Entrevistado:
Teve um tempo que a minha barba tava tão grande que era um problema pros cabelos. Ficava roçando no microfone muito sensível e o vento abraçava o cabelo e era...
Hoje em dia tem aqueles microfones pequenininhos e aí eles tem um plugue que nem esse. Eu já vi vídeo de gente com microfone aí na barba. É… É pequenininho. Passa desapercebido. É. É mais um fio da barba que tá ali. Exato.
Rapaz, o meio se dá renda, você tem que dar condição aos elementos trabalharem, né? Essas coisas de tecnologia desenvolver, se fosse desenvolver e não tivesse consumo, é claro que nêgo não ia fazer esse investimento. Mas tem sempre avançado e tem sempre os profissionais precisando. E aí você oferece um trabalho com melhor qualidade, você cobra mais caro e pode comprar equipamento melhor e vai levando. Só o povo que contrata show popular é que é desapercebido dessas coisas. Que é você, belo na fita, mas não paga justo que você compre uma viola melhor, que você compre um pandeiro melhor, um microfone melhor. É, entendeu? Aí o povo fazia show. Fazia evento, me chamava pra cantar de graça, porque não tinha dinheiro.
Mas o material do cartaz dava pra fazer roupa pra qualquer um de nós. Eu disse, tem dinheiro pra gastar na gráfica com um cartaz desse? E você não tem dinheiro pra me pagar? Não, quer dizer, né, você sabe, esse cartaz foi patrocinado. Então, racha o patrocínio. Esse cara que patrocinou não precisava fazer o cartaz de um material tão caro quanto esse e lhe faltava dinheiro pra você me dar uma colaboração melhor. Ou bota no contrapeso assim, ou então quebra pra São Caetano.
Depois que passar esse momento, aí você vê se…
Um fazendeiro do Mato Grosso que esse fazendeiro sonhou que uma voz oferecia a ele uma coisa muito importante Mas ele tinha que vir aqui no Porto da Barra, em Salvador, da Bahia, receber. O que encontrar é seu. E ele, a sair do Mato Grosso, do sertão do Mato Grosso, pra vir pra Salvador, com a cara de besta, procurando alguma coisa no Porto da Barra, não vou, não. Aí a alma castigava, a voz castigava. Assombração pra ele, insistindo, a voz insistindo que ele viesse, até que ele foi ficando triste por não obedecer a voz. E o vaqueiro, amigo dele perguntou a ele se era tristeza, o velho vaqueiro perguntou se ele tava perdendo dinheiro em negócio, era paixão, ele era solteiro, né? Se era paixão ou o que era, aí ele falou que estava perturbado por essa voz todo dia vindo buscar informação que ele tinha que vir, que ele tinha que vir, aí a história deu nisso aqui:
Vovó, minha mãe não mente
ontem ela disse à Juquinha
que hoje a senhora vinha
contar a história pra gente
já que a senhora chegou
eu quero que faça um show
que fique em minha memória
para depois que eu crescer
garbosamente dizer
minha avó contava a história
eu gosto, porém não quero
história de Lampião
nem de Alonso e Marina
nem história do Pavão
eu só quero história inédita
da sua imaginação
A velha disse, seu pai gostava
de ouvir quando ele novo eu contava
que um homem no Mato Grosso
de vez em quando sonhava
Veja agora de que forma
aquele sonho se dava
uma voz enchia o quarto
que o fazendeiro dormia
Vá lá no Porto da Barra
em Salvador da Bahia
o que encontrar é seu
porém o rapaz não ia
tampouco dava importância
achava sempre ilusão
não deixo minha fazenda
sair por esse mundão
não deixo meus afazeres
sair por esse mundão
atrás de um sonho
que nunca me chega
a revelação
Passavam 10, 15 dias
vim a sonhar novamente
passando uns 5 ou 6 meses
passou a ser tão frequente
como essas coisas que chegam
querendo endoidar a gente
Era uma pressão enorme
que aquela voz lhe dava
quando completou um ano
o fazendeiro já estava
decidido a viajar
mas a coragem faltava
dizia Deus, eu não posso
deixar a propriedade
sair em busca de um sonho
numa distante cidade
se acaso não for loucura
é irresponsabilidade
Essa voz vai desistir
dessa cobrança insensata
sair procurando nada
é uma missão ingrata
é como pedir
que um surdo descreva
é como pedir para um surdo
descrever o som da mata
mas a voz não desistia
voltava a abusar
depois do sonho acordava
ficava sem cochilar
cedo pulava da cama
e saía para trabalhar
Dava ordens aos empregados
passava o dia pensando
os seus amigos mais próximos
já estavam comentando
da tristeza incontrolável
que estava lhe atacando
Até que o velho vaqueiro
foi conversar com o patrão
desculpe eu lhe perguntar
essa tristeza é paixão?
É prejuízo em negócio
ou é mal do coração?
Eu tenho 40 anos
na sua propriedade
30 vivi com seu pai
10 com vossa majestade
e consigo até o fim
é sempre a minha vontade
mas essa sua tristeza
tem muito me preocupado
por isso é que lhe pergunto
se está apaixonado
se tem algo que eu faça
que lhe deixe aliviado?
Tem mais de 300 vacas
todo ano bezerrando
das suas éguas de raça
duzentos potros chegando
tem soja, feijão e milho
o que é que está faltando?
Não pretendo me meter
na vossa intimidade
eu quero, se for possível
um tiquinho da verdade
para mandar essa tristeza
ir para outra cidade
Com a palavra cidade
vinda do velho vaqueiro
um fio de coragem e ânimo
se instalou no fazendeiro
que resolveu contar tudo
para o simples companheiro
Dr. Guilherme Trindade
era o nome do patrão
e o seu velho vaqueiro
Severino da Paixão
um símbolo de bem querer
e de consideração
Guilherme disse, Paixão
eu estou muito doente
se ainda não estou doido
vou endoidar brevemente
uma voz tirou meu sono
e quer tirar minha mente
é uma coisa do além?
ou alguém lhe ameaçando?
Sendo do além
tem reza para ir afugentando
e sendo coisa da terra
vamos resolver brigando
Amigo, tem mais de um ano
que uma voz me visita
eu sonho quase acordado
este sonho me incita
não conto porque eu sei
que ninguém me acredita
A voz me diz mansamente
viaje para Salvador
vá ao Porto da Barra
na hora do sol se pôr
o que encontrar é seu
tome conta, por favor
Paixão falou: Seu Guilherme
eu só tenho a lhe dizer
quem de tudo se admira
corra ao mundo que há de ver
faça o que a vó está me mandando
pois não tem nada a perder
se lá no Porto da Barra
nada o senhor encontrar
se na sua direção
nem um mosquito voar
ainda está na vantagem
conhece um belo lugar
Conheça o elevador
veja o museu e igreja
vá ao Mercado Modelo
tome batida e cerveja
e retorne consciente
da vitória na peleja
Vá ao Bonfim, se ajoelhe
faça prece, acenda vela
por essa alma penada
que tanto lhe abufela
para buscar essas coisas
tirando os pecados dela
Tem tantas belezas raras na Bahia
pra se ver as usinas do recôncavo
quando começam a moer
o senhor tem condição
merece ir conhecer
Os garimpos de esmeralda
ali de Campo Formoso
os minerais de Lençóis
sempre atraem curioso
O campo do gado
em feira banca
um comércio rendoso
e é em Feira de Santana
pra onde leva o seu gado
vá como quem não quer nada
se informe do mercado
é turismo de negócio
que o senhor faz forçado
estou lhe dizendo e sei
que não estou enganado
Mate dois coelhos de um tiro
vá onde a voz tem mandado
e transforme a ida em turismo
como conheça o resto do estado
Paixão, quem lhe ensinou
tantas coisas da Bahia?
Doutor, me criei no mundo
onde precisava eu ia
Fui um peão considerado
na fazenda que servia
Varei mundo 30 anos
até seu pai me encontrar
botar embaixo das asas
me guardar nesse lugar
Está com 40 anos
que eu deixei de viajar
nos 30 anos de estrada
andei o Brasil inteiro
Levava e trazia gado
sendo de corte ou leiteiro
comprava pra não perder
e sabia ganhar dinheiro
De estado para estado
o que quisesse eu sabia
qual a área que comprava
qual o lugar que vendia
conheço o Brasil inteiro
não é somente a Bahia
Muitas bacias leiteiras
eu ajudei a instalar
levando vaca da boa
para o rebanho implantar
E touros puros de origem
para a genética ampliar
Piracicaba, Barretos, Andradina
São José do Rio Preto
eu levava boiada
e cheguei até lá
Na terra de Getúlio
Santa Maria e Bagé
e meu pai lhe encontrou como
nunca ninguém me contou
ele morreu sem falar
você nunca me informou
será que eu posso saber
como isso se passou?
" É aí que está o galho da quixaba. É o segredo que vai ter um tormento horrível entre eles”.
Se o seu pai
nunca lhe disse
certamente não queria
lhe revelar
uma história que lhe
aconteceu um dia
não quis lhe contar
porque ele achou
que não devia
E você pode contar
como isso aconteceu?
Não, senhor, eu poderia
mas o seu pai faleceu
levou consigo o segredo
hoje quem guarda sou eu
Se ele me autorizasse
eu contaria ao senhor
mas ele nada lhe disse
eu não serei traidor
da memória de um amigo
de inestimável valor
Paixão, eu tenho direito
me diga se tem ou não
Guilherme, eu não tenho ciência
sobre seu direito, não
pra mim direito do filho
o pai carrega na mão
Por isso, não tenho esposa nem filho
É por isso que lhe digo
que o amor desses dois entes
eu não carrego comigo
Todo amor e sentimento
eu tenho por um amigo
por respeito a um amigo
eu discuto, brigo e mato
me transformo num leão
pinoto mais do que gato
divido o último centavo
e o último bolo do prato
O segredo do seu pai
vai para o túmulo comigo
não insista que eu não falo
que eu não conto
não implore que eu não digo
é assim, se o senhor quiser
que eu siga, consigo
Então, Paixão, sendo assim
rompeu a nossa aliança
não posso ter um gerente
que não me dá confiança
me obriga a ser injusto
me força a tomar vingança
O senhor pense direito, doutor
o que o senhor vai fazer
indague a sua consciência
para não se arrepender
depois que puxa o gatilho
não pode retroceder
O senhor veio até hoje
sem esse calo na mente
sem precisar de um segredo
de um passado tão ausente
que já tem 40 anos
e agora separa a gente
Todos que fizeram parte
daquele horrendo passado
estão debaixo da terra
seu pai está sepultado
deixe o segredo comigo
porque está bem guardado
código de ética, doutor
quem honra não vai quebrar
não me abuse pedindo
porque não vou lhe contar
seu pai morreu sem dizer
eu morro e não vou falar
Fui buscar uma parteira
pus o foguetão no ar
pois quando o senhor nasceu
seu pai estava a viajar
guiei seus primeiros passos
e lhe ensinei a montar
quando foi para a capital
estudar para ser doutor
eu toda semana ia levar
coisas para o senhor
era seu pai quem mandava
mas eu era o portador
Paixão, não arredo o passo
você está me obrigando
se não conta esse segredo
junte as coisas, vá andando
eu sei que tenho o direito
mas você está negando
Seu pai no leito da morte
me fez jurar que ficava
cuidando dessa fazenda
porque ele não pensava
que em certa altura da vida
o poder lhe atropelava
Eu tive, tenho e terei
respeito à sua pessoa
mas pra mim daqui pra frente
a vida não vai ser boa
como foi até agora
eu volto a viver à toa
Os poucos anos de vida
que Deus reserva para mim
como viver é surpresa
pode estar perto meu fim
vou rezar para não voltar
para aquele inferno que eu vim
Passe lá no escritório
para receber seu direito
a semana trabalhada
eu quero tudo perfeito
meu pai foi justo consigo
eu serei do mesmo jeito
O senhor estudou muito
mas não sabe o que é justiça
vou embora para ter
mais tempo de ir à missa
para rezar por seu pai
trabalhador sem preguiça
Daqui não quero um centavo
como indenização
pensei que só sairia
para debaixo do chão
mas como estava enganado
Severino da Paixão
Dr. Guilherme, esqueça
essa história de segredo
viaje atrás do seu sonho
suba a escada sem medo
eu vou partir sem ter mágoa
viva a vida enquanto é cedo
Paixão, nessa mesma hora
arrumou-se o matulão
do que ganhou
todo tempo tinha
grana uma poção
juntou nos 40 anos
muito mais de um milhão
Foi andando pra cidade
e tinha animal, mas não quis
lembrava quanto o patrão
tinha lhe feito feliz
e agora quanto o filho
lhe tornava um infeliz
Na rua das prostitutas
numa casa ele comprou
meteu a chave na porta
armou a rede e deitou
pensou em doutor Guilherme
fechou os olhos e chorou
Aquele tonto não sabe
que a mãe foi mulher dama
que o pai para desposá-la
enfrentou o maior drama
matou gente, andou corrido
fez terror e criou fama
(Era esse um dos segredos que ele queria, né? Que ele não podia saber).
Jovelina Mascarenhas
mineira muito arrumada
vinte anos de idade
para a vida traquejada
não fumava nem bebia
além de bela, prendada
Era a estrela da casa
o pouso de boiadeiros
ali no fim de semana
sempre se via cinzeiros
prendendo várias comandas
de centenas de cruzeiros
(Naquele tempo o cara chegava nos cabarés, na mesa toda e aí pedia a comanda para ir anotar a despesa dele e botava embaixo do cinzeiro. Porque se botasse embaixo do copo, a lágrima do copo, o vidro molhado terminava molhando o papel. Então ele botava embaixo do cinzeiro. O que tinha ali era coisa de aquecer, não tinha nada pra molhar. Servia centenas de cinzeiros prendendo comandas de centenas de cruzeiros).
Gastavam por causa dela
sempre com a intenção
de levá-la para o quarto
mas ela, com precaução
atendia a dois clientes
um em cada ocasião
um da família Valverde
até conterrâneo dela
queria lhe assumir
vivia cercando ela
mas ela amava Delmiro
o melhor homem para ela
Valverde disse zangado
não lhe entendo mulher
Delmiro é rico, eu sou rico
de nós tem o que quiser
a ele você adora
e por que você não me quer?
Senhor Valverde
eu me deito com o senhor
por dinheiro
com Delmiro é diferente
me embriago em seu cheiro
a sua voz é remédio
quando estou em desespero
(Já viu? Que maravilha!)
Pois nesta última viagem
pode escrever o que digo
vou lhe atirar nas costas
aplicar grande castigo
deixá-lo morto no salão
e levar você comigo
Conte a ele
que eu não quero
que ele morra enganado
eu tenho uma cartucheira
e um punhal afiado
um parabelo que sabe
matar comprador de gado
Pois nesta mesma quinzena
eu estava desempregado
fui até o cabaré para defender
um trocado no jogo
ou algum trabalho
que eu fosse acostumado
Jovelina disse assim
Paixão, procure Delmiro
antes de chegar aqui
para ele mudar o giro
que o coronel Valverde
aguarda pra dar-lhe um tiro
Eu saí do povoado
e fui para o travessão
um ponto antes da rua
aguardei Delmiro e então
disse Valverde lhe aguarda
para matá-lo à traição
Delmiro disse o que eu fiz
àquela alma assassina?
Nada, porém ele tem
uma ideia tão maligna
que é roubar a sua vida
e carregar a Jovelina
Quantos homens ele tem
em seu comando, Paixão?
Não sei quantos, mas são muitos
aquele cabra é o cão
sempre tramando maldade
arquitetando traição
Comigo tenho dez homens
não sei com quem me arrumar
quem não quiser pôr a vida
em risco pra me ajudar
é hora de decidir
seguir em frente ou parar
Companheiros
o Coronel Valverde
quer ver meu fim
já entregamos a boiada
a empreitada é ruim
o trabalho é atirar
em quem atirar em mim
O grupo se entreolhou
na panorâmica de um giro
e disse em uma só voz
desculpe, senhor Delmiro
pegar boi é diferente
de andar levando tiro
Desçam dessas montarias
venham receber dinheiro
eu hoje encerro a carreira
como grande boiadeiro
e se escapar, começo
a vida de fazendeiro
O problema com o Valverde
eu tenho que resolver
não posso envolver vocês
que não quiser se envolver
vou sozinho atrás do bicho
pegar, matar, ou morrer
Dos dez ninguém disse eu vou
Mas Severino Paixão disse
eu vou com o senhor
Falou Delmiro, pois não
és um homem de coragem
que topa qualquer questão
Eu pretendo ir com o senhor
nesta desconforme guerra
quero arma e um cavalo
pra subir e descer serra
é difícil se encontrar
um covarde em minha terra
(Ha ha ha! É muito bonito, né?)
Delmiro pagou aos homens
todos eles foram embora
fui acertar com Paixão
o que se fazia agora
Dois homens contra dezoito
Valei-me, Nossa Senhora!
Paixão disse, seu Delmiro
tendo arma e munição
não sou covarde com sangue
jamais temi explosão
nem bala, nem ferro frio
me faz fugir da questão
Delmiro disse:
eu fiquei feliz com o seu recado
com aqueles dez covardes
fiquei muito chateado
dizem que é melhor sozinho
do que mal acompanhado
Paixão, pode confiar
no seu amigo Delmiro
retorne ao salão
e fique fora da linha de tiro
que eu vou entrar atirando
daí pra frente eu me viro
Diga à Jovelina
para botar roupa numa mala
fique no quarto aguardando
até ouvir minha fala
Não venha ao salão porque
vai ter uma chuva de bala
Cheguei ao salão e fui
para um lugar adequado
onde o grupo de Valverde
pudesse ser emboscado
nossa moeda de troca
foi surpresa ao nosso lado
Delmiro surgiu à porta
com dois revólveres na mão
deu quatro tiros em Valverde
deixou caído no chão
verificou se morreu
e começou a matar peão
Valverde morreu da forma
que pensou matar Delmiro
com dois tiros na cabeça
no coração outro tiro
um nas costas e se virou
para dar o último suspiro
(Cara, que mata bonito, né? Rs)
Eu estava com três armas
sendo uma em cada mão
e a terceira guardada
presa pelo cinturão
atirando sem deixar
o grupo ter reação
Delmiro atirava rindo
como quem estava brincando
eu deitado dando tiro
e o grupo me procurando
morreram os dezoito homens
que estavam nos caçando
Delmiro soltou um grito
Jovelina, vem cá fora
traz a mala se der tempo
corra, já vamos embora
a hora dele chegou
a nossa vem outra hora
Quando Jovelina veio
e viu Valverde no chão
suspirou aliviada
agradeceu à Paixão
Sem ele, você, Delmiro
ia daqui pro caixão
Paixão, quanto eu te devo?
Não vim aqui por dinheiro
o meu sossego acabou
não vou mais ter paradeiro
quando a polícia souber
cresce o nosso desespero
Daqui pra frente, Paixão
a coisa vai ser assim
eu vou cuidar de você
você vai cuidar de mim
e quem nos desafiar
já sabe qual é o fim
Vamos para a minha fazenda
lá você está guardado
tem munição e provento
passo o ano entrincheirado
Talvez nunca mais precise
vir a este povoado
Saíram os três para casa
antes de correr boato
um pouco pela rodagem
outro tanto pelo mato
até chegar na fazenda
para descansar de fato
(Você vai entender que ele está recordando isso na rede trancada dentro da casa que ele comprou lá no cabaré. Isso é parte da história que só ele sabia e agora tá contando porque o outro que sabia era o pai do rapaz mas já tinha morrido. A outra que sabia era ela, já tinha morrido. Então, só ele guardava esse segredo. E o filho queria saber e ele não contou. E aí o filho botou pra fora, mas veio a história como está lá na frente ele esperando)
Acordou todos os vaqueiros
deu a entender do passado
apresentou Jovelina
disse que tinha casado
E na festa do casório
deu-se o triste resultado
(Algum aborrecimento, alguma briga, a morrer gente. Ele falou com os vaqueiros quando chegou Mas falou que foi no casamento dele com a mulher, não foi que tirou do cabaré)
Este aqui é meu amigo
Severino da Paixão
daqui pra frente ele vai
juntar-se a nós no rincão
tem o cargo de gerente
fazendo supervisão
(Rapaz, a peãozada que já tava lá há não sei quantos anos deve ter ficado virada no cão, né? Agora mais o aviso)
Quem for tomar decisão
fale com ele primeiro
vocês não vão perder nada
nem prestígio, nem dinheiro
ele é meu braço direito
mas eu sou o fazendeiro.
(Eu tô determinando. Ninguém vai perder nada. Quem tinha seu cargo, tinha. Vai continuar. Agora, ele agora é o grande olheiro, né? Aí, quando chegou nessa parte, pensando como o patrão apresentou ele, aí ele disse)
Se aquele tonto soubesse
como foi daí pra frente
de polícia e pistoleiro
caminhando atrás da gente
me daria mais valor
e seria mais complacente
Paixão deitado na rede
fez esta reflexão
Rezou, entregou a Deus
e no fim da oração disse:
Deus seja louvado
patrão é sempre patrão
Guilherme depois que disse
para Paixão ir embora
ficou muito arrependido
Guilherme depois que disse
para Paixão ir embora
ficou muito arrependido
depois disso, sem demora
o que fiz vai ficar feito
eu não volto atrás agora.
(...)
Entrevistado:
É o foco da lente, o foco da tensão.
Português é uma arma mesmo, né?
Se a gente entende... Um laço, um. Laço de esparrela, né? Se a gente entende a possibilidade que tem, né? De acessos, através da palavra…
E se o cara tiver realmente um vasto vocabulário ele enrola até o Papa, né? Bota pra lá e cá, nas ondas do mar, né?
P1:
Dá nó, né? Dá nó
R:
Dá nó, dá curva.
(...)
Adeus Viola
esse jogo entre nós
não vai dar certo
Adeus Viola
esse jogo entre nós
não vai dar certo
Adeus Viola
esse jogo entre nós
não vai dar certo
Você sempre
dá uma de esperto
o seu nome é João chamam de Roberto
qualquer coisa dos outros você perto
Mesmo o dono estando de olho aberto
se você pôr a mão Adeus viola
esse jogo entre nós não vai dar certo
Adeus viola, esse jogo entre nós
Bom, deixa eu lhe falar umas coisas também, que você é quem sabe do seu mundo e do que você quer, nós temos uma sequência de alguns trabalhos falando dos amigos que nós perdemos agora na pandemia, né? E eu peguei alguma coisa dessa para fazer homenagem a Moraes Moreira, homenagem a José Crispim Ramos Caboquinho da Bahia, a João Soares Correia Filho, um grande mestre lá de Limoeiro, em Pernambuco, mas radicado aqui na Bahia, na cidade de Santa Brisa. Então tudo isso foi movendo a gente, eu praticamente criei um menino que virou um ás da viola, do improviso, é Valdir Rodrigues Telles, que viajou também nessa ocasião da… do desencabrestamento da pandemia e foi só dilacerando o coração dos que iam e dos que ficavam, né? Porque a tristeza era tão grande que matava alguns, outros eram tão forte que não morriam da tristeza, mas sofriam tanto que quase desapareciam. Afinava tanto de cabelo um paliteiro, como já foi dito em um poema meu em homenagem a Castro Alves. Então vamos falar um pouquinho sobre, é… Só fragmentos mesmo de cada pessoa, mas para a gente ficar, daí pra frente você toma com perguntas e indagações. E por isso, Deus é bom e gosta da gente, vamo vadiar. Uma das minhas causas é a amizade, é reconhecer a jornada dos grandes amigos. Aqui eu estou prestando uma homenagem, rapidinha, a Moraes Moreira, Antônio José de Queiroz, que é meu parceiro, cantamos 37 anos juntos, e ele também viajou nesse período, pra tristeza de muita gente. O meu outro parceiro, Theo Guedes, era um cantador que me acompanhou muitos anos, deixou um disco gravado sem botar a voz em alguns backs e botar instrumentos em algumas músicas, mas já estava gravado e eu prometi a ele que terminaria o disco, terminei e entreguei pra família.
E isso, depois veio a morte de João Soares Correia, que era um poeta de Limoeiro radicado em Santa Brisa, como eu falei, e Genival Lacerda, O nosso maestro do Coco Sincopado, do Xaxado e do bucho que ribulia, né? Um caboclinho de Feira de Santana. Essas pessoas que mexeram muito com a gente pelo que faziam e mexeram mais com a gente depois da sua partida, né? Vou começar com Moraes Moreira. A homenagem a Moraes Moreira. Dá-se o toque, mais ou menos... Teve um Pombo Correio, né? Porque Pombo Correio leva a mensagem e trás, foi em cima disso que ele narrou a sua tarefa, e eu fiz o trabalho mais ou menos dessa forma:
Foi visitar o Altíssimo
viajou do nosso meio
virou espírito puríssimo
o nosso Pombo Correio
Está revelando a vida
a Maria concebida
para a primeira estalagem
no céu pretende ficar
Cansou de ir e voltar
levou a última mensagem
só teve praça lotada
e sempre teatro cheio
composição bem cantada
o nosso Pombo Correio
Botou a clave no bico
dizendo assim eu não fico
vou para outra paragem
voou em busca do céu
Na mão direita um troféu
levou a última mensagem
quando alguém é convidado
vai como fosse a um passeio
Moraes partiu sossegado
o nosso Pombo Correio.
produziu e burilou
deu verniz, metrificou
e caprichou na roupagem
Jesus lhe aposentou
o último acorde trinou
levou a última mensagem
Dorme aí, poeta sério
Deu a prova pra que veio
teve grande ministério
o nosso Pombo Correio
Criou belos madrigais
chora o Brasil por Moraes
fazer grande reportagem
esquecei na redação
não teve publicação
levou a última mensagem
(O que podemos dizer nos nossos sentimentos por Moraes Moreira, vamos passar a Genival Lacerda)
Voz de Curió do Brejo
carretilha de canário
gorjeio extraordinário
nosso grande Genival
cadenciador de coco
quadrilha, xote e baião
príncipe em todo São João
vencedor de festival
A terra perdeu um gênio
foi para o céu cantar a história
no memorial da glória
e soa sua bandeira
Foi ver Jackson do Pandeiro
Gordurinha e Gonzagão
João do Vale e Jamelão
Lindu e Moraes Moreira
Você, Genival Lacerda
dançou na ponta dos pés
em seis, em oito e em dez
mostrou canto genial.
Quem inventou Genival
olhou a fôrma uma hora
mas quebrou e jogou fora
pra ninguém fazer igual
João Soares Correia Filho
natural de Limoeiro do Norte
radicado em Santa Brisa
onde deixou uma vasta família
Tam, tam, tam
três batidas em força extrema
de São Pedro, José deixa os palmares
e vá ver quem bateu uma hora desta
São José respondeu, é João Soares
Vem da terra de Castro, Rui e Gil
Fica lá no nordeste do Brasil
Junto à gleba de Zumbi dos Palmares
(Que é ali em Paulo Afonso pra Alagoas tá encostada pra terra de Zumbi na Serra da Barriga tá encostada também)
João Soares foi privilegiado
mente fértil, saudável e voz sonora
ferveroso devoto de Maria
seguidor do Evangelho a toda hora.
Deu aos filhos o pão da amizade
se escondeu numa moita de saudade
despediu do seu povo e foi embora
João Soares topou mil desesperos
porém nunca ficou desesperado
levou tudo o que veio em águas brandas
mesmo quando o mar estava agitado
Confiante em Jesus e em Maria
na certeza de como ele vivia
seu espaço no céu estava guardado.
(Já se foi João Soares e nós estamos aqui ainda, mas vamos qualquer hora dessa, né?)
Pra Antônio Queiroz, eu prestei uma homenagem a ele dizendo cantando mote “eu não vejo ninguém melhor do que tu”. Muita gente equivocada dizia que eu sou o maior cantador da Bahia, isso tudo é brincadeira, o maior cantador da Bahia nós perdemos, era Antônio José de Queiroz, o Antônio Queiroz.
Eu disse pra ele:
Teu verso é como uma marra
quem te enfrentar se atola
o som da tua viola
convoca os anjos pra farra
Tua cantiga é a garra
de uma onça canguçu
enroscada no ipu
se lambendo de desejo
cantando mote eu não vejo
ninguém melhor do que tu
Queiroz, teu nome sustenta
a serrinha dos tabuleiros
entre nossos violeiros
é o que mais se comenta
Tua humildade apascenta
a fúria do Boizebú
teu cântico é de Uirapuru
iniciando o festejo
cantando mote eu não vejo
ninguém melhor do que tu.
(Aqui a gente passa em um tributo pra Téo Guedes, que eu merecia e queria cantar, tocando. Eu não sei se vai atrapalhar, mudar de tom... Ficando nessa altura atrapalha? Não?)
Quem tocou viola e pandeiro
e deixou Xula enfeitada
me abandonou na estrada
não quis chamar um vizinho
Ontem falei com o rapaz
Téo Guedes não volta mais
estou sambando sozinho
Téo Guedes não volta mais
estou sambando sozinho
Se soubesse quem Téo era
o prazer que ele dava
o valor que ele tinha
quanto a plateia adorava
transformava numa igreja
a casa que ele morava
E transformava em um hino
a chula que ele cantava
O doutor faz o transplante
do coração de alguém
abre a cabeça e remove
um câncer que o cérebro tem
mas Téo Guedes canta a dor
simples do interior
com imensurável valor
Só Deus fez e mais ninguém
Um doutor faz o transplante
de coração de alguém
abre a cabeça e remove
um câncer que o cérebro tem
mas Téo Guedes cantador
simples do interior
com imensurável valor
só Deus fez, ai ai
e mais ninguém
já vai, já vai
só Deus fez
e mais ninguém.
Vamos passar agora para beber as lágrimas choradas por um outro elemento, Valdir Telles. É o que eu falei. Tá indo bem dentro da sua... Bom, qualquer coisa que diferenciar, você dá um toque, puxa daí pra cá. E aí a gente se ajeita. Valdir Telles começou aqui em Camaçari, cantando comigo.
E depois deixou o emprego que ele tinha, que ele trabalhava no polo de auxiliar de hidráulica, né? Auxiliar de encanador. E encarou viver da viola. Eu dei algumas orientações, algumas ajudas. Levei para alguns espaços. Aí, ele voltou para a terra dele lá e se juntou aos grandes cantadores de lá. E foi desenvolvendo, desenvolvendo. Passou a limpo a sua história e, graças a Deus, chegou no ponto mais alto. Mas eu disse em um mote, a saudade “vejo a saudade apagando os rastros que Valdir fez”.
Eu disse:
Valdir Telles, na Bahia
no começo da carreira
pisou toda a rodovia
de Paulo Afonso pra Feira
de Ilhéus à Cachoeira
de Conquista à Santa Inês
de Itapuã às Mercês
sempre tocando e cantando
vejo a saudade apagando
os rastros que Valdir fez.
(Esse cachorro não tem problema? Fico bom, vamo embora)
Miguel Calmon, Jacobina
Candeias, Camaçari, Jequié
Andaraí, Juazeiro e Adustina
Jeremoaba, Olendina
visitava toda vez
já lhe chamavam freguês
toda festa lhe esperando
Veja a saudade apagando
os rastros que Valdir fez
viveu do poder da mente
não teve escolaridade
mas teve capacidade
para produzir repente
Pra mim, um filho prudente
eu pra ele, um pai cortês
Sequer tivemos uma vez
um do outro reclamando
vejo a saudade apagando
os rastros que Valdir fez.
(Agora a gente passa pra beber saudade vizinha, que é aqui de Feira de Santana, o nosso José Crispim Ramos, caboquinho da Bahia)
Eu disse:
Caboquinho começou adolescente
toca bem e cantar de improviso
viajou de Serrinha para a feira
estudou e fez o que foi preciso
A viola do bardo emudeceu
dezenove de maio faleceu
foi cantar com seu pai no paraíso
(E o pai já estava lá, né?)
Teve a sorte de ir além fronteira
viveu sempre da arte de cantar
apesar de formado em direito
não deixou o momento de tocar
Na escola eu sou um professor
lá no fórum eu afirmo, sou doutor
mas no palco eu garanto
vim cantar, vim rimar.
A Bahia perdeu mais um canário
foi cantar bem distante do seu ninho
nós perdemos Crispim Manoel Ramos
(Que era o pai dele, né?)
Nós perdemos Crispim Manoel Ramos
que atendeu com o nome de Dadinho
gorjeou lindamente com seus filhos
as violas baianas perdem os brilhos
com a viagem final de caboquinho
Então, depois desta homenagem aos nossos dileto amigos, você toma em conta do cabo do rodo e mexe a sua farinha do jeito que você quiser. Aumente o forno, aumenta o fogo do forno, diminua. Sabe como diminui o forno de casa de farinha? Recuando os tições. Recuando, né? Recua os tições, aí não esquenta mais o forno. Mas não tem tição pra recuar. Meta o rodo e puxa as brasas.
P1:
– Ô mestre, vamos começar do princípio.
R:
Só vale a pena se for assim, né?
P1:
– Eu ia perguntar, qual é a sua primeira lembrança nessa vida? Qual que é a primeira coisa que você lembra?
R:
Rapaz, eu acho essa pergunta muito difícil de responder. Sabe por quê? Porque quando eu abri os olhos para este mundo… Então, mas as coisas que você passa a entender lentamente, entendeu, não fica um registro assim, foi essa a primeira, essa foi uma das primeiras, entendeu?
Então, você diz isso, a sua mãe afirma “a primeira palavra que ele disse foi essa”. Entendeu? A primeira palavra que ele disse foi essa, a mãe guarda na memória, se dá, mas agora se você se lembra… Eu era muito criança quando despertei pra isso, tudo isso é arrumação, mas a primeira coisa que eu despertei no mundo, eu não sei qual foi, Não tenho essa segurança.
P1:
– Eu digo pra hoje assim. Qual que é a coisa mais antiga que você lembra?
R:
Ah sim, olha a pergunta quanto muda! Das imagens antigas, eu me lembro muito, eu... Eu fiz ligação, quando minha mãe começou a me contar coisas, com coisas que eu lembrava. Uma vez, por exemplo, essa é interessante. Uma vez, eu me lembro que a gente... Eu tenho uma música chamada Casinha de Palha.
Se esse cachorro bebesse Coca-Cola, eu comprava três pra ele beber Coca-Cola daqui até sete da noite e não ter tempo de latir. Viu? Mas não tem problema, não. Então, eu me lembro, eu não era mais tão inocente, não estava mais arrastando dentro de casa, né? Eu já mudava passada.
Aí chegou uma vizinha, a gente tinha uma cumbuca de uma cabaça fechada, que foi aberta com buraco, limpa, e mamãe guardava sal. E naquele tempo o sal era em pedra, né? A gente não... o sertão não chegava sal moído, sal fino e aí chegou a mulher e disse “ô Sinha Zabé, com minha mãe, né?” Sinha Zabé, me dê... mamãe mandou aqui pra senhora emprestar uma colher de sal. Ela disse “minha filha, se tivesse eu não ia te emprestar, porque sal não se empresta” Tá entendendo? Sal se dá, mas eu não tenho. Eu disse, mãe, na cumbuca tem. Mamãe disse, tem? Eu disse, então mostra onde é. Ela... Eu fui pegando o vestido da mulher, saí para porocochó. Eu era muito pequeno, muito pequeno. E aí ela disse, ah, aqui é com buca. Aí ela pegou. Não tem não, Dona Isabel, disse. Não tem não? Tonho, depois tu me paga, viu? Aí...
A mulher viu que não tinha sal, saiu. Aí o pai disse, quem te disse que tinha sal ali, Tonho? Eu disse, mas não é ali que bota sal. Eu não sei o que eu questionei com ela. Eu já fiquei com medo, né? Ela disse, no dia que tu disser as coisas sem saber aqui, eu te arranco a língua, viu?
Essa são coisa muito, muito, muito da minha infância. Depois, eu comecei a ser levado para as novenas, entendeu? E lá, quando botava para dormir, eu dormia um pouquinho e ia ver como estava o barulho do samba, eu queria vir para o samba.
Aí eu vinha no braço, a mamãe ficava comigo no braço e tal, e tal. E eu via o papai desafiando com os outros cantadores, né? Eu aí ficava naquela agonia de quando eu puder, eu vou fazer assim. Papai, ninguém vence o papai e tal.
Aí eu tirava paletas, pegava caixa de fósforo antiga, eu tirava paletas, duas paletas de caixa de fósforo. Isso aqui é papai e aqui é sinistro de tertuliana. Entendeu? E aí tu passava um no outro.
Aí quando esse quebrava, que eu tinha dito que era papai, eu dizia que papai era esse que quebrou o outro. Entendeu? Eu ficava nessa…. E aí eu ficava nessa agonia gostosa e nessa ansiedade até que chegou a condição de eu... Também cantar. Mas as primeiras lembranças eram essas.
Quando eu fui ficando mais durinho, eu comecei a preparar os passos pra imitar, remedar lá no sertão, chama remedar. Você tá fazendo imitação. Aí, pra remedar as mulheres. E como é que tem uma fulana dança?Pa pa pa pa pa pa… Aí ela... E dona fulana? E não era dona, era Sinha, ó.
E sim a fulana aí, de tal jeito, assim, assim, tal. Ah, menina, é a mesma coisa, mas e tal. E aí eu fui desenvolvendo o canto. Hoje, infelizmente, não posso mais imitar ninguém que eu tô coendo o pé. Mas era essa a lembrança. A primeira lembrança, entendeu? Lembrança antiga tenho várias imagens, tá entendendo? Eu com três anos e alguma coisa, né? Eu peguei um martelinho e um cacumbu de enxada antigo e mamãe dizia “vai fazer sua rosa e tal”, e tal. Eu não sabia contar até cinco, porque eu não plantava milho porque eram cinco caroços. Eu plantava feijão que era três, mas com dificuldade, mesmo assim quando minha mãe foi limpar o feijão pela primeira vez, chama chachá. E foi chachá o feijão tirar os matinhos pra esperar ele florar tinha que arrancar um bocado de feijão que eu botei de mão cheia pensando que era três aí que eu ia botar três, caía entre os dedos muitos caroços. E aí quando nasceu, nascia a moita, e se ficar assim embaçado, não presta, aí tinha que tirar, tirar pra deixar só três, entendeu?
Então eu tenho essas lembranças todas e quando eu vendi esse feijão, a safra desse feijão. Aí foi um cara, João de Bruno, lá na nossa casa, comprar o nosso feijão. Aí eu cheguei, sentei no colo dele, né? Três anos. Sentei no colo dele e disse, tu já bateu teu feijão? Ele disse, já. Quanto deu?
Aí ele disse, tantos sacos, eu não sei quanto deu. Tantos sacos. Aí ele disse, o meu deu três quartas. 60 litros, né? Uma quarta é 20 litros. O meu deu 3 quartas. E já vendeu, porque ele era comprador, né? E já vendeu? E se já… Mas tô vendo que chegou nada pra mim, foi tudo pra comprar remédio pro papai. Mamãe só comprou pra mim uma toalha de saco. Comprou um saco pra fazer um cobertor pra mim, entendeu? E um saco dava pra cobrir um moleque desse tamanho? Um saco dava demais, né? Aí a gente foi...
Tu pensa que chegou nada pra mim? Não. Foi tudo pra comprar remédio pra papai. Eu só... Mamãe só comprou pra mim um saco pra fazer uma coberta. Aí... Isso eu tenho lembrança. Mas outras coisas, por exemplo, eu me vi muito criança, muito, muito criança mesmo, quando uma mãe me contou o caso do dia do meu nascimento. Não é que eu me lembre de casa, coisa do meu nascimento. Aí o que eu digo, o mais próximo da minha infância, da minha primeira infância que eu cheguei, foi recapitulando que se nesse período a gente tava em tal lugar e foi que eu nasci, quando eu saí daí eu tinha tantos anos, então isso foi muito antes, foi próximo daquilo. Esperou, o papai esperou que minha mãe tivesse menino tal dia, foi buscar minha avó, minha avó veio ficar com a mamãe e tal e tal, e aí eu não nasci.
Aí ele disse, olha cumádi Invenção, que era a sogra, a mãe de mamãe, ele disse cumádi Invenção eu vou ter que ir pro no tabuleiro e tal, vou rezar lá no tabuleiro, era convidado na região pra rezar as novenas. E aí ele foi, e lá caiu no samba e o moleque ficou por cá, desse jeito aí, já tava com a mãe, e por cá e tal. E aí ele veio, ficou sabendo, passou logo na casa de um tio meu, casado com a irmã da minha mãe, e disse, aí ele disse, eu já bebo e pariu. Ele disse, oba, e tal.
Já vinha tungando no copo, aí que tungou mais de satisfação que ter nascido mais um filho, né? Ele já tinha dois, eu sou o terceiro. Aí ele, quando vai no caminho, já vai com a coral, pegou, botou no bolso, levar de presente, de presente pra meu filho. Botou a cobra no bolso, aí já vai. Chegou em casa, opa Isabel,, olha o manezinho. Graças a Deus, meu filho, o menino nasceu, tá tudo bem. Eu trouxe um presente pra ele. Mesmo de matar de chapéu. Eu trouxe um presente pra ele. Aí sentou na beirada da cama. Aí minha avó disse logo, ah, mas não senta na beirada da cama, não. Você vem da rua. Não, viu? Você vem dos campos e pode dar cólica na parede. Cólica nada, dona Invenção. Se Invenção conta nada, entendeu? Eu sou um homem iluminado. A Isabel trouxe um negócio pra tu. E pro menino. Aí meteu a mão no bolso. E botou em cima da cama, mamãe pulou de lado. Manézinho, tu é doido. Acaba com isso e tal, e tal. E aí a cobra... Debaixo dos panos do coelho do menino, dos panos velhos que estavam. Pano de botar na bunda, né? E já vai e tal, e a cobra... O papai saiu procurando. Será que a cobra tinha descido, caído da cama e se picado, escondido? Como casa de mulher parida não apaga o candeeiro, não apaga a luz até antes de sete dias, né? Então, era uma despesa você ficar com o candeeiro aceso dia e noite, e tal, e tal. Aí, quando a cobra sumiu, o papai não viu mais a cobra. Foi virando, aí ela tava embaixo do travesseiro Aí ele pegou a faca, faca de ponta grande. Passou a se chamar assa-cobra. Ele chegou lá e tchum na cabeça da cobra. Chegou no candeeiro, botou a cobra e a cobra se rebolando e queimando, espetada na cabeça e queimando aqui no candeeiro Essa faca passou a se chamar assa-cobra Mano assim, cadê assa-cobra? Tá aqui! Então...
A partir desse negócio que minha mãe contou, que foi no dia que eu nasci, na manhã que eu tinha nascido, nasci de noite, de manhã o papai chegou bêbado da festa, fazendo esse tipo de brincadeira, entendeu? Aí eu comecei a me buscar imagem próxima daquela, né? Isso foi em 47. Se em 50… Em 51, no final de 51, 47 para 51, 4. Eu tinha, como eu sou de outubro, o ano começa em janeiro, eu tinha 4 anos e 8 meses. Talvez menos. Janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro. 4 anos e 8 meses. Então eu comecei a recapitular fazendo uma separação do que eu vivi nos campinhos lá, depois de São Félix e o que eu vivi cá no Sertão. E aí essas coisas comigo aí são coisas de cá que não se misturam com coisas de cá. Entendeu? E aí eu faço essa separação aí, foi muito próximo, agora...
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– Entre o Sertão e São Félix?
R:
Hein?
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– Teve uma parte que você viveu no Sertão e outra perto de São Félix?
R:
Sim, no município de São Félix, de Campinhos
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– É mesmo?
R:
Eu me criei lá!
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– Mas você foi primeiro no sertão ou primeiro no sertão?
R:
Não, eu nasci no sertão. E vim com quatro anos e oito meses pra São Félix, aí uma coisa que eu comento que eu tive sorte é que… Eu fui pra escola com quatro anos e oito meses, isso naquela época não existia, então... Quando nós mudamos daí do sertão pra lá, pra região de São Félix, minha mãe me levou na casa do meu padrinho, na Fazenda Laje Grande, lá no município de Ipecaretá. Viu da casa dele, eu comigo no braço, ela começou a falar sozinha, né? Ela disse, e eu disse a meu compadre João, que ele disse, bota o meu filho na escola, e eu disse, sim senhor meu compadre, sim senhor meu compadre. Mas botar na escola como?
Se aqui não tem, pra onde eu vou é mais dúvida ainda, não sei se tem ou não. Como é que eu garanto que vou botar? Deus, meu pai, é quem sabe. Só que ela não sabia que isso era em janeiro. Entendeu? Passamos uns dias ainda. Quando foi em fevereiro, nós nos mudamos e em março, quando as aulas iniciaram, eu fui pra escola. Por quê? Aí a patroa perguntou a ela, Isabel, esse menino, você vai deixar com quem quando vier trabalhar? A patroa, né?
Aí ela disse, não, Dona Helena, eu trago como sempre fiz, boto no pé da moita, na roça, limpo o lugar, folgo, e boto, como sempre fiz. Ela disse, aqui não. Aqui ele vai pra escola. Eu disse, mas ele só tem quatro anos e oito meses, Dona Helena. Esteva vai, a menina, mas ele só tem quatro anos e oito meses. Agora não. Ela dizia, a professora é minha sobrinha, eu vou pedir que segure ele lá. Ele aqui, você por perto da moita não traz. E aí eu fui pra escola com quatro anos e oito meses.
Quando fiz sete anos pra ser matriculado, eu já estava lendo e sabendo as coisas. E, principalmente, logo que eu comecei a juntar as letras, papai sempre comprou literatura de cordel nas feiras etc e tal, eu tinha prática eu fui praticando a leitura e desenvolvi muito cedo. Então, eu comecei juntando imagens dali pra frente e dali pra trás. Como o período que tinha de fazer retorno era muito curto, eu guardei na memória tanto a parte brilhante daí pra frente, como a parte difícil, anterior. E estamos na luta.
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– Vamos começar, então, pelo... Antiga volta pra esse pedaço da escola, o que você tem de memória desse seu começo de sertão? Esse até seus quatro anos, assim, até você ir pra São Félix, ali pra Campinhos?
Ora, nada de muita novidade. Nada de muita novidade. Eu, por exemplo, passava lá na porta, que era uma casa no campo, entendeu? Passavam vaqueiros, muito mais de um. E me lembro do que não tinha quarto pra você ficar aguardando o menino, nem área de lazer pra segurar o menino enquanto os velhos conversavam, as conversas eram tudo misturadas, entendeu? E aí a gente ia ver quem chegou, montado no cavalo, fazia zoada, a gente ia ver quem chegou, aí era o Sr. Pompilho, o vaqueiro e tal e tal, aí todo cortado de madeira, né? De garrancho, de calumbi, de pau difuso, com o rosto cortado e tal. Ô Dona Isabel me dê um caneco d’água, ela tinha trazido água, né? Na cabaça e tal, e tal. Aqui no... Na Lua da Sela. Na Lua da Sela, ali do lado do Bornato.Mas já tinha acabado, porque ele tá desde cedo. Aí chegava... Dona Zabé! Tô com dor de cabeça por não ter tomado café hoje. Saí cedo. Trouxe até um pouco de pó de café. Já joguei na boca, mas não passou dor de cabeça. Peraí, seu Pompilio. Bote abaixo, quer desafiar, né? Bote abaixo. Não, eu vou esperar aqui mesmo. E aí, esperava montado, mamãe soprava o fogo, tinha sempre água morna em cima do fogão. Tirava um pouco e botava pra ferver. Quando você tá com a vasilha já aquecida, a água fervendo com muita facilidade, ela botava o café e trazia, chegatava fumaçando... Não, não bote açúcar! Não bote rapadura! Não bote açúcar! Não, não bote rapadura! E tomava café amargo. Aí tá bom. Agora essa dor de cabeça vai embora. E caia no campo novamente. Coisas muito simples. Agora, é… É muito difícil você não ter, dentro dessa prática de contar, não ter uma gavetinha lá que guarde uma memória mais… Eu me lembro que nessa fazenda, nesse lugar onde eu nasci, chamava Nova Vista, foi pedaço de uma fazenda que meu avô foi vaqueiro. Meu avô foi vaqueiro, João Muniz. E nessa fazenda, quando ele foi trabalhar, Ele disse ao dono, o Major da Aliança Nacional, o Major Ouro, ele disse, Major, eu fico aqui 20 anos na sua fazenda, se possível for. Se não der certo, eu saio amanhã. Mas, também, depois de 20 anos, eu não fico mais um dia.
O cara chega hoje com uma proposta dessa, você vai acreditar que seja verdade? Vamos ver se dá certo, primeiro ano, segundo, terceiro. E aí rolou, o tempo virou e ele ganhou confiança do patrão, o patrão ganhou confiança dele e já vai-se embora. E vamos-se embora nós, e vamos-se embora nós. Quando chega 20 anos, ele junta o gado e entrega seu ouro. Major, aqui a sua boiada. Quando eu cheguei aqui, 20 anos atrás, era tantas cabeças. O senhor vendeu tantas boiadas. E hoje ainda tem tantas cabeças. E o que é que tá acontecendo, Sr. João?
Eu lhe falei que eu ficava aqui 20 anos se desse certo. Graças a Deus, pra mim e pro senhor deu certo. Agora eu tô cumprindo a minha promessa que ele fez. Que ficava aqui 20 anos se desse certo. Seu João, o senhor não pode fazer isso. Posso sim. O meu tempo é este e o emprego é seu.
O senhor passa pra outro. Eu espero o senhor arranjar outro vaqueiro, mas eu não corro mais atrás de boi como empregado pra ninguém. Seu João, não faça isso, aquela coisa de sobe e desce e tal. Não, senhor. E foi embora. E disse a ele, não visto mais couro pra ninguém. Não tô saindo daqui pra trabalhar ali pra ganhar mais ou ganhar menos. Não, eu não visto mais couro pra ninguém.
Aí sabia que um cunhado dele tinha tropa, tinha açougue Que precisava do Magarefe. Ele saiu aqui trabalhar com esse cunhado Ficou com gente da mesma família trabalhando aqui com o Magarefe, matando boi. E na hora que ele chegou, tomou conta das ferramentas e tal, amolou o machado, amolou isso, amolou aquilo e tal, ajeitou tudo e disse “patrão, eu vou tomar conta dos seu açougue. E vou cortar, matar boi sete anos se der certo, se não der eu saio amanhã, mas se der certo eu fico aqui sete anos, se não der certo eu saio a qualquer momento, mas dando certo o senhor com sete anos toma conta das suas coisas, como eu fiz com o seu cunhado Major Ouro. Eu disse lá que ficava vinte anos e deu certo que a gente ficasse vinte anos mas ele se assustou na hora que eu entreguei a fazenda e o senhor não se assuste eu falo e cumpro vamos embora”. E mexe, e deu certo, e João mata boi, tira papa, chegou os sete anos e ele disse “eu não tiro mais a roupa de um boi pra ninguém. Suas ferramentas estão aqui, o gado tá comprado, pro senhor continuar arranjando quem mate, é de certo não pode, e quebra no meio, e quebra no meio de outro, e não, não senhor, eu não tiro mais a camisa de um boi. Eu não tiro mais a camisa de um boi pra ninguém”. E não matou mais boi… Aí, o outro irmão desse que tinha a rede de açougue, tinha tropa, ele foi trabalhar com isso e disse que trabalhava sete anos, se desse certo. E deu certo. Ele trabalhou sete anos. E notou ele? Que entregou a tropa, molhou tudo, ajeitou todas as ferramentas, as cangalhas, os couros, as cordas, os arrochos, tudo que precisava para preparar as cargas, ele tinha. E ali ele entregou tudo, mostrou cada um em seu lugar e tal e tal. Botou as cangalhas no sol, lixou, limpou, bateu e puxou a tropa pra frente, viu todo mundo gordinho, todo mundo sem ferida, todo mundo, aí entregou. Mas o senhor João não amarra mais uma carga pra ninguém. O senhor não veste mais couro pra ninguém. Pronto. O senhor não mata mais um boi pra ninguém. Pronto. O senhor não amarra mais uma carga pra ninguém. E vai viver de quê? Vou fazer roça, criar galinha. E criar cabra, se der certo, se não der de fome eu não morro, eu sei me virar, mas não vou tomar pra ser empregado de ninguém E veja só, eu acho que ele está muito certo, e a quem ele pedia que o protegia, até a quem ele pedia que o protegia, no dia que ele desobedeceu por alguma coisa, se deu mal. Depois eu passei a fazer esta reflexão.
Como ele disse que não ia mais tratar de acervo de fazenda, um fazendeiro, lá em Rafael Jambeiro, que era perto de onde ele estava, lá em Rafael Jambeiro, tinha uma série de cavalos de cria pra capar. E tinha um outro elemento que fazia esse serviço, entendeu? Por nome Francisco, que achou que o dono dos animais ia chamar ele pra fazer o serviço. Aí disse, não, mas João Muniz é muito melhor, tem mais prática, tem mais pá e tarará, e sabe cuidar, e chamou o meu avô. O meu avô vai. E o Francisco também vai pra ajudar a derrubar os animais, pra capar, né? E aí derruba e tal, segura as pernas e tal, e ele vai lá e faz esse serviço. Francisco estava ajudando, mas se mordendo de ciúme. E a hora que aumentaram os goles da cachaça, começou... Era um mutirão pra fazer esse serviço com muita gente e muitos animais.
Aí, na hora que a cachaça começou a esquentar, no juízo, ele disse... O coronel fulano não sabe quantos cavalos desse ele pode perder. Tem um homem aqui de bem pra andar a fazer, pra ele capar os cavalos dele. Ele chama um ladrão, Mas falando alto pra meu avô ouvir Meu avô tava aqui abaixado fazendo trabalho no cavalo, levantou a cabeça e disse “Francisco, todo roubo que eu já fiz está empendurado no pescoço da tua mãe pra eu comer mais ela. Todo roubo que eu já fiz está empendurado no pescoço da sua mãe pra eu comer mais ela” Aí ele disse, da sua, depois a gente conversa. E continuou trabalhando, e tal, e tal, e tal. Daí pra frente, você sabe que dois negros velhos, rançosos, tratando um ao outro com essas expressões, tá marcado um aborrecimento, já tá marcado um aborrecimento. E continuou e tal, e quando terminou a história, quando terminou a história e o dono dos cavalos chamou o meu avô para pagar, e pagou, e tal. Tomou mais uma. Nossa senhora, eu já bebi bastante, e tal, e tal. Até logo. E aí, passou pro Francisco, né? E disse, eu já vou. E aí saiu na frente. E o Francisco acompanhou. Porque eles marcaram. Aquela conversa de ladrão, de sua mãe e tal, depois a gente conversa, né? Agora é a hora. Ele disse, eu já vou, se tá certo, eu já tô aqui pra cumprir o... Isso atrapalha?
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– Nada atrapalha. Eu virei pra lá justamente pra amenizar.
R:
Pois, né? Então tá bom.
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– Você tá com calor?
R:
O calor está, mas não é por isso, não. Tá bom. Aí, você corta esses negócios desse papo, porque eu quebrei a sequência. Dá uma pausinha aí. Não, não, eu não quero que... Eu só pergunto, porque imaginadamente eu fiz esse buraco, eu fiz essa coisa.
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– Pode continuar.
R:
Pode continuar. Tá bom. Graças a Deus e amém. Vai precisar de trocar? Então, tá certo. Então, quando ele disse, Francisco, eu já vou, entendeu? Tem umas coisas chamadas cerca-viva, que é, você planta alguma coisa no trilho da cerca, e se for madeira que pega a muda, né? Ou outras coisas que você planta, bota gravatá. Então eu sei que termina tendo arame e planta, daí a pouco o arame apodrece por algum motivo e fica só, chama-se cerca-viva. E isso impede, fica parecido com um muro.
E como a venda, onde eles estavam parados, era aqui nessa frente e vinha, e daqui pra frente começava um balde, quando eles dobravam aqui, aqui na venda ninguém via mais. E quando eles vieram um atrás do outro, pa, pa, pa... Chegou aqui, que dobraram... Aí... Foram os facão. Foram os facão. E vovô estava com um facão de 14 polegadas. Era uma faca grande, né? Mas no formato de facão. Mas já gasto, já tinha perdido algumas polegadas. E ele estava com 18 polegadas novo, o Francisco. Eu sei, mas fecharam os olhos e foram pra dentro E bate aqui, corta ali, pá, pá, pá. Daí a pouco, Francisco cortou meu avô e cortou de novo, e meu avô beliscou ele, “você me cortou ai, aií! Ele disse, vamos rapaz, acaba com isso, acaba com o serviço, ele já tinha sido cortado duas vezes, mas não deu sinal, entendeu? E daí Francisco facilitou, ele bongou novamente, caprichou no corte, estava sangrando muito. Francisco viu que ia terminar desmaiando ali, de tanto perder sangue, ou ia ser mais cortado e ia terminar perdendo a vida. Começou andando de costas para a direção que saísse do distorço do impedimento e o povo no terreiro da venda, visse eles no exercício da luta. E aí foi andando, andando, andando, andando. E meu avô exigindo dele, rapaz, acaba com isso e não fique se preocupando com sangue não, tem medo de ver sangue, é? Você queria capar os cavalos do homem e não ia fazer sangue? Então você tem medo de sangue e já vai e coisa, aí… Viram de lá, por algum motivo, os dois que saíram daqui ainda estão ali. Vixe tá brigando com o Sr. João Muniz e o Francisco, que saíram correndo para lá e tal. Aí o patrão foi, gritou, foi na... Tá perto de Francisco. Entrega o facão, Francisco. Acabe com isso. Entrega o facão, Francisco. Disse, não entrego não. Ele deixou o Francisco. Entrega o facão, Sr. João Muniz. Meu avô pegou o facão na ponta, entregou o cabo do facão a ele. Quando ele, Francisco viu o vovô sem o facão, partiu pra pegar. Ele pegou o patrão que tomou o facão dele e botou na frente, aí levantou a mão, não feriu o patrão. A briga era com o vovô, não era com ele, mas o vovô pegou, quando ele viu o vovô sem o facão, entendeu? Ele voou em cima e o vovô pegou o patrão que tinha tomado o facão dele e fez escudo aqui pra Francisco, e Francisco recuou, aí o vovô foi na cerca, tirou a estaca de angico, bateu no chão, a estaca vibrou. Agora entrega o facão, Francisco. Ele olhou pra um lado, olhou pra outro, não tinha a entregar porque agora na madeira do mato ia ser mais difícil. Ele entregou, aí o homem botou no jipe e levou os dois pra Rafael Jambeiro. Quando chega lá, Francisco já meio caneado, bem cortado, sangrando, e vovô levou dois cortes no cabo do facão, no terceiro pegou nesse dedo, entendeu? Mas mesmo assim ele não soltou o facão, continuou lutando com esse dedo dilacerado, né? Tanto é que esse dedo ficou assim, ele trabalhava de tudo o que fazia, agora esse dedo não voltou mais ao normal, porque não teve tratamento de especialista, né?
Mas quando a menina foi aplicar uma antitetânica e invocou a agulha, fez isso. Aí... E a Sr., seu couro não entra em injeção... Às vezes entra, minha filha. Troca essa agulha, troca essa agulha e vai ver aí. Disse as palavras mágicas que ele queria e aí a outra injeção entrou.
Aí eu agora pergunto, mas ele tinha esse corpo fechado e por que o facão de Francisco cortou? E você sabe o que Francisco possuía, que chegou a cortar ele? Essa aí que está a história, né? Ah, fulano de tal tem o corpo fechado, mas fulano de tal venceu ele. Venceu? Não é porque ele não tinha o corpo fechado. É porque fulano de tal tinha algo que era equivalente, ou até mais forte. Porque chegou a atingir. Mas, de qualquer forma, o que eu queria me lembrar de coisas da infância que me contaram e que eu convivi, porque quando eu conheci, tive atinado no meu avô, eu nem notava que ele tinha esse dedo. Eu nem notava que ele tinha isso, esse dedo torto. E quando eu prestei atenção, eu fiquei sabendo. Tu não vê que teu avô tem o dedo assim? Eu nunca tinha prestado atenção. Mas é verdade. Então, você muda a direção. das tinguijadas, tingui é uma madeira que embebeda os peixes, uma madeira que tem tóxica, né? Você pode botar o tingui num rio, aí meu Deus e tal e tal, daí pra cima a água fica boa, daí pra baixo a água impõe passar, pode matar a vaca, matar o bezerro da vaca que está. Se não matar a vaca, entendeu? Pode matar o bezerro. E a vaca vai parir, abortar, e termina o bezerro enganchando, que é o bezerro que termina matando. Eu sei que é coisa que não se bota na... Não deve ser o jeito de se trabalhar. Mas nego fazia, tinha época que o rio parava de ser permanente, virava poços, e eles separavam poço tal, avisava aos fazendeiro e tal e tal, que ia fazer tinguijada.. Daí reunia muita gente, na quaresma, e aí fazia essa festa enorme, botava botequim, levava músico e tal e tal, pra fazer essa grande festa, e o tingui misturava na areia e jogava, e daí a pouco começava o peixe a virar e nego juntando, juntando, era coisa... de muito estrondo. Eu cheguei aí em duas tinguijadas e veio. Mamãe me levou no braço, eu muito pequeno. Já na zona da mata, quando ia fazer a pescaria de secar a poça, era tirando de lata, né? Você fazia uma trincheira, para a água de lá não invadir. Entrava muita gente, jogava, jogava, pegava o peixe, abria a trincheira, a água tornava a repôr, não matava nada, a não ser o que o elemento pegava. Então, essas coisas eu me lembro. Daí pra frente é nova jornada falando de samba, falando de escrita, falando até de escolaridade, até chegar ao ponto de eu voltar pra Antônio e nascer o Bule Bule.
P1:
– Você falou que seu avô tinha o corpo fechado.
R:
É o que diziam, né? É o que diziam. Aí eu digo, eu acho que tinha mesmo. E por que o facão de Francisco cortou, se houver essa interrogação? Eu digo, não sei. Você sabe lá o que Francisco tinha também de proteção?
P1:
– Mas ele rezava também, seu avô? Seu avô benzia também?
R:
Meu avô sabia onde o diabo botou o primeiro ovo. E vou lhe contar uma. É por isso que essas perguntas... Pelo menos, eu entendo assim. Homem simples daquele tempo, entendeu? Homem simples daquele tempo. Tinha uma brincadeira, ele e um cunhado, de se saudar com a espingarda escalada, armada. Como quem brinca de mão, ele brincava assim com as espingardas. E um dia o cunhado dele, chamava-se Apolinário, mas chamava de Pulu, porque matutamente ele chamava Polunário, entendeu? E aí, Polunário, pá, a espingardinha. Quando se encontraram no caminho, onde se encontrasse?
Na porta da venda, na estrada. Espingarda pra lá e pra cá. E lá, quando Polunário leva a espingarda dele, a espingarda cai da armação, você sabe o que é isso, né? A espingarda não estava segurando a armada, e ela... Mas ela caía do segundo, do primeiro ponto, não caía do queixo escanchado.
Quando cai do queixo escanchado é com força total. Quando cai daqui, cai... Mas quebrando a espoleta, o tiro sai. Só que aí caiu, quebrou a espoleta, mas não saiu o tiro. Não tinha pólvora no ouvido, alguma coisa resolveu que não disparou. Aí o vovô perguntou, o que foi isso, Polunário?
O que foi isso, Polunário? Ele disse, ô João, me desculpa que minha espingarda tá caindo da armação. Ele disse, por que você continuou brincando com ela? De hoje em diante, de agora em diante, acabou a nossa brincadeira de espingarda armada.
Então, eu imagino que como os dois tinham suas coisas lá e tal e tal, e tinha mesmo, que alguma coisa fez com que isso, o tiro não saísse. Mas, os jovens que estiverem ou que forem a ouvir esse trabalho daqui pra frente, não me censurem. Eu acho que precisa-se viver para acreditar se isso pode ou não pode acontecer. Precisa-se ver algo para dizer isso agora eu acredito. E nunca se deve achar que está sendo bem orientado quando diz, rapaz, eu precisei ver para crer. Às vezes você, quando vê, também fica com um saldo de consciência ardendo do tempo que você sabia que isso poderia acontecer e achava que não acontecia, e se acontecesse era com o outro. Veja só, existiu um boi lá na fazenda do Sítio Novo, onde meu avô trabalhava, que se chamava “o Boi Jiboia”
E tanto é que eu botei num cordel “quatro touros endiabrados e um vaqueiro corajoso”. Mas esse Boi Jiboia começou... Naquele tempo não tinha pasto cercado, não tinha manga cercada. Era o comum, tinha os pastos de capim perto da fazenda pra vaca leiteira, pra cavalo de sela, entendeu? Pra tropa, pra burro de carga. Mas pra o gado era no comum. Não tinha, aí criava todo mundo junto. Ele tinha a quantidade de gado dele, você tinha a sua quantidade, eu tinha a minha quantidade e era criada misturada. Daqui até onde a perna alcançasse, aí eu vinha, meu vaqueiro vinha e passava, ô poeta, eu vi uma vaca com ferro do seu patrão que tá precisando disso e isso. Tá prenha, tá com o peito cheio, tá parindo nesses dias, ouviu um bezerro que tá com uma bicheira enorme e tal e tal, eu até fiz alguma coisa lá, mas é bom você procurar, tá assim, tá lagoa tanto pra tá o lugar, da gameleira dos chifres de cima, pra não sei o que, dava aquela expressão geográfica da expansão do pasto e você ia. Então lá, e por não ter fazenda, casa, tinha a terra que era comum, que era a terra do governo e todo mundo criava, eles davam, assim...
Quem tinha condição ajudava o outro e fazia currais enormes, porque aí todo mundo precisava, por exemplo, prender uma res pra curar uma bicheira, pra curar e soltar. Aí prendia ali, dois, três dias, de acordo com o que precisasse. Então, o Boi Jiboia virou uma fera. Virou uma fera. Matava outros touros, garrotes, que estavam se formando e começavam a cobrir vaca. Ele não deixava, filmava e ia atrás desses garrotes, chamava pra briga e pá. E o garrote topava a briga e tal, ele matava, desmanchava o curral, se irritava e desmanchava o curral. Encontrava vaqueiro já enfezado, caía por cima, furava o cavalo. Eu sei que ficou, virou um bicho indesejável. Seu Ouro, impensadamente, o patrão do meu avô disse... Seu João, vai sair a boiada tal data de novembro, que depois da apartação leva a boiada pra… Descarta uma quantidade de gado da fazenda pra gerar renda, mesmo porque fica demais com os que já estão chegando e é pra vender. Vende e você se capitaliza e dá assistência à fazenda. É essa a forma de criar gado de cria, é isso. Aí... Seu João, o senhor que trabalha de graça pra seus… Vai cortar? Tá bom. Mas pode falar direto, olha pra ele e fale comigo, porque daqui já começa o corocochó.
Não sei se piorou ou melhorou, nunca mais tive notícia.
Ele dizia:
Eu vou-me embora daqui
aqui não posso ficar
eu não sou tão pequenino
que não saiba caminhar
Eu não sou pequenino
que não saiba caminhar
Eu vou-me embora daqui
Retomando a história do Boi de Jiboia na fazenda Sítio Novo, município de Antônio Cardoso, Na época era município de Santo Estevão, entendeu? Mas isso na década de 30, na década de 20, porque meu pai era de 12 e foi o moleque leiteiro lá dessa fazenda, levando ele de lá pra Santo Estevão. Então isso foi na década de 20 e pouco. Então, tinha que vender a boiada, como eu estava citando, descartar o excesso de gado. Aí ficavam as vacas parideiras e o reprodutor, a bezerrama, mais os garrotes e as novilhas, e as vacas que não fossem, que tivessem algum problema de produção, era descartada.
E o dono, o Seu Ouro, o patrão do meu avô, disse que iria botar este boi perigoso, este boi perigoso que tava matando, se Santo Antônio meu pai, desse um tino ao dono da casa pra ele ficar entendendo que isso incomoda e desse um remédio a esse cachorro pra ele ficar brando, dócil, eu acendia um cartão de vela pra ele.
Então... E sabe que isso já é compromisso? Se isso já é compromisso... Ah, eu senti que a voz foi ouvida mais longe. Se isso... É um compromisso. O cara tem que pegar o cartão de vela, senão o Santo Antônio cobra. Mas está tudo bem. Ah, parou. Meu Deus do céu, coisa boa. Não!
Está gravando e você sabe que eu não fiz nada, nem abri a porta. Se você mostrar isso lá, é um registro de fé e esperança e o poder do santo. Meu Deus do céu, coisa boa. Deus é bom e gosta da gente. Silenciou, não silenciou? Então vamos. Então, foi esse...
O coronel disse “ô major, disse, Sr. João, o senhor que trabalha de graça pra tudo quanto é vaqueiro, então, os seus colegas vaqueiros lhe chamam, e o senhor passa o dia trabalhando pra ele de graça, chame eles pra ajudar a pegar o Boi Jiboia, que eu quero botar ele no meio da boiada, pra descartar ele”. Sim, senhor, senhor. Sim, senhor. Passavam oito dias, quinze, Seu João já pegou o Boi Jiboia, não se ouça. Só que pegar o Boi Jiboia era como mandar um bocado de rato e pegar o gato, né? Pega o gato e amarra que eu vou botar o chocalho. Falando com os ratos. Porque o boi era perigoso. E pegar, assanhar ele e conseguir pegar.
E botar onde agora até chegar o dia dessa boiada viajar? Não é? Ele não ficava, os currais que estavam lá, que poderiam prender ele no futuro, ele desmanchava, quanto mais ele ia ficar no curral da fazenda? Quer dizer, foi uma falta de loucura, uma falta de consciência.
Mas aí o homem, chamado João Muniz, que era o vaqueiro, meu avô, ficou levando na conversa. Já prendeu Boi Jiboia, seu João? Não, senhor. Ave Maria, se fale esse homem, não acredita. Pega o Boi Jiboia que eu quero botar no meio da boiada pra descartar esse boi.
Sim, senhor. E meu avô foi tirando o gado do fundo do pasto, porque, como eu lhe disse, cada um tem a sua tropa, cada um tem a sua boiada, cada um tem o seu rebanho, mas os protetores do rebanho, que são o que cobre aquelas vacas, o que defende aqueles bezerros e aquelas vacas, o touro, o reprodutor, o alfa, entendeu?
Ele cruza com outra vaca de outro rebanho, mas a preferência dele é daquele rebanho, o rebanho que ele cuida. Então meu avô começou tirando as vacas e novilhas feitas de lá do fundo do pasto e trazendo pra preparar a boiada que ia sair. Passou mais outros dias, ele trouxe mais galho. Então, o boi foi sentindo falta das suas parceiras lá no fundo do parque, distante do parque, e veio andando pra perto da fazenda, pra onde as vacas tinham vindo. Quando chega perto da fazenda, e isso já faltava dois, três dias pra boiada sair, ele começou urrando, chamando as vacas pra perto dele. Aqueles sinais que venham, tô aqui, etc, venham. Entendeu? E com aqueles urros longos de quem tá querendo namorar, chamando as vacas pra perto dele. E meu avô acorda de madrugada com esses berros do boi, e aí bate a boca, reza o boi no berro. Reza o boi no som do seu berro. Volta pra cá.
– Calma!
Deus é bom e gosta da gente! Eu sou filho da velha, eu não quero nada! Bom, Deus é bom, calma, mas não tem problema, não estou aqui, entendeu?
Então, meu avô levantou, rezou o boi na voz, no berro, voltou pra cama, se deitou, de manhã cedo levantou, tirou o leite. Uma burra que o meu pai tinha trabalhado quando chegou logo na fazenda, quando chegou o ponto de trabalhar, que o meu pai nasceu lá na fazenda. E já não prestava mais serviço à fazenda, estava solta no corredor, tá entendendo?
Estava solto no corredor pra comer o capim, então já não tinha mais trato nenhum pra ela, uma burra velha chamada simpatia. Meu avô veio de lá com a manta no ombro, um cabresto na mão, passou de junto de simpatia, Jogou a manta, botou o cabresto, jogou a manta em simpatia, montou na burra velha e foi em frente, lá estava o Boi Jiboia, o terror do sertão, meu avô botou na frente, sentou de lado assim em cima da boi, cometeu o dedo no ouvido.
Ôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôô
E ele com o dedo no ouvido, aboiando, aboiando, e o boi andando na frente, que nem um carneiro, mansinho.
Aí, Seu Ouro, abra a porteira aí, por favor. Abra a porteira, Seu Ouro. Seu Ouro de pijama, na frente, no avarandado. O que é que tá acontecendo? Abra a porteira, tá se falando e esse homem que, homem mole, gritando o patrão.
Aí, quando viu, correu, abriu a porta da porteira, meu avô chegou com um boi de boia, botou pra dentro o rafo, fechou a porteira e voltou reclamando. Tá se falando, tá se falando, o senhor tá aí com a cara pra cima, não vê que o serviço é apertado, um negócio desse?
E o senhor não prende a nova porteira? Aí ele olhou pra casa do meu avô assim, o senhor é tão feiticeiro que o cavalo da sua tela não engorda, viu? O senhor é tão feiticeiro que o cavalo da sua tela não engorda. E aí, meu filho, botou ração pra esse boi, esse boi se voou hoje, amanhã, depois botou no meio da boiada. E saiu de lá, de onde Santo Estevão Novo até Feira, quarenta e tantos quilômetros sem dar um resmungado.
Entrou na cidade de Feira com barulho de carro, barulho de alto-falante, barulho de tudo e foi pro campo do gado. Não deu uma carreira, não deu uma chifrada em outro boi, não deu nada. Entendeu? Aí eu digo, Deus é bom e gosta da gente, né? Pois é.
P1:
– Rezou no aboio
R:
Ele se comportou como se carneiro fosse. Bem, nós podemos saltar. Eu acho que essa parte de infância já está bem, quer dizer, da primeira infância está bem incensada, né? Mas isso aí é um cachorro que desprezaram. Entendeu? Desprezaram. E aí, tem uma moça nessa casa vizinha aí que disse olha, temos que dar um jeito, não podemos deixar esse animal, que era dócil, cheiroso, etc e tal. Aqui, aqui, aqui não pode ficar. Nós temos dez gatos aqui. Meu irmão, meu filho, tem em cima mais dois e mais quatro. São dezesseis gatos aqui. Não pode trazer cachorro pra ficar aqui. A não ser que tivessem sido criados juntos, né? Aí pronto. E aí o povo... Agora, acolheram aí, mas ele parece que não tá se adaptando a essa nova casa. Porque ele ficou em outra casa e aí se ressucitou. Agiu bem. Mas aí, ele tá estressado por algum motivo. Mas também, se deixasse na rua pra ser atropelado, era pior. Eu não sei, meu Deus.
P1:
– Não, tranquilo, cachorro é assim mesmo. A gente fala e o cachorro late. Se ele falasse, ele falava.
R:
Eu só estou achando pesaroso por causa da intervenção na gravação. Por mais que ele latia, eu dava coca-cola pra ele pra ele não latir, mas se ele bebesse essa coca-cola e continuasse latindo, pra mim tudo bem. Mas você agora quer partir na minha ida pra Antônio, pra região de São Félix, não é?
P1:
– É, isso. Mas antes de ir pra São Félix, faz uma pintura assim, como era Antônio Cardoso nesse período em que você nasceu, como era o lugar?
R:
Rapaz, Antônio Cardoso no período do meu nascimento, em 1947, era... Comparando com hoje, era muito mais desenvolvida. Entendeu? Era mais desenvolvido. Tinha lojas de tecidos, entendeu? Tinha lojas de tecidos. Uma feira que atendia suficientemente a sua região e ainda recebia coisas de outros municípios que não tinha... que não era feito lá e não era consumido e não tinha lá... não era... Sobrava do consumo além do dia-a-dia, era coisa que vinha de fora, entendeu? E matava 18 bois, além de porcos e carneiros que eram matados para a feira de lá. Durante muito tempo, se matasse um boi, infusava metade. E agora não mata nada. O nego compra no frigorífico de feir, um quilo de alguma coisa. Alguém vai no supermercado de feira e compra. E cá não tem mais padaria. Tinha padaria, tinha farmácia. Mas tinha padaria, tinha farmácia, tinha loja de tecido, tá entendendo? Tinha armazém de molhado. Hoje, armazém de molhado que vende, por exemplo, vende louça, vidro, pão, todo tipo de bolacha, pólvora, chumbo, secos e molhados, é isso. Entendeu?
Aí é essa, por exemplo, vende... Tem farinha? Tem. Tem feijão em grão? Tem. Tem sal? Tem. Tem gás? Tem. Tem sabão? Tem. Tem óleo de rícino? Tem. Tem fumo de corda? Tem. O armazém se compõe desse negócio. Aí, por exemplo, eu não sei como daria o nome. Tem bala? Que calibre você quer? Se tivesse só um tipo, tem bala, calibre e tal. Mas quando você pergunta qual calibre, já sabe que tem variedade, né? Então, tudo isso vendia em Antônio Cardoso. Em Umburana.
Quando virou Antônio Cardoso, ela teve limitações, porque São Gonçalo que comprava tudo que a gente produzia, mas o saldo de lutar pela independência política, era que a renda era pra São Gonçalo. Tudo que se produzia, a renda era pra São Gonçalo. E lutaram para que fosse independente, conseguiu, mas como progresso, não houve desenvolvimento. Não houve. A cidade hoje, em matéria de circular dinheiro, era mais pobre do que quando não era cidade.
Mas a liberdade política, essa licença poética de dizer sou município independente, não dependo de ninguém. E eu louvo. Eu tenho alguns poemas justamente louvando meu pedaço de chão abençoado dependeu de São Gonçalo, mas ganhou sua carta de euforia, etc, etc. Eu digo isso. Temos até este… Eu não sei se eu tenho este poema aqui, mas de qualquer forma eu poderia... Eu acho que... Isso é uma coisa boa que pode enriquecer essa gravação. Ah, meu pedaço de chão abençoado. Entendeu? Meu pedaço de chão abençoado. Eu falo sobre a minha Antônio Cardoso, chão que me viu nascer e guiou os primeiros passos. Com licença, chefe. Deus é bom e gosta da gente.
Meu pedaço de chão abençoado:
Meu pedaço de chão abençoado
encostado a feira de Santana
teve o nome antigo de Umburana
também foi Tingo Atiba no passado.
São Gonçalo dos Campos ao ter lhe dado
sua bendita carta de alforria
perdeu a condição que possuía
de mandar na riqueza e no seu povo
passou a pertencer a um plano novo
de ser uma cidade da Bahia
Batizaram de Antônio Cardoso
por ser ele um antigo donatário
detentor do potencial agrário
muito rico e político habilidoso
O seu neto foi um vitorioso
na disputa para o primeiro pleito
batalhou na campanha, fez direito
convenceu a maioria e ganhou
Tinha o mesmo nome do avô
teve a glória de primeiro prefeito
mês de maio é a festa da cidade
em tamanho e beleza outra não bate
E a Nossa Senhora do Resgate
manda graça para a comunidade
por ser mãe protetora de bondade
abre sempre o seu manto milagroso
Dando bênção e afeto gracioso
a um povo fiel de bom princípio
dando luz e progresso ao município
protegendo sempre Antônio Cardoso
Santo Estevão e Ipecaetá
Cabaceiras de Conceição da Feira
São Gonçalo e Governador Mangabeira
são limites que nós temos por lá
vejo Feira de Santana que está
vigiando a saída da cidade
cresce muito na área, nos invade
tira o fôlego, ameaça e nos afronta
nem sequer ela tem se dado conta
que nem foi, nem é dona da verdade
Nossos rios são o Paraguaçu
o Cavaco e o rio Corumataí
como arbustos, jurema e calumbi
como frutas, quixaba e umbu
de madeira, o Itapicuru
Baraúna, Pau d'arco e Aroeira
para a sombra, nós temos laranjeira
jerimum, fumo, milho e o feijão
formam a base da nossa produção
que nos veste, nos calça e dá a feira.
Veja a nossa cerâmica doleiro
e os músicos de tocos e travessão
Santo Estevão Velho, Nobre Chão
encostado a Quaranas e Limoeiro.
O Poço, um recanto pioneiro
decisor da política regional
a queimada tão tradicional
pelas festas, pujança e a beleza
comparada com a ilha em riqueza
e também no espaço fluvial
Venha ver nossa bela
venha ver nossa bata de feijão
licutixo, novena e rei roubado
Ver dois corpos morenos bem suados
remexer na pancada do pilão
a argolinha, quermesse, o leilão
as cantigas de roda, o sentinela
o romeiro que vai acender vela
pra São Roque por graça recebida
conhecendo uma vez em sua vida
você morre sentindo orgulho dela
Visite nosso chão, meu poeta. Visite nosso chão, pelo amor de Deus. Eu vou ficar muito feliz e o meu povo mais feliz ainda.
P1:
– E aí, mestre, você chegou então em São Félix, né?
R:
Bem, aí agora a gente muda o roteiro da coisa. A gente...
P1:
– Queria fazer uma pergunta. Eu queria fazer uma pergunta sobre o Antônio Gardosa.
R:
Pois não, filho.
P1:
– Antes desse processo, eu queria que você falasse de algo que te marcou, referente. à cultura de lá, alguma coisa que te foi referência, em algum grau, algo relacionado...
R:
É aí que eu vou voltar. É aí que eu vou voltar. Vou pra São Félix, com quatro anos, com quatro anos e oito meses, eu não tenho ainda base, definição da cultura regional.
Quando eu volto já com base de uma cultura, outra, mas tendo raiz e influência eu não sabia de valores, mas eu sabia alguma coisa da terra, porque eu estou com meu pai, eu mudei de canto, mas não mudei de pai. O meu mestre continuou me orientando, tá entendendo?
Quando nós vamos pra São Félix, que encontra lá outro tipo de cultura, meu pai manteve a cultura dele e nisso nossa casa tornou-se um quartel general do samba rural. Por quê? Porque os caatingueiros da nossa região desciam, porque agora tinha apoio. Tinha os fazendeiros em volta da gente, que arranjava trabalho pra eles, e eles tinham uma sustentação, tinha a nossa casa pra ficar como referência. Tá entendendo?
Aí, já que estavam com a gente aqui, a gente levava, que a gente continuou a fazer das novena e etc, etc, aí se apresentava outro tipo de samba, porque o samba de São Félix é diferente do samba do sertão. Então, a gente, papai que estava ali já e era amigo desse povo da terra, trouxe o grupo do interior e foi aí que veio a mistura do meu conhecimento do sertão, com a zona da mata. E aí veio pro litoral, que é pra região de Santo Amaro, da Palha da Cana e tal São Félix é mais pra um interior, a cultura do café, a cultura do tabaco, a cultura do fumo, entendeu?
E a cultura da mandioca, da farinha E também atingi, com isso, a Palha da Cana em Santo Amaro, entendeu? E depois misturei tudo com o sertão e o recôncavo em suas nuances diferentes. Então, nós vamos nos mudar para São Félix.
Essa história é para ser contada parceladamente, porque não é do nada que acontece as coisas, tem sempre um pé, você sempre tem um ponto de ruptura entre esse e aquele para formar o outro, né? Então, nós, o ano muito seco, aliás tinha uns quatro anos de seca. Começa o ano que quase não se tem nada. No outro ano se tem pouco. Aí, se você no outro ano tornar... de ter quase nada, já é muito grande, porque você já vem há três anos, forma agora três anos que você não se abastece. Entendeu? Forma três anos. Então, um ano ruim, um ano ruim de inverno, já lhe deixa com certa dificuldade. O outro ano ruim de inverno também, aí bate em quem já tá sem muita força. No terceiro, ele mata. Então, meu pai, doente, entendeu? E se viu tão aperreado com essa condição de não... De não arranjar, não ter safra, entendeu? Plantar e perder, plantar e perder. E ele plantou pouco, perdeu pouco, mas era tudo. Porque ele já estava com dois anos em cima da cama. Ele tinha uma úlcera. E no sertão, os médicos diziam que tinha que, por exemplo, comer carne de boi moquiada com escaldado de carne. Quando encontrou o tratamento certo, meu pai começou a comer mingau de cerealina, uma colher de chá pra fazer o mingau pra um homem. Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria, Ave Maria. Depois que estava já muito forte, ele passou a comer maizena, em vez de cerealina. Então, o tratamento foi fantástico, o tratamento foi beleza. Mas no sertão ele não tinha dinheiro pra comer carne de boi moquiada. Nego velho fica forte e vai comendo carne de boi moquiada com angu. É uma diferença enorme. Então, quando o papai disse, olha, eu vou procurar um lugar verde pra morrer, aqui eu não fico.
Não tem o ditado, ele não sabia falar provérbio, depois aprendeu, né? Não tem o ditado que quando vê que morre levanta e corre?
Então, ele partiu e chamou um cunhado, cunhadão concunhado, casado com a irmã da minha mãe, e disse, Amaro, tu me leva no gravatar, que era esse lugar, saindo ali do Bom Jardim, aliás, tem a cabeça da vaca, você sabe onde é o Bom Jardim? Saindo de Moritiba?
Você indo para o Governador Mangabeira, você entra em Governador Mangabeira e sai no Gravatá, que embaixo está no Velambuí, da época a cabeça da vaca, cabeças, que hoje é o Governador Mangabeira, e desce para o Gravatá de cima. E o senhor Ioiô Moutinho era amigo do meu avô. Amigo, ele lá, cheio de orações, rico e branco. Vovô, negro, velho, também cheio de orações. Eles tinham os respeitos deles, que eu não sei quais eram os acertos, mas Vovô não se via apertado, que não recorresse a Sr. Jôjô Moutinho E Sr. Iô Iô Moutinho servia a meu avô. Então, na seca, meu avô foi para Gravatá. Nesta ida, chegou o momento que papai disse que ia procurar também um lugar verde para morrer e vendeu o quase nada que tinha e deu as outras coisas e preparou o cavalo do meu tio, me botou no meio das cangas e saiu todo mundo andando, puxando o cavalo e andando atrás de mim com duas cofas vazias, quer dizer, tinha muito pouca coisa nas duas mãos, não deu uma carga, nada, todo o nosso cabedal.
E aí a gente já tinha se despedido, aí se dormiu no... Na Fazenda Cabaceiras, onde hoje tem o... Onde hoje tem o Museu de Castro Alves. Entendeu? Nós dormimos na casa de farinha da Fazenda Cabaceiras. Lá usamos como rancharia e tal e tal. E servia para o povo. Cabaceiras era do tamanho de um ovo nessa época. Mas era a famosa, que é a fazenda onde nasceu Castro Alves. Quem tinha influência era Cabeças, que estava na frente, que é hoje o governador Mangabeira, né? Então, nós dormimos ali, ó, saímos de Antônio Cardoso num rojão tão corocochó, corocochó, só chegamos em Cabaceira no final do dia, né? Era andar de melhor, a Romaria chegava muito mais rápido antes de meio dia. Então, nessa... Nós dormimos aí em Cabaceiras.
No outro dia, viajamos, chegamos na fazenda Gravatá do senhor Iô Iô Moutinho. Daí pra frente, nós fomos pedindo informação, como era que chegava no Gravatá e o povo foi nos ensinando. Chegamos na fazenda Gravatá, papai perguntou João Muniz, procurou ser o Iô Iô Moutinho e eu sou filho de João Muniz, tô aqui com minha família, a seca lá tá danada e vamos, viemos atrás de provisão, atrás de socorro. Aí disse, seu João trabalha sempre comigo aqui, mas agora o meu trabalho terminou. Ele não tendo oportunidade de voltar agora, foi mais à frente.
Ele está do outro lado do rio, esse rio é o rio Capivari, ele está do outro lado do rio na fazenda Cancela, de seu Antônio Aragão e eu acomodo logo o senhor aqui, senhor Nezinho, porque eu não tenho casa desocupada, o senhor Iô Iô falou, mas eu tenho certeza que Antônio Aragão tem casa desocupada e tem muito trabalho para o senhor que já vai começando. Aí fomos, continuamos a conversa da Fazenda Gravatá, ele orientou, descemos as nove casas, atravessamos, subimos a ladeira, chegamos na Fazenda Jenipapo. Fazenda Jenipapo e Fazenda Cancela tava logo em seguida. Procuramos pro vovô e o Sr. Antônio mandou chamar na roça onde ele estava trabalhando e aí papai já falou sobre casa, ele disse que tinha, nos indicou onde era, mamãe já começou a arrumar as coisas e já fomos pra lá e ficamos aí na frente esperando o vovô chegar mamãe lá já cuidando, quando o vovô chegou a gente já estava se acomodando em uma casa alugada pela responsabilidade do meu pai. E aí fomos agora enfrentar as dificuldades da saúde, tinha um médico em Moritiba muito bom, por sinal, foi prefeito acho que quatro vezes, foi quem implantou no interior do estado exame preventivo, entendeu?
Foi quem implantou aquele plano de... essa questão da... essa questão da... Exame de ginecologia, entendeu? E esse plano do preventivo de ficar… O periódico de a mulher grávida a partir do segundo mês, pré-natal, entendeu? E fazer pré-natal e tal e tal e tal.
Tanto é que ele também era parteiro, né? Nesse caso, muitos elementos tava lá a mulher com o menino atravessado há dois dias chorando e lamentando. E aí quando o doutor César ficava sabendo, saia debaixo de inverno, que 50, 60 anos atrás os invernos eram fechados de muita chuva, frio e vento, né? Então ele saia montado em jumento, papapá, e tava riscando lama, e debaixo de chuva, pra ir salvar as mulheres. Aquele ali é filho do doutor César, viu? Papapá. Porque o doutor César salvou a vida dele e da mãe. Então era um médico que foi brilhante. E ele passou a ser o médico de meu pai.
Rapaz, era um rojão diferente, o tratamento diferente. Lá no sertão, os médicos mandavam dizer, não ia médico, ia uma pessoa experiente, conhecia o cara como estava passando, ia lá e contava ao médico como era que ele estava e o médico passava o remédio dessa forma.
E o que recomendava de resguardo era comer, resguardo de boca, né? Mas você tem que comer carne moquiada, papai e tal. O cara tá morrendo de úlceras no estômago, uma ferida há mais de 20 anos desse tamanho, vai comer carne moquiada e tal, com sal, papai?
Pouco sal, você falava pouco sal, mas quem era o ignorante sabia o que era botar sal de pé numa carne de sal. A minha sacateca tá doce, licença, não presta. Resultado, foi doutor César cuidando do meu pai, com muito afinco, e meu pai começou a trabalhar. Depois de um bom tempo, eu não sei de quanto tempo. Só que com a gente, entendeu? Eles diziam, chegou o Manezinho com sua turma negra. Por quê? Meu pai chegava aqui, todo mundo pegava uma tarefa nesta direção do lanço. Papai chegava e pegava o lanço todo aqui, na altura do lenço… Até chegar no outro canto. Quando tinha, por exemplo, essa parte de terra é toda para limpar, pode deixar comigo. Ele pegava e levava. E nesse que tinha sido arrancador de mandioca, tinha sido o lugar que deixou uma série de raízes embaixo da terra, patrão que se leia, não sei o que, e aí não tirou a raiz.
Aí papai, capinando a terra pra plantar de novo, achava, e foi separando, separando, daí a pouco tá uma ruma de mandioca que não tinha mais tamanho. Aí papai disse “Seu Antônio, o que é que o senhor vai fazer com essa mandioca?” Ele disse, se ficasse embaixo da terra, tava perdida. Se fosse eu que tivesse recuperado, eu ia cortar tipo a ração pro gado, mandava botar pra secar e fazer ração pro gado. Mas você quer aproveitar? Ele disse daria farinha, não é assim, Antônio? Ele disse, então aproveite. Papai fez farinhada desse negócio enquanto a nossa mandioca crescia.
Resultado, o papai começou a vender dessa mandioca que ele aproveitava. Vender farinha aos nativos. E quando terminou essa farinha, ele já passou a vender das mandiocas que ele tinha plantado. Com sete meses que ele tava lá, ele tava vendendo farinha aos nativos.
A gente tinha ganho essa intimidade de rezar novena, de fazer o samba, então foi criando. Quando os caatingueiros, os nossos conterrâneos do sertão desceram lá pra região, misturou a cantiga, papai chegou mais fortalecido pra o samba, entendeu? Os cantadores de lá, que já respeitavam, ainda papai trouxe algumas modalidades, por exemplo, a tirana. A tirana é uma modalidade de cantiga que só canta sabendo que é tirana, a Bahia e Rio Grande do Sul.
Os outros estados cantam coisas também de tirana, mas não identificam como tirana, tá entendendo? Então, nesse movimento, o papai foi fazendo o nome, quer dizer, foi implantando o nome que ele já trouxe, que ele sempre foi um sambador de muita responsabilidade, um rezador de muito cuidado e sabedoria, e um tiraneiro de muita cabeça. Tanto é que ele ficou quatro anos nesse período de sua doença, da ultra, sem tomar providência pela vida. Entendeu? Sem tomar providência pela vida. Então, em Nazaré, um rapaz saiu de lá pra trabalhar e fazendo... Ele cantava também umas coisas.
Ele cantava umas coisas e lá encontrou um tiraneiro e ficou com medo, porque saiu a notícia que esse tiraneiro cantava três noites e nem ficava rouco, nem cansava. Aí ele disse, é, mas lá também, na nossa terra, nós temos nego bom. Aí falou o nome do meu pai. E falou o nome de um outro cidadão, que era também muito bom, chamado Olavinho. E esse Olavinho, além de tocar viola, Olavinho cantava bem. Girando, sabia ler. Aí, o homem disse que para disputar com aquele dele, que ele apostava naquele tempo 200 contos. Quem era que tinha 200 contos? O homem rico de bananal, canavial e tudo mais. Gado, rapadura, tudo para vender. Tinha 200 contos e se perdesse... Se o nosso time se juntasse todo para arranjar 200 contos, era vendendo tudo que tinha e a família também, que gente direita é mais cara, né?
Aí ele disse, não ficaram nada de fechar, mas disseram que eu vou trazer aqui pra disputar com o Seu. Aí foi lá e falou com o Seu Olavinho. Olha, ele disse, vai o Senhor ou vai o Manézinho Muniz? Aí ele disse, rapaz eu não vou não, Olavinho. Só se você, a gente tentar convencer o Manézinho. Agora se o Manézinho for, eu vou. Aí foram lá, falar com o papai que tinha essa cantoria pra fazer em Nazaré. E que era com caba, que era de fama, e que cantava três noites e nem ficava rouco, nem dormia e coisa e tal. Papai disse, nada disso me faz medo. Se eu tivesse saúde, Seu Olavinho, eu ia ver o bicho de perto. Mas vosmecê é quem toca viola, vosmecê é quem sabe ler. Seu Olavinho, sua cantiga dá pra enfrentar esse homem. Se o senhor acha que eu que não sei ler e não toco viola, mas seu Manezinho, nem faça essa comparação, eu não vou não, e tal e tal. Então não é falta de cantoria, é falta de medo. É falta de coragem. Seu Olavinho, o senhor tá com falta de coragem. Tá com medo do que dizem do homem. Vai ver se o homem é isso mesmo.
Eu não vou, eu tenho quatro anos que não gero o custo de um litro de saco pra minha família, não posso me arriscar nessas condições de sair pra cantar em Nazaré. Então, aí não foram… Eu quando digo que o meu pai era o maior cantador de tirana daquela região, porque o que se dizia tão bom quanto ele, nessa hora, deu pra trás. Então, eu digo, não era ele o maior, ele é quem era, não era o Olavinho, não era outro que apareceu e tal.
O cobra criada era ele. Então, daí surgiu, e por sinal agora hoje ainda tem o neto deste... O neto deste... O neto de... Io Io Moutinho, entendeu? Chamado Elísio Moutinho, que é dono da engenharia da empresa Paraguaçu Engenharia, que fez um disco do que sobrou dos sambadores de Campinhos, né?
O que sobrou dos sambadores de Campinhos e resgatou. Eu fui pra lá produzir o disco pra ele com o mestre Biziga, de Raimundo da Cachaça, entendeu? E outros sambadores, Antônio de Miguel Reis, entendeu? E veio aparecer logo depois. Então o mestre Biziga produziu, cantou, fez esse CD, entendeu? CD e DVD. E o mestre, o empresário, é Elísio.
Baseado nessa mudança, eu em Campinhos fui pra escola com quatro anos e oito meses, mas a professora não tinha feito magistério, ela era uma professora leiga, assim chamava na época. E tinha uma prima que estava estudando em Cruz das Almas E quando se formou veio pra região assumir pelo Estado uma escola, mas foi na comunidade, na comunidade de Outeiro Redondo. Por sinal, eu liguei pra essa professora esta semana pra desejar um Feliz Natal. Professora Maria da Glória Aragão. E nessa oportunidade, eu botava pra fazer aquele ditado, aquelas coisas e tal, e mandava fazer umas cartas para os amigos. E eu criei um personagem “Nunes”, que era meu amigo de correspondência, etc etc. Quando eu tive noção pra fazer a primeira literatura de Cordel, eu botei um personagem com esse sobrenome, Nunes. E depois eu tive uma família Nunes, uma amiga de trocar sangue na veia. Eu dei sorte com essa imagem que eu criei para um personagem e depois com as pessoas reais que eu encontrei.
A tragédia de Três Amantes:
Deus mande um ramo poético
pondo a sombra em minha vida
para minha consciência
ter ideia garantida
em levar aos bons abrigos
a traição de dois amigos
por uma mulher fingida.
Quando Feira de Santana
não tinha o valor que tem
dois fazendeiros vizinhos
mandados não sei por quem
mudaram-se para a cidade
e entraram em sociedade
pensando sair-se bem
Um deles era chamado
Irineu Nunes da Costa
(Era o cara que eu me correspondia com ele desde o tempo de escola imaginariamente. Quando eu tive a chance de escrever, ele foi o personagem que eu escolhi)
Um deles era chamado
Irineu Nunes da Costa
Sérgio Damarceno Lopes
foi quem lhe fez a proposta
Responda, Irineu, se quer,
ou combine com a mulher
E amanhã dei minha resposta
Irineu chegando em casa
falou para a dona Ana,
Sérgio resolveu fazer-me
uma proposta bacana
para vender a fazenda
e ser sócio de uma venda
lá em Feira de Santana
O local da nova sede
já está adquirido
vai ser casa de ferragem
uma loja de tecido
um galpão para cereais
e peles de animais
vai ser lucro garantido
Dona Ana, satisfeita
aceitou a novidade
dizendo, temos dinheiro
mas distante da cidade
os meninos sem escola
quem não lê, vive de esmola
perante a sociedade
(Eu fico olhando que eu já era grande desde pequeno)
Em poucos dias venderam
casa, animais e terreno
Fizeram a grande mudança
com chuva, sol e sereno
Foi a mais séria proposta
de Irineu Nunes da Costa
para Sérgio Damasceno
com dois meses já estava
pronto para inauguração
sanitário, água, luz
em moderna ligação
Depois da casa instalada
teve a época marcada
para inauguração
Inaugurou e depois
começou a funcionar
Sérgio junto a Irineu.
Nenhum estava a pensar
que aquele belo sonho
iia tornar-se tristonho
antes de cada acordar
Muitas ferragens vendia
milho e feijão se comprava
também se vendia pele
Todo mundo trabalhava
Dona Ana satisfeita
dizia bela colheita
assim ninguém esperava
Quando faziam o caixa
cada saía contente
Sérgio com a sua esposa
abraçado sorridente
Irineu com Dona Ana
e a presença bacana
de um confiado gerente
Neste tempo
o Meretricio estava
em Forte Paleio
das casas do Minadouro
também na Rua do Meio
na Praça do Nordestino
de ancião a menino
via de feio a mais feio
(Você conhece bem o Centro Antigo de Feira? É porque hoje, se eu der determinados toques, você ficou sabendo onde era o… o abrigo nordestino? Ali era a estrada de feira, Serrinha pro Nordeste, passava ali, cortando ali, e aquilo ali era a parada de todos que vinham do Norte, dos Paus de Arara, dos ônibus, e ali era o movimento, mas também o Minadouro, a Rua do Meio fica ali por trás, que é hoje chamada de Rua de Aurora, então, e dali você tá perto da Praça Flores da Mota, e desce pro Minadouro, então, a putaria ali era de alta escala).
P1:
– Mas acho que é só uma pincelada. Não precisa ler o cordel todo.
R:
Não? Mas deixa eu chegar na narrativa mais interessante.
Uma mulher deste meio
desalmada e traiçoeira,
disse, vou ver se consigo
uma vaga de caixeira
quero só olhar de perto
se meu plano sair certo
não sou mais pobre na feira
À noite pouco dormiu
logo cedo se deitou
preocupada com o plano
muito pouco cochilou
mais ou menos sete e dez
pôs Luís XV nos pés
e para a loja viajou
(Luís XV, vocês sabem o que era? Salto alto? É, mas era com o nome do imperador Luís XV. Por isso, ele, como fresco que era, achava que era aquele mundo... que ninguém conseguia atingir. Então, o luxo do luxo era a posição que esses imperadores impunham. Nero, com aqueles seus cortes, com o jeito de pentear o cabelo. Luís XV, com salto exagerado. Era a maneira de se mostrar mais poderoso. Hoje, quando fulano, você desça dos saltos, menino, você não tá com tanta bagagem assim, é porque já tá nego se orgulhando que tá lá em cima)
pôs Luís XV nos pés
e para a loja viajou
chegou primeiro que todos
ficou na porta encostada
o rosto dando impressão
de mulher santificada
Laçava qualquer vivente
pois na verdade era um ente
que de bom não tinha nada
Na chegada do gerente
ela se fingiu mais séria
ele destrancou a porta
lhe soltando uma pilhéria
O coitado não sabia
que a porta se abria
para acesso da miséria
nove horas veio o Sérgio
às nove e meia, Irineu
quando os dois estavam juntos
a mulher apareceu
exibindo um belo passo
e sem provar embaraço
a cada a mão estendeu
Bom dia, senhores
eu pretendo me apresentar
sou o Iracema Brandão
sei escrever e contar
também sou documentada
por estar desempregada
necessito trabalhar
(Chegou sem desenvoltura e encostou a ferramenta, né?)
Sérgio disse, venha à tarde
ou seja, segundo horário
para entendermos melhor
sobre trabalho e salário
Irineu disse, Santinha, fique aí
a ordem é minha, que farei o necessário
(Já começou a desentender os dois, um disse, vem atrás, eu disse, é agora mesmo que eu vou lhe atender. O cão gosta dessas coisas e aí…)
Irineu chamou-a e disse
menina, traga a carteira
e disse para o gerente
esta aí vai ser caixeira
ter salário e comissão
e se agradar o patrão
vai mandar na casa inteira
O gerente foi fichá-la
por não faltar os mandados
dizendo com seus botões
veja os sócios desligados
comentou com a voz rouca
ambos no xale da louca
vai terminar enrolado
Irineu com Iracema
pôs a andar no salão
da loja e o da ferragem
e depois o depósito de feijão
seu peito sentiu calor
que até oferta de amor
surgiu nessa ocasião
a tarde por precisão
da loja se ausentou
Sérgio ficou no comando
a mesma coisa formou
distribuiu simpatia
tanto que passou o dia
e a mulher não trabalhou
Perto do campo do gado
Irineu pôde avistar
uma casa com uma placa
pra vender ou alugar
pensou logo em Iracema
não desistiu do esquema
ofertou-a pra morar.
Sérgio, que também ganhou
o coração da pecinha
andando no outro dia
no bairro da Queimadinha
viu na porta um emblema
e disse, eu pego o Iracema
e boto nesta casinha
(Os dois sócios, já dando casa)
Iracema recebeu casa
e proposta feita
cada um dizendo
eu só amo a mulher
que me respeita
se puxar o fio da renda
uma bala ali emenda
e meu revólver lhe ajeita
Passava o dia na loja
ligeira como andorinha
se ia ao campo do gado
desprezava a queimadinha
e dizia sua amada
hoje está muito enfadada
prefere dormir sozinha
no outro dia ela tinha
o roteiro variado
arrumava uma desculpa
contava para o namorado
certo que mudava a linha
dormia na queimadinha
e filava o campo do gado
Dona Ana viajou
Irineu ficou sozinho
foi para a loja folgando
alegre como um pombinho
dizendo, estou descansado
faço do campo do gado
o meu predileto ninho
Iracema nesse dia
disse para Sérgio sorrindo
hoje vai a queimadinha
que meu peito está pedindo
seus olhos estão queimando
meu coração e mandando
que passe a noite sorrindo
(Quer dizer, um não disse ao outro que estava solteiro, viajou e tal e tal. E nem disse à ela. E vai já se preparando para dormir. Vai misturar o meio de campo)
Irineu, depois da janta
numa praça ele avistou
Iracema com um moço
que o abraçou e beijou
atirou nela, caiu
ele, atirando, insistiu
e o vulto não recuou
Ali os dois atiraram
um tombou, o outro caiu
Iracema levantou-se,
ambos inspirando ela viu
gargalhou, achando graça.
eu planejei, vi a desgraça
como meu peito pediu.
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