas lá.
P/1 – E seu pai trabalhava?
R – Ele tinha um laboratório químico que, casualmente, mandava produtos aqui para o Brasil, para uns amigos que também tinham laboratório químico, como o Vicente Amado Sobrinho. Ele sempre adorou o Brasil, tinha conhecimento sobre o pais, tinha livros, e então esses contatos o aproximaram.
P/1 – Mas ele nunca tinha vindo?
R – Não. Ele iria vir em 1939, mas foi declarada a guerra e ele desistiu. Me lembro que ele comprou aquele baú, porque viria de navio. Não sei se você sabe, mas antigamente se usava viajar com um baú que ficava em pé e abria em duas partes. Era como um armário. De um lado tinham gavetas e do outro a roupa pendurada. Dentro tinha mais um saco com elástico, onde você colocava outras coisas. Isso era chamado de baú de cabine. Você fechava e o baú ia diretamente para a sua cabine no navio. Isso, claro, viajando de forma melhor. Os imigrantes, coitados, não tinham esse espaço. Não tinham nem a cabine particular. Então eu me lembro desse baú que era lindo, maravilhoso! Era todo acabado, tinha uma fitinha a cada gaveta, que abria. Era tudo mole mas tudo forrado, uma delícia. Depois, este baú também serviu para nós virmos para cá. Nós guardamos este baú. Então quando foi 1939, a guerra se aproximou e foi declarada em 1940. Então o meu pai achou que Genova seria muito perigoso, porque lá tinham indústrias de armas, metalúrgicas, um porto importante. Embora Mussolini dissesse que era uma guerra que durava uns seis meses, todo mundo estava apavorado. Se chamava guerra lampo, como se fosse ‘guerra relâmpago’. Como era verão, todos os anos nós íamos a Sicília. Lá é assim, as férias escolares começam em junho e acabam em setembro, então nesses meses, cada um vai fazer as férias onde acha melhor, e nós íamos visitar o meu avô materno, que ficou lá na Sicília. E então fomos para lá e meu pai achou melhor não voltarmos para Genova. Como era perigoso e a guerra seria rápida, ele optou por passar este tempo na nossa terra. Mas isso não foi assim. Então a guerra começou e logo se formaram duas frações, no eixo eram Itália, Alemanha e Japão, e nos aliados, só os ingleses e franceses. Que depois se aliaram aos Estados Unidos. Talvez, se os Estados Unidos não tivesse entrado, talvez a guerra não teria tido este desfecho, porque as forças americanas eram muito superiores em equipamentos bélicos. No começo, em 1941, 1942, o inimigo do eixo era praticamente só os ingleses. Nesse período nós íamos fugindo.
P/1 – Vocês saíram de Genova e foram para Sicília.
R – Isso.
P/1 – Como você percebia a guerra?
R – No começo a gente tinha muito medo, porque não sabia o que era uma guerra. Tinham muitas vozes que diziam que os ingleses iriam jogar gases mortíferos, até chegaram a distribuir máscaras para caso de ataque.
P/1 – Nesse período a senhora estava na escola?
R – Não. Como era verão, eu não estava na escola.
P/1 – Mas antes você estava?
R – Não, porque eu não tinha idade. Fui apenas um ano, lá em Genova, e depois fui para a Sicília. Então nesse período não tinha aula. Em setembro nós fomos para Calábria, porque o meu pai precisava trabalhar. Calábria fica no continente, na ‘bota’. É importante explicar: porque existem as ilhas, ai tem um canal que divide os mares e ai começa a ‘bota’, pela Calábria e vai indo. Então fomos para lá, que não era muito longe da onde estávamos, apenas algumas horas. Lá o meu pai fez um comércio, fazia algumas coisas para nós sobrevivermos. Passamos uns meses muito bons lá. Quando ainda estávamos na Sicília já existiam bombardeios muito grandes e o meu pai viu o perigo que realmente existia, além disso, falava-se que logo havia o desembarque dos americanos por lá, para ocupar a Itália. Começaram a espalhar a voz que todo esse exército era mercenário. Quando eles entravam nas cidades, pegavam as mulheres, faziam o que queriam, e meu pai com três meninas e minha mãe jovem, ficou apavorado e resolveu escapar da Sicília. Quando estavamos na Calábria, fomos para Terni, na casa de um amigo muito querido do meu pai, casado com uma austríaca, e ele sugeriu que fossemos para Bolzano, cidade próximo da Áustria, para ficar com eles em uma fazenda onde não aconteceria nada, porque era muito longe e distante de tudo, um lugar seguro. E meu pai achou que deveríamos fazer isso. Fomos de trem até um certo ponto. Paramos em Terni, cidade aonde estava a minha tia, mas aquela noite aconteceu um telefonema. Nós, moças, dormíamos, mas sabíamos que estava havendo algo complicado. No dia seguinte pensávamos em fazer uma visita até um santuário, mas no café da manhã esta visita foi excluída porque o meu pai disse que iríamos embora, pois haveria um bombardeio muito grande na cidade.
P/1 – Você tinha quantos anos quando isso aconteceu?
R – Oito anos.
P/1 – Você tinha medo da guerra?
R – Eu tinha medo só quando apareciam os aviões, as excursões. Mas eu fantasiava muito ainda. Eu gostava de viajar e ver lugares novos. Eu estava com medo apenas quando tocava o alarme e tínhamos que ir para o abrigo. A minha mãe estava com medo, ela disfarçava mas eu sentia. A minha irmã do meu também. Quando o alarme tocava, nem que fosse no meio da noite, nós tínhamos que nos levantar e ir para o abrigo, seja perto de casa ou não. Era num túnel, ou debaixo de uma rocha, bem fortificada, coisa assim. A minha irmã nunca acordava para ir para o abrigo. As vezes o meu pai precisava levá-la no colo, mas ela não acordava. Ela me dizia: “me deixa aqui! me deixa aqui!”. Mas era impossível deixá-la lá. Quando acontecia isso a noite era triste! Naquela época ela deveria ter uns treze anos, imagina, pesadíssima. . Enfim, continuando a história, naquela noite nós recebemos o telefonema do bombardeio, vindo de um coronel, sei lá, que a minha tia conhecia da aeronáutica. Então nós saímos correndo e seguimos de trem até Bolzano, que é bem lá em cima, quase perto da Áustria. E lá entramos numa fazenda maravilhosa. Um campo com colonos e uma casa grande, o qual tínhamos alugado. Fomos nós, com este casal de amigos e um filho de um ano e meio, mais ou menos. Isso é uma parte da minha adolescência, dos oito aos doze, tempo que durou a guerra.
P/1 – E quais eram as suas brincadeiras?
R – Eu quase não brincava com outras meninas. Mas os donos dessa fazenda eram camponeses, então tinham plantações de uva, maça, tinham bois, fazia-se queijo, manteiga, essas coisas. Quando eles iam ao campo, pela manhã, nos íamos também. Então a gente carpia. Então voltávamos e eles pegavam o feno, para dar para os animais e nós íamos ajudar. Para nós era uma festa! Depois íamos fazer excursões perto, em cidades próximas que eram muito bonitas. Ainda não era inverno, era quase inverno. Então tínhamos que pensar em pensar madeira, para se abrigar no inverno. A casa era muito linda. Tinha aqueles edredons grandes, de plumas, cada quarto tinha estufa, era muito bonito. Todas as casas de lá tinham isso. Então nós íamos a um bosque maravilhoso que tinha lá perto. Íamos com as moças mais práticas e cortávamos uns ramos. Eu lembro que eu sentava lá em cima e eles me tiravam pelo caminho. Porque os bosques lá não são como os daqui. São bosques que você entra dentro, anda, tem folhas no chão que até fazem aquele barulho, tem cogumelos, dá para entrar no bosque e andar, não é perigoso, por conta de bichos. Então eu ia, cortava os raminhos menores, amarrava e depois aquilo servia para ser puxado e transportado para casa, porque pensávamos que iríamos passar o invernos lá. Mas politicamente a coisa foi piorando. Então Mussolini, que como vocês sabem, era um ditador, foi preso e então a coisa foi muito complicada. Não se sabia mais como a coisa seria. Nós tínhamos medo, pois éramos aliados dos alemães, os austríacos eram quase alemães, embora estivessem em solo italiano. Então até saber como seriam as coisas, passamos por momentos terríveis. Enquanto estava por lá aquela senhora austríaca, ela nos amparava um pouco, mesmo assim tivemos muito medo. Então ficamos trancados em casa por alguns dias, fingindo que não havia ninguém por lá. Houve conflito entre o exército italiano e alemão, que pensavam que já eram inimigos. E depois de tanta peripérsia, saímos de lá e fomos para a casa de uma amiga dessa senhora, pertinho de Bérgamo. A casa dessa amiga era muito grande, muito linda, e pensamos que poderíamos passar um tempo por lá. Mas quando chegamos lá, ficamos sabendo que os alemães solicitaram uma parte da casa, a edícula dos fundos, para fazer um depósito de uniformes e talvez armas. Eles controlavam a área com jipes, e então ficamos lá por dois dias. Os alemães naquela época vinham com aquelas medalhas e podiam pegar as casas e acomodações com quartos livres, e você não podia falar nada. Resumindo, nós dormíamos ao lado do quarto dos alemães. . Meu pai não podia aguentar isso. Ele dizia: “se fugimos de lá por esse conflito, como é que vamos ficar lado a lado com os alemães? Ainda não sabemos se eles são amigos ou inimigos”. Então saímos de novo e voltamos para Genova, onde o meu pai tinha guardado um escritório.
P/1 – Como vocês sobreviviam financeiramente?
R – Nós viemos aqui para o Brasil por causa disso.
P/1 – Então vocês voltaram para Genova?
R – Voltamos para Genova, depois fomos para muitos outros lugares, enfim, muita coisa.
P/1 – Mas vamos contar, como foi em Genova?
R – Voltamos para Genova, onde o meu pai teve um apartamento e um escritório. Quando nós fomos para a Sicília ele vendeu o apartamento e ficou com o escritório, com todos os móveis do apartamento dentro. Então quando voltamos, arrumamos tudo como pode. Minha mãe montou as camas, num cantinho um fogareiro elétrico para fazer alguma coisa de comer e a gente se adaptou lá, mas acontece que toda noite tinha uma incursão aérea muito forte, bastante avião. Então nós tínhamos que sair de lá, ir a pé até um túnel rodoviário, que servia de abrigo. A noite inteira assim. Como a noite inteira tinha esse alarme, a gente não dormia, não fazia nada e estava muito estressado. Então o meu pai pensou em sair de lá. Então um amigo falou para ele ir para Alássio, que é uma cidade de veraneio, que era um lugar lindíssimo. Não teria nada bélico, nem fábricas, nada. E toca irmos para lá. Meu pai alugou uma casa, estava tudo lindo, maravilhoso, mas toda noite tinha um avião só, que depois o povo denominou de ‘pipo’, porque toda a noite ele só voava um pouquinho, jogava uma bombinha aqui e outra lá, só para estressar as pessoas. . Ele não bombardeava a cidade, mas só dele passar, você tinha que ir para o abrigo. Então meu pai quis ir para outra cidade mais a dentro, ou não teríamos incomodo. Fomos para uma cidadezinha bem lá nas montanhas, mas não podíamos ficar muito, pois meu pai tinha que trabalhar. Ficávamos uns meses lá e depois voltávamos. E logo começou a escola, porém a minha mãe sempre tinha medo. A escola não era segura. Quando tinham ataques, nos abrigavam em quartos mais resistentes, todo mundo ficava embaixo da porta, quando caia uma bomba, todos iam ao chão, então não era uma coisa que deixava a minha mãe tranquila. Para todos os alunos que não podiam ir a escola com frequência, se pegava o programa, levava para casa e depois, em certa hora, você ia lá e fazia os exames, sem frequentar a escola. Isso porque as vezes você ia e a escola estava toda destruída, ou ia e o alarme soava, levando você para outro lugar. Então por um, dois anos os estudos foram assim. Então, em 1945, acabou a guerra. Mussolini foi preso e quando solto ele instituiu uma outra república, que voltou a ser como antes, nós com os italianos. Mas acontece que nesse período, todos os italianos, principalmente os jogens, fugiram para as montanhas, formando aquele grupo que se chamava Partesão, que estava preparando a entrada dos americanos, para liberar a Itália. Como eles faziam isso? Matando e incendiando alemães, coisas muito perigosas. Mas eles viviam nas montanhas, escondidos. Então nessa cidadezinha onde, pela primeira vez eu vi brasileiros. Isso porque, ele haviam sido enviados para a guerra, para Monte Castelo, onde morreram quase todos. Os que sobreviveram e conseguiram tirar férias, foram enviados para essa cidadezinha, Alassio. Então tinham esses soldados brasileiros, todos iguais naquela época. Eram baixinhos, de bigodinho, com uma cor de pele diferente, uniformes que sobravam, não sei, eram assim, estranhos.
P/1 – Nisso você estava com quantos anos?
R – Quase 12 anos. Depois nós voltamos de um jeito meio precário, com uns amigos nossos. Porque na Sicília, tinha acabado a guerra em 1943, com o desembarque, os americanos iam liberando o desembarque. Lá em cima nós ficamos com dois anos de guerra a mais. Então quando voltamos, tudo estava destruído. Para chegar me Messina, tinha-se que desviar todo o caminho.
P/1 – E seu pai ia sobrevivendo como?
R – Algum trabalho que ele achava para fazer. Em cinco anos, todo o dinheiro dele foi embora. Nós comíamos muito bem, mas tudo pelo mercado negro. Algumas pessoas se arriscavam de ir em busca do que as famílias precisavam e depois vendiam com três vezes o valor, normalmente eram mulheres que faziam isso. Então você tinha que pagar aquele preço.
P/1 – E dentro da sua casa, quem exercia a autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – Meu pai. A minha mãe também, mas ela aceitava tudo o que ele dizia, lógico. Todo mundo quando jovem, no começo do regime, quase todo mundo era fascista. Pouca pessoa não era. No começo era uma maravilha, como toda ditadura, no começo, tudo vai bem, mas aos poucos o meu pai foi percebendo que essa história de guerra rápida, de precisar de colônias em outros lugares não daria certo. A minha mãe não era fascista, ela não gostava.
P/1 – O seu pai usava esse uniforme?
R – Claro, quando era reunião, tinha que usar. Se você era inscrito no partido, tinha.
P/1 – Ele era inscrito no partido fascista?
R – Todos naquela época eram. Quem não era, não trabalhava, não fazia nada. Era uma lã linda, toda preta. E era feita para que você, no calor, não sentisse calor e não frio, te abrigava. Era quase impermeável, era ótimo. Antes, quando era bem fascista, ele dizia que queria ser enterrado com este uniforme. Depois o uniforme sumiu e ele não falava mais. Ficou muito desgostoso com o desenrolar da ditadura fascista. Meu pai em 1948, antes de ter algo para trabalhar, pensava quanto tempo ficaria naquele lugar. Então, como ele já tinha esse contato no Brasil, foi chamado e veio. Então em 1950 eu vim com a minha irmã. A minha outra irmã e minha mãe ficaram, pois ela ainda estava estudando.
P/1 – Você estava com quinze anos?
R – Dezessete. Eu já tinha me formado em Liceu, não sei como se fala aqui.
P/1 – Colegial, ensino médio. Como vocês vieram para o Brasil?
R – De navio.
P/1 – Como foi essa viagem?
R – Foi muito horrível porque nos separamos da minha mãe, mesmo que fosse para entrar com o meu pai, foi difícil.
P/1 – Você já tinha andado de navio antes?
R – De navio sim, porque a nossa cidade estava na ponta. De Missina nós sempre íamos a Calábria de navio, mais era uma viagem rápida, chamada trajeto. E tem uma coisa particular: quando vem o trem do norte, o trem entra dentro desse barco. Não pode entrar inteiro porque não cabe, entram-se quatro ou cinco vagões e depois tentasse de novo, com os outros. A composição fica dentro do navio, passa dentro do canal e lá, do outro lado do rio, volta a estação ferroviária para se recompor e seguir, Outros navios são só de carro, mas que embarcam pessoas também. E numa viagem rápida, em 30, 40 minutos já se estava do outro lado.
P/1 – Você estava contando sobre os tipos de navios.
R – Isso. Nós demoramos 21 dias para chegar ao Brasil.
P/1 – O que você pensava sobre o Brasil?
R – Como eu sempre fui fã do meu pai e ele sempre nos educou com muita fantasia e vontade de viajar, essa era mais uma aventura. Estavamos curiosas para conhecer o pais. Ele falava muito daqui. Imagina, isso em 1939 e eu ainda me lembro que ele comprou um livro grande em português, para aprendermos a língua, na capa tinham umas caravelas. Depois ele comprou outro livro, que chamava-se ‘o Brasil e suas riquezas’, ele lia esse livro para a gente e ficávamos encantadas! Em 1939 ele já queria que aprendêssemos a língua.
P/1 – Vocês chegaram por onde?
R – Pelo porto de Santos. A entrada no Rio de Janeiro foi uma coisa deslumbrante. Naquela época tinha muito mais mata e não tinham tantos arranha céus, então era muito romântico. Mas nos gostamos ainda mais de Santos, porque o porto tinha aqueles canais, com várias bananeiras, um cheiro estranho, de flores, matas, ervas, forte e profundo. Era muito tropical. Quando chegamos no cais, armazém 16, onde chegavam todos os imigrantes, já vimos pessoas de cor.
P/1 – Você nunca tinha visto?
R – É, na guerra sim, pois na ocupação tinha muito preto. O exército americano tinha muita gente escura. Mas era um preto diferente, aqui eram pretos coloridos. Porque quando a gente passa o equador, a cor fica completamente diferente. Lá (no hemisfério norte) as cores são um pouco mais suaves, por conta da química do ar. Mas aqui a cor é a cor. Então o preto com coisa colorida é lindo! Quando o navio parou no Rio de Janeiro, alguns imigrantes que conhecemos na viagem desembarcaram em Copacabana. Como nós éramos sozinhos, meu pai alertou a minha irmã e a mim que não descêssemos do navio por nada. Quando chegamos no Rio todos diziam ‘venham! Venham conhecer a praia de Copacabana!’.
P/1 – Então vocês chegaram a descer no Rio?
R – Não. A minha irmã e eu ficamos no navio com a tropa (tripulação). O comandante até desceu, mas nós ficamos. Tinha um cais lá, com um monte de meninos pretos que vendiam banana. E para nós, banana era maravilhoso e quase desconhecido. Naquela época, na Europa não existia banana, ainda mais durante a guerra. Então descemos e compramos um cacho de banana, não me lembro quanto custou. Quando voltou toda a turma para o navio, eufóricos e dizendo que éramos burras por não termos descido, dissemos que ficamos para comer bananas. Um deles, que morava aqui em São Paulo e tinha ido a Itália buscar a irmã, perguntou aonde descemos e quanto pagamos. Dissemos o valor e ele disse que havíamos pago uma fortuna! Ele dizia que pagamos o equivalente a um mês de um ordenado de um médico. Acho que naquela época pagamos três não sei o que. Três contos de réis, eu acho. Então começamos bem, sendo roubadas já no início! . Mas então chegamos a Santos, com uma turma que o La Mato mesmo veio buscar.
P/1 – Aquele tio que tinha um laboratório aqui em São Paulo?
R – Não exatamente ele, mas o primo dele. Que hoje é o Vicentine Mato, que hoje é médico da pele.
P/1 – Ele foi buscar vocês lá no porto?
R – E a mãe e o pai. Nós tínhamos trazido um baú com todas as nossas coisas e quando chegamos eles separaram tudo o que era nosso. Separaram tudo o que era bordado, roupas, lençóis, tudo. A minha mãe falava para já levarmos da Itália. No cais separaram tudo, em cima de um banco todo sujo.
P/1 – E porque eles tiraram?
R – Não sei, eles queriam ver. Porque pagava-se por aquela roupa bordada, entende? E nos pagamos um dinheirão.
P/1 – Mas para quem se pagava?
R – Para o cais. Mas e depois, para guardar tudo dentro? Nós tínhamos que ter paciência. Meu pai dizia para deixarmos e depois organizarmos tudo. Para evitar que eles colocassem as mãos dentro, que estavam todas sujas. Foi um impacto muito grande. Então nós viemos durante a noite e fomos para a casa que meu pai tinha alugado.
P/1 – Então foram buscar vocês de carro?
R – Isso mesmo. E fizemos aquela estrada antiga de Santos, que era muito bonita. No escuro nós não víamos, mas eles iam falando ‘olha, aqui é isso, aqui é aquilo’. Quando chegamos em São Paulo fomos para a casa.
P/1 – Já para a casa que o seu pai tinha alugado?
R – Isso.
P/1 – Mas já estava mobiliada?
R – Já.
P/1 – Quem tinha arrumado a casa para vocês.
R – O meu pai. Ele já havia estado no Brasil. De 1948 a 1950 ele esteve sozinho no Brasil. Em 1950 veio a minha irmã e eu.
P/1 – E onde era a casa dele?
R – A casa? Sabe a Avenida Brasil com a Avenida Rebouças? No começo da Rua Francisco Leitão, era lá. Então era um lugar ótimo. Tinha um ônibus, o Jardim América, que nos pegava no Anhangabaú, vinha pela Avenida Nove de Julho e ia direto para a nossa casa. Passava pela praça Portugal, que ainda se chama assim, e aonde hoje é o Banco Bradesco, era a parada inicial desse ônibus. Então nós só atravessávamos e estamos em casa. Era ótimo.
P/1 – E qual foi a sua impressão quando chegou em São Paulo?
R – Nos gostamos muito, muito de São Paulo. Naquela época a cidade era ótima! Tinham coisas que, por exemplo, quando você saia do túnel da Avenida Nove de Julho, era tudo terreno, com um pouco de lixo, até. Não tinham prédios, nada. Então você via um contraste: No centro, o viaduto do chá, o Martinelli, era tudo fantástico. A primeira coisa que o meu pai nos mostrou foi o Martinelli. Na Avenida São Bento com o Martinelli o meu pai tinha um escritório. Então ele nos levou para conhecer o escritório, o edifício Martinelli, onde subimos lá em cima para ver a vista, o vale do café. São Paulo era lindo! A rua Barão de Itapetininga e Rua Direita tinham lojas maravilhosas, todos eram palacetes franceses. Era lindo! Então nós não estranhamos nada por esses pedaços. Nos estranhávamos um pouco quando pegávamos esse ônibus e passávamos pela avenida Nove de Julho, que tinha apenas o túnel, poucas casas, alguns prédios começando a construção, mas não era habitado. Quando chegávamos a avenida Rebouças, tinha uma ilha central muito grande. Hoje tem um ilha, mas é muito pequena. Antes começava no Jóquei Clube e ia até a Consolação, com pista para os cavalos do Jóquei andar. A avenida Rebouças tinha casas, mas não como é hoje. Tinha uma casa, depois alguns terrenos livres, tudo assim. Na rua Francisco Leitão, Joaquim Antunes e rua dos Pinheiros eram ainda casinhas. Tinham muitos terrenos. A região era pequena, com casas muito boas. Lá moravam médicos, os nossos amigos. A região até a Teodoro era muito boa. Aonde eu moro hoje, na Vila Madalena, ir da rua Francisco Leitão até a Vila Madalena era uma viagem! Eu me lembro que era um lugar ermo, diferente. Minha mãe dizia que tinha um ar diferente naquele lugar. E subíamos e descíamos ladeiras. Na rua Cardeal Arcoverde passava um bonde, que vinha pela rua João Moura, alguma coisa assim. Então naquela época era uma viagem. Moramos por lá muito tempo e depois fomos para o largo do Arouche, na rua Vieira de Carvalho.
P/1 – O escritório do seu pai era do que?
R – Ele continuou com produtos químicos e depois fez outras coisas, como exportação de carne. Ele foi o primeiro a conseguir uma licença do governo para exportar carne. Ele vivia no Rio de Janeiro, que era aonde tinham os políticos e governo. E sempre tinha algo dessa burocracia que nunca acabava para resolver. A exportação era algo que precisava de pastas e pastas de documentos, e ainda é assim. E meu pai, perseverante, conseguiu. E a gente foi se adaptando.
P/1 – E o clima?
R – Olha, quando chegamos aqui, a minha mãe tinha muito medo dos trovões que tinham. Nos tínhamos um armário com uma prateleira bem funda. A minha mãe se enfiava lá. E realmente, as chuvas e trovões de São Paulo naquela época era uma coisa impressionante. Agora se tem muitos prédios, mas em 1950, era mata. Quando viemos, o meu pai disse a minha mãe que o clima era tropical, que vendesse tudo o que era coisa pesada. Depois ela dizia: “como você disse para eu vender o meu casaco de pele? Agora estou morrendo de Frio!”. Em julho aqui era terrível! Era úmido e as casas não tinham sistema de aquecimento. Então os trovões e chuvas eram impressionantes. Tanto é que se dizia “raio que te parta!”. Era algo impressionante! . A língua portuguesa foi algo que logo eu aprendi. Na rua Santo Antonio tinha uma casa chamada ‘casa Roosevelt’, que eles ensinavam o inglês e o português para estrangeiros. Eu aprendi o português do Brasil, porém com uma professora de Portugal. Então eu aprendi a língua corretamente, porém, com sotaque. Enfim, o sotaque sempre fica.
P/1 – A senhora estava com quantos anos quando chegou aqui?
R – 17 anos.
P/1 – Você já tinha se formado no colegial?
R – Sim. Eu pensava em estudar aqui, mas o meu pai ainda tinha receio. Para eu revalidar os estudos, primeiro eu tinha que fazer geografia, história e português. Depois ver aonde eu poderia fazer. Aqui era complicado. Eu teria que ter feito um ano de ensino médio, para depois fazer o tal do cursinho e entrar na faculdade. Se passou muito tempo e o meu pai não se decidia. Eu gostava muito de desenho, mas não tinha faculdade de arte por aqui. Chegou só em 1957. Tinha um instituto onde se ensinava o desenho, mas não como as coisas que se tem hoje. Depois as minhas irmãs se casaram e numa certa hora voltamos para a Itália com a minha mãe.
P/1 – Elas se casaram aqui no Brasil?
R – Sim. A minha irmã do meio, quando chegou com a minha mãe, fomos busca-la em Santos. Lá tinha um rapaz que ia buscar também uma tia, que tinha da Itália. Nós estávamos com mais uma amiga que, por coincidência, conhecia esse rapaz. Para você ver como o mundo é pequeno. Fomos embora e depois a minha irmã pegou uma gripe, uma bronquite e estava muito abatida. Essa amiga disse que esse rapaz telefonou para ela pedindo informações sobre a minha irmã, pois tinha ficado encantado por ela. A minha irmã era realmente muito bonita! Quando o meu pai falou para ele que trabalhava com laboratório, ele achou que meu pai era médico e começou a procurar os médicos com este sobrenome. Então achava o Dante Mato, por exemplo, e não achava o meu pai. Até que a outra moça falou para ele, e ele foi conversar com o meu pai. Depois se encontraram e casaram depois de um ano. A minha irmã também conheceu um médico e se casou. Eu ainda era jovem, solteira e meu pais pensaram que agora, com duas filhas já casadas, que gostariam de voltar para a Itália.
P/1 – Para morar ou passear?
R – Passear. E ai eu revi um amigo de infância, que estudava no meu colégio. Eu encontrei com ele, fiquei lá um pouco e depois de um ano, nos casamos.
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram na Itália?
R – Eu ia ficar uns três meses, com a minha mãe. Eu fiquei namorando esse rapaz, que hoje é o meu marido, mas ele queria casar logo.
P/1 – Você ficou lá com quem?
R – Com a minha mãe. O meu pai ia e voltava.
P/1 – Mas vocês ainda tinham casa por lá?
R – Não. A gente alugava. Então ele queria casar logo porque meu pai queria voltar. E ele dizia que não sabia se queria vir para o Brasil. Eu queria mais uns seis meses para saber se ia casar ou não. E meu pai disse que tudo bem, que esperaria até junho, julho no máximo e eu tinha que decidir. Então em julho eu me casei na Itália e vim com ele para São Paulo. Eu queria ficar lá, mas o meu pai fez um jeito que conseguiu nos trazer.
P/1 – Esse moço foi o seu primeiro namorado?
R – Sim. Porque no Brasil eu praticamente não conhecia ninguém. Tinha um moço, mas por ele eu não me interessei.
P/1 – E suas irmãs foram para o casamento?
R – Não. Só o meu pai e a minha mãe.
P/1 – E o que o seu marido fazia?
R – Ele tinha um conjunto com o pai e o irmão, uma retífica onde consertavam cilindros de carros e navios. A mãe dele morreu naquele ano, por isso não pudemos casar logo. Era luto. Ela morreu em outubro e nós nos casamos em junho. AI viemos para cá e depois de uns meses, o pai dele faleceu.
P/1 – Quando vocês vieram para cá, aonde moraram?
R – Na rua Vieira de Carvalho, no centro. Moramos lá. Porém aconteceu do pai dele morrer e a família pedir para ele voltar. Teria a divisão dos bens e ele precisava estar presente. Convenceram ele a voltar, nessa época eu tinha um filho pequeno.
P/1 – E o que o seu marido fazia?
R – O meu pai tinha a ideia de fazer caminhões frigoríficos. Tinha uma fábrica na Vila Maria que fazia isso. Como o meu marido trabalhava com isso, poderia ajudar. Mas depois os parentes fizeram de tudo para ele voltar e voltamos. Ficamos na Itália uns três anos e pouco, com o meu filho pequeno.
P/1 – Qual é o nome dele?
R – Josepe. Como o pai dele. O meu único filho, jornalista. Fez televisão, de tudo. Escreve muito bem, redator de jornais, escreve em revistas, muito bom. Se formou aqui.
P/1 – E o que vocês fizeram lá?
R – Ele tentou trabalhar com o irmão, mas foi muito complicado por conta da família do irmão dele. Não nos sentimos bem e meu pai sugeriu de voltarmos para o Brasil. Voltamos. O meu filho já tinha uns três anos e meio, até ele se adaptar ao idioma, foi um pouco difícil.
P/1 – Você não trabalhava aqui, certo?
R – É. E então, em 1964 nós voltamos para o Brasil. O meu filho nasceu em 1960. Ai eu vi que aqui no Brasil, a parte de jardim de infância era muito escasso. Os poucos que tinham, ficavam com uns carimbos, carimbando papeis, e era tudo o que se fazia. Ai uma amiga querida e eu pensamos em colocar um jardim de infância como se deve. E colocamos um na avenida Indianópolis. Um jardim de infância maravilhoso. O erro das pessoas europeias aqui no Brasil é, nós estávamos na frente, de algum modo, e pensávamos em implantar aquele sistema aqui, pensando em dar uma contribuição, o que é um engano pois as coisas tem o seu tempo. Colocamos então um jardim de infância avançado uns 20 anos.
P/1 – Como era o nome?
R – Jardim de Infância Indianópolis.
P/1 – Quanto tempo durou?
R – De 1964 a 1968. Quatro anos. Trouxemos tudo dos Estados Unidos, esses brinquedos que hoje se usa muito, antes não tinha por aqui. Dois arquitetos projetaram os móveis sem nenhuma aresta e empilháveis. E o sistema de Maria Montessori, que não existia aqui. Fizemos um curso no MEC (Ministério da Educação) para implementar este método com uma versão brasileira. Uma professora Russa foi quem adaptou esse método para cá, se chamava Valeska, se não me engano. E era maravilhoso. As crianças vinham com muita vontade, choravam para ir embora. Eu tinha professoras muito capacitadas, formadas no Rio de Janeiro. Era um trabalho belíssimo. Tínhamos uma televisão e, numa parede grande que tinha lá, pegamos todas as crianças para fazer um desenho com tinta óleo. Era tudo de criança. Hoje tem grafitti. Naquela época não tinha. Eles fizeram desenhos maravilhosos. Os ônibus que passavam na rua paravam para ver. Começamos a incentivar todas as festas, tínhamos piano, uma bandinha. O uniforme tinha uma golinha branca, que se punha e tirava. Essa golinha estava sempre maltratada, suja. Então uma empregada que tínhamos, antes das crianças irem embora, lavava todas, engomava e passava. Então veja se poderia continuar um negócio desses. Nos pensávamos, vamos colocar a escola aqui, porque ainda não tem. A região era cercada por casas boas. Mas nós ficávamos loucas. Mandavam as crianças com as empregadas ou chofer. Tinha uma criança, por exemplo, que de lanche mandava seis bananas e uma coca cola desse tamanho, isso para uma menina de três anos. Naquela época então colocamos também uma consulta psicológica para os pais. Hoje tem psicólogas nas escolas, mas antes não. Naquela época, se começavam as crianças com pais separados. Então tínhamos um trabalho grande, mas era maravilhoso. Hoje se paga a escola com uma promissória, não sei como era. Mas naquela época, dávamos um talãozinho que todo mês a pessoa vinha e pagava. Quando chegava outubro, elas retiravam a criança para não pagar novembro e dezembro. Nos aguentávamos, mas chegou num ponto onde não dava mais. Nós fornecíamos tudo e tínhamos um preço bastante razoável. Eu comprava aquele rolo de papel craft, a gente estendia no quintal onde eles desenhavam. Tínhamos rolos e rolos de papel com temáticas diferentes. Gentilmente tentamos ir a casa das pessoas para receber, mas nunca éramos recebidas. Diante dessas coisas, infelizmente tivemos que doar aquilo tudo, pois ninguém podia comprar. Ficamos até doente. Os nossos maridos nos mandaram para a praia e eles de desfizeram disso tudo. Eu não quis nenhuma lembrança e minha amiga também não. Tenho apenas algumas fotografias.
P/1 – O seu marido estava trabalhando com o que?
R – Como engenheiro, em uma firma americana. Depois o meu filho foi estudando, foi passando o tempo e em 1980, eu que sempre gostei de gastronomia, decidi abrir um restaurante, lá na Alameda Tietê. Você não pode lembrar, mas as pessoas de mais idade podemO restaurante foi um sucesso grande. Fiquei lá por cinco anos. Este casal foi embora e eu convidei a minha irmã para ajudar.
P/1 – Era comida o que?
R – Quando eu abri, a intenção era de um restaurante vegetariano, mas como eu te disse, isso era um pouco a frente do tempo. No começo era, mas as pessoas começaram a pedir carne e servíamos comida Italiana e Sicíliana. Mas mesmo assim, eu tinha um menu verde e um vermelho. Eram menus completos: entrada, prato principal, frutas e sobremesas, de maneira que a pessoa sabia o que gastava. E nós tivemos muito sucesso. Naquela época não tinha tantos restaurantes italianos.
P/1 – E quem foi para a cozinha?
R – Eu e outras meninas. Foi muito bom. Fiquei um pouco doente e, depois de cinco anos, passei o restaurante.
P/1 – A senhora pode repetir este pedaço?
R – A casa era da Nilzinha Brizola, mas o administrador do pai dela, a cada ano aumentava o preço, o que era um absurdo. Nós não podíamos repassar esse dinheiro para os clientes. Nos desgastamos muito e chegamos a conclusão de fechar. Nós até nos humilhamos pedindo para ele fazer um preço mais camarada, mas não teve jeito. Eu também não estava bem de saúde e deixei o trabalho para a minha irmã Maria, que também não aguentou. Depois de muito anos eu ainda tinha a ideia de abrir outro restaurante, e abri. Aqui na Vila Madalena, restaurante Santa Vitória. E aconteceu mais ou menos a mesma coisa. Eu morava perto, o que era mais fácil, mas me desgastei muito porque estava sozinha, não quis ninguém.
P/1 – Era de comida italiana também?
R – Era. Quando alguém soube que eu era a dona daquele restaurante da Alameda Tietê, vinham todos para cá, eu pensava que o público de lá era o da região, mas não era, era tudo de pinheiros. E as vezes encontro alguém que diz “a senhora teve coragem de nos trair por duas vezes”.
P/1 – O segundo também era cardápio verde e vermelho?
R – Não. Eram todos pratos inventados e patenteados por mim.
P/1 – Quais pratos?
R – Dizendo assim não tem muita graça. Tinham muitos macarrões, peixes, carnes, tudo feito lá. Tinham muitos carpaccios, todos diferentes. Depois o povo começou a imitar. Eu fiz carpaccio de berinjela, abobora, alcachofra, fazia muitos! A mídia me apoiou muito. Eu tinha que ter pego esse gancho. Fui escolhida entre os treze melhores restaurantes do Brasil. Mas naquele momento eu não tinha condições de aproveitar. Eu saia de casa as sete horas e voltava a uma, uma e meia da noite. Era muito puxado. Eu tenho mania de higiene e então a rede Globo ia filmar a minha cozinha, e não o restaurante. Tudo tinha que estar em ordem e tal, eu pesava muito por este lado. Os clientes só queriam escolher se eu estivesse junto com eles. Eu tinha bons garçons, por um período tive até um métri, que havia sido meu garçom no outro restaurante. Ele disse que havia pago setecentos reais naquela roupa porque queria ser o meu metri. Mas eu disse que ali não havia lugar para um métri e de fato, ele ia lá convencer o cliente, mas eles gostavam que eu ajudasse a escolher, depois eu ia para a cozinha. A casa era grande, tinha assim, uns 60 metros de fundo, então eu ia à recepção e voltava para a cozinha. Então a pessoa me via lá, daqui a pouco me via aqui, eu estava sempre circulando. Era um trabalho que eu gostava muito, mas era muito puxado. E eu me convencia a não ficar doente, porque tinha muito trabalho. E de fato, não ficava. Não sei se porque tinha muito pique, ou porque subia e descia escada o dia todo. Eu tinha uma carta de vinhos muito boa, todos os produtos importados. Naquela época não se conhecia muito de vinho, pois não se viajava tanto. Então quando chegava um casal eu já sabia que teria que ir lá, pois iriam pedir um vinho especial. As pessoas pediam um vinho e eu dizia para primeiro pedir o prato, para depois escolher o vinho, mas não, eles queriam degustar o vinho sem nada. Bebiam toda a garrafa e depois pediam o prato e coca-cola. Ai eu queria morrer. Aqueles que eu tinha mais confiança eu dizia o que era o certo se fazer, sobre o casamento do paladar entre o vinho e a comida. Até convencer as pessoas, se passou um tempo. Hoje tem bastante propaganda, mas em 1998, quando eu abri, até mesmo no primeiro restaurante, não se conhecia o funghi secci, por exemplo, nós que implantamos. Trazíamos da Itália e, uma vez ou outra, nos chamávamos na alfândega e timos que ir buscar. O meu filho que ia buscar e quando perguntavam o que era, ele dizia que era um objeto de decoração, como uma cortiça. E então passava sem pagar nada. Não se conhecia alcachofra também, embora tivesse aqui, só italianos que moravam perto de Cotia conheciam. As pessoas aos poucos foram aprendendo a maneira francesa de pegar pétala por pétala e depois comer com uma colherinha. Mas era um trabalhão. Fizemos um festival de Alcachofra, foi um sucesso muito grande. o Alcir Carrasco, que estava começando a fazer critica de comida, vinha ao restaurante. Tinha um, por exemplo, que pedia tudo em um prato só, mas eu não servia. Sinto muito. Eu dizia, ‘vou mandar na ordem’. Ou seja, toda essa turma fazia uma boa propaganda.
P/1 – E o Santa Vitória a senhora resolveu fechar?
R – Resolvi. Eu não estava bem. Cai duas vezes na rua e perdi todos os dentes da frente, foi meio trágico. Então resolvi passar para frente. Lá foi um restaurante japonês que depois não deu certo. E mais para frente, surgiram vários restaurantes naquela rua. Hoje não se pode nem passar. Era na rua Aspicuelta. Tinha uma árvore maravilhosa que eu pedi para que mantivessem, uma árvore de jasmim manga branco. Ele ficava todo no jardim e a noite tinha um perfume, que quem ficava nas mesas do jardim, era uma de louco. Os ajudantes quando queriam dar uma varrida, eu não deixava. Dizia que tinha que ser assim. Todo mundo entrava, pisava naquelas pétalas brancas, era uma coisa linda. Aquela árvore era o meu prazer. Coloquei uma placa nela escrito ‘obrigado por estar aqui’. E jasmim branco não perde muita folha, o jasmim na cor pêssego e rosa perde as folhas e faz aquele buquê, então fica aquela árvore sem nada. Mas esse não. Ficava aquele buquê de flores brancas. Fiquei muito tempo sem passar por lá, não conseguia. Mas agora, as vezes eu passo de ônibus por lá e vejo que a árvore ainda está lá. Mas eles podaram mal, naturalmente. Fizeram uma reforma e podaram para a árvore ficar mais alta. Mas a árvore ainda está lá.
P/1 – A senhora chegou a se corresponde por cartas com os seus parentes na Itália?
R – Sim, eu tinha amigas na Itália. Naquela época se escreviam cartas boas. Agora com skype, se comunica, mas não como antes.
P/1 – Tem alguma carta que você tenha recebido e te marcou?
R – Marcado, marcado talvez não. Mas tenho cartas de amigas. Imagina só: eu tinha uma amiga muito querida na Itália, recém casada, que estava esperando a primeira filha. Ela ficou na Itália e chegou a ter o segundo filho. Quando eu estive na Itália, encontrei o segundo filho dela, que já tinha nove anos. Esse filho falava que quando tivesse 16 anos, viria para o Brasil. Era uma coisa que ele tinha na cabeça. E de fato, depois de formado ele foi para o norte, para a Bahia, e depois veio para a minha casa em São Paulo, onde eu recebi a visita da minha amiga. E ela dizia: “porque ele cismou com esse Brasil? O pai dele está tão triste”. E eu disse: “espera um pouco”. Peguei a carta que ela havia me mandado e falei: “olha o que está escrito aqui”. Ela não acreditava que eu tinha guardado aquela carta. Eu sou muito cartaccia, não sei como se diz aqui, alguém que gosta de papel. Tínhamos esta expressão em italiano porque se trocavam muitas cartas. Tenho cartas de amigas que foram para os Estados Unidos, contando sobre as filhas. A gente se escreve todo ano. Nesse livro que eu fiz, coloquei uma frase em latim que diz: “a escrita fica, o que é falado voa”. Essa amiga italiana e eu escrevíamos todos os meses com uma condição: enviar sempre uma receita diferente. . Ela também cozinhava muito bem. Quando eu abri o restaurante ela lamentava muito por não poder estar junto.
P/1 – Que músicas a senhora escutava quando veio para o Brasil?
R – A primeira música brasileira que eu ouvi era um ritmo que eu não sabia se gostava ou não: Que nem jiló, do Luiz Gonzaga. Eu nem sabia o que era jiló. Samba canção também, eram lindas. O ritmo brasileiro é lindo. A primeira fez que eu vi o carnaval do Rio, eu me apaixonei pela mangueira. Eu não sabia o que era Mangueira. Naquela época era na rua e muito autêntico. As pessoas iam lá, se divertiam e pronto. Só que a gente estava na rua olhando, e vimos passar na rua um cavalo de guarda, quase que esse cavalo nos pegou! Estávamos muito felizes vendo a Mangueira. A primeira que desfilava era a tal de Gigi da Mangueira, uma moça bonita e nada vulgar, como é hoje. Era com uma roupa bonita, um maiô, tudo verde e rosa, as minhas cores preferidas. Depois disso tinham os blocos, que eram bonitos. Todos se divertiam sem pagar nada, sem essa história de coreografia, que é linda, mas muito americana.
P/1 – E você gostava do som, da bateria?
R – Ah! A bateria era algo impressionante. Depois a gente soube que cada escola tinha uma batida diferente. A mangueira tém Tum Tum Tum Tum, as outras tem outras batidas.
P/1 – E depois do restaurante?
R – Depois do restaurante, para me distrair um pouco, eu ia a casa de alguns amigos que são artistas plásticos e comecei a desenhar. Fiz uma exposição de desenhos um pouco loucos, onde as pessoas perguntavam: “foi a senhora quem fez?” . Fiz este curso com o professor Pedro Maria Bardi, que era do MASP (Museu de Arte de São Paulo).
P/1 – A senhora nunca mais tinha desenhado?
R – Eu sempre gostei muito de desenhar, mas não cheguei a fazer aula. Eu tinha uma amiga italiana, casada com um argentino, que dava aulas. Mas eu não ia porque sabia que eles iriam me cobrar, eles viviam disso. Então eu não queria pegar o lugar de outro aluno. Combinamos que eu desenharia e levaria os desenhos para eles. Um dia desses eu desenhei umas cadeiras com ideia antropológica e eles gostaram muito. Disseram: “vai nessa linha!”. E eu ficava fazendo isso em casa, preparava, levava lá e a gente discutia. Era nessa base. Ele era fantástico, me explicava as coisas, comentava, dava ideias, ela era mais pragmática. Então foi uma guia fantástica. Infelizmente eles faleceram. Fiz uma exposição na rua da Consolação. Lá tinha uma casa, tipo galeria, onde eu fiz uma exposição linda.
P/1 – E como você chegou no Pedro Maria Bardi?
R – Pela coragem. Foi com os meus desenhos no MASP e disse que queria falar com ele. A moça, secretária dele, veio e falei em italiano com ela, disse que queria mostrar uns desenhos. Ele estava numa entrevista com a rede Globo. Ele saiu da entrevista, olhou os meus desenhos e disse: “que coisa linda! Estranha e linda. Continue”. Depois ele estava indo embora e eu disse: “Professore, poderia me fazer uma apresentação porque vou fazer uma apresentação tal dia”. E ele disse: Ana Maria!”, que era a secretária dele. “você me lembra e quarta feira venha buscar”. Eu voltei para casa e não acreditava. Eu tenho a apresentação dele para a exposição que fiz na Consolação. Continuei com o mesmo estilo, em branco e preto, tinta de impressão, colagens e técnicas variadas. Dei tudo o que tinha que dar. Tirei o preto e comecei outra fase, aquarela. Depois fiz outras amostras com amigas, fiz várias no Paulistano, coisas assim. Tive muito êxito. Mas tudo o que faço, não consigo vender. Essa parte comercial eu sou uma negação. Comecei a fazer cerâmica, conheci a Estação Memória com trabalhos de arteterapia, sempre as quartas feiras. Estou lá a oito anos. Agora a minha empregado foi embora e estou como faxineira. Pronto. O meu final.
P/1 – E o seu filho, estudou em quais escolas?
R – Na FMU.
P/1 – E ginásio e colégio?
R – No Colégio São Luis. Agora estou querendo fazer algo diferente e escrevi este livro.
P/1 – Olhando a sua trajetória, se a senhora pudesse mudar alguma coisa, mudaria?
R – Talvez. Algo como a mentalidade. Se a gente tem que mudar algo, tem que ser a mentalidade. É difícil prever isso. Com o passar dos anos a gente diz “eu poderia ter feito isso”. Não, não poderia. Naquela circunstância era a solução que você deu, era o que cabia. Você faz a coisa certa porque naquela circunstância era o que se podia fazer. Não sou dessas de reclamar. Claro, se não tivesse vindo para o Brasil teria outra vida. Melhor, pior? Não sei.
P/1 – Qual é o seu maior sonho?
R – Será que eu ainda tenho sonhos? Boa saúde, sem a qual não se faz nada. Esperamos que essa passeata dos médicos, dê certo com os planos de saúde . Os planos não estão pagando os médicos como se deve. Hoje tinha uma passeata na avenida Paulista. Hoje e amanhã vai ter. Os médicos estão saindo do planto e a gente paga um dinheirão.
P/1 – O que a senhora acho de dar esse depoimento para o museu?
R – Tão gostoso! Porque ao invés de pagar um psicólogo, a gente vem aqui falar, grátis . Eu converso muito. Escrevi esse livro porque quando me perguntavam coisas da guerra e eu contava coisas, me diziam que aquele trecho eu nunca tinha contado. Meu filho fala isso, por exemplo. Então eu escrevi o livro.
P/1 – Tem alguma coisa da guerra que a senhora não falou e gostaria de deixar registrado?
R – Tem muita coisa. Por cima eu falei tudo. Eu escrevi isso mais para o meu filho e amigos. Não sou escritora e não pretendo que seja um Best Seller. É um depoimento. Vou lançar junto com o meu aniversário de oitenta anos. Então vou passar na Biblioteca e ficam as duas coisas juntas. É um livro pequeno, mas uma primeira experiência.
P/1 – Em nome do museu eu gostaria de agradecer.
R – Eu que agradeço a paciência de vocês em ouvir tudo isso.
Recolher