P/1 – Primeiro, Lia, eu queria que você falasse pra gente o seu nome completo, data e o local de nascimento.
R – Lia Ancona de Faria. Nasci como Lia Ancona Lopes, Faria é o sobrenome de casada. Nasci em São Paulo no dia 12 de julho de 1938.
P/1 – E o nome completo dos seus pais, se você souber também data e local de nascimento.
R – Meu pai Dante Ancona Lopes, nasceu em São Paulo no dia 16 de junho de 1909. Aliás, esse ano é meio duvidoso, porque meu avô, eles tiveram 12 filhos, criaram dez, mas ele às vezes deixava amontoar filho pra depois registrar. Então essa data é a que ele foi registrado. Devia ser isso mesmo, mas ele disse sempre que não tinha certeza. E minha mãe Linda Ancona Lopes nasceu no dia dez de outubro de 1914, em São Paulo também. Eles eram primos de segundo grau.
P/1 – E o que eles faziam, os seus pais, Lia?
R – Meu pai não fez faculdade. Aliás, meu avô, dos dez filhos que eles criaram, só o mais velho é que se formou em Direito. Tinha seis homens e quatro mulheres, as mulheres, é claro, só faziam piano, cozinhavam, essas coisas, bordavam. Meu pai começou a trabalhar cedo. Ele trabalhava, fazia um tanto de bicos assim de agências de publicidade, levava anúncio, fazia essas coisas até montar a própria agência de publicidade com o meu tio, o irmão mais velho dele.
P/1 – Como é que se chamava a agência?
R – Chamava Publicidade Sem Rival. Usava esses nomes bem absurdos. Hoje ninguém poria Publicidade Sem Rival, mas era uma época bem diferente. Depois ele começou a se interessar... Ele fez programas de rádio. Não, ele organizou programas de rádio, organizou um programa com o Chico Alves.
P/1 – Você se lembra do nome do programa? Qual a rádio?
R – Não, mas eu lembro... A rádio Cruzeiro do Sul. Eu lembro que a música que abria e fechava o programa era Mulher que ficou na taça.
P/1 – Como é que era a música?
R – “Na carência de um sonho que ficou – não sei o quê – boa noite meu grande amor”. Era uma coisa assim. Era: “Boa noite amor, meu grande amor, contigo eu sonharei”. Era mais ou menos assim. Uma vez nós fomos a um programa de rádio que... Quem era? Agora não me lembro de quem é que estava lá no palco e pegou meu irmão. Meu irmão tem um ano a menos que eu. Pegou meu irmão no colo e dançou com ele no palco, eu fiquei morrendo de inveja que eu queria ter dançado também no palco.
P/1 – Vocês frequentavam bastante a rádio?
R – Não. Eu me lembro dessa vez, na verdade. Mas meu pai era ligado com isso. Depois ele foi...
P/1 – O programa de rádio, Lia, você se lembra?
R – Qual era o programa?
P/1 – É.
R – Não lembro.
P/1 – Não lembra nem sobre o que era?
R – Era de cantores. Era um programa de cantores. Era programa de auditório, mas não lembro exatamente quem era. Até soube quem era esse que pegou o Fábio no colo, mas agora eu não lembro.
P/1 – Tudo bem.
R – Porque também não me lembrei disso antes, senão poderia ter pensado.
P/1 – Não, mas não tem problema.
R – Mas você tá perguntando agora. Quer saber mais da história do meu pai?
P/1 – Sim. Pode contar. Ele fez esses programas de rádio, trabalhava com publicidade e que outras atividades assim?
R – Então, depois ele construiu um cinema. Cinema Coral na Rua Sete de Abril. E ele introduziu, na verdade, o conceito de cinema de arte. Ele foi bem conhecido no meio. Fazia festivais. Festival Italiano, Festival Francês, Festival Russo, porque ele tinha um contato com o pessoal da União Soviética, eu não sei através de quem que ele tinha esse contato, eu sei que ele era amigo pessoal do Luís Carlos Prestes. A gente conviveu bastante com o pessoal do partidão.
P/1 – Você se lembra, mais ou menos, que ano é isso, Lia? Ele constrói o cinema mesmo? Constrói?
R – É. Ele com alguns sócios. O Cine Coral era na Rua Sete de Abril... Deixa-me ver, eu estava na faculdade, isso devia ter sido 56, 57. Não. Talvez um pouco mais, porque eu me formei em 62. 58, 59, por aí.
P/1 – E depois ele ficou trabalhando com isso...
R – Depois, por alguma razão renderam o Cine Coral. Sei lá, fechou o Cine Coral, não lembro mais do Cine Coral. Mas aí ele começou a trabalhar como importador de filmes e programador. Distribuidor, não. Ele dava pra algumas distribuidoras os filmes. Aí eu sei que ele fazia a programação do Cine Picolino, que era um cinema na Rua Augusta, depois ele fez a reforma do Cine Trianon, que virou o Belas Artes, lá na Consolação. Aí foi assim, foi o boom, vamos dizer, da carreira dele porque foi muito badalado o Cine Belas Artes. Ele importou coisas muito boas mesmo.
P/1 – Você se lembra de alguns filmes que tenham sido marcantes pra você?
R – O primeiro filme que eu assisti no Cine Belas Artes foi o primeiro dia que eu saí com o meu atual marido. Foi o primeiro dia que saí com ele. Era Rocco e Seus Irmãos. Nós fomos assistir no Belas Artes, depois eu ia tomar lanche na casa da minha vó e nós descemos toda a Consolação, andamos todo o viaduto, subimos toda a Brigadeiro até a esquina da Alameda Santos pra tomar lanche. A gente tomava lanche na casa da minha vó todos os domingos. E minha mãe tocava piano e meu tio cantava, era assim bem divertido.
P/1 – Você se lembra das músicas? Do que tua mãe...
R – Músicas italianas normalmente ele cantava.
P/1 – Como, por exemplo?
R – Como, por exemplo, O Sole Mio, sei lá. Músicas napolitanas, principalmente, ele cantava.
P/1 – E o que sua mãe tocava?
R – Minha mãe acompanhava. Acompanhava ele ao piano. Mas minha mãe tocava muito bem. Minha mãe teve diploma de concertista, ela foi muito boa. Ela tocava muito, muito bem. Ela tinha um toque firme, mãos fortes. Ela tocava muito Chopin, ela tocava A Dança do Fogo do Manuel de Falla, ela tocava... Sei lá. Tocava Clair de Lune do Debussy. Ela tocava muita, muita coisa, muito bem. Até bem, eu já era casada com filhos, minha mãe tocava ainda. Depois começou a ter artrite, depois começou a não...
P/1 – Então em casa na infância quando você morava com a sua família era bem comum escutar música?
R – Sim. Às vezes eu vinha chegando do colégio e eu escutava a minha mãe tocando. Era muito agradável. Lembro-me de duas coisas: minha mãe tocando piano e cheiro de pão de torresmo que ela fazia. Era uma delícia. Às vezes chegava naquelas tardes, naquela época tinha garoa em São Paulo, então chegava naquelas tardes frias, sentia aquele cheiro de pão de torresmo, minha mãe tocando piano, era muito acolhedor. Era muito bom.
P/1 – E você tinha assim, uma canção preferida, uma música que ela tocava preferida?
R – Não. Eu gostava do que ela tocava, na verdade, porque eu também estudei um pouco de piano, mas nunca deu muito certo.
P/1 – Não virou pianista.
R – Não virei pianista. Apesar de gostar muito. Hoje ainda eu faço assinatura da Sala São Paulo, eu gosto muito de música clássica.
P/1 – Acompanha, vai a concertos, tudo. E, Lia, que outros costumes tinha a sua família? Você falou um pouco do que o seu pai fazia, a sua mãe que era concertista, era pianista, que outros costumes você se lembra da sua família na infância?
R – Bom, minha família era uma família muito esquisita. Eu tive uma educação bem esquizofrênica, porque era assim, meu avô, o pai do meu pai era tio do meu avô pai da minha mãe, né? Daí que eles eram primos em segundo grau. O meu avô, pai do meu pai, meu avô paterno, ele veio da Itália porque ele participou de uma revolução socialista e mandaram-no sair. Não chegou a ser deportado, mas mandaram-no embora. E ele veio com a mulher, era casado, e com o filho mais velho, o único que foi advogado, o Vicente Ancona Lopes.
P/1 – Eles chegaram onde no Brasil, você sabe?
R – Eles iam pra Buenos Aires. E veio com a sogra também. Eles iam pra Buenos Aires e, na verdade, quando passaram por Santos falaram que Buenos Aires não estava bom, qualquer coisa, eles desceram em Santos e vieram pra São Paulo. Meu avô era capitão de longo curso da marinha, mas quando ele chegou aqui ele foi ser jornalista. Ele foi jornalista, repórter... Repórter não, mas jornalista do Estadão a vida inteira. Aposentou-se lá.
P/1 – Qual que é o nome completo dele?
R – Nicolau Ancona Lopes. Ele se aposentou como jornalista. E meu tio Vicente, que era o mais velho, que era advogado, também foi jornalista do Estadão. Eles... Como é que se chamava o diretor do Estadão? Ele era amigo lá do pessoal, ficou muito bem quisto no Estado. Aposentou-se assim. Mas enfim, o irmão do meu avô paterno, meu bisavô materno veio também pra São Paulo, meu avô materno nasceu... Não. Já com os filhos. Já com o meu avô materno. Mas é assim, a diferença era a seguinte, meu avô paterno era socialista político, gostava, participava de movimentos e meu pai foi igual, participava de tudo quanto era movimento. E meu avô materno era uma pessoa assim, aristocrática. Ele também tocava piano, tocava violino, cantava, tinha uma voz muito boa, mas ele era simpatizante do fascismo. Ele era um cara aristocrata. Pelas fotos você pode ver, sempre com um casaco todo bonito e tal.
P/1 – E o nome dele?
R – Vicente Ancona Lopes. Então eu tinha esses dois lados da família bem diferentes e meu pai implicava um tanto com o sogro dele, por razões políticas.
P/1 – Você tinha bastante convivência com os dois lados da família?
R – Tinha bastante convivência, porque toda semana a gente tomava lanche com um, almoçava com outro. Bastante convivência. Inclusive quando eu nasci, eu nasci numa maternidade, mas morava numa casa na Rua Santo Amaro, ali perto do Viaduto Maria Paula. A casa que nós morávamos foi presente do meu avô pra minha mãe quando ela casou e era vizinha da casa que ele morava, ele, minha vó e os tios moravam. A casa deles era um espetáculo, era um casarão, era no alto, tinha vários lances de escada. Era uma coisa... A sala era art nouveau, cheia de... O lustre maravilhoso, cheia de strass coloridos. Era uma coisa muito bonita.
P/1 – E você se lembra do entorno nessa época? Isso é na sua infância?
R – É.
P/1 – Do entorno assim, do bairro, da rua.
R – Até eu ter uns oito anos, porque aí depois nós mudamos. O bairro era de casas, na esquina da rua... Ali ao lado aonde foi a UEE depois, União Estadual dos Estudantes. Não lembro o nome da rua, tinha panificadora Java que eu me lembro desde criança e na rua tinha essas flores que caiam, umas flores roxinhas. A gente saía e gostava de escorregar, patinar nas flores roxas. Minha mãe morria de medo porque nós escorregávamos naquelas flores, ela tinha medo que a gente caísse. Inclusive meu bisavô, pai da minha vó materna, morava lá perto. Nós saíamos principalmente pra ir visitar meu bisavô.
P/1 – E a rua? Descreve um pouco pra gente como é que era a rua, como é que era o entorno, essas casas do entorno.
R – A rua era de casas. Casas normais. Algumas maiores, outras menores, mas era uma rua bem de moradia.
P/1 – E a rua era asfaltada...
R – Tirando essa panificadora Java, eu não me lembro de nada comercial de lá.
P/1 – Iluminação, asfalto, você se lembra?
R – Iluminação, eu acho que era muito difícil que eu saísse à noite, porque eu não me lembro. Até porque quando eu tinha uns oito anos, aí meu pai mudou pra Rua Augusta. Vendeu essa casa, meu avô ficou muito aborrecido porque meu pai estava indo morar no fim do mundo. Lá na Rua Augusta entre a Lorena e a Oscar Freire. A Oscar Freire não era nem calçada. Aí eu já lembro bem melhor.
P/1 – Como é que era? Descreve um pouco pra gente como era essa região na época, que ano mais ou menos que é isso e como é que era essa região.
R – Quarenta e seis, mais ou menos. Era bem residencial a Rua Augusta, casas grandes, a nossa tinha dez de frente por 60 de fundo. Eram casas assim, bem fundas. Todas as casas residenciais. Descia o bonde na Rua Augusta, eu me lembro direitinho blém, blém, blém, o bonde descendo. Passavam cabras na Rua Augusta. A Rua Oscar Freire não era calçada. Na esquina já tinha o Cine Paulista, depois acho que calçaram, não lembro, mas quando nós fomos não era. Eu ia à matinê lá, eu e o Fábio, meu irmão mais velho, a empregada nos levava pra matinê. Tinha uma porta de ferro dessas de correr no cinema e passava dois filmes. A gente ia lá, assistia dois filmes.
P/1 – Você se lembra dos filmes, alguns ou algum filme que você tenha visto lá na época que tenha marcado?
R – Eu devo ter visto muito O Gordo e o Magro, nada que me marcasse muito. Na verdade eu não gostava muito de O Gordo e o Magro. Aliás, nesse ponto eu sou uma pessoa esquisita. Eu sempre achei o Charlie Chaplin um pouco, engraçado, eu tenho impressão de ele ser um pouco autoritário. As pessoas autoritárias sempre me fizeram mal. Eu achava uma coisa de autoritário nele.
P/1 – Então você não gostava tanto.
R – Então não gostava muito. Mas assistia aos filmes da Disney, assisti Fantasia, isso eu lembro que eu assisti.
P/1 – Você viu Fantasia no cinema, você lembra?
R – No cinema.
P/1 – E você lembra como é que era o cinema na época, dentro do cinema, como é que as pessoas se comportavam?
R – As pessoas tinham que ir de paletó e gravata. Tinham que ir de paletó e gravata, eu sei que, acho que antes disso ou até nessa época, isso eu não reparava muito, mas as mulheres iam de chapéu pro cinema e atrapalhava bastante pra ver a tela.
P/1 – Elas ficavam de chapéu dentro da sala?
R – Ficavam de chapéu. Chapéuzinho, boina, sei lá. Meu irmão que, vamos dizer, se eu tivesse 15 anos ele tinha 14, era um menino, ele tinha que levar a gravata no bolso pra entrar no cinema, senão não entrava. Aliás, uma vez nós fomos fazer um passeio de trem, nós fomos pra Jundiaí, não sei o que nós íamos fazer, a família inteira, eu tenho quatro irmãos, eu sou a mais velha. Nós fomos todos de trem pra Jundiaí e não queriam deixar o meu irmão entrar no trem porque ele estava sem paletó ou sem gravata, uma dessas coisas.
P/1 – Era bem rigoroso, né? Bem formal.
R – Era.
P/1 – Lia, deixa só eu te fazer uma pergunta sobre o cinema ainda, as pessoas como elas se comportavam dentro do cinema, comparando com hoje em dia? Você vê diferenças? Fora a questão da vestimenta, comportamento mesmo.
R – As pessoas somavam no cinema, mas eu não vejo muita diferença. Não que eu tenha notado nada. As pessoas gostavam muito de cinema naquela época. Hoje você talvez não veja gente gostando tanto de cinema como naquela época.
P/1 – E você acha que é por que isso?
R – Eu acho que é porque tem muitas outras coisas, né? Tem filmes em casa, tem TV, tem... Sei lá. Tem internet, as pessoas assistem muitos filmes pessoalmente mesmo, né? Eu acho que isso é uma pena. Eu cheguei a ver filme mudo.
P/1 – E você lembra qual assim, não?
R – Não sei. Eu sei que tinha uma orquestra que tocava acompanhando o filme.
P/1 – Em qual cinema isso?
R – Esse foi lá na Brigadeiro, no Paramont. E tinha aquelas frisas, sei lá, a gente estava numa frisa assistindo. Não lembro que filme era.
P/1 – E era acompanhado ao vivo por orquestra.
R – É. Mas foi antigo. Eu nasci antes da Segunda Guerra. Então parece que, sei lá, as pessoas me olham e não acham que eu sou tão antiga, mas eu sou. Porque o mundo antes da Segunda Guerra era um mundo completamente diferente. Completamente diferente.
P/1 – Lia, você mencionou seus irmãos, fala pra mim quantos irmãos você tem e qual é o nome deles.
R – Eu tenho quatro irmãos, Fabio Ancona Lopes, que é esse que tem um ano de diferença de mim, nós sempre fomos muito amigos, fazíamos programas juntos, fazíamos bastantes coisas juntos. Hoje ele é médico, ele foi professor da Escola Paulista, ele é pediatra, ainda tem o consultório. Aposentou-se na Escola Paulista, foi obrigado, né? Porque ele está com 74 anos agora.
P/1 – Compulsória, né? Aposentadoria compulsória.
R – É. Mas ainda tem consultório.
P/1 – E seus outros irmãos, o nome deles?
R – Marcelo Ancona Lopes, que é engenheiro. Foi engenheiro da Metal Leve a vida inteira. Aliás, quando ele se formou ele foi trabalhar na Petrobrás, passou no concurso, foi pra Petrobrás. Aí quando da Revolução de 64, do golpe de 64, ele foi em 62 no comício do Jango e como ele aparecia na foto, ele perdeu o emprego da Petrobrás em 64. Aí ele veio pra São Paulo, começou a trabalhar na Metal Leve e até hoje, ele já se aposentou, mas ele ainda dá assessoria pra Metal Leve. O terceiro é Sérgio Ancona Lopes, esse é nove anos mais novo do que eu. O Sérgio é engenheiro também, engenheiro de segurança, tem uma firma de assessoria, de consultoria e tal. E o último é Paulo Ancona Lopes. Esse tem 12 anos a menos do que eu. O Paulo também é engenheiro. Ele trabalha mais com franquias. A mulher dele também. Eles têm uma firma Vecchi e Ancona, da assessoria a franquias.
P/1 – Você é a única mulher?
R – Eu sou a única mulher e mais velha. Eles judiaram um pouco de mim, mas o meu pai me protegeu.
P/1 – Eu ia te perguntar isso, da infância, Lia, quais eram as brincadeiras de infância que você lembra e com quem você brincava? E conta um pouco como eram as brincadeiras.
R – Olha, muitas brincadeiras... Eu me lembro de brincar muito de casinha, brincava muito de comidinha, que a gente chamava. Brincava muito de escola com o meu irmão, com as minhas primas. Eu gostava muito de ser a professora. Comidinha... A casa dos meus pais e do meu avô tinha um portãozinho no quintal. Então eu vivia na casa da minha vó lá. Tinha um terraço grande, como minha mãe tinha outros filhos pra cuidar, a gente ia pra lá, brincava, gostava de cortar folhas, por em panelinhas, misturar água. Tinha umas folhas cheirosas, devia ser de temperos, que eu lembro que eu gostava muito de brincar com elas. Brincava muito disso. Bonecas mesmo eu não me lembro de ter brincado, mas eu brincava de fazer comidinha, brincava de professora, isso com certeza. E a gente brincava de roda quando encontrava mais crianças, de lenço atrás.
P/1 – Como é que era essa brincadeira de roda e de lenço atrás?
R – A gente fazia uma roda e uma pessoa ficava com um lenço na mão e jogava nas costas de alguém. Esse alguém tinha que perceber porque se ela desse a volta inteira e ele não percebia, não lembro o que acontecia. Acontecia alguma coisa, tinha que pagar uma prenda, sei lá. Brincava de barra manteiga, que eu não lembro muito como era, eu sei que ficavam pessoas de um lado, pessoas do outro, você tinha que bater na mão, sair correndo e tinha que pegar.
P/1 – E essa brincadeira do lenço atrás tinha alguma música assim?
R – Eu não me lembro da gente cantar. Eu me lembro de cantar mais tarde com meus filhos, com minhas netas, tinha algumas brincadeiras assim que tinha música, né?
P/1 – Mas na sua infância, não?
R – Na minha infância eu não lembro. Também se a gente cantava, eu não lembro mais.
P/1 – E brinquedo você lembra assim se vocês tinham brinquedos, fora as bonecas?
R – Nós tínhamos poucos brinquedos. Poucos brinquedos. A gente brincava mais com coisa do dia-a-dia mesmo. Nossa, eu vejo meus netos que tem brinquedos que não tem nem aonde guardar hoje. Não tinha. Eu tinha bonecas de celuloide. Era um plástico duro.
P/1 – Com é que eram as bonecas?
R – Eram bonecas normais, mas eram de celuloide. Celuloide era um plástico duro que afundava, quebrava, era um negócio... O olho era de vidro, olho afundava, era muito complicado. O que minha mãe conta é que uma vez o meu avô levou, acho que quando eu fiz um ano ou dois anos, eu não sei, acho que deve ser um ano pela história, levou uma caixa com 12 bonecas pra mim. Eu fiquei felicíssima, abri a caixa, tirei todas as bonecas e fiquei brincando com a caixa.
P/1 – Fez mais sucesso que as bonecas.
R – É. Brincava com a caixa.
P/1 – E você se lembra dessa época de algum episódio, alguma história marcante, Lia? Aquelas histórias que depois a gente conta pros filhos.
R – Dessa época que eu era criança?
P/1 – É.
R – Aí eu já era um pouquinho mais velha. A gente morava na Rua Augusta, essa casa que tinha dez de frente, 60 de fundo. Lá a minha mãe tinha um galinheiro, tinha galinhas Legorne, isso eu lembro até hoje. Eu e o Fábio fazíamos, preparávamos a comida das galinhas. Colocava quirera, colocava não sei o que mais, água e a gente gostava de amassar aquilo pra dar pras galinhas. Mas tinha uma árvore no fundo, é uma árvore que tem uma flor grande cor-de-rosa que cheira doce, não sei que árvore que é, uma árvore frondosa com essas flores, e lá apareceu uma casa de abelhas. Eu, que devia ter o quê? Uns dez anos talvez? Aí eu tive uma ótima ideia, eu falei pros meus irmãos, pro Fábio e pro Marcelo, os outros eu não sei se já tinham nascido, mas deveriam ser pequenos: “Vamos fazer uma coisa? Nós vamos passar mel numas duas fatias de pão e a gente leva pras abelhas. As abelhas vêm no mel e a gente rouba o favo”. Lá fomos nós, mas eu não levei a fatia com mel. Eles levaram porque, claro, eu era esperta, mandei-os levarem. De repente as abelhas vieram todas, aquele enxame de abelhas em cima da gente, picaram, nos picaram, picaram principalmente o Fábio e o Marcelo que continuavam com aquela fatia de mel na mão. E minha mãe estava na cozinha, ouviu aquela gritaria, os três malucos correndo, fazendo assim com a mão, não sabia o que era. Eram as abelhas. Ficaram todos picados, eu me lembro dela nervosa ligando pro meu tio que era dermatologista pra saber o que fazia. Lembro-me dela pondo facas frias assim nas picadas. Não sei nem se tinha antialérgico naquela época, o que foi que fez. Eu sei que eles ficaram muito bravos comigo porque eu que tive a ideia.
P/1 – E foi uma sorte que nenhum de vocês era muito alérgico. Que é um perigo.
R – Pois é. Abelha é um perigo.
P/1 – Você se lembra dela ficar brava, dar bronca, castigo ou não?
R – Castigo ela não dava, mas ela ficava bem brava. Ela gritava bem, tinha uma boa voz.
P/1 – E na sua casa, Lia, você lembra se vocês contavam história? Era comum assim contar história ao redor da mesa, como eram as refeições?
R – A gente almoçava em volta da mesa, jantava também. Meu pai... Eu nasci logo foi a guerra, né? Então meu pai escutava o tempo inteiro com o radinho ouvindo notícias da guerra.
P/1 – E a família escutava também. Vocês se lembram de escutar?
R – Ele mandava todo mundo ficar quieto pra ele escutar. Era muito aflitivo aquilo. E tinha noites que tinha blackout. Sabe o que era blackout? Então, tinha blackout que era ensaio pra cidade ficar no escuro, pra se viessem aviões, foi depois que o Brasil entrou na guerra, pra que se viessem aviões inimigos eles não verem a cidade pra não bombardearem.
P/1 – Você se lembra de como eram esses blackouts? Tinha algum aviso?
R – Sim. Avisavam.
P/1 – Como é que era?
R – Nessa ocasião o motorista da minha vó, minha vó tinha um motorista, aliás, meu avô tinha um carro a gasogênio nessa época, dois tubos de gás atrás. Bom, o motorista da minha vó ia lá em casa, fazia isso nas duas casas, colocava panos pretos nas janelas, cobria todas as janelas com panos pretos e aí tocavam uma sirene e você tinha que apagar a luz ou deixar uma luzinha fraca. Eu morria de medo. Aí tinha aquela sirene, todo mundo tinha que falar baixinho, no escuro. Era um negócio estranho. Era um negócio estranho. Eu tinha medo do blackout. Depois tocava a sirene de novo depois de um tempo e acabava.
P/1 – Podia voltar a luz.
R – Podia. Mas eu vivi essa época de guerra, isso daí era muito estranho. Apesar de o Brasil ter entrado tarde na guerra. Meu pai sempre com o radinho escutando as notícias...
P/1 – Ele contava coisas pra vocês também? Você se lembra do seu pai e da sua mãe conversando sobre isso na mesa?
R – Lembro. Lembro. Aquela aflição contra o nazismo, contra o fascismo, tudo isso. E a gente chegou a passar, chegou a ter restrição alimentar, porque a farinha era importada, então não tinha pão. Eu me lembro da gente fazer fila na esquina da Oscar Freire com a Augusta, tinha a casa Santa Luzia. Empório Santa Luzia na época, que depois virou a Casa Santa Luzia enorme e tal, mas já tinha lá o Empório Santa Luzia e lá a gente comprava, fazia compras. Tinha fila mesmo. Tinha restrições. Eu lembro que minha mãe chegava a comprar macarrão que encontrava e misturava com água, ovo, não sei o quê e fazia pães. Então...
P/1 – Aproveitava a massa do macarrão...
R – É. Então tiveram umas coisas assim. E lembro o dia que a guerra acabou.
P/1 – Como é que foi?
R – Ah, foi uma festa. Todo mundo na rua se abraçando, chorando, emocionado. A nossa casa na Rua Augusta tinha um radio bem baixinho e nós crianças ali no gradil, o Sérgio e o Paulo ainda não tinham nascido ainda, nós três no Gradil olhando, todo mundo se abraçando, festejando. Um senhor alemão que morava na casa em frente morreu, teve um enfarte e morreu.
P/1 – Nesse dia?
R – Nesse dia com a notícia do fim da guerra.
P/1 – Você se lembra de escutar a notícia assim, vocês ouviram por rádio?
R – Eu não ouvi por rádio, mas provavelmente meu pai, minha mãe, alguém gritou: “Acabou a guerra. Acabou a guerra.” Aí foi aquela festa.
P/1 – E esse senhor teve um enfarto no dia que acabou.
R – No dia.
P/1 – E vocês tinham alguma relação com ele assim?
R – Não. A gente não se relacionava. Sabia que ele morava lá só.
P/1 – Lia, você se lembra de quando você entra na escola? Pensando nesse período da infância ainda, que idade você tinha?
R – Entrei na escola aos sete anos.
P/1 – E que escola era e como é que era?
R – Externato Meira, chamava. Era na Padre João Manoel. Nós morávamos na Augusta, era pertinho.
P/1 – Conta pra gente como é que era a escola, qual que era a estrutura, como é que eram os uniformes.
R – Olha, era uma escolinha. Era uma escola bastante pequena. Hoje no lugar que era o Externato Meira eles compraram mais duas casas, se não me engano, tem uma escola israelita lá, uma escola grande. A minha sala era pequena, tinha uniforme e na hora do recreio a gente tomava lanche, depois tinha que por a cabeça no braço e ficar descansando.
P/1 – Na mesa?
R – É. Não sei quanto tempo a gente tinha que descansar. Não me lembro de brincadeiras muito boas lá fora. Eu lembro que uma vez uma roseira aranhou a minha orelha. Isso eu lembro. Mas não sei o que a gente brincava. Acho que brincava pouco.
P/1 – E o uniforme como é que era?
R – Ah, não lembro. Era uma saia e uma blusa. Depois eu fui pro Dante Alighieri, quando acabei o primário.
P/1 – Ah, o Externato você fez o primário então, aí você foi pro ginásio pro Dante.
R – Sim. Não pude entrar direto pro ginásio, porque tinha que fazer 11 anos no primeiro semestre e eu fazia no dia 12 de julho. Então eu tive que fazer admissão ao ginásio.
P/1 – E como é que era isso? O que era admissão ao ginásio?
R – Era um ano de preparação porque você não tinha idade pra entrar no ginásio. Só podia entrar com 11 anos.
P/1 – Nessa escola do primário, antes de você ir pro Dante, tem algum professor que tenha te marcado?
R – Não. Tinha uma professora, sim, que eu não lembro o nome dela, era um absurdo, ela dava trabalhos manuais e ela quis que eu bordasse, eu tinha uns oito, nove anos, ela quis que eu bordasse toda vira de um lençol. Desenhou tudo com miosótis lá, eu tinha que bordar tudo aquilo. Eu tenho horror dela. A dona Maria. Dona Maria. Ela gostava muito de mim, mas me tratava muito mal. Ela pedia alguma coisa, eu demorava pra saber ela falava: “Quem quiser faz, quem não quiser manda a Lia”. Ela era bem chata.
P/1 – Ela te pediu pra bordar...
R – Ela queria que eu bordasse toda vira do lençol, que evidentemente a maior parte minha mãe que bordou. Nem hoje eu sei bordar, nem gosto de bordar. Naquela época com nove anos eu ia bordar lençol?
P/1 – Vocês tinham aula de bordado na escola? Você lembra mais ou menos o que vocês aprendiam?
R – No bordado?
P/1 – Na escola de maneira geral, quais eram as disciplinas?
R – Ah, aprendia disciplinas normais, História, Geografia, Ciências, mas tudo bem quadrado naquela época.
P/1 – E o bordado vocês aprendiam como?
R – Na aula. Tinha pontos de bordado, você tinha que fazer os pontos.
P/1 – Tinha aula de bordado.
R – Tinha aula de trabalhos manuais. Esses trabalhos manuais normalmente eram bordados, pras meninas, pelo menos, os meninos eu não sei o que faziam. Eles não bordavam, mas eu não sei o que eles faziam. E tinha um pano de amostras, chamava. No pano de amostras ela fazia os pontos lá e a gente tinha que fazer.
P/1 – E as classes eram separadas, né? Meninos e meninas.
R – Não. No primário eram juntas. No ginásio, no Dante Alighieri as classes eram separadas, feminino e masculino. E no colegial juntou de novo.
P/1 – Então você entra no Dante com 11 anos, né?
R – É.
P/1 – E aí como é que era o Dante naquela época? Aí também descreve um pouco a estrutura da escola, uniforme, qual era o público, como eram as pessoas.
R – Olha, o Dante era uma escola bem tradicional e bem reacionária. É o tal negócio, naquela época eu nem sabia julgar se era reacionária, mas eu sabia que eles eram metidos. Eu sempre tive essa coisa de não aguentar arrogância, de não aguentar gente que se achava superior e naquela época o Dante era uma escola assim, bem de italianos ricos e aquilo me irritava muito. Tanto que a minha família era de italianos, mas eu não gostava. Eu falava: “Mas que coisa esquisita”. Na verdade eu vim a fazer as pazes com a Itália quando eu fui pra lá. Eu tinha 18 anos. Eu viajei pra lá, aí eu realmente gostei da Itália. Fiz as pazes com a minha italianice, porque eu não gostava.
P/1 – Melhorou a sua relação.
R – É. Os italianos se achavam muito superiores aos brasileiros, desde aquela época eu não gostava disso.
P/1 – Mas quando você fala do Dante ser conservador, que elementos assim? Conta pra gente no que era conservador...
R – Bom, eu estudava latim. Eu estudei latim. Eram uns professores, hoje eu analisando, acho que eram uns professores horríveis, não sei o porquê o Dante tinha boa fama. O professor de física, isso eu to falando já do colegial, o professor de Física dava uma aula de física que eu não via a física fisicamente. Pra mim eram fórmulas, números. Depois foi muito difícil eu entender a física como uma coisa real.
P/1 – E a escola? Como é que ela era na época? O espaço físico.
R – Era uma escola grande, um espaço grande, tinha um pátio grande de recreio, tinha um campo de atletismo. A escola era bem montada. Tanto que no ginásio... Ou no colegial? No colegial eu fiz atletismo lá.
P/1 – O que você fazia?
R – Eu fazia um pouco de tudo. Fazia revezamento 4x50 fiz um pouco de pulo de salto de extensão, mas eu competi mesmo foi em arremesso de disco. Inclusive tirei uma medalha de terceiro lugar no campeonato colegial. E o Dante Alighieri era uma escola assim, todo mês o diretor ia às classes e distribuía medalha pros três primeiros alunos da classe. Era uma coisa muito competitiva. Bem diferente do que eu vejo as escolas serem hoje.
P/1 – É. Uma coisa bem tradicional mesmo, de escola mais tradicional e rígida.
R – Rígida, tradicional, tinha nota de comportamento, tinha todas essas coisas.
P/1 – E o uniforme?
R – Ah, o uniforme do Dante era um horror. Porque era uma saia pregueada azul marinho, uma blusa branca com monograma do Dante e um casaco que a gente chamava de general da banda. Um casaco que cruzava no peito com seis botões dourados e uma coisa de general aqui no ombro e uma boina, e luva no começo.
P/1 – Nossa.
R – A meia tinha que ser ¾ e um sapato que comprava na Casa Clark que formava bolha no meu pé atrás. Eu me lembro de por Band-aid com o meu pé sangrando e tinha que usar aquele sapato da Casa Clark que era duro pra caramba.
P/1 – Era bem formal também o uniforme.
R – Era.
P/1 – E dos meninos você se lembra?
R – Bom, no ginásio era sem meninos. No colegial eu arrumei um namorado lá no Dante, aí tinha um namorado. Ele jogava futebol pelo Dante. O apelido dele era 17. A gente o chamava de 17. “Quem você namora?” “O 17”. Era bem assim.
P/1 – Foi seu primeiro namorado?
R – Foi meu primeiro namorado. Namorei dois anos. Foi um namoro longo dos 15 aos 17 anos.
P/1 – E vocês se conheceram na sala assim?
R – Não. Nós nos conhecemos lá no pátio provavelmente, ou fazendo esporte. E a gente namorava muito no Parque Trianon. Muito a gente namorava lá, porque era bom, tinha árvores, a gente podia se beijar. É o que a gente fazia. Beijava-se bastante lá.
P/1 – E como é que era o Parque Trianon na época? Era parecido? O que é diferente do que é hoje?
R – Se eu te falar que hoje eu não vou mais ao Parque Trianon, mas era igual. Era igual. Tinha uns guardas andando lá por dentro, que o dia que a gente estava se beijando o cara chegou lá e mandou parar com essa sem vergonhice. E aí eu fiquei morrendo de medo.
P/1 – Nessa época assim de adolescência, já com namoro, mas mesmo um pouco antes, que tipo de coisas você fazia pra se divertir, Lia? Vocês saíam?
R – A gente ia ao cinema. Ah, e tinha muitos, mas aí já era na fase do colegial. Não. Teve o baile de formatura do ginásio. Foi onde que começou, vamos dizer, a gente a ir a bailinhos, a festinhas.
P/1 – Como é que foi o baile? Conta um pouco assim como é que era o baile.
R – Ah, o baile era num salão. Foi no salão do Hotel Esplanada, que era ali na praça... Atrás do Teatro Municipal, Hotel Esplanada. O baile foi lá. A gente todas de vestido branco. As moças ficavam com as mães nas mesas e os rapazes gostavam de ficar em pé tudo em volta. Você levava chá de cadeira se ninguém viesse te buscar. Mas na verdade eu sempre dançava, foi muito bom isso, essa época foi muito boa.
P/1 – E o que vocês dançavam? Você se lembra das músicas da época?
R – Glenn Miller. Glenn Miller adoidado. A gente dançava era Glenn Miller mesmo. Boleros um pouco antes e depois Glenn Miller.
P/1 – E você se lembra de alguma música específica assim, que tenha sido marcante?
R – Bom, Moonlight Serenade sem dúvida. E boleros também, bastantes boleros.
P/1 – Então aí que vocês começaram a sair...
R – A partir daí alguns amigos faziam festinhas nas casas deles. Mas as festinhas eram sempre em casa. Não tinha balada, tipo assim, e era das oito a meia noite. Quando eu vi os meus filhos começarem a sair de casa as 11 da noite já era bem estranho pra mim.
P/1 – Eram cedo, né? Pros padrões de hoje eram festas mais cedo.
R – Eram cedo. Eram bem cedo.
P/1 – E estas festas em casa como é que eram? Aconteciam em que espaço da casa, como que arrumava a casa?
R – Na sala. Aconteciam na sala da casa. Lá em casa quando a gente fazia festa, nós costumávamos fazer ponche. Ponche que era uma bebida meio bebida, vamos dizer, né? Não tinha cerveja, nada disso. A gente sempre fazia ponche.
P/1 – Você se lembra da receita do ponche?
R – Ah, eram frutas picadas com não sei se ia vinho, ia guaraná. Sei lá. Eu sei que tinha um pouco de bebida e um pouco de refrigerante, a gente fazia mais ou menos fraco. Eu lembro de uma vez que minha mãe ficou doente e eu e meu pai preparando mais ponche lá, porque não dava. Mais tarde, quando nós já estávamos na faculdade, meu pai sempre gostou muito de festas, o dia que eu comecei a namorar o meu marido, foi numa festa que tinha... O Fábio faz anos dia cinco, meu irmão, de julho e eu dia 12. Então neste ano nós pegamos o dia sete que era um sábado intermediário e fizemos uma baita festa. Mas era uma baita festa mesmo, porque tinha os meus amigos, os amigos do Fábio e nós frequentávamos a União Estadual dos Estudantes e conhecíamos o pessoal do Teatro de Arena ali do lado. Tanto que quando acabou o espetáculo de teatro foram todos pra lá. Foi Juca de Oliveira, foi Gianfrancesco Guarnieri, foi o Ari Toledo que cantou lá, que tocou e tal.
P/1 – Vocês frequentavam o teatro? Você ia ao teatro?
R – Frequentávamos.
P/1 – E você lembra assim de que peças você assistiu ou uma peça também que tenha sido mais marcante?
R – Roda Viva foi marcante. Mas foi mais tarde um pouco, né? Nessa época não... Já não localizo muito bem o que foi quando. Aí quando eu estava na faculdade...
P/1 – Deixa-me, antes de você ir pra faculdade, então as principais diversões nessa fase de adolescência era baile mesmo e cinema.
R – Baile e cinema.
P/1 – E cinema algum filme você destacaria dessa fase, não?
R – De adolescência, não. Não lembro.
P/1 – E de música...
R – Ah, lembro sim. Dos filmes do James Dean. Esses eu gostava muito. Do James Dean e do Montgomery Clift. Esses filmes eu lembro.
P/1 – Nessa época o seu pai já trabalhava com o cinema.
R – Trabalhou com o cinema e nós tínhamos permanentes de cinema e íamos toda noite pro cinema.
P/1 – E que salas de cinema vocês frequentavam nessa época?
R – Bom. Todas as salas onde tivesse um filme bom, porque nós tínhamos permanente pro circuito. Então a gente ia.
P/1 – Mas você se lembra de algumas assim, das principais salas que vocês frequentavam?
R – Bom, a gente ia muito a Paulista que era na esquina de casa. A gente ia às salas no Centro, Arte Palácio, Ipiranga. Nós íamos muito às salas no Centro. E depois que abriu o Belas Artes, o Belas Artes, Picolino, as salas da Augusta, Regência.
P/1 – E você lembra como é que eram as salas de rua nessa época? Eram mais salas de rua, né? Eram salas de cinema de rua.
R – Eram. Não tinha shopping. O primeiro shopping acho que foi o Iguatemi, mas muito depois, eu já era casada.
P/1 – E como é que eram as salas de cinema, você se lembra? Pensando mesmo na diferença que são pras salas...
R – As salas eram normais, como são hoje as salas. O público é que ia mais arrumado. Uma vez eu levei meu irmão, o Paulo, pro cinema e o filme era proibido a dez anos e ele não tinha, ele tinha oito ou nove. Então eu fiquei explicando: “Você tem que dizer que você nasceu em tal ano”. Não sei fazer a conta agora, pra dizer que ele tinha dez anos. Aí chegou lá, o porteiro falou: “E aí? Você tem dez anos?”. Ele falou: “Tenho.” “Que ano você nasceu?” “Mil quinhentos...”. Ele falou: “Eita, você tá muito velho”.
P/1 – Já passou faz muito de dez anos. Você se lembra de qual era o filme, ou não?
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não lembro.
P/1 – E dessa fase do Dante, antes da gente passar pra faculdade, Lia, tem algum professor que tenha te marcado?
R – Gostava muito de um professor chamado Petrone, que era o professor de Geografia. Ele uma vez nos levou pra escalar o... Esse morro aí que a gente vê, que a gente passa na...
P/1 – O Pico do Jaraguá, ou não?
R – O Pico do Jaraguá. Nós escalamos o Pico do Jaraguá, ventava pra caramba, e levamos lanche. Esse professor eu gostava muito. Ele dava uma geografia política já, você entendia o porquê das coisas acontecerem nos países em relação à geografia. E tinha um professor de História chamado Ariosto Giaquinto, que também eu gostava muito. Eu gostava muito da aula de História. Ele morava em Santana e convidava a mim e meu irmão pra almoçarmos na casa dele. Nós pegávamos o ônibus, bonde, o que era lá e íamos até Santana.
P/1 – E você acha que eles tiveram, algum desses professores teve influência, você acha, na sua escolha profissional depois? Como é que foi essa transição assim, do colegial pra faculdade? Como é que você escolheu que faculdade ia fazer?
R – Olha, na verdade eu poderia ter feito muitas faculdades, se você quiser saber. Eu tinha interesse, eu era muito interessada em muitas coisas. Eu tinha muita vontade de fazer Psicologia. Eu queria fazer Medicina, depois comecei a dizer que eu tinha medo de sangue, de ver sangue, de cortar, disso, daquilo. Aí pensei em fazer Psicologia. Mas meu pai insistiu muito pra que eu fizesse Arquitetura. Eu estava muito indefinida. Então na verdade falei: “Então vou fazer Arquitetura”. E gostei de ter feito, e gostei de trabalhar como urbanista, principalmente. Que aí trabalhei na prefeitura e cuidar do urbano, da cidade. A cidade me empolgou. Eu gostei muito.
P/1 – Você então escolheu o curso de Arquitetura um pouco porque o seu pai achava...
R – Um pouco porque ele me influenciou, sim. Mas porque um pouco eu via que eu poderia escolher qualquer coisa. Eu não tinha assim, uma tendência pra uma coisa.
P/1 – E aí onde você vai fazer faculdade?
R – Onde eu fiz? Eu fiz no Mackenzie.
P/1 – Como é que era o Mackenzie naquela época?
R – Ah, o Mackenzie também era uma escola... Eu prestei primeiro exame na FAU, mas eu não passei. E aí a hora que eu não passei meu pai falou... Minha vó e meus tios estavam indo pra Itália, meu pai falou: “Então vai viajar”. Eu fui viajar com eles.
P/1 – Você viajou antes de fazer a faculdade?
R – Viajei antes de fazer a faculdade.
P/1 – Então conta como é que foi a sua viagem pra Itália.
R – Minha viagem foi muito boa. Na verdade nós estávamos num carro, nem sei que carro era esse porque iam três pessoas na frente, meu tio Aurélio que guiava, minha vó e meu tio Ciro que era cunhado do meu pai, ficou viúvo logo. E atrás a tia Aninha, eu, Ana Maria, minha prima filha do tio Ciro e a tia Vanda. Ana Maria tinha a minha idade. Então falaram: “Então vai que a Ana também tá indo, vocês viajam juntas”. E nós viajamos a Itália de carro.
P/1 – Mas esse carro estava na Itália, não saiu daqui do Brasil?
R – Não. O carro alugou lá na Itália. Alugou um carro grande.
P/1 – E vocês foram de navio?
R – Nós fomos de navio. Aliás, a viagem de navio foi uma coisa na minha vida. Eu amei o navio.
P/1 – Como é que era? Conta pra gente como era o navio, como é que era a viagem.
R – Bom, pra começar era tudo muito chique naquela época. Roupas e coisas. Então o navio era assim, a gente de manhã ficava no convés, tomava sol. Tomava sol, ia pra piscina e tal. Mas o navio era... Eu há pouco tempo fiz uma viagem de navio, agora fiz o cruzeiro da Grécia, pra dizer a verdade eu não fiquei escandalizada, mas eu achei muito diferente. Todo mundo de agasalho, de qualquer roupa, jantando de qualquer jeito. Lá não. A gente se vestia pra jantar, era assim muito chique mesmo. Não encontro outra palavra. Então de manhã a gente ficava no convés, aí almoçava, depois do almoço tinha concerto. Você voltava pro convés e você ouvia... Tinha chá, na hora do chá tinha um concerto. Depois você se arrumava de novo ou fazia qualquer coisa, ficava um pouco por lá e a noite tinha um jantar. Mas tinha um jantar que você tinha que se arrumar. Mas tinha também uns três ou quatro jantares de gala e nos jantares de gala os oficiais vinham dançar com a gente, porque depois tinha baile. Aquilo era uma emoção, todos os oficiais arrumados e dançando com você lá. Mas a gente dançava também muito com outros passageiros. Eu lembro que tinha uns argentinos, uns uruguaios e a gente dançava bastante, dançava tango. A gente dançava... Naquela época a dança não era tão elaborada como é hoje. Hoje se você vai a uma escola pra dançar, eles te ensinam passos que não são passos normais. A gente dançava. Hoje é muita coreografia na dança, quando você vai fazer um curso de dança é muita coreografia. Lá não. Era uma coisa mais... Incentiva mesmo.
P/1 – Mais espontâneo, você acha?
R – Mais espontânea.
P/1 – E as pessoas aprendiam a dançar dançando, era isso?
R – Dançando. Aprendiam a dançar dançando. Nesse ponto eu sempre me saí muito bem. Eu sempre era elogiada que eu era muito leve. Eu adorava dançar. Adorei dançar a minha vida inteira. Adorava mesmo.
P/1 – E as noites de gala tinham orquestra, tudo?
R – Tinha. Tinha orquestra. Toda noite acho que tinha um conjunto que tocava.
P/1 – E aí fora o tango você lembra que outros ritmos?
R – Ah, bolero. Muito bolero. Muito bolero. Dancei muito bolero na minha vida.
P/1 – E como é que eram as acomodações no navio, você se lembra?
R – Nós estávamos numa cabine as duas tias, eu e a Ana Maria. Acho que eram dois beliches. O duro era a gente trocar de roupa lá, se arrumar, se enfeitar, por vestido de gala. Aí era duro porque era apertado. Normalmente a gente mandava as tias saírem logo pra gente poder se arrumar. Mas aí nós começamos também a namorar dois oficiais, eu e a Ana. Teve uma noite... Não. Uma tarde. Noite não. Teve uma tarde que eles nos chamaram pra ir pra sala dos oficiais. Nós subimos lá por meandros, escadas meio escondidas, a gente achava aquilo era uma emoção. Eu fiz 19 anos lá na Europa. Eu tinha 18 nessa época e ela também. E eles puseram uma música, uma música que tocou no filme com o... Não era o Gregory Peck, era outro. Bom, um filme bem romântico. Eles colocaram essa música lá na vitrola...
P/1 – Você se lembra da música?
R – To querendo lembrar. Não sei. Não me lembro da música agora, talvez depois eu me lembre. Um ficava tomando conta da porta, porque a porta era de vidro, um ficava tomando conta da... Um dos rapazes, nós estávamos em quatro, um ficava olhando a porta enquanto o outro dançava. Depois o outro tomava conta enquanto a gente dançava. Eu sei que aí nós descemos e na descida por essas escadas nós encontramos o capelão de bordo e ficamos morrendo de vergonha de ter encontrado o capelão, a gente vindo lá da sala dos oficiais. Mas era tudo muito emocionante. Quando o navio parou na Itália...
P/1 – Você se lembra do nome deles, dos oficiais? Não?
R – O da Ana Maria era Pipo. O meu eu não lembro. É possível isso? Mas eu me lembro da Ana Maria... O meu era Dario. Dario, mas chamava Dario em italiano.
P/1 – E levou quanto tempo a viagem?
R – A viagem levou 17 dias. Mas eu namorava esse, namorava... Eu flertava lá com um monte de gente. A Ana Maria, não. A Ana Maria ficou apaixonada pelo Pipo, quando veio pro Brasil continuou... Quando o navio passava pelo porto ela ia pra lá com os irmãos. Ficou um negócio meio sério porque na verdade não era pra ser nada sério. Então no fim deu dor de cabeça isso daí.
P/1 – Eles eram italianos?
R – Italianos.
P/1 – E como foi a sua chegada a Itália então? Você ia comentar...
R – Quando nós chegamos a Itália eu falei: “Meu Deus, eu queria ficar mais no navio”. Por mim ficaria no navio ao invés de descer. Foi muito boa a viagem. Mas quando eu desci, eu me apaixonei. Apaixonei-me pela Itália. Gostei muito. Gostei muito mesmo, foi uma viagem muito boa.
P/1 – Vocês chegaram em que local na Itália?
R – Em Nápoles. Nápoles é uma cidade bem bonita. Adorei tudo. Fomos pra Nápoles, fomos pra Bari, fomos pra Veneza, fomos pra Florença, fomos pra Cortina d’Ampezzo, que é um lugar onde tem pra esquiar e tal. Mas naquela época era verão, não tinha. Fomos pra München na Alemanha, fomos pra Zürich na Áustria. Áustria não.
P/1 – Vocês viajaram bastante então.
R - É. Ficamos quase dois meses viajando. Quando eu cheguei ao Brasil eu fui direto pro cursinho.
P/1 – Agora, antes da chegada ao Brasil, tem alguma coisa assim, dessa sua viagem pra Itália, você adorou, mudou a sua relação com a Itália, tem alguma história que você lembre mais específica? Ou uma coisa que você tenha gostado especialmente, que tenha sido marcante?
R – Olha, nessa época eu gostava muito de rapazes. Tinha uma amiga do meu tio que tinha três filhos, os três eram lindos. Eu lembro mais dessas coisas. Ah, quando nós chegamos em Nápoles, no dia seguinte nós fomos pra Pompéia, mas acontece que quando desci do navio o chão começou a balançar. Como se fosse navio. Eu andava e o chão balançava, o chão balançava. E no dia seguinte nós fomos pra Pompéia, eu comecei a vomitar, eu passei mal o tempo inteiro em Pompéia. Então eles queriam visitar e eu não podia, não tinha condições de sair andando. Então eu fiquei sentada lá num tal do Templo do Amor... Não. Fiquei sentada numa ruina e eles foram visitar. Eu passando mal pra burro, chegou um italiano e falou assim se eu não queria ir conhecer o templo do amor. Eu falei: “Mas você não vê que eu to passando mal?”. Eu com vergonha, passando mal e ele lá patatá, patatá, patatá, falando italiano comigo, eu entendo italiano, eu falo italiano. Mas nisso o meu tio chegou. Meu tio chegou ele sumiu. Aliás, os italianos nessa época eram bem assim, porque eles conheciam que a gente era turista, porque as roupas tinham diferenças. O mundo não era globalizado, dava pra conhecer. O meu tio chegou e ele sumiu. Bom, uma vez em Veneza nós estávamos na praça, Praça San Marco lá, e depois fomos indo pro hotel, eu e a Ana na frente conversando em português e dois italianos atrás de nós, falavam italiano crentes que a gente não entendia nada. E falavam: “Sarano slovacche?”. Que se nós éramos eslovacas, o que nós éramos, e nós andando. Andando chegamos ao hotel, o hotel naquela época dava pra ficar num hotel de frente pro canal grande. Hoje é impossível. Você vai pra Veneza, você fica em Mestre, porque não tem mais, você não consegue. Bom, quando nós chegamos ao hotel, eu entrei rápido no hotel, nós duas entramos rápido, fomos pra sacada e abrimos a janela. E os dois entraram pro hotel adentro. Nós duas então de roupa e tudo nos cobrimos na cama com medo que o meu tio aparecesse por lá e nos cobrimos. Fizemos de conta que estávamos já deitadas. Então tinha esses lances bem divertidos.
P/1 – De namorinho mesmo, de flerte.
R – É.
P/1 – Porque é bem essa época, né? Jovem assim, 18, 19 anos.
R – E naquela época tudo era proibido, você não tinha essas liberdades. Então era muito divertido isso tudo.
P/1 – E de coisas que você viu assim, de construções, de ruínas, teve alguma que tenha tido um impacto maior.
R – Olha, tudo me impactou, pra dizer a verdade. Eu adorei tudo que eu vi. Tudo me impactou.
P/1 – E de hábitos, costumes, vestimenta que você citou que era muito diferente.
R – Então, tanto que eles viam a gente e falavam: “Le americane. Le americane” porque reconheciam que nós não éramos italianas.
P/1 – E pra você assim, você se lembra de ter chegado e percebido as diferenças, quais diferenças?
R – Olha, vou te falar uma coisa, eu estava completamente deslumbrada. Eu não estava observando tanto coisas, eu estava aproveitando.
P/1 – E aí você ficou quanto tempo, Lia?
R – Nós ficamos quase dois meses. Aí voltamos e eu fui direto pro cursinho Anglo-Latino. Sentei lá... Não. Pra começar eu cheguei preta, porque eu ficava muito queimada quando eu tomava sol. Hoje eu não posso mais porque eu tive dois carcinomas no rosto, não posso mais tomar sol, mas eu ficava preta e o olho verde. Então eu chamava atenção. Eu vinha muito morena. E vim com uma roupa italiana que também era bem diferente. Eu cheguei, eu chamei atenção no cursinho, todo mundo me viu. Sabe assim quando você percebe que todo mundo te viu? Mas eu estava voando. No primeiro dia eu sentei na sala e comecei a cantarolar em voz alta. Eu fui colocada pra fora da sala.
P/1 – Estava cantarolando o quê?
R – Não lembro. Eu estava cantando, sei lá. Eu fui colocada pra fora da sala. Aí vieram os exames simulados, eu tirei praticamente zero em tudo. Isso era Agosto. Eu falei: “Não. Agora não dá”. Estudei pra caramba e entrei em sétimo lugar no Mackenzie.
P/1 – Foi bem. Recuperou.
R – E aí eu fui pro Mackenzie, não voltei pra FAU porque o meu professor de desenho artístico no colegial era o que preparava pro Mackenzie. Eu falei: “Não. Vai ser mais fácil eu entrar no Mackenzie”. Meu pai também falou: “Vai pro Mackenzie. Mais fácil, não sei o que...”. Então fui.
P/1 – Fez Mackenzie. E aí como é que foi o seu início? Como é que foi a sua época de faculdade? Como é que era o Mackenzie na época? Qual era a diferença? Diferença nesse sentido da faculdade pra faze anterior que era o colegial.
R – É. Era bem diferente. Tinha um professor por matéria, se bem que no colegial já tivesse. Tinha matérias complicadas. E era assim, nós éramos...
P/1 – Como que era o Mackenzie na época? Qual era o perfil dos estudantes?
R – Era estudante bem de vida. Porque era caro o Mackenzie. Nós éramos uma turma de 60 dos quais 14 eram meninas. O resto tudo era homem. E na minha classe éramos três. Então, de novo, eu nessa era bem magrinha, era bonitinha, nessa época eu chamava atenção porque éramos poucas, então logo você era vista, as pessoas te conheciam. Mas aí no Mackenzie quando eu estava no segundo...
P/1 – Que ano que você entra? Você lembra em que ano você começa...
R – Cinquenta e oito. Com 20 anos, portanto. Então, uma coisa que eu comecei a falar, mas não aprofundei muito é que eu tive uma educação esquizofrênica. Minha mãe, minha avó materna, com negócio de religião. Mas religião, religião, religião e tal, missa e meu pai com negócio de socialismo, comunismo, não sei o quê, Deus não existe. Eu na verdade era bem atrapalhada. Depois eu chequei a fazer nove anos de análise pra me juntar, porque eu fiquei bem atrapalhada. Bom, mas então eu era religiosa, mas eu era mais mística do que religiosa. Eu tinha muitas dúvidas desde sempre com a religião.
P/1 – Quando você fala mais mística você quer dizer o quê, por exemplo?
R – Assim, espiritualizada e tal, mas não religiosa de...
P/1 – Dogmática.
R – É. Dogmática. Eu já não acreditava muito em muita coisa, eu tinha dúvidas.
P/1 – Eram católicas. Sua mãe, sua família era católica.
R – Católicas. Aí quando eu estava no segundo ou no terceiro ano, de repente eu tinha uns amigos lá na classe que eram bem de esquerda e começaram a falar comigo, fazer um pouco a cabeça e tal, de repente foi como se eu tirasse a religião das minhas costas assim. Aí eu entrei no Partidão, fui ser militante do Partido Comunista. Nós tínhamos lá uma...
P/1 – Isso é o quê? Sessenta e pouquinho? Começo da década de 60.
R – É. Cinquenta e nove, 60. Nós tínhamos uma célula, era uma base universitária.
P/1 – Que ficava aonde?
R – Não, a gente se reunia lá mesmo... Não. Onde que a gente se reunia? A gente se reunia no... Primeiro eu comecei a ir ao IAB com eles, participar de reuniões com o Artigas, que era um cara de esquerda e aí depois me falaram: “Entra no Partidão e tal”. Aí eu entrei. Eu e o Fábio, meu irmão, entramos. Meu pai que sempre se disse... Meu pai era uma pessoa muito, muito esquisita. Meu pai sempre se disse comunista, mas familiarmente assim ele era um reacionário. Ele era politicamente... A cabeça política dele era separada do resto, da cabeça social dele, familiar.
P/1 – Em que sentido assim você diz que ele era um reacionário?
R – Em sentido que ele, por exemplo, ele não me deixava sair com o meu namorado à noite se o meu irmão não fosse. Isso daí eu já estava no segundo, terceiro ano de faculdade, tinha que meu irmão ir. Tanto que eu namorava um rapaz que ser formou, eu estava no terceiro, ele estava no quinto, e ele me convidou pra ir ao jantar de formatura e o Fábio não podia ir. Então eu não podia ir, então o Samuel não foi também. Um absurdo. E eu também não reagia muito. Eu passei a reagir uma noite quando eu já estava namorando o Cabé, meu marido, já no quinto ano, que eu falei: “Eu vou sair. O Cabé vem me buscar e eu vou sair”. O meu pai falou: “Sem o Fábio não vai”. Eu falei: “Chega. Chega porque não tem sentido isso. Já sou maior de idade, você fica falando que sem o Fábio não dá. Eu vou sair”.
P/1 – E o seu pai? Como é que ele reagiu?
R – Eu falei, falei, falei e saí da sala. Ele estava jogando baralho com a minha mãe, acho que minha vó e minha tia estavam lá jogando baralho com eles. Falei, falei, falei, ele ficou quieto, não falou nada. Eu saí da sala, o Fábio falou: “Você vai matar o papai”. Eu falei: “Não tem jeito, Fábio”. E aí ele não falou mais nada. A partir daí qualquer hora o Cabé podia chegar e me pegar, vinha dez e meia, 11 e meia, a hora que fosse e a gente saía. Ia pra bailinho.
P/1 – Conquistou assim.
R – É.
P/1 – E nessa época... Bom, eu ia te perguntar isso. Você mencionou o bailinho, da época de colegial pra época de faculdade, o que mudou nos seus hábitos? Reunião com amigo, que tipo de diversão, que tipos de atividades fora a faculdade.
R – O que mudou mesmo foi quando eu entrei no Partidão. Aí eu era de uma comissão chamada Comissão Amigos de Cuba. Acho que era no sábado à noite ou na sexta à noite, a gente ia pra uma reunião, era lá na Praça João Mendes, não sei aonde era. Tinha lá um comitê Amigos de Cuba. Era uma coisa muito maluca porque a gente chegava lá, cantava umas músicas: “Eram só 12, Sierra Maestra, foram crescendo, são hoje milhões...”. Cantava umas músicas de Cuba, falava algumas coisas e vinha embora. Não sei o que significava exatamente este comitê Amigos de Cuba.
P/1 – Mas vocês discutiam alguma questão, você lembra?
R – Mas muito pouco. A gente mais cantava, tinha alguma questão ou outra, mas era mais um apoio a Cuba que ninguém via. Nem Cuba sabia.
P/1 – Era mais celebrativo.
R – É. Era uma coisa muito esquisita.
P/1 – Eram mais jovens? Qual que era o perfil dessa comissão?
R – Não. Eu era uma das mais jovens. Eram pessoas, sei lá, dos 25 aos 40. Não sei te dizer.
P/1 – E aí depois como é que continua a sua atuação no Partidão?
R – Bom, aí então eu comecei a participar do Partidão. E o Partidão era uma coisa muito estranha. Era muito moralista. As pessoas do Partidão eram muito moralistas, assim, muito rígidas também com o negócio de namoro, de coisa. Aliás, eram super rígidas.
P/1 – Era uma sociedade ainda bastante machista, patriarcal.
R – É. E o Partidão também era. Era bem rígido, bem moralista.
P/1 – Eram mais homens? Você se lembra da composição?
R – Eram mais homens. Então tinha o Comitê Central, que era quem ditava as ordens. Então eles chamavam o modo de agir de centralismo democrático. Do Comitê Central iam as decisões pro Comitê Estadual, pro Comitê Municipal, pros comitês universitários. E se você tivesse algum reparo a fazer isso tudo voltava. Não voltava nada. Era bem de cima pra baixo.
P/1 – Bem hierarquizado?
R – Bem de cima pra baixo mesmo. E nessa ocasião... Bom, então eu estava dizendo, o meu pai era amigo do Luís Carlos Prestes e os...
P/1 – Como que o seu pai conheceu o Prestes, você sabe dessa história?
R – Olha, eu não sei como meu pai conheceu Prestes porque desde menina meu pai... Aí nós não morávamos mais na Rua Augusta, nós morávamos na Alameda Jaú, numa casa bem grande, e o pessoal do Comitê Central muitas vezes se reunia lá.
P/1 – Na sua casa?
R – É. Eu conheci o Joaquim Câmara Ferreira, eu conheci uma porção de gente lá do Comitê Central. Eles se reuniam lá em casa.
P/1 – Isso você já estava filiada ao Partidão?
R – Não. Isso não. Isso eu ainda estava no colegial. Isso ainda estava no colegial.
P/1 – Então seu pai tinha contato com...
R – Tinha contato. Ele não era inscrito no Partidão, mas ele emprestava a casa, ele... Meu pai foi preso depois. Já te conto isso.
P/1 – É. Conta primeiro essa coisa do seu envolvimento. Então eles se reuniam na sua casa, o Comitê Central?
R – Se reuniam lá em casa.
P/1 – E você assistia essas reuniões?
R – Não. Eles ficavam lá na sala, fechavam a porta e tinham as reuniões lá.
P/1 – E você chegou a ter um contato direto assim com o Prestes?
R – Ah, o Prestes almoçou lá em casa com a segunda mulher dele, que a Olga Benário tinha morrido, né?
P/1 – Sim. Sim.
R – Ele teve acho que oito ou dez filhos com a segunda mulher, com a Maria. Eles almoçaram muitas vezes lá em casa. Muitas vezes. Depois de 64, principalmente, que aí ele já estava no Brasil, estava meio aposentado.
P/1 – E você se lembra de presenciar conversas ou situações ou não?
R – Não. Ele falava, fazia umas análises políticas. Na verdade ele já fazia as análises políticas, no nosso entender, todas equivocadas àquela época.
P/1 – Você achava, vocês achavam isso?
R – Achava. Tanto que em 64 o Partido Comunista estava achando que o exército brasileiro era nacionalista, que então não ia ter golpe, não ia ter isso, não ia ter aquilo. E nós, nós eu digo eu, meu irmão, nós os mais jovens achávamos que era um engano. Tanto que o dia que veio o golpe o meu pai falou assim: “Isso aí não dura dois anos”. E eu lembro que eu falei pra ele: “Põe 20 anos aí”.
P/1 – Estava certa, né?
R – É.
P/1 – Só me deixa entender um pouco assim, quando você entra no Partidão, como é que era a atuação, o que você fazia, como é que eram as reuniões, quem que participava, quais eram as questões...
R – Era um monte de colegas do Mackenzie, na verdade. Era o comitê do Mackenzie aquele lá. Um monte de colegas de um ano pra cima, um ano pra baixo e tal. A gente...
P/1 – Mas vocês se reuniam no Mackenzie? Não?
R – Mas onde que a gente se reunia? Você sabe que eu não sei?
P/1 – Não tem problema. Mas descreve um pouco as reuniões, você se lembra do que era discutido?
R – Eram discutidos os assuntos do dia, sei lá, se o exército era nacionalista ou não. Assuntos assim, que vinham assuntos pra você discutir. Mas o mais interessante é que a gente fazia ATA dessas reuniões, colocava nome, nome e sobrenome de todos que estavam. Nessa ocasião, foi antes da renúncia do Jânio isso, então foi antes de 62, nessa ocasião acho que o partido estava na legalidade. Eu sei que uma vez eu era da secretaria, em reunião eu saí com a ATA e perdi a ATA num carro, num taxi. Eu fiquei morrendo de medo. A ATA ficou perdida, até hoje eu não sei quem pegou, quem leu, eu não sei nada. Mas, enfim, depois dessas reuniões, isso era o comitê do Mackenzie, depois a gente fazia reuniões com o comitê universitário, aí era na sede da UEE, muitas vezes nós fizemos reuniões lá. E lá que eu conheci meu marido militando lá.
P/1 – Como é que vocês se conheceram? Ele era militante também do partido?
R – Também. Também.
P/1 – Como é que vocês se conheceram, Lia?
R – Lá.
P/1 – Sim. Mas digo, você se lembra da primeira vez que você o viu? Como vocês se aproximaram?
R – Lembro. Nós estávamos montando na UEE uma exposição de assuntos brasileiros. Eu estava com um vestido de alcinha, fazia um calor louco, um vestido de alcinha todo leve, ajoelhada no chão, colando umas figuras pra terminar os cartazes, umas coisas. E quando eu viro pro lado pra pegar alguma coisa eu vejo um capote. Fui fazendo assim pra ver quem era, tinha uma pessoa dentro do capote. Era o meu marido. Eu falei assim, mas estava tão calor e ele estava com aquele capote porque ele disse que ele passou a noite lá. Eu olhei pra ele e falei: “Você é do interior?”. Porque só podia ser de outro mundo um cara com aquele casaco. Aí ele falou assim: “Não”. Eu falei: “Como você se chama?” “Carlos Alberto.” “Que nome, não? Como você tá metido com esse casaco aí”. Aí ele falou: “Vamos tomar um café”. Nós fomos tomar um café. Foi assim que a gente se conheceu. Depois disso foi a tal festa que nós fizemos, que eu fiz com o meu irmão lá no dia sete de julho, ele foi lá e lá que a gente começou a namorar. No dia seguinte fomos assistir Rocco e Seus Irmãos.
P/1 – Onde foi essa festa?
R – Foi na minha casa.
P/1 – Foi na sua casa.
R – Mas meu pai, eu estava dizendo, meu pai era muito festeiro, comprou caixas de uísque, de bebida. Foi o pessoal da arena, foi o pessoal do... Sei lá. Foi o pessoal da UEE, um bando de gente. O meu pai gostava disso, dava força.
P/1 – Como é que vocês conheciam o pessoal do Teatro de Arena? Era...
R – Porque era vizinho a UEE, a União Estadual dos Estudantes. Então um ia pro lugar do outro lá, a gente se encontrava. Bom, mas aí teve um momento que foi...
P/1 – Na festa vocês ficaram... Enfim, ficaram mais próximos então, você e seu atual marido, e depois como é que continuou, você disse? Vocês foram ver Rocco e Seus Irmãos.
R – É. Aí a gente começou a namorar. Mas nessa época que teve a renúncia do Jânio em 62 e não queriam dar posse pro Jango. Foi nessa época que eu mais militei, vamos dizer. Porque em 64 eu casei em janeiro, então quando veio a revolução eu já estava grávida, aí já não fui pra rua mais.
P/1 – Então foi mais nessa época de 62 a 64?
R – É. Nessa época da renúncia do Jânio, que não queriam dar posse pro Jango, mas a gente fazia mil coisas, distribuía panfleto, cada coisa maluca. Eu ia lá, a gente ia numas oficinas falar com os caras, com os operários como se eles estivessem com a mesma cabeça que nós. Nós falávamos, eles olhavam pra gente, gente de classe média toda arrumada falando coisas. Eles olhavam pra gente assim tipo: “São loucas”.
P/1 – Tinha alguma atividade mais permanente assim, com os operários pra cooptar politicamente mesmo, pra conscientizar?
R – A gente ia, fazia esse tipo de coisa. Aí teve um dia, nós tomamos o Mackenzie, ocupamos o Mackenzie...
P/1 – Quando isso?
R – Isso foi nessa época de 62.
R – O Abreu Sodré, que era governador de São Paulo foi lá, falou que não, que nós tínhamos razão, que tinha que dar posse pro Jango, que isso, que aquilo, que nós nos encontrássemos à tarde, sei lá que horas, em frente a câmara, em frente ao palácio. Não sei. Ele iria conosco em passeata. Nós fomos lá, ele não veio, nunca apareceu. Aí então nós saímos em passeata, um bando de gente, muita gente mesmo. Saímos em passeata, fomos a frente do Sindicato dos Metalúrgicos lá na Rua da Glória. Aí começou, começaram aqueles discursos, aquela coisa, e de repente nós vimos o exército tomando a Rua da Glória por cima e por baixo. Ocuparam a Rua da Glória e aí começaram a dar... Nós começamos a cantar o Hino Nacional, eles começaram a dar borrachada em todo mundo. E nós entrando então no Sindicato, menina, levei um tombo na porta do sindicato, um cara quase que caiu por cima de mim. Foi um negócio. Aí eles falavam pras mulheres irem lá pra uma cabine. Nós não éramos muitas, puseram numa cabine, e os rapazes entraram. Dessa cabine a gente não via o que acontecia. Eu sei que a gente via os milicos lá entrando e escutava esse barulho: “Rá, rá. Ah, ah..”. E os rapazes com cadeiras na mão empurrando os milicos. Mas eles foram um monte presos, acho que até todos foram presos. Eles chegaram pra nós e falaram: “Vão embora, suas burras”. E a gente não queria ir, mas eles mandaram a gente embora. Eu lembro que eu saí com a Telê, a Telê, hoje, é minha cunhada, casada com o Marcelo, eu e a Telê subimos de mãos dadas e eles estavam assim dos dois lados da rua, nós subimos de mãos dadas. Eu falei pra ela: “Vamos pegar um táxi e vamos lá pra casa, meus pais são legais. Vamos lá e a gente conta que eles foram presos”. Chegamos lá, falamos que eles tinham sido presos, meu pai e minha mãe saíram dando gritos, berrando que a gente não tinha nada que fazer isso. Ela falou: “Você falou que eles eram legais”. Pegou outro táxi e foi embora. Hoje ela é minha cunhada.
P/1 – Seus irmãos estavam também nessa passeata? Alguns dos seus irmãos.
R – O Fábio e o Marcelo.
P/1 – E você lembra, Lia, se vocês tinham cartazes, palavras de ordem?
R – Sim. A gente tinha cartazes, mas mais a gente só falava.
P/1 – Que tipo de coisa?
R – Sei lá: “O povo unido jamais será vencido”. Daquela época era novidade. A gente falava muito isso. Bom, aí no dia seguinte ficou combinado que nós íamos todos nos encontrarmos na faculdade de Medicina, nos jardins da faculdade de Medicina da USP. Era um negócio também, você ia se escondendo, mas também o que nós íamos fazer bem de verdade eu não sei. Nós íamos combinar, fazer algum movimento, alguma coisa, mas essa coisa que hoje eu olhando, acho que era bem inócuo.
P/1 – Por que você acha que era inócuo?
R – Porque, o que a gente podia fazer? A gente podia ir pra rua. Era o que nós fazíamos. Mas isso não mudou nada.
P/1 – Você acha que não mudou nada?
R – Bom, talvez tenha mudado um pouco, talvez tenha servido um pouco.
P/1 – Uma mentalidade aos poucos...
R – Mas era muito ingênuo achar que a gente realmente pudesse influir. Mas de alguma forma deram posse pro Jango.
P/1 – E você lembra assim, dessa época de militância, de referências teóricas, que tipo... O que chegava pra vocês pra alimentar esse discurso?
R – Chegavam textos impressos.
P/1 – Da onde?
R – Do Comitê Central pro estadual, pro municipal, pro estudantil.
P/1 – E o que eram esses textos?
R – Ah, eram textos de Marx. Em maio eu fiz um curso, tinha uns que davam uns cursos de marxismo pra gente. Então a gente tinha umas aulinhas, umas coisas assim.
P/1 – Pra poder discutir.
R – É.
P/1 – E quando vem o golpe de 64, você lembra, você já tinha terminado a faculdade?
R – Já. Terminei em 62.
P/1 – Até então você não tinha começado a trabalhar, Lia?
R – Eu terminei em 62, aí nós montamos, eu e mais uns quatro ou cinco amigos, todos desse grupinho, montamos um escritório de arquitetura na Rua Major Sertório.
P/1 – Como é que se chamava?
R – Não chamava nada. A gente montou lá um lugar e ficou esperando arrumar algum cliente. E ficamos. Pegávamos uma coisinha ou outra pra fazer, mas pouca coisa.
P/1 – Que tipo de trabalho?
R – Ah, sei lá, de repente reformar uma escada. Coisas pequenas. Fazer a fachada de não sei do quê. Não pegamos nenhum trabalho bom nessa época. Foi de janeiro de 63... Janeiro, não. Fevereiro ou março de 63. Em janeiro de 64 eu casei e fui viajar. Fui pro Rio, fiquei 20 dias.
P/1 – Conta primeiro como é que foi seu casamento. Porque você se casou...
R – Espera. Deixa-me só falar do escritório. Aí eu tinha rolo de papel super bom, tinha estojo de compasso alemão. Eu sei que a minha decepção foi que quando eu cheguei eles tinham desmanchado o escritório, eu tinha perdido tudo meu. O compasso alemão, o papel bom. Tinham vendido, eu sei lá o que tinham feito. Eu tinha perdido tudo meu e aí eu fiquei desempregada. Bom, o que você queria saber do casamento?
P/1 – Eu queria saber como é que foi seu casamento. Então você se casa com o Carlos Alberto, é isso?
R – Casei com ele.
P/1 – E aí como é que foi o casamento de vocês? Como é que foi a festa, a cerimônia?
R – A festa foi uma festa bem tradicional que meu pai quis fazer, mas minha mãe não quis que fosse no salão. Minha mãe quis que fosse no apartamento. Eles já tinham mudado da Alameda Jaú pra um apartamento na Rua Baronesa de Itu. Era um apartamento de um por andar, em cima tinha um terraço do tamanho do apartamento e tal, foi coberto. Mas tinha um elevador só. Aquilo foi um caos. Quando nós chegamos tinha fila na rua de pessoas querendo subir. Mas foi uma superfesta e tal.
P/1 – Quantos convidados eram, você tem ideia?
R – Não tenho ideia, mas devia ter uns 200 pelo menos.
P/1 – E a cerimônia religiosa?
R – A cerimônia religiosa foi na Igreja de São Domingos.
P/1 – E como é que foi? Como é que estava enfeitada a igreja? Como é que você estava vestida.
R – Olha, a Igreja de São Domingos não enfeita muito. É uma igreja, não sei se vocês conhecem, é uma igreja assim, bem sequinha. Tem uma cruz na frente, era uma igreja feita pelo Franz Heep, um arquiteto que eu admirava inclusive. É uma igreja bem moderna, sem santo, sem nada, sem quadro, sem nada disso. Lembra um pouco a Igreja da Cruz Torta. Tinha flores brancas, não lembro se... Acho que tinha ao longo dos bancos também, mas era uma coisa simples.
P/1 – Seu vestido, como é que...
R – Meu vestido eu quis um vestido bem simples também, bem seco. Era um pano meio adamascado, manga curta, uma saia evasê, acinturada e só. E tinha véu. Tinha uma grinalda. Nossa, essa grinalda foi uma coisa, porque ela enfiou não sei quantos grampos, a grinaldeira foi lá me vestir, por a grinalda. Enfiou grampos enormes no meu cabelo, aquilo pesava feito não sei o quê. Na hora de tirar teve que tirar com alicate. E meu irmão Sérgio tinha ficado encarregado de por música na festa. Ele que tinha que cuidar da música. Na hora que a gente entrasse tinha que por música, estava tudo planejado. Mas o Sérgio, esse meu irmão casou acho que sete ou oito vezes, e ele era assim naquela época já. Então o que aconteceu? Ele começou a namorar a filha da grinaldeira, não colocou música, não fez nada.
P/1 – Vocês que escolheram as músicas da festa?
R – Olha, eu não lembro muito disso. Eu acho que não. Acho que quem mais cuidava disso era o meu pai, a minha mãe, eu sei lá.
P/1 – E você lembra assim quais eram as músicas?
R – Não. Não porque no fim acabou não tocando, era muito barulho, era muita gente.
P/1 – E na cerimônia? A música da cerimônia?
R – Na cerimônia eu escolhi as músicas. Eu sei que eu entrei com a Marcha Nupcial, eu escolhi o Largo de Handel e as outras não lembro.
P/1 – E como você estava se sentindo, você se lembra, Lia?
R – Eu estava me sentindo muito bem. Falaram, minha mãe achou que eu estava muito desinibida. Eu estava muito contente.
P/1 – Foi um dia bom.
R – Depois nós fomos pra... Mas foi um dia que era nove de janeiro, era pra estar o maior calor. Quando foi de tarde começou a voltar um desses ventos frios que vêm do mar. Começou a fazer frio, ventar e tal. Coisa de verão, dessas coisas. E de lá nós fomos pro Hilton Hotel. Não. Não era o Hilton, era o... Era no hotel na esquina do... Era na Praça do Patriarca com a Líbero Baradó. Não era o Hilton, tinha dois, era o outro. Esqueci. Bom, quando nós fizemos 25 anos de casados, meus filhos nos convidaram pra jantar. Falaram: “Vamos jantar fora”. E aí na hora de... Então vamos embora. Na hora de ir embora o meu filho mais velho falou: “Pai, eu guio o carro”. E foi guiando o carro. Minhas filhas nos carros delas, uma com o namorado, a outra já era casada. A outra era recém casada. Na hora que nós estávamos passando... Othon. Othon Hotel. Na hora que nós estávamos passando, chegando no Othon o Álvaro, meu filho, falou assim: “Acho que furou um pneu do carro”. O Luís falou: “Encosta aí. Encosta aí. Vamos ver”. Encostaram na porta do Othon. E aí: “Ah, tem que trocar o pneu. Vamos esperar lá dentro do hotel. Vamos lá, está garoando”. Sei lá o que estava. Eu sei que então nós começamos a subir as escadarias do Othon, lá pra lateral, vieram a Adriana e a Alessandra, minhas filhas, com mala, com roupa pra gente passar a noite lá no Othon. Então isso foi assim.
P/1 – Fizeram uma reserva de presente pra vocês.
R – É.
P/1 – Então vocês passaram a noite de núpcias no Othon.
R – Também. E de 25 anos de casados também.
P/1 – E depois vocês foram viajar? Como é que foi a lua de mel?
R – Nós fomos pro Rio de Janeiro. Ninguém era muito abonado naquela época, nós fomos pro Rio de Janeiro de trem noturno que era uma novidade o trem noturno, trem leito. O trem leito era uma coisa horrorosa, porque o leito tinha uns 40 centímetros de largura e de diferença com a cama de cima. Era um negócio. O trem leito era um horror. Eu fui de tailleur, de chapéu, de flores que não sei quem me deu na hora de sair. Entrei no trem leito, fui deixando tudo isso, frasqueira, mala e tal, ocupamos bem a cabine, aí depois não dava nem pra trocar de roupa pra ir pro salão restaurante. Estava tudo lotado. Foi um desastre o trem leito.
P/1 – Como é que era? Qual que era essa linha de trem, você sabe?
R – A linha que ia pro Rio, não tenho ideia. Central do Brasil, provavelmente.
P/1 – Era a Central? E como é que era o trem?
R – O trem era um trem que tinha essas cabines de leito que eram um horror de apertadas, tinha o salão restaurante. Também a gente foi à noite, dormiu e depois desceu no Rio. Não sei muito do trem.
P/1 – E no Rio vocês ficaram onde?
R – Nós ficamos num hotel em Copacabana. Luxor Hotel.
P/1 – E como é que era o Rio naquela época? Você se lembra? Você já conhecia?
R – Eu conhecia o Rio. Era bem mais sossegado do que é agora, né? Mas já usava biquíni e tudo naquela época. Não tinha grandes diferenças. Ia menos gente.
P/1 – E aí vocês passam quanto tempo na lua de mel?
R – Nós passamos quanto tempo?
P/1 – É. Quanto tempo na lua de mel?
R – Uns 20 dias nós ficamos por lá.
P/1 – Vinte dias. Tá.
R – Aproveitamos o Rio.
P/1 – Bom, e aí quando você volta, você casou em 63, né, você falou.
R – Casei em 64.
P/1 – Sessenta e quatro já.
R – Dia nove de janeiro de 1964.
P/1 – E aí quando você volta pra cá...
R – Quando eu voltei não tinha mais o escritório e logo em seguida teve o golpe e eu engravidei logo. Na verdade...
P/1 – Você se lembra do golpe assim, Lia? Do impacto...
R – Nossa, lembro muito bem. Lembro muito bem. Primeiro eu me lembro de estar o comício da Central do Jango. Aquilo já foi um negócio assim, apavorante, porque se estava vendo que ia acontecer alguma coisa. E foi numa sexta-feira, foi o dia que eu resolvi fazer um jantar pros amigos do meu marido. Ele tinha uma turma de amigos lá, resolvi fazer um jantar pra eles. O que eu fiz? Eu fiz um pernil, que eu sabia fazer, só que eu esqueci que era sexta-feira santa e o pessoal não comia carne. Aí minha mãe fez umas sardinhas escabeche e levou lá pra mim. Ah, foi assim, quando eu casei eu fui morar com a minha sogra, porque assim, meu marido é filho único. Ele tem uma irmã de criação, mas era menininha na época, tal. E era um problema o negócio do que fazer com a minha sogra, viúva. Eu falei pra ele: “Vamos morar com a sua mãe”. Ele falou: “Ninguém mora com a minha mãe. Não é fácil”. Eu falei: “Mas eu moro com a minha, eu posso morar com a sua”. Eu era bem independente, eu era formada, tudo isso. Eu falei: “Eu posso morar com a sua”. Mas não podia. Não podia, foi horrível. Então quando eu resolvi fazer esse jantar...
P/1 – Você morava com ela?
R – Era 13 de março, que foi o dia do discurso do Jango. Ela fez um monte de doces, a gente mal se falava, eu vi que ela fez três, quatro doces e deixou tudo na geladeira, mas não falou nada pra mim. Eu falei, ela deve ter feito os doces pro jantar, mas não me falou nada, eu não vou usar. Eu fiz lá uma sobremesa... E foi um desastre o jantar porque era o dia do discurso, ficou todo mundo ouvindo o discurso. As mulheres dos amigos do Cabé eram umas bem reacionárias, então aí elas me falavam: “Você fez pernil na semana santa. Você não é religiosa, você não tem religião”. Eu dizia: “Não.” “Ela não tem religião”. Foi um negócio horroroso. Foi um desastre. Elas tiveram que comer a sardinha escabeche porque não comiam o pernil e aí eu fiquei ouvindo o discurso lá. Esse primeiro jantar foi um desastre.
P/1 – E você lembra assim, do impacto do discurso?
R – Foi. Foi impactante. A gente percebeu que ia acontecer alguma coisa. Estava na cara que ia acontecer alguma coisa. Isso foi março. 31 de março foi o golpe.
P/1 – E o golpe você lembra assim de como é que foi receber isso na sua casa, seu ciclo próximo, movimentação nas ruas?
R – Foi um negócio chocante mesmo. A gente estava com medo do que ia acontecer, tanto que nós fomos pra casa do meu pai, meu pai falou: “Isso aí em dois anos acaba”. A gente falou 20 anos. E só ficávamos no rádio vendo isso, né? No rádio e na TV.
P/1 – Nessa época você ainda estava vinculada à política assim?
R – Não. Nessa época ninguém mais fez política. Alguém fez, mas não dava. Não dava pra sair na rua pra fazer nada. E assim, eu vim da lua de mel, logo depois eu fui ao cinema uma tarde com o Cabé e eu tive um sangramento e eu tive um aborto bem no começo. E o médico falou pra mim: “Você tem o útero infantil, o útero pequeno, o útero virado, deve perder vários antes de... Várias gravidezes você pode perder”. Só que quando eu fiz cinco anos de casada eu tinha quatro filhos. Então logo em seguida eu fiquei grávida, ele falou que eu ia perder vários, mas logo em seguida eu fiquei grávida. Eu tive que fazer repouso, aí eu fiquei bem afastada mesmo.
P/1 – Quando vem sua primeira filha? Que ano? É filha ou filho?
R – O Álvaro. Nasceu no ano seguinte, 19 de janeiro.
P/1 – E como foi ser mãe, Lia, você lembra?
R – Ah, foi ótimo. Maravilhoso. Na verdade eu estava falando um pouco, eu acho que eu falei pra ela, eu sou uma pessoa engraçada que eu faço uma coisa por vez. Então a hora de ser mãe eu fui mãe. Adorei ser mãe, adorei me dedicar às crianças. Curti muito, muito, muito. Depois quando eu fui trabalhar, eu fui trabalhar, entendeu? Eu faço as coisas um pouco assim.
P/1 – Então a maternidade veio antes assim, né?
R – Veio antes.
P/1 – E aí você teve quatro, é isso?
R – Eu tive quatro.
P/1 – Qual que é o nome dos seus quatro filhos?
R – Álvaro, Adriana, Alessandra e Aloísio. Quando o Aloísio tinha um ano o Álvaro tinha quatro ou cindo, não sei. Álvaro tinha quatro, aí quando o Aloísio tinha um ano acho que o Álvaro já tinha cinco, eu fui trabalhar. Aí eu fui trabalhar, veio um amigo lá em casa... Bom, enquanto eles eram pequenos eu fazia algumas coisas. Dei umas aulas particulares, fazia algumas coisas que apareciam assim. Aí veio um amigo em casa, um colega do tempo de faculdade, o Nedir. É até um dos nomes que está num diploma que a gente ganhou do Dops lá.
P/1 – Naquele documento?
R – Naquele documento. Ele era casado com a Marlene, tinha uma irmã Elenice. A Elenice irmã dele tinha feito uma sociedade com um marceneiro primo deles e estava fazendo brinquedos educativos. Ela vendia da fábrica direto, mas aí eles resolveram abrir uma loja chamada Faz de Conta. Foi a segunda loja de brinquedos educativos de São Paulo. Tinha a Astrid que era uma alemã em Santo Amaro e aí teve a Faz de Conta.
P/1 – Era aonde a Faz de Conta?
R – Era na Rocha Azevedo. E elas precisavam de mais uma sócia, porque todo mundo tinha filho pequeno, pra fazer um revezamento. Então foram me convidar. Aí eu trabalhava mais na loja, mas também de vez em quando bolava uns brinquedos, fazia umas coisas. Foi muito bom.
P/1 – Quanto tempo você ficou?
R – Então, nós ficamos quase três anos. Mas aí a gente vendeu muito, muito, muito. Era um sucesso a Faz de Conta. Aí a Livraria José Olímpio quis fazer uma sociedade com a gente. Queria vender uns brinquedos nossos e tal, mas aí a gente tinha que aumentar muito a produção. E nós não nos sentimos com coragem. Eu teria topado, mas elas não ficaram com muita coragem, aí também aconteceu o seguinte, o Nedir e a Marlene se separaram. Eu sei que a Marlene acabou brincando com a Elenice, que era a cunhada dela, aí resolveram desmanchar a firma. Foi uma pena. Foi muito chato, porque era muito legal.
P/1 – E aí o Faz de Conta acaba então...
R – O Faz de Conta acabou.
P/1 – Você fica desempregada um tempo?
R – Não. Eu fiquei pouco tempo porque uma professora do Álvaro montou uma escola nessa época e me pediu pra ajudar, pra ajudar na secretaria. Aí eu tinha prestado concurso na prefeitura, eu estava esperando ser chamada porque o concurso foi adiado uma vez. Eu sei que demorou, demorou, demorou pra sair resultado porque alguém entrou com mandado de segurança e a coisa demorou.
P/1 – Que concurso que era, Lia?
R – Concurso pra arquiteto da prefeitura. Enquanto isso ele falou: “Vem me ajudar lá na escola e tal”. Eu fui ajudar na secretaria. Mas quando chegou o segundo semestre, a professora do terceiro ano foi embora. Ela falou: “Lia, estou sem professora. Vai e pega a classe pra mim?”. Eu falei: “Pego, né?”. E me saí muito bem na classe. Quando foi o fim do ano ela fez uma análise e disse que a professora que melhor se saiu foi a Lia. Mais criativa, que melhor se saiu. Mas de disciplina foi a pior. Eu falei: “Ou criatividade, ou disciplina. Não dá muito pra essas duas coisas andarem juntas”.
P/1 – Você dava aula do quê?
R – Aula geral. Terceiro ano primário. Mas tinha um menino que não falava e ele falou comigo. Foi a primeira pessoa que ele falou e os pais ficaram muito entusiasmados comigo.
P/1 – Como que era o trabalho que você fazia com eles? Você se lembra?
R – Ah, sei lá. Eu lembro que tinha as matérias lá, eu seguia, dava aulas. O ano seguinte...
P/1 – O nome da escola você lembra? Ela existe até hoje?
R – Acho que era Cazuza. É lá no Campo Belo.
P/1 – Você fica só um ano? Você ficou só um ano?
R – Eu fiquei um ano. Eu fiquei um ano, no fim do ano os pais me mandaram cartas, agradeceram, mil coisas. Mas aí o que aconteceu? Tinha um... O Antonio Cezar Peluso, que foi presidente do Supremo Tribunal, eles eram muito amigos nossos. Na verdade assim, a Lelê, minha filha terceira, ficou muito amiga da Érica, filha deles, no maternal. E a Érica foi brincar um dia lá em casa, eu estava descalça, com bermuda ou sei lá como, arrumando a estante lá em casa, tudo no chão, a maior confusão. Chegou um cara magrelíssimo, de chinelo, de bermuda pra buscar a filha. Era o Peluso. Ele vinha do interior, ninguém dava nada por ele. Ele foi presidente do Supremo Tribunal Federal. Mas ele veio lá e assim a gente começou uma amizade e ficamos muito amigos. Eles moravam na Aclimação naquela época, nós também. Ficamos muito amigos, a Lúcia, mulher dele, e eu toda tarde ia uma na casa da outra tomar café antes de buscar as crianças na escola. Ficamos muito amigas. E aí ele resolveu... Eu fiquei dois anos lá na escolinha. Ele resolveu que ele ia me indicar pra ser perita dele. Perita judicial da sétima vara da família. Eu falei: “Mas eu não sei fazer laudo”. Ele falou: “Não. Mas eu falei com o meu perito, você vai trabalhar com ele no escritório, ele vai te orientar e você vai fazer os laudos pra mim”. Então eu fui trabalhar no escritório de perícia e fazia os laudos particulares também pro Peluso. Nessa época eu comecei a ganhar muito dinheiro, porque até lá a coisa estava bem apertada. Os filhos todos em escolas particulares, estava difícil.
P/1 – O que eram esses laudos, Lia? O que era esse trabalho exatamente?
R – Então, por exemplo, um inventário, você tem que avaliar os bens pra poder dividir. Ou uma separação judicial você tem que avaliar os bens pra ver o que fica com quem e tal. Da sétima vara da família basicamente era isso. Ou então uma casa de alguém que está interditada, você tem que avaliar também. Eram avaliações de bens e imóveis, normalmente. Alguns bens móveis, mas isso daí era pouco. Era mais um inventário. Então era avaliação de imóveis e você tinha que fazer o laudo e tal. Trabalhei com isso de 80 a 82. Em 82 eu saí, fui pra prefeitura.
P/1 – Você foi chamada no concurso?
R – Fui chamada. Mas aí eu devo dizer o seguinte, eu tive muita sorte profissionalmente. Eu trabalhei muito, mas eu também tive muita sorte. O dia que a prefeitura me chamou eu tinha que me apresentar no Martinelli, em tal andar, no 21º andar que era a seção de aprovação de projetos. Lá fui eu. A hora que o elevador abriu a porta eu dei de cara com um primo meu que já trabalhava lá.
P/1 – Que era quem?
R – Flávio Formícola. Ele já trabalhava lá há mais tempo. Ele falou: “Aonde você vai?”. Eu falei: “Eu vou lá ao Aprov que me chamaram”. Ele falou: “Não. Não vai não. Sobe aqui comigo até o 22”. Ele era do gabinete, aí ele conversou lá com o chefe da Ceuso que era uma comissão, Comissão de Edificações de Uso do Solo, falou como o Domingos Sinibaldi que era o chefe da Ceuso, falou: “Deixa a Lia aí na Ceuso, porque no Aprov ela vai ficar lá encostada, não vai progredir nem nada”. Então eu fiquei na Ceuso.
P/1 – O que era a Aprov?
R – Setor de aprovação de projetos. Então eu fiquei lá na Ceuso e fiquei estudando um pouco o código de obras, que na verdade eu não sabia como é, como não é. Eu fiquei lá estudando um pouco em 82. Em 85 eu fiquei lá, em 85 entrou o Covas e ele colocou o Arnaldo Madeira como secretário da habitação. Eu conhecia o Madeira de política universitária. Aí eu fui lá, conversei com o Madeira, mas eu tinha que fazer uma cirurgia na época, ele falou: “O que você quer?”. Eu falei: “Eu não quero nada. To indo aprendendo, eu vou te ajudar no que eu puder. Agora eu vou fazer uma cirurgia, eu vou ficar afastada”. Mas nessa época o Covas montou uma comissão com a Clementina de Ambrosis, coordenadora, pra modificar o código de obras. Aí me colocaram nessa comissão pra ajudar. Bom, então por isso que eu digo que eu também tive sorte. Eu fui pra essa comissão e a gente discutia os itens do código que queria mudar, simplificar o código de obras e tal. Eu sabia pouco, o pessoal de lá tinha mais experiência, estava a mais tempo, então o que eu fiz? Então eu comprei um caderno e eu anotava as coisas que eu achava importantes. A Clementina era uma pessoa super avoada. Na reunião seguinte ela dizia: “Onde nós estávamos mesmo?”. Aí eu pegava e falava: “Nós estávamos vendo isso, isso, aquilo, discutindo isso”. Bom, acabei ficando uma pessoa importante lá na comissão. Necessária, não importante, porque eu acompanhava, eu anotava. Tinha um coordenador político que chamava Fernando Albino de Oliveira, ele começou saber que eu estava me sobressaindo. Isso foi bom pra mim. E aí acabou a administração e a gente não conseguiu aprovar o código.
P/1 – Só pra ficar, Lia, mais assim completo pra gente, que tipo de discussão?
R – Parâmetros técnicos na verdade. Precisa ter isso, precisa ter aquilo. Então a Clementina queria... Porque o código anterior era assim, um quarto tem que ter, sei lá, 2x3, um círculo de não sei quanto. Então ela dizia: “Não. Vamos fazer um código de desempenho”. Um quarto tem que ter o desempenho capaz de ter tantos metros cúbicos de ar. São parâmetros meio complicados. São melhores, mas são meio complicados de você avaliar. Então houve muita, muita discussão, mas não deu pra terminar. Bom, aí foi a eleição do Fernando Henrique pra prefeito. Eu fui chamada lá com o pessoal do gabinete pra ajudar, pra escrever textos e tal. Nós trabalhamos pra eleição do Fernando Henrique escrevendo textos sobre a prefeitura preparando material pra ele. Ele não ganhou, né? O Jânio ganhou. Aí eu fiquei meio queimada lá na secretaria, porque o Jânio ganhou, eu tinha trabalhado no Fernando Henrique. O Madeira falou, o Arnaldo Madeira, era vereador, estava na câmara, ele falou: “Vem trabalhar comigo na câmara porque você vai ficar queimada aqui”. Aí eu fui trabalhar dois anos na câmara. E o Madeira nessa ocasião estava trabalhando pra se reeleger como deputado pra trabalhar na constituinte. Então foi um trabalho interessante também. Se bem que eu não gostei muito do trabalho da câmara porque o trabalho na câmara...
P/1 – O que era?
R – Era assim, alguém...
TROCA DE FITA
P/1 – O que era esse seu trabalho na câmara?
R – Então, o trabalho na câmara eu não gostei muito porque o trabalho na câmara é assim, um deputado... Um vereador era na câmara, faz um projeto dizendo que tem que ser aprovado um hospital pro rim. O seu vereador fala assim: “Ele tá fazendo um projeto pro rim. Faz um projeto pra outra coisa que é pra competir com aquele projeto”. Então de repente eu digo: “Não sei fazer um projeto da área médica. Eu sou arquiteta”. Então eu tinha que telefonar pra alguém, pra um médico, pra ver, pra... Então havia muita competição assim de projetos, que quem faz mais projetos, quem aprova mais projetos tem vantagens, sei lá, é mais conhecido. Não sei exatamente quais eram as vantagens. E também havia muito acordo. Hoje, depois que eu trabalhei na prefeitura, eu aprendi a fazer acordos, mas naquela época eu achava que não tinha nada que o PMDB fazer acordo com o partido, sei lá, de direita, com o PSB, sei lá. Então eu era... Eu não gostava muito disso e lá na câmara também eu não tinha muito como progredir. Aí me falaram: “Olha, vão ser criados novos cargos aqui na Sehab, na Secretaria da Habitação. Volta pra cá que você acaba conseguindo um cargo”. Porque eu não tinha cargo nenhum até aquela época, eu era arquiteta só. Bom, mas antes de eu ir pra lá, falar um pouco... Mas tinha umas coisas interessantes, que aí o Madeira fazia campanha eleitoral, que ele queria se eleger, a gente ia pra periferia, era muito interessante. Ia pra periferia, dançava nos forrós, era bem legal.
P/1 – Qual que era a ação na periferia? O que vocês iam fazer?
R – Ah, não. Ia pra comitê pra fazer campanha. A gente dançava, tomava café, coisas assim. E ele provavelmente prometia alguma coisa pros cabos eleitorais lá, mas eu nem sei. Eu fazia a parte social. Mas aí voltei pra secretaria e me deram um cargo de assistente técnica realmente, aí eu fiquei lá. Saí-me bem. Quando saiu o Covas...
P/1 – Qual que era o seu trabalho de assistente técnica? Qual que era...
R – É dar parecer técnico nessa comissão. A gente dava parecer. Porque a Comissão de Edificações do Solo era assim, era uma comissão pra dar parecer sobre omissões do código de obras. Então você queria aprovar uma coisa que não estava prevista no código. Então ia pra Ceuso, que era essa comissão, e os técnicos davam um parecer, analisavam e a chefia de assessoria levava pra uma comissão de pessoas, construtores, pessoas da sociedade tal pra analisar se podia aprovar ou não. Essa comissão é uma comissão muito perigosa, porque como você pode aprovar coisas que não estão na lei, ela é muito suscetível a corrupção. Era uma comissão muito perigosa. Bom, mas enfim, acabou o governo do Covas, aí foi a eleição entre... Era fim de 88. Foi eleição entre Erundina e... Não lembro.
P/1 – Não sei. Não lembro também com quem que a Erundina...
R – Erundina e alguém do PSDB. Bom, eu votei na Erundina. Fiquei entusiasmada com ela e tal. Votei na Erundina. O Madeira brigou comigo assim, rompeu relações que eu votei na Erundina, que a filha dele que era criança também tinha votado na Erundina, que não sei o quê, que eu tinha feito bobagem, que isso e que aquilo. Eu votei na Erundina. E pra secretária da habitação foi nomeada a Ermínia Maricato, uma arquiteta. Então nós começamos a ter umas reuniões, antes de ela sumir, com a Ermínia Maricato e com a Raquel Rolnik, que depois foi secretária de planejamento. E nós começamos a ter reuniões com elas e, sei lá, me saí mais ou menos bem nessas reuniões. Um dia que nós estávamos trabalhando ainda veio um rapaz e falou assim, um rapaz que era do PT, eu não era, eu só tinha votado na Erundina, mas não era do PT e nem sou. Veio esse rapaz e falou assim: “Lia, a Ermínia está procurando alguém da Ceuso que tenha trabalhado no código de obras da Erundina”. Eu falei: “Sou eu. Não tem mais ninguém nessas condições.” “Então ela quer fazer umas reuniões com você e tal e coisa”. E ficamos fazendo reuniões preliminares, umas reuniões bem desagradáveis porque eu falava algumas coisas que ela dizia que isso daí era muito corporativismo. Mas não era, porque quem vem de fora também não tem muito uma visão do que é um serviço público. Engana-se um pouco, se ilude um pouco.
P/1 – Mas em que termos assim, Lia? Que tipo de coisa?
R – Por exemplo, acha que vai descobrir a pólvora. E a pólvora já está descoberta, arquivada na gaveta, ninguém colocou em prática, mas já foi descoberta. Então tem muito disso. A gente faz muita coisa boa na prefeitura que depois não é implementada. Mas quem chega sempre acha que você não pensou e já pensou, a verdade é essa. Bom, eu sei que teve um dia, era mais ou menos dia 20 de dezembro que nós íamos ter uma última reunião com a Ermínia. Nesse dia foi muito interessante, porque eu marquei acho que às duas da tarde reunião com uma astróloga, que é muito amiga dos meus filhos. Eu liguei pra ela: “Erani, eu quero que você leia meu mapa astral”. Então ela falou: “Fala já a data, tudo que eu já faço o mapa, quando você chegar é mais rápido”. Eu entrei na sala dela, ela falou assim: “Lia, eu to aqui vendo o seu mapa, to muito animada por você. Porque o seu mapa você vai ter dois anos de um sucesso fantástico profissional. Mas eu vejo você e muita gente em volta, muitas discussões, muita coisa, mas você vai ter um sucesso fantástico”. Basicamente foi o que ela me falou. Saí dessa reunião com a Erani, fui pro sindicato dos arquitetos pra fazer reunião com a Ermínia. A Ermínia falou diretrizes que ela queria, que isso, que aquilo, que isso, que aquilo aí ela falou: “Agora eu vou convidar as pessoas pros cargos que eu quero”. E foi convidando e falou: “Ceuso. Pra Ceuso eu quero a Lia”. Nossa, meu coração até disparou, porque ser chefe de assessoria de repente assim era muito bom, mas me deu certo medo. “E eu quero que você coordene o código de obras”. Falei: “Muito bem. Vamos lá”. E eu falei pra ela: “Agora que você me conheceu profissionalmente, você vai me conhecer pessoalmente. Eu sou sogra do Lulinha”. Meu genro, Luiz José Bueno de Aguiar que era amigo da Ermínia. Era do PT e amigo da Ermínia. Eu falei: “Eu sou sogra do Lulinha. Mãe da Adriana.” “Ah, que bom”. Não sei o quê, não sei o que mais e tal. Foi uma festa. Eu sei que o Lula, o Lulinha tinha me dito: “Eu conheço muito a Ermínia, mas eu não posso indicar você”. Eu falei: “Eu nem quero. Quer dizer, vai ser o quê? Vai me indicar como minha sogra? Eu não quero ser conhecida como a sogra do Lulinha”. Eu sei que depois que ela me indicou eu falei: “Eu sou a sogra do Lulinha e tal”. E nesse dia ia ter um jantar de Natal lá em casa, porque assim, a gente passava o Natal sempre na casa de uma tia, que até faleceu esse ano, que é com quem minha avó morava. Então minha avó que fazia véspera de Natal lá, ela morreu a minha tia continuou fazendo. E o almoço de Natal na casa da minha mãe, dos meus pais. Então eu fazia um jantar pros meus filhos, pra dar os presentes das crianças deles e tal. Sempre fazia antes do Natal. Agora tem muita criança, muito... Já virou almoço. Mas naquele ano era no dia que a Ermínia me falou o negócio do cargo que eu tinha que preparar o jantar. Ainda não tinha netos, era menos gente, era pouca gente e eu ia fazer o jantar na hora que eu cheguei em casa eu não conseguia fazer o jantar. Andava na cozinha pra cima e pra baixo, pra cima e pra baixo pensando: “Como que eu vou fazer esse jantar?”. Mas eu sei que foi muito bom, foi uma alegria grande e tal.
P/1 – E como é que foi o seu trabalho na...
R – Então, aí que eu digo que eu tive sorte, porque eu fui escolhida algumas vezes. Meu primo me colocou na Ceuso, aí eu fui pro código da Clementina, aí queriam alguém que fosse da Ceuso e tivesse trabalhado no código da Clementina, esse alguém era eu.
P/1 – No que consistia esse trabalho, como é que foi o desenvolvimento?
R – Então, esse trabalho consistia de novo em simplificar o código que ainda não tinha sido mudado. Tinha alguns artigos mudando algumas coisas. Mas assim, o código anterior era um código absolutamente... Ele quase que era um código de projeto. Ele dava todas as regras. A gente queria fazer um código mais... Primeiro um código mais de desempenho e um código falando do que seria necessário realmente.
P/1 – E qual que é a diferença, Lia, de um código de projetos e um código de desempenho?
R – Então, você precisa de um arquiteto pra fazer o projeto. Você não precisa dizer pro arquiteto que a cama tem que caber no quarto. Até porque você disse que a cama tem que caber no quarto e fazem quartos onde as camas não cabem, onde tem apartamentos onde se você puser a cama você não põe o guarda-roupa. Então é inútil isso. Simplificar um pouco nesse sentido, quer dizer, ser bem rígido em relação a parâmetros de segurança, locais de reunião, locais de público e tal. Segurança, acessibilidade, vizinhança. Então ser bem rígido em relação a isso e dizer que o resto tem que ter o arquiteto. Todo projeto que tem arquiteto, se o pessoal que vai alugar ou comprar um imóvel desses, ele tem já um jeito de se defender. Ele pode escolher. Então ao invés disso a gente se preocupou com habitação de interesse social das áreas pobres e deu mais facilidade pras habitações de interesse social.
P/1 – O que você chama de habitação de interesse social?
R – Ah, casas abaixo de... Com cinco metros de frente, essas casas de periferia mesmo. Então a gente deu mais flexibilidade pros moradores desse pessoal. E tinha uns funcionários meus inclusive que falavam assim: “Mas isso não tá certo. E o princípio da isonomia?”. Mas principio da isonomia se as pessoas partirem da mesma realidade. Mas elas não partem da mesma realidade. Então não tem isonomia pra quem não tá partindo da mesma realidade. Na comissão tinha os construtores. Os construtores querem baratear a construção. Não adianta. E se não puser uma cadeira de... O elevador tem que ter uma porta aonde entra uma cadeira de rodas. “Não, mas só tem 5% de deficientes físicos.” “Bom, mas e se seu filho quebrar a perna e tiver que andar numa cadeira de rodas, como ele entra?”. Era muita discussão.
P/1 – Vocês tinham todas essas discussões, nesses detalhes?
R – Tínhamos. Detalhes desse tipo. Mas então a gente abria a mão em alguma coisa pras construções, pros prédios de classe média e tal, e aí as pessoas que se defendessem. Em troca disso, eles abriam mão de alguns parâmetros para as habitações de interesse social. Então a gente negociou muito nesse sentido.
P/1 – E vocês conseguiram modificar, Lia?
R – Nós conseguimos. Então, quando faltava um ano, mais ou menos, o código ia pra câmara. Ficou pronto, ia pra câmara. E aí eu liguei pra Erani, pra astróloga: “Erani, e aí? Dá uma olhada no meu mapa”. Ela falou: “Você vai colher tudo que você plantou”. Eu falei: “Pessoal, o código vai ser aprovado.” “Como você sabe?” “Pode ter certeza”. E foi aprovado. Foi aprovado e foi muito bom. Foi uma das poucas leis que foram aprovadas nesse governo. Foi muito bom. E foi muito bom trabalhar com a Luiza Erundina. Era uma pessoa muito legal, muito honesta. Foi muito bom trabalhar com ela. Trabalhar com a Ermínia Maricato foi um pouco difícil. A Ermínia achava que eu era cria do Madeira e o Madeira me odiava porque achava que eu tinha virado cria da Ermínia. Então os dois ficaram assim, meio esquisitos comigo. Mas no fim, quando o código foi aprovado eu fui a uma demonstração do código, uma palestra sobre o código e tal com a Ermínia, aí ela ficou bem satisfeita.
P/1 – Foi bom, então. Foi bom o resultado final. E você fica quanto tempo na prefeitura? Você faz toda sua... Até se aposentar?
R – No ano seguinte mudou de novo o governo. Entrou o Pitta. Na hora que entrou o Pitta mudaram todos... Eu tirei férias. Eu coloquei meu cargo a disposição, larguei o cargo e tirei férias. Eu voltei acho que em fevereiro, tinha mudado todo o chefe de assessoria, tinha mudado tudo. Eu cheguei e falei pro meu chefe: “Bom, eu to voltando. O que eu faço?”. Ele falou: “Você não pode ficar aqui na Ceuso.” “Eu imaginei que vocês não fossem me deixar ficar aqui, mas pra onde eu vou?” “Não, mas não querem nem que você fique na Sehab”. Eu falei: “Não. Isso não. Vou chamar todos que trabalharam comigo no código, o pessoal, os representantes da construção civil, todo mundo que trabalhou comigo, vou ligar pra todos e dizer que vocês estão querendo me tirar da Sehab.” “Ah, não. Então espera. Vou conversar lá no gabinete”. Aí me puseram numa comissãozinha lá, tal de ____01:55:53____, que dava atendimento ao público e tal. Mas aí eu conversei com o Madeira, se tinha lugar na câmara pra eu ir. Ele falou: “Não tenho mais lugar. Convidei tanto, você nunca veio, agora não tenho mais lugar. Mas vai trabalhar na Secretaria do Verde, que fundaram agora a Secretaria do Verde, vai lá trabalhar com o...”. To ruim de cabeça. Enfim, vai lá trabalhar no verde. Fui pra lá...
P/1 – Que ano era isso, mais ou menos, você sabe?
R – Espera aí. Era 92. Fui trabalhar lá. Bom, e aí fiquei no Verde até 2002 quando eu me aposentei.
P/1 – Você aposentou na prefeitura então?
R – É.
P/1 – E os seus netos, vêm quando? Voltando um pouco assim pra vida pessoal.
R – Meus netos vêm quando?
P/1 – É assim, quando você é avó a primeira vez? Eu queria saber um pouco isso que eu sei que você tem muitos netos.
R – O Martin nasceu em 93. Depois de dois anos e meio nasceu a Marília, a irmã dele. Aí vieram a Bia, a Luiza, o Miguel, o Pedro e por último a Tereza que faz nove anos hoje.
P/1 – E como é ser avó?
R – Adoro. Adoro ser avó. Então assim, trabalhei feito louca na prefeitura e me aposentei, aí virei avó. Avó que faz algumas coisas nas horas vagas, como dizer? Uma hora pintei cerâmica, outra hora eu estudei piano, agora eu to fazendo Pilates, assim, uma coisa por vez. Continuo fazendo uma coisa por vez.
P/1 – Qual que é a diferença de ser avó e ser mãe?
R – Ah, ser avó você é muito mais exagerada porque você tem... Olha, meu neto vai fazer 20 anos agora em novembro, o Martin, e eu fico preocupada com ele. Coisa que meus filhos faziam, eu colocava meus filhos na rua com 11 anos pra tomar ônibus, eu fico morrendo de medo dos meus netos agora. Verdade que o mundo mudou um pouco, mas avó é mais aflita.
P/1 – E mima mais também.
R – E mima mais.
P/1 – Pode mimar sem limites.
R – O que é muito bom, porque depois eles vão embora, os pais é que se virem com eles. A Tereza eu mimei muito, porque foi a primeira que nasceu depois que eu estava aposentada. Então essa realmente eu mimei. Ela ficava muito lá em casa, porque é a primeira. Os outros eu estava trabalhando ainda quando nasceram.
P/1 – E as suas atividades? Você mencionou agora, né, que você tem algumas atividades suas fora ser avó. O que você faz hoje em dia, Lia?
R – Hoje em dia, na verdade, eu to fazendo Pilates e fisioterapia, porque eu tenho um joelho que começa a me atormentar. Então to ocupada com isso agora.
P/1 – Pilates, fisioterapia e avó.
R – É.
P/1 – A gente tá um pouco encaminhando pro fim, não sei se tem... Tenho mais duas perguntas pra te fazer.
R – Faça.
P/1 – São de encerramento, mas queria saber se tem alguma coisa que a gente não tenha falado que você queria deixar registrado ou que você quer deixar registrado.
R – Não. Quero dizer só que na Secretaria do Verde também fui diretora de dois departamentos. Mas o trabalho lá não foi muito bom porque a Secretaria do Verde foi montada, sei lá, um grupeto de amigos e havia muita corrupção, muita coisa por lá. Então como é uma secretaria que trabalhava muito com ONGs, com aprovações ambientais, mas aí tinha uma firma que queria fazer essa aprovação ambiental. Havia muita panelinha na Secretaria do Verde.
P/1 – Qual que era a principal função da Secretaria do Verde?
R – Bom, cuidar dos parques e áreas verdes. Esse era o departamento melhor, porque esse veio da prefeitura, então era estruturado mais do jeito que a gente conhecia. Eu fui diretora do Depave. Fui diretora do Deapla também, que era o Departamento de Planejamento e Educação Ambiental. Mas desse departamento não tinha muito cara. Não sabia muito bem o que ele tinha que fazer. E tinha também Decont que era o Departamento de Controle, que começou com o controle de automóveis, essas coisas. Mas no Deapla eu cheguei a pegar uma corrupção lá. Enfim, eu acabei me indispondo com muitas pessoas. Depois no fim, não. No fim quando entrou a Stela Goldenstein como secretária, quando a Marta foi eleita novamente, a Stela Goldenstein foi secretária o Geraldinho, Geraldo Siqueira, foi chefe de gabinete. O Geraldo Siqueira marido da Rosana. O Geraldo Siqueira foi chefe de gabinete e me chamou pra ser assessora dele. Aí de novo foi um trabalho muito bom, muito interessante, muito bom.
P/1 – Que era o que, Lia? Qual que era o trabalho? O que vocês fizeram?
R – A gente fez projetos, a gente dividiu a... Surgiram as subprefeituras, nós cuidamos da implantação das subprefeituras. Foi um tempo muito bom, mas foram mais dois ou três anos. Aí entrou outro secretário e eu tinha que voltar pro meu departamento, tinha que voltar pro Depave e ser arquiteta simples de novo. Aí é o seguinte, os funcionários que vinham chegando tinham a idade dos meus filhos, e vinham uns funcionários desses petistas bem radicais, que como eu não era petista eles achavam que... Sei lá. Eles tinham mil pés atrás comigo. Um dia eu falei pra um deles: “Eu não fui petista porque o PT se formou muito tempo depois”. Eu era do Partidão.
P/1 – Mas você não se filiou depois a nenhum partido?
R – Não. Não me filiei a nenhum partido. Eu fui do Partidão. O PT se formou muito tempo depois. Até votei no PT, mas... “Vocês ficam achando, ficam com o pé pra trás pra mim, eu fui de esquerda muito antes de vocês estarem na vida fazendo alguma coisa”. Bom, aí quando entrou o Adriano Diogo no lugar da Stela eu tive que voltar pro Depave como arquiteta simples, eu tinha incorporado meu cargo já, mas isso daí não era o problema. Não era o problema salarial. Eu falei: “Agora eu vou atender ordens dos amigos dos meus filhos que vão descobrir a pólvora tudo de novo. Eu não to afim”. Eu tinha 65 anos já, eu falei: “Eu não vou esperar até os 70. Eu vou me aposentar”. Tinha 30 de prefeitura. Aí eu me aposentei.
P/1 – Foi aí que você decidiu se aposentar.
R – É. Aí decidi me aposentar.
P/1 – Ana, você quer fazer alguma pergunta que eu não tenha perguntado, alguma coisa que você ficou curiosa? Não? Eu queria te perguntar uma pergunta de fechamento que a gente faz. Um sonho, Lia? Alguma coisa que seja seu sonho hoje ou um sonho que você tenha. De qualquer natureza, pessoal, profissional, familiar, afetivo. Qualquer coisa.
R – Assim, de repente um sonho?
P/1 – É. Um sonho. Vale tudo.
R – Olha, eu vou te dizer uma coisa. Eu não sei se eu tenho um sonho. Eu me considero uma pessoa realizada, uma pessoa feliz, realizada profissionalmente, realizada como mãe, realizada no casamento. Eu vou fazer 50 anos de casada. Tenho um sonho assim talvez de tudo ficar bem, tudo continuar bem com a minha família, da gente ainda poder viajar um pouco.
P/1 – Pra onde você quer ir? Tem algum destino?
R – Eu tenho muita vontade de conhecer Portugal, que eu não conheço. Conheço a Europa quase toda, mas não conheço Portugal. E quero conhecer a Sicília ao sul da Itália.
P/1 – São dois sonhos.
R – Bom, quero conhecer também a Rússia, que pra lá também não fui.
P/1 – Portugal, Sicília e Rússia. Já é um sonho.
R – É um sonho.
P/1 – E como é que foi contar sua história, Lia? O que você achou?
R – Eu gostei. Eu começo a falar e não paro mais, né? Gostei de contar.
P/1 – Mas é isso que a gente quer mesmo.
R – Eu gostei de mexer com tudo isso de novo. Muito bom foi viver assim essas coisas.
P/1 – Está certo. Bacana. Então a gente agradece que você tenha vindo.
R – Eu agradeço vocês pela paciência.
P/1 – Imagina. A gente que agradece a sua generosidade de dividir a história com a gente.
R – Obrigada.
P/1 – Muito obrigada.
R – Obrigada a vocês.
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