Se casou com a minha avó e largou a batina
Meu nome monástico é Coen, eu recebi minha denominação monástica no dia 14 de janeiro de 1981. Antes disso, eu era Cláudia Dias Batista de Souza, nascida em 30 de junho de 1947. Tem uma cidade no interior de São Paulo que se chama Apiaí, era o nome do meu bisavô, um capitão do mato. Ele foi morto pelos índios em uma emboscada, pelas costas. O meu avô viveu o fim da escravatura, quando nasceu deram a ele um pequeno menino escravo para cuidar dele. Meu avô acaba por se encontrar com a minha avó, que era prima dele. Naquela época, precisaram até pedir autorização ao Papa, porque eram primos muito próximos. Desse casamento, tiveram seis filhos e morreram três. Minha mãe é uma dos três que vingaram. O meu avô paterno queria ser padre, fez um pré-seminário em Portugal, trabalhava em uma paróquia quando se apaixonou pela a irmã do padre. Se casou com minha avó e largou a batina, ficaram em Portugal, tiveram três filhos e depois vieram para o Brasil.
Meu pai foi encontrar com a minha mãe na Escola Normal, que era a formação para ser professor. Se apaixonaram, se casaram no interior e vieram morar em São Paulo. Aos pouquinhos, foram construindo boas condições de vida. A minha mãe era professora e o meu pai trabalhava na Biblioteca Nacional. Meu pai se apaixonou por uma mulher que trabalhava com ele e minha mãe e ele se separaram. Eu devia ter dois, três anos de idade. Depois da separação dos meus pais, ele construiu uma casa para minha mãe no Pacaembu e outra para ele e sua nova esposa, a dois quarteirões de distância. O Pacaembu era considerado um bairro distante, perigoso e escuro. As pessoas, os familiares, achavam que era muito longe para ir visitar, era meio problemático.
Naquela época, os colégios não admitiam filhos de desquitados. Minha mãe achava que era importante estudar em colégio de freira para ter uma boa educação. Então, eu tinha que mentir. A gente ia à...
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Se casou com a minha avó e largou a batina
Meu nome monástico é Coen, eu recebi minha denominação monástica no dia 14 de janeiro de 1981. Antes disso, eu era Cláudia Dias Batista de Souza, nascida em 30 de junho de 1947. Tem uma cidade no interior de São Paulo que se chama Apiaí, era o nome do meu bisavô, um capitão do mato. Ele foi morto pelos índios em uma emboscada, pelas costas. O meu avô viveu o fim da escravatura, quando nasceu deram a ele um pequeno menino escravo para cuidar dele. Meu avô acaba por se encontrar com a minha avó, que era prima dele. Naquela época, precisaram até pedir autorização ao Papa, porque eram primos muito próximos. Desse casamento, tiveram seis filhos e morreram três. Minha mãe é uma dos três que vingaram. O meu avô paterno queria ser padre, fez um pré-seminário em Portugal, trabalhava em uma paróquia quando se apaixonou pela a irmã do padre. Se casou com minha avó e largou a batina, ficaram em Portugal, tiveram três filhos e depois vieram para o Brasil.
Meu pai foi encontrar com a minha mãe na Escola Normal, que era a formação para ser professor. Se apaixonaram, se casaram no interior e vieram morar em São Paulo. Aos pouquinhos, foram construindo boas condições de vida. A minha mãe era professora e o meu pai trabalhava na Biblioteca Nacional. Meu pai se apaixonou por uma mulher que trabalhava com ele e minha mãe e ele se separaram. Eu devia ter dois, três anos de idade. Depois da separação dos meus pais, ele construiu uma casa para minha mãe no Pacaembu e outra para ele e sua nova esposa, a dois quarteirões de distância. O Pacaembu era considerado um bairro distante, perigoso e escuro. As pessoas, os familiares, achavam que era muito longe para ir visitar, era meio problemático.
Naquela época, os colégios não admitiam filhos de desquitados. Minha mãe achava que era importante estudar em colégio de freira para ter uma boa educação. Então, eu tinha que mentir. A gente ia à escola dizendo que tinha pai e mãe em casa, não era para contar a ninguém que o pai não morava em casa. Era sempre uma situação meio difícil, que me impedia de ter amigas, eu não podia trazer amigas em casa porque iam ver que não tinha roupa de homem lá Eu tive muita dificuldade em fazer amigos e amigas na minha vida.
Depois que se separou, minha mãe foi fazer Faculdade de Filosofia. Eu queria estar com ela, então, ela me fazia ler os livros que ela queria estudar. Com nove anos de idade, comecei a ler antropologia para ela. Fiquei muito impressionada ao ver outros valores e outras maneiras de ser no mundo.
Casamos. Eu tinha 14 anos
Eu cresci muito rápido, com 13 anos parecia ter mais idade do que tinha de fato e comecei a namorar. Minha mãe ficou desesperada. Meu namorado tinha 20 anos. Ela não saía da sala quando ele estava lá: “O que vocês estão conversando?”. Foi um namoro muito vigiado.
Eu comecei a bater o pé dizendo que queria casar. A minha mãe dizia: “Não precisa casar”.Mas, eu falei: “Não, agora vou”. Casamos. Eu tinha 14 anos e ele 21. Era uma boa diferença, e eu era muito criança, evidentemente.
Ele começou a sair com outras pessoas. Depois, eu soube que ele tinha outra namorada. O casamento foi se desfazendo e eu fiquei grávida. Durante a gravidez, a gente se separou. Durante muitos anos a gente se via pouquíssimo. Cada vez que ele se encontrava comigo, ele dizia: \"Vamos voltar\", depois ia embora e não voltava mais.
Ele se casou pela terceira vez e, nesse terceiro casamento, tinha uma menina que era da mesma idade que a nossa filha. Então, ele começou a levar a minha filha para passar os finais de semana com ele e a nova esposa. Ela começa a ficar maravilhada com o pai, mas logo em seguida, ele morre. Assim são as coisas, inexplicáveis, a nossa vida está sempre por um fio.
Notícias de dor
Comecei a trabalhar no Jornal da Tarde. Eles me puseram no que a gente chamava de ‘Variedades’. Eu era tímida, tinha muita dificuldade em entrevistar as pessoas, inúmeras vezes voltava para a redação sem as perguntas básicas. Eles diziam: “Volta”, e eu ia, morrendo de vergonha, tocar de novo a campainha e perguntar da intimidade das pessoas. Quando elas não queriam falar era horrível, um sacrifício. Escrever também era difícil, no estilo do jornal, da maneira que eles queriam, foi muito laborioso.
Nisso, o que estava acontecendo no mundo? Passeatas, estudantes saindo às ruas, nós estávamos em 1968. Eu fui jogada no fogo. Agora você é jornalista para tudo. A gente, realmente foi. Fui cobrir uma passeata, fui empurrada, para cá e para lá, foi aquela passeata em que mataram o menino lá na rua Maria Antônia, foram situações bem violentas que vivi. Saí de ‘Variedades’ e comecei a fazer matérias de todos os níveis.
Eu acho que o jornalismo tem muita dor e não nos ensinaram a trabalhar a dor. Você está em contato direto com o sofrimento das pessoas, e é muito sofrimento. Acho que a imprensa tem contato com tantas pessoas, das mais pobres às mais ricas, a gente vê todos os seres humanos, testemunha tantas injustiças e tantos absurdos e fala: “O que eu posso fazer por isso? Será que a minha vida pode ser dedicada a uma coisa maior?”. Se o ser humano não mudar na sua essência, não são os sistemas políticos ou econômicos que vão fazer a transformação do mundo, é uma mudança de consciência individual e coletiva. Essa é a grande mudança. Como é que eu posso dizer qual é o meu partido? Eu vejo o ser humano.
Nessa época tinha jornalistas se encontrando, me convidaram para fazer parte de grupos onde discutiam textos políticos, socialistas, comunistas. Vou a alguns encontros e tinha um namorado que era do partido. Ele resolveu sair para a luta armada e foi morto mais tarde.
Nessa época, tentei o suicídio. Achei que tudo estava demais, queria acabar com isso, chega. Não conseguia mexer muito no mundo, mas o mundo estava mexendo demais comigo. Decidi ir embora, mas fui encontrada antes de morrer.
Onde está Deus?
Apareceu um menino no jornal, ele fazia ilustrações. Uma noite falei: “Vamos para o bar?”. Ele disse: “Você quer fazer uma coisa diferente hoje? Quer tomar um LSD comigo?”. Eu falei: “Vamos”. Aquilo me instigou muito: “O que é isso? O que é esse LSD? O que é a mente humana?\". Eu falei: “Eu quero mais, eu quero experimentar mais, de onde vem isso?” “Vem da Inglaterra”, “Êpa, é para lá que eu vou\".
Consegui uma licença de seis meses do trabalho. Fui para a Inglaterra aprender inglês, a minha filha ficou no Brasil, fiquei muito triste de deixá-la, vomitei no caminho todo daqui até lá. Cheguei em Londres, achei um basement para morar. Tinham algumas pessoas, brasileiros, me inscrevi em um curso de inglês, comecei a ter aulas e cada pessoa que eu encontrava, eu perguntava: \"Tem LSD?\". O pessoal me olhava e dizia: \"Mas que coisa mais antiga. Ninguém mais usa LSD\". Até que encontrei pessoas que ainda tomavam LSD e a gente começou a tomar junto.
Fui descobrindo universos, a minha pergunta principal era: “O que é Deus? Onde está Deus? Quem sou eu? E por que estamos aqui?\". Fui tendo respostas, fui compreendendo aspectos da mente humana, foi muito interessante, difícil e sofrido, não era bad trip, nem good trip, não era nada disso.
Tive um namorado nessa época que queria levar LSD para vender na Suécia. Nós pegamos um barco, fomos pegos e presos na Suécia. Eu acho que isso foi muito importante na minha vida, porque foram cinco meses para deixar essa experiência assentar. Aprendi muito por lá também, com uma jovem. Ela era árabe, islâmica. Nós estávamos jogando vôlei e eu dei uma cortada mais forte, ela olhou pra mim e disse: \"Por quê?”. Ela sentiu que era uma agressão, e provavelmente era. \"Por quê? Você sabe o que você está vivendo aqui conosco, o que nós estamos vivendo, vai parecer um sonho? Nós nem vamos saber se isso foi real\". Tem algumas coisas que são inesquecíveis. Eu percebi minha agressão, e ali comecei o processo de meditação, comecei a perceber o meu processo e o processo das pessoas à minha volta. Quando me davam um cigarro, eu dava para todo mundo e elas não acreditavam, achavam que eu era boba porque eu não tinha coisas minhas, eu já não tinha essa ideia do ‘meu’.Voltei para o Brasil com uma saudade imensa da minha filha, só queria ficar com ela. Fui dar aulas de inglês para principiantes, fiquei meio perdida.
O zen é minha praia
Eu pedi uma viagem para o meu pai, queria ir para a Índia. Tinha ouvido falar também dos grupos alternativos que eram zen-budistas na Califórnia, vivendo sem agrotóxicos, com reciclagem e energia solar.
Fui para a Califórnia e já na Califórnia, comecei a praticar com o Paramahansa Yogananda, da ‘self-realization fellowship’. Nisso, já estava cada vez mais me entranhando na meditação.
Comecei a descobrir que o zen era a minha praia. Eu acho que tudo aquilo que eu tinha aprendido na minha procura por Deus, pelo caminho, por descobrir o que é o ser humano, a mente humana, o que é a vida, de repente, eu descobri que fazendo zazen você chega lá. Você não precisa de nenhuma droga, você não precisa de nada fora de você, apenas do ser humano, e da mente humana, basta treinamento para você acessar. Comecei a perceber que tudo aquilo que havia acontecido na minha vida até então fazia parte da tapeçaria dela. Não há nada para jogar fora, nada para dizer: “Isso foi inadequado”. Sim, tiveram erros e acertos, corrigem-se os erros e assim vou traçando a tapeçaria da vida
Uma monja que prega a cultura de paz
Pedi para ser monja, eles falaram: \"Você nem conhece o Budismo, como é que você vai ser monja?”
Fui ser o que a gente chama de trainee, por três meses nós estudávamos e tínhamos uma prática, como os monges teriam. Cada dia confirmava mais minha certeza, e cada vez ficava mais simples a vida. Eu me desfiz dos cartões de crédito, cortei os cabelos, dei todas as minhas roupas. Esperei três anos, depois de três anos recebi a minha ordenação. Me deram um panfleto, e eu quis ir para um mosteiro no Japão.
Eu era muito presunçosa, achava que já tinha tido minha experiência iluminada, afinal eu tinha tomado tanto ácido, tinha tido tantos encontros espirituais com a verdade, participado de tantos retiros de meditação. Claro que eu estava pronta. Iria falar do coração para o coração das pessoas e não precisava saber falar japonês. Foi aí que me puxaram o tapete. Foi dificílimo, sofrido, nos dois primeiros anos eu não entendia o que falavam, era enlouquecedor.Acordar cedo é fácil, manter uma rotina de acordar, trabalhar e meditar, isso não era difícil. Difícil era o relacionamento humano. Vivendo no Japão por oito anos internada em um mosteiro,a gente só saia para pedir esmolas, tudo começou a fazer sentido. A menina que declamava a poesia social, a jornalista que tinha uma preocupação com as mudanças sociais, que foi fazer uma revolução meio de LSD, tudo isso foi se encaixando no que hoje eu sou. Uma monja que prega uma cultura de paz.
Eu não quero que todos se tornem budistas, isso não é essencial para mim. Quero pensar como é que nós podemos criar juntos uma cultura de não violência ativa? E não violência não é só de seres humanos com seres humanos, é com a natureza, tudo o que existe é o nosso corpo. A Terra não é a nossa casa, é o nosso corpo. Nós não vivemos em partes do nosso corpo, não vivemos sem as plantas, ou a água pura, sem o céu puro e o ar puro. Precisamos de tudo o que existe e temos que cuidar disso. Não sabíamos disso, eu não sabia disso. E agora que nós sabemos, nós precisamos fazer alguma coisa a respeito. É isso que eu vivo agora.
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