Projeto Conte Sua História
Depoimento de Lourdes Maria Rodrigues
Entrevistada por Karen Worcman e Inácio Neves
Mogol
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV 848
Em 23 de janeiro de 2020
Transcrito por Beatriz Cunha
Revisto por Rosali Henriques
P/1 – Vamos começar lá do início. Eu vou pedir para a senhora pensar um pouco, sabe? Se a senhora quiser até fechar um pouco o olho, pode. Lembra lá da sua infância. Lembrar da casa em que a senhora nasceu, lembrar da voz da sua mãe, lembrar do cheiro que havia na cozinha, lembrar também do cheiro que tinha na casa, da cama em que a senhora dormia, da primeira cama em que a senhora dormiu, e lembrar do pátio, aonde era. Vamos pensar tudo isso e lembrando todos esses momentos. Vendo se a senhora lembra qual é o tom da voz do seu pai, dos seus irmãos, se tinha alguma hora em que a senhora sentia medo, alegria, tristeza… lá atrás. Como que era esse momento. Que coisa vem à cabeça da senhora, um momento da tarde que assim... A senhora lembra. Se tinha alguma voz… O que vinha daquilo? Quando a senhora sentir que está lá, naquele momento, e que fomos até lá, a senhora me conta um pouquinho que lugar era esse. Quando eu falo para a senhora lembrar, o que vem à sua cabeça?
R – Era um momento bom, morava ali embaixo… tinha a minha avó, que ficava mais na casa dela…
P – O que mais? A sua avó ficava ali?
R – A minha avó ficava… Ela morava lá atrás do morro, num lugar que chama Bananal.
P/1 – E ali nessa casa… qual era a casa lá embaixo?
R – Lá embaixo… A primeira casa que tem assim do lado esquerdo. Tem três casas. É a primeira do lado esquerdo, assim.
P/1 – Para lá? Do outro lado?!
R – É.
P/1 – E como era essa casa? Do que a senhora lembra? Vamos entrando assim pela casa. Vai contando para mim como é que era a casa.
R – Era de chão batido, de tijolos, essa telha aí, dessa qualidade…
P/1 – A senhora dormia aonde?
R – Dormia num quarto assim, minha mãe dormia no quarto da cozinha e nós dormia num quarto assim que entrava na outra porta da cozinha.
P/1 – E quem dormia nesse quarto com a senhora?
R – Eu e minhas irmãs.
P/1 – Quantas irmãs?
R – A Neuza, Maria e eu.
P/1 – E tinha outro quarto?
R – Tinha, o da sala.
P/1 – E lá dormia quem?
R – Dormiam as visitas, quando apareciam lá em casa.
P/1 – E meninos, tinha irmãos?
R – Tinha.
P/1 – Onde eles dormiam?
R – Na sala.
P/1 – Junto com as visitas?
R – Não. Tinha um quarto e tinha a sala. Eles ficavam na sala.
P/1 – Quantos meninos? Fale para mim os nomes deles.
R – Zé, Expedito, Francisco, Genivaldo…
P/1 – Três?
R – Quatro… E Oliveira. Eram cinco.
P/1 – Conte para mim qual era o nome completo da sua mãe e do seu pai?
R – Era Maria Teresa Rodrigues e Vicente Antônio Rodrigues.
P/1 – O que a senhora sabe da história deles? Eles já moravam aqui no Mogol… O que eles contavam? Um pouquinho da história deles.
R – Nasceu e criou aqui no Mogol mesmo.
P/1 – Eles também?
R – É.
P/1 – Mas de onde? Aqui nessa cidade ou na fazenda?
R – Para lá.
P/1 – Para lá?
R – É.
P/1 – Numa fazenda?
R – Papai era... Mas a mamãe morou numa casinha que tinha lá no Bananal.
P/1 – E ele morava na fazenda? Ele era trabalhador da fazenda? O que ele era?
R – Não, o pai dele tinha a casa dele lá. A terra lá era do meu avô.
P/1 – Mas ele trabalhava para ele ou trabalhava para fazendeiro?
R – Não, meu pai trabalhava junto com o meu avô.
P/1 – Fazendo o quê?
R – Puxando queijo das fábricas pra levar para outras fábricas.
P/1 – E a sua avó e seu avô por parte da sua mãe?
R – Ah, eles trabalhavam na roça, capinando a roça, plantando…
P/1 – E a senhora sabe como foi que eles se conheceram?
R – Não, isso eu não sei.
P/1 – Eles nunca contaram?
R – Não. Antigamente, os mais velhos não contavam nada do que se passava na família para a gente.
P/1 – O que eles contavam para vocês? Como é que era a sua… Assim... A senhora gostava do seu pai e da sua mãe, ou tinha medo?
R – Graças a Deus eu gostava muito deles. A mamãe batia muito na gente, Nossa Senhora!
P/1 – Como ela era? Conte-me.
R – Como ela era de brava ou de mansa? Ela era brava mesmo, igual pimenta.
P/1 – Como era? Qual era o medo que tinha dela?
R – De apanhar dela, porque ela batia em qualquer lugar, tirava até sangue da gente.
P/1 – Por conta do quê?
R – Bom, se brigasse, apanhava. Se a gente apanhasse dos outros, ela batia do mesmo jeito. Ela falava que a gente não podia ficar brigando…
P/1 – Entre vocês ou quando vocês saíam de casa?
R – Assim quando a gente ia para a escola, que os outros brigavam com a gente, se a gente batesse, apanhava quando chegasse em casa. E se apanhasse, apanhava do mesmo jeito.
P/1 – E as crianças… Uns batiam muito nos outros?
R – Ah, as crianças quando estavam na escola batiam. Eu nunca briguei com ninguém, graças a Deus.
P/1 – Sei. Agora me conta um pouco da sua casa. A senhora chegou a ir nessa escola daqui?
R – Fui.
P/1 – Então, conte para mim como é que era.
P/1 – Mas lembro pouco, não é? Porque eu não tinha idade de estudar. Só porque a Neuza entrou para a escola, eu copiei a moda de vir para a escola com ela. Mas eu não tinha idade. Eu não andava e a Neuza me carregava nas costas.
P/1 – E a senhora não andava por que, dona Lourdes?
R – Porque tinha me dado paralisia.
P/1 – A senhora lembra quando teve a paralisia?
R – Eu me lembro perfeitamente, como se fosse hoje.
P/1 – Então, conte para a gente.
R – Rezei a missa aqui… Tinha uma casa ao lado, lá onde o Renato está fazendo aquela outra casa. Me deu uma dor no corpo, uma febre danada, e eu falava: "Vamos embora, mãe". E ela falava: "Não, espera parar de chover". Cheguei em casa e já estava tudo encaroçado, não mexia mais com as mãos, nem com as pernas. Eu falava: "Me pega, avó". A avó me pegava, me punha no colo e eu falava: "Me põe na cama, avó!". E ela tornava a me colocar na cama. Eu gritava: "Me pega, mãe"... Ficava naquele lenga, lenga. Toda hora eu queria estar no colo, mas me pegavam e meu corpo estava doendo.
P/1 – A senhora lembra da dor como se fosse hoje?
R – Eu lembro.
P/1 – Explica onde é que doía.
R – Doía no corpo inteiro. Aí, eles me levaram ao médico, mas ele falou que era paralisia porque eu não tinha tomado a vacina.
P/1 – E aí, o que aconteceu?
R – Fiquei paralítica, não punha nem a mão na boca. Minha madrinha de batizado fez um óleo de ovo de pata e passou no meu corpo inteiro, me embrulhou nos cobertores e falou que eu não podia tomar friagem. Fiquei uns três dias embrulhada assim, trocava minha roupa e voltava a me embrulhar naqueles cobertores. Aí que eu comecei a mexer de novo com as mãos, aí comecei a colocar comida na boca, comecei a andar de novo, arrastando o pé… Meu avô foi e me deu uma bengalinha para mim ir escorando e ir andando.
P/1 – Quantos anos que a senhora tinha, dona Lourdes?
R – Três anos.
P/1 – E a senhora lembra como se fosse hoje?
R – Eu lembro.
P/1 – Por que a senhora lembra tão bem disso?
R – Sabe por quê? Isso ficou de recordação, porque eu sofri desde os três anos, Nossa Senhora! Mas assim mesmo estudei, trabalhava na casa dos outros...
P/1 – Bom, a senhora levantou, conseguiu mexer a mão…
R – Consegui…
P/1 – E a outra mão?
R – E a outra mão. Um braço aqui do lado da perna é mais fino… O braço também, se for aplicar injeção, não precisa nem fincar a agulha, não passa remédio de jeito nenhum. Tenho que tomar só desse lado de cá.
P/1 – Por quê? A senhora não sente nada?
R – Não, o remédio não passa, o braço não… Parece que a carne é dura, não passa remédio de jeito nenhum.
P/1 – Sei. O mesmo braço da perna?
R – É.
P/1 – Daí, quando a senhora ficou em pé assim, o que aconteceu? Como a senhora sentiu a perna? Não sentiu mais?
R – Não, era dormente em tudo.
P/1 – A senhora chorou muito? Lembra disso?
R – Eu lembro, chorava dia e noite.
P/1 – E o que a sua mãe dizia?
R – Eles ficavam só me engabelando comigo no colo, mas não adiantava nada. Não voltou mais o que era.
P/1 – E a senhora chorava porque queria correr?
R – É, eu queria sair brincando com os meus irmãos e como é que ia? Mas está bom, estou vivendo.
P/1 – Como é que foi? Quando seu avô chegou com aquela bengala, quanto tempo passou?
R – Aí, eu já tinha quatro anos. Andava com aquela bengala assim me escorando.
P/1 – Como a senhora fazia para andar? Porque a senhora era pequeninha de tudo, não é?
R – É, eu punha a mão na parede e punha a bengala assim e ia andando.
P/1 – Mas aí a senhora saía para a rua com a bengala?
R – Não. Quando eu saía, a Neuza me carregava.
P/1 – Quem é Neuza? É sua irmã?
R – É, é minha irmã mais velha.
P/1 – E foi a Neuza quem levou a senhora para a escola com ela?
R – Foi.
P/1 – Todo dia ela pegava a senhora no colo e levava?
R – Todo dia ela levava.
P/1 – E como é que era? Chegava lá e ficava onde a senhora, na escola?
R – Ela me colocava sentada num banco do lado de fora. Na hora em que o professor falava que estava na hora de entrar na escola, ela me pegava no colo e me punha na cadeira.
P/1 – E a senhora achava chato?
R – Não. Para mim, era divertimento. Pelo menos eu estava saindo.
P/1 – Quanto tempo demorou isso?
R – Ah, até quando a gente se mudou para Barra Mansa.
P/1 – E lá a senhora aprendeu a ler, indo para a escola com ela?
R – Graças a Deus!
P/1 – Dentro dessa escola aqui?
R – Aprendi só a fazer algum rabisco, não é? Porque eu era pequena ainda, não sabia de nada.
P/1 – Mas aí a sua mãe... E ninguém levou mais a senhora ao médico para ver se podia melhorar? Como foi isso?
R – Ah, levou, mas já tinha passado… Foi a primeira e única vez que eles me levaram em um benzedor. É por isso que eu tenho esse apelido de Quita, porque a mãe chegou lá no benzedor me levando e, na hora de entrar lá, o homem falou: "Oi, dona, pode trazer a muriquita". Ela chegou em casa e foi dar bobeira de contar aos meus irmãos que ele tinha me chamado de "muriquita". Eles ficaram: "Quita", "Quita". E esse apelido ficou até hoje (risos).
P/1 – O benzedor benzeu?
R – Benzeu.
P/1 – A senhora lembra qual foi a reza dele?
R – Ih, assim, eu não lembro mais.
P/1 ‐ Tá, aí ele benzeu, melhorou… O que mudou?
R – Aí receitou uns banhos, mas não valeu mais nada.
P/1 – A senhora gosta de lembrar disso? Já vi que…
R – Agora eu nem lembro mais. Agora, quando me deu a paralisia eu alembro como se fosse hoje. Depois que fui crescendo… Tem muita coisa que passa assim, faz uns três anos e a gente já não alembra direito.
P/1 – É verdade. Aí, a senhora ficou indo aqui, indo à escola com ela… E por que vocês foram para Barra Mansa? A senhora lembra disso?
R – Ah, meu pai queria mudar para modo ganhar mais dinheiro. Aqui ele só podia trabalhar com o pai dele.
P/1 – A senhora lembra assim, em casa, se faltava dinheiro, se faltava comida ou alguma coisa…?
R – Ah, faltava sim.
P/1 – Como é que era?
R – Dinheiro era pouco, não é? Não dava para comprar quase nada.
P/1 – Mas a senhora lembra assim se faltava comida na hora da janta ou na hora do almoço? Como é que era?
R – Boa não tinha, mas modo de comer assim feijão com arroz, tinha. Igual essas crianças de agora, que só quer saber de passar bem, não tinha não. Uma roupa boa para vestir também não tinha, tinha que comprar os panos mais ruins que tinha.
P/1 – Aí ele decidiu ir para lá porquê? Por que Barra Mansa? O que tinha lá, dona Lourdes?
R – Lá ele comprou uma tropa, trabalhava puxando umas coisas para os outros. Carvão. Mas aí a gente tinha mais dinheiro, podia fazer uma compra mais grande, comprar umas roupas para as crianças.
P/1 – E seu pai, ele era brabo também?
R – Ele só falava. "No dia que eu te pegar, vou deixar a cacunda de vocês mais mole do que a barriga". Mas nunca batia. Graças a Deus. Ele nunca deu um tapa em nenhum. Agora, a mãe, não. Nossa Senhora, ela tirava o couro.
P/1 – Mesmo a senhora com bastãozinho, ela tirava o couro mesmo assim?
R – Mas eu corria, eu corria assim mesmo. Jogava essa perninha seca para arriba e tô doida correndo. Era difícil ela me alcançar para me bater. Apanhar não presta não, de jeito nenhum.
P/1 – A senhora ficava com raiva dela?
R – Não, mas foram bons os couros que ela deu, porque a gente aprendeu a viver no mundo. O que adianta? Não bate e depois não sabe viver com ninguém? Não adianta nada, não é?
P/1 – Lá de Barra Mansa, como é que foi essa casa para a qual vocês mudaram? Era onde? Do que a senhora lembra?
R – Ah, a casa era boa, tinha uns vizinhos bons, não faltava nada…
P/1 – A vida era direita então?
R – É.
P/1 – E o que a senhora fazia lá?
R – Eu? Só fazia comida, porque eu aprendi a fazer o almoço e a janta quando estava com sete anos. Minha mãe falava: "Vai para dentro. Acende o fogo lá e põe para esquentar”. Eu fazia o almoço, chegava lá na bica e falava: "Mãe, o almoço está pronto". Ela falava: "Que almoço está pronto? Já te falei para tu não mexer no fogão. Na hora que você cair e queimar tudo, eu ainda vou te bater”. Eu falava: "Ah, fica ativa, vou ficar só parada? Eu ia fazer almoço, janta…
P/1 – O que a senhora fazia? O que a senhora aprendeu rápido a fazer?
R – Ah, custei a aprender a fazer o arroz, não é? Porque o arroz tem que torrar para ficar soltinho…
P/1 – Feijão?
R – Feijão é facinho.
P/1 – E carne, a senhora fazia?
R – O mais fácil de fazer é o macarrão.
P/1 – E carne, a senhora fazia também?
R – Fazia...
P/1 – Lá em Barra Massa, tinha carne?
R – Tinha…
P/1 – Todo dia?
R – Fazia doce.
P/1 – Mas aí a senhora não ia mais para a escola, só ficava…
R – Não, eu estudava. Não fiquei sem estudar. Todo lugar em que eu morava eu estudava um cadinho. Quando mudava, eu tornava para a escola e estudava. Já pensou se eu não soubesse nada? Já não tenho as pernas boas… E não soubesse nada? Não saber escrever nem meu nome? Tudo que precisasse, ter que pedir: "Fulano, escreve para mim". É muito chato. Tá doido!
P/1 – Então, a senhora aprendeu.
R – Graças a Deus. E fiz questão dos meus filhos estudar também.
P/1 – Mas a outra perna ficou boa até que idade?
R – Ah, faz pouco tempo que eu machuquei a minha perna. Eu já tinha o Rafael. Eu já estava lavando as fraldas dele. Tinha um varal aqui... E eu nunca usei nos meus filhos esses negócios de fralda descartável, era fralda de pano. Eu punha de molho. Tinha dia que esses varalzões, cheios de fralda branquinha. Aí fui estender as fraldas e bati com meu joelho em cima de um monte de cimento que estava ali com brita. E aí machucou, saiu sangue. Lavei e fiquei curando aquele machucado. Agora, depois de já que passou muito tempo, fui no médico e meu joelho está rachado assim, pataca de joelho. Aí fui ao doutor Ramon e pedi para operar meu joelho. Ele falou: "Ah, não, agora pode ficar assim mesmo". E assim mesmo está até hoje.
P/1 – E isso deu o quê na sua perna? Ficou fraco?
R – Perdi a força do nervo da perna, porque a pataca do joelho, rachou no meio assim aí eu fiquei sem força, do joelho para baixo eu não tenho força na perna.
P/1 – E foi desde então que a senhora parou de andar com as duas pernas?
R – Não, assim mesmo ainda andei muito tempo. Ih, eu andava por esses matos aí caçando lenha com os meus meninos. Eu ia tirando lenha e eles iam carregando… Agora é que eu não tenho força mais na perna.
P/1 – Faz quanto tempo que a senhora está totalmente sem força na perna?
R – Ah, já tem uns seis anos. Aí eu vou andar, fico em pé assim, se bobear o joelho sai fora do lugar assim é um tombo de costas. E aí eu até apanhei medo de ficar em pé em algum lugar sem segurar numa coisa, porque é perigoso quebrar um osso, o quadril, um braço, a perna mesmo. Aí fico com medo.
P/1 – Mas dona Lourdes, me conta: quando a senhora era criança e só tinha uma perna ruim, a senhora não machucou mais?
R – Não. Eu comecei a andar com a mão na perna assim, igual a senhora está com a mão aí.
P/1 – Sei.
R – E eu andava só com a mão assim. Quando eu estudava, andava com a mão na perna assim. A roupa do lado que eu punha a mão assim, amarrotava tudo assim e rasgava. Aí depois, eu comecei a andar com o bambu. O bambu até rachou, apertou a minha mão e deu uma baita de uma bolha d'água. Aí eu fiquei puxando assim, mas não acabava de jeito nenhum. A gente estava fazendo sabão, fui colocar aquele mamão no sabão, e aquele leite do mamão acabou com aquele baita lombo que eu tinha. Depois, um homem que morava lá perto de casa, um tal de Bastião Cândido falou: "Ah, não, vou trazer um pau para você escorar assim e ir andando". Aprendi a andar assim e andei muito tempo. Depois fui na cidade e um homem lá de Juiz de Fora me viu andando com aquele pau e falou: "Você não tem medo de cair com esse pau, não?" – ele falou "bastão". Eu falei: "Não, ando com ele há muito tempo. Agora que está ficando velho, vou ver um outro mais novo". E ele falou, "Não, vou trazer uma muleta para a senhora". Aí trouxe. Domingo, eu estava sentada aqui, parou aquele carro ali, me chamou, fui lá e ele tinha trazido as muletas. Mas se eu tivesse aprendido a andar de muleta quando eu tinha mais força na perna, eu andava para todo lado, não é? Depois que já estava sem força na perna, não adiantava nada de muleta. Eu tenho dois andadores e tenho seis pares de muletas, mas como é que anda?
P/1 – Não deu certo com a perna?!
R – Não dá certo de jeito nenhum, porque fica um peso doido e eu não consigo andar, sair do lugar.
P/1 – Puxar assim, não é?
R – É. Aquela, em todos casos, de pôr embaixo do braço, eu ainda andei bastante tempo, mas essa de colocar só assim, não tem jeito.
P/1 – Tem que carregar o corpo todo, não é?
R – É…
P/1 – Dona Lourdes, eu queria voltar lá atrás, da história em Barra Mansa. O que mais? A senhora foi indo à escola, fazendo a comida… E o que mais lembra de lá? O que mais a senhora teve lá de viver?
R – Ah, lá era bom. Tinha muitas coisas boas. Depois a gente mudava… Mudou para um lugar lá que fazia carvão. Até eu já fiz carvão...
P/1 – A senhora então foi trabalhar no carvão?
R – Foi. Nós fomos trabalhar no carvão.
P/1 – O que era trabalhar no carvão?
R – Fazia caeira, fazia aqueles fornos, enchia de lenha, fazia o carvão. Depois tirava e mandava para…
P/1 – Mas como a senhora conseguia trabalhar no carvão com uma perna só?
R – Ih, já arrumei até a terra para plantar arroz. Eu escorava no cabo da enxada assim e mudava a passada.
P/1 – E no carvão também?
R – No carvão também.
P/1 – Tem que pegar assim para…
R – Tem.
P/1 – Como a senhora fazia?
R – Eu puxava com rastelo e ia pôr no saco.
P/1 – Dali, a senhora mudou de volta para cá, foi isso?
R – A gente mudou para cá quando o meu avô morreu. Minha avó não quis morar com as filhas dela, porque disse que não gostava dos genros. Aí papai veio para modo de cuidar da avó. Aí nós voltou para cá. Ficou ali para ficar cuidando dela. Depois, mudamos para Barra Mansa de novo. Eu já tinha casado, fiquei quieta.
P/1 – Mas antes disso, a senhora me falou que trabalhou em Juiz de Fora.
R – Trabalhei.
P/1 – Quando? Com que idade?
R – Com 22 anos. Trabalhei na casa da Luísa, que era dentista. Trabalhei na casa ali na Santa Cruz. Trabalhei em duas casas lá no Santa Cruz. Trabalhei em umas cinco casas. Em Lima Duarte trabalhei também em uma porção de casa.
P/1 – E como é que foi? Me conta um pouco como era o seu trabalho na casa das pessoas, como doméstica.
R – Em alguns lugares era bom, mas em outros lugares era ruim, não é? Trabalhei na casa de uma mulher, mas a mulher era ruim. Ela tinha dois meninos, um casal - uma menina e um menino. Eu tinha que pôr as fraldas da menina no balde rosa com os pregadores rosas; do menino, um balde azul com os pregadores azuis. Tinha tanta laranja, mas não podia chupar nenhuma. Para chupar uma laranja, tinha que esperar ela sair. Era um campo assim, de pura laranja. Se comesse uma laranja, ela fazia a gente pagar. E o chão estava pura laranja apodrecendo. Falei: "O quê?". Fiquei lá só um mês. Falei: "Estou indo embora". E ela disse: "Não, não pode, que eu tenho só você de empregada agora". Quando cheguei lá, tinha umas cinco e, de tanto ela ser ruim, ficou só eu. Falei: "O quê? Vou ficar aqui é nada". O marido dela era um boiadeiro, só vinha em casa só de mês em mês. Eu dei sorte que ele estava lá e falei com ele. Ele disse: "Não, vou levar você lá na casa do seu irmão". Foi lá, me levou na casa do Zé e eu fiquei lá. Falei: "Fica por aí, coisa ruim. Estou trabalhando e está me enchendo o saco" (risos). Dinheiro nenhum paga o sossego da gente. O que adianta você receber muito e não ter o sossego de aproveitar o dinheiro?
P/1 – De lá, a senhora foi trabalhar aonde depois?
R – Aí não trabalhei mais, não.
P/1 – Essa foi a última?
R – Ah, trabalhei na casa da Luísa.
P/1 – Como é que era a casa?
R – Lá na Luísa era bom, porque era só ela e o marido dela. Ela era dentista e o homem trabalhava na farmácia, tinha duas farmácias e ficava para lá o dia inteiro. Quando fui trabalhar na Luísa, foi a última. Depois, vim passear em casa e o ‘seu’ Zé falou: "Bora comigo?" Falei: "Ah, não, chega lá e tem outra donzela dentro de casa. Não vou de jeito nenhum". "Não, não vai ter"... Por isso que eu sou… Eu o acompanhei e estou com ele até hoje.
P/1 – Vocês namoraram dez anos antes da senhora fugir com ele?
R – Foi.
P/1 – Dez anos? Então, a senhora voltou para cá… Não entendo bem, porque como ele falou: "Vamos embora comigo"? Explique melhor isso.
R – Eu vim passear, eu vim no aniversário da minha sobrinha lá em Lima Duarte. Ele também estava lá e falou: "Quer fugir comigo?". Eu falei: "Não, quero nada, estou sossegada lá". "Não, mas eu estou morando sozinho, uma companhia…", e estou aqui até hoje.
P/1 – Mas quando ele falou para fugir já tinha passado dez anos?
R – Já tinha passado dez anos.
P/1 – A senhora o namorou por dez anos?
R – Já.
P/1 – Mas a senhora morando em Juiz de Fora, é isso?
R – Não, estava morando aqui em cima, ali onde mora o Abraão. Era aqui em baixo, onde fez o restaurante depois mudou lá para arriba, onde mora o Abraão.
P/1 – Como foi que a senhora o conheceu?
R – Ele morava em cima e eu morava ali, olha. Todo dia um via a cara um do outro.
P/1 – Mas como foi o primeiro dia que a senhora começou a namorá-lo?
R – Sabe que eu nem sei? Só sei que quando vi, já estava namorando (risos).
P/1 – E ele tinha outras namoradas também?
R – Tinha.
P/1 – E a senhora não se incomodava não?
R – Eu falava sempre que "o que é da onça, o gato não come" (risos).
P/1 – A senhora não ficava com ciúmes?
R – Eu não. Eu estava na janela, ele passeava com outra namorada... "vai com Deus"! Na hora que voltar, vou ser eu que vou estar namorando mesmo. Não adiantava, ele passava assim no meu nariz, perto da minha casa, junto com outra, e eu: "Estou nem aí".
P/1 – Por que a senhora tinha tanta certeza de que ele iria ficar era com a senhora?
R – Eu tinha (risos).
P/1 – Ele contou para mim que depois nem a família dele nem a sua queriam que você casasse com ele. Por quê? A sua família dizia o quê?
R – Um dia eu falei com eles: "Eu não vou trabalhar na casa dos outros toda vida e nem moro com irmão". Deus me livre de morar na casa dos outros. Eu disse: "Vocês se virem, não vão ficar me amolando toda vida para eu não me casar não, porque eu quero ter a minha casa sossegada".
P/1 – Mas eles não queriam que a senhora casasse por conta do quê?
R – Ah, bobeira. Porque a Dona Dica e o Sr. Valdemar não gostavam de mim eles ficava me amolando que não era para eu ficar na família dele. E nós não está vivendo até hoje?
P/1 – E eles não gostavam da senhora por conta do quê?
R – Por eu andar mancando. Eles me botou até o apelido de "mula manca", mas graças a Deus, estou trabalhando até hoje.
P/1 – E a senhora perdoou eles?
R – Ah, agora eu posso perdoar porque já morreram todos.
P/1 – Antes de morrer, não?
R – Antes de morrer, não. E eu conversava com eles, mas olhava eles e lembrava do que eles falavam comigo, né? Porque quem bate esquece, mas quem apanha não esquece não.
P/1 – Mas a senhora não deixou quieto, não é?
R – Deixei nada.
P/1 – E ele foi o primeiro namorado que a senhora teve?
R – Não.
P/1 – Então, me conta do primeiro?
R – Ah, do primeiro, não tenho muita lembrança (risos).
P/1 – Ah, então de qual a senhora lembra? Qual foi o amor que ficou antes dele?
R – Ah, foi só um passatempo.
P/1 – Conta para mim. Como ele era?
R – Cachaceiro.
P/1 – Também?
R – Era. Por isso que eu não gostava de namorar ninguém, porque cachaceiro não dá, namorar cachaceiro…
P/1 – Mas esse, a senhora gostou dele? Esse primeiro que era cachaceiro, a senhora gostava dele?
R – Eu não gostava, mas a minha mãe fazia gosto. Eu tinha até raiva.
P/1 – Ah, é? Por quê?
R – Ah, porque toda vez que ele vinha, estava cheio de pinga.
P/1 – E o que ele fazia quando estava cheio de pinga?
R – Ficava enjoado, não é? Enchendo o saco.
P/1 – Seu pai bebia também?
R – Meu pai bebia.
P/1 – E ficava muito bravo quando bebia?
R – Mas ele bebia e ficava para lá, não ficava amolando.
P/1 – E desse cachaceiro… qual o pior de todos com que a senhora convivia? O que ficava ruim no trato? Qual deles era o pior?
R – De amolação?
P/1 – Sim.
R – Só esse mesmo com o que casei (risos).
P/1 – Ele amolava muito?
R – Amolava. Depois, ele largou a pinga, virou gente… Mas tem que ser assim. Tem que cair para levantar. Se não cair, nunca levanta.
P/1 – Demorou muito?
R – Demorou bem. Um dia, ele falou: "Não vou beber mais". E não bebeu mesmo. Mexe com pinga porque eles vendem umas cachaças aí, mas se tiver um copo fedendo a pinga... "Não quero água nesse copo, não; está fedendo a pinga".
P/1 – Não pode chegar perto, né?
R – O quê?
P/1 – Quem bebe muita pinga não pode chegar mais perto da pinga, senão…
R – Ele mexe com pinga quase todo dia. A Creuza tem esse botequim aqui e vende pinga, vende cerveja… Ele arruma pinga para os outros aí e não bebe mais, não. Se ele vê o cheiro de pinga no copo, não bebe nem a água.
P/1 – Dona Lourdes, como é que foi tê-los com a perna, com tudo isso, os seus filhos? Teve alguma dificuldade? Porque andar com a muleta, e com a barriga…
R – Ah, andava bem para caramba. Eu saía daqui e ia a pé até a Lourdelina, eu em cima do caminhão, em cima das latas de leite para a cidade.
P/1 – Grávida?
R – Mas meus pés inchavam tanto, que não cabia nem chinelo… Eu ia assim mesmo. Ia fazer pré-natal, montava no lombo de um cavalo aqui e ia parar lá na porta da Santa Casa. Quando a barriga apertava na cabeça do arreio, eu jogava ela pra arriba assim e vamos embora.
P/1 – Me conta como é que a senhora conseguiu escolher só ter três filhos. Porque o pessoal daqui tem dez, quinze… Não é?
R – É, mas eu falei: "Três está bom".
P/1 – A senhora decidiu?
R – É, três filhos está bom. O que adianta criar muitos e depois não ter conforto nem para um?
P/1 – Mas aí, como que a senhora conseguia não ter filho, de um filho para o outro? A senhora tomava o quê? Tomava a pílula?
R – Eu tomava…
P/1 – Tomava o quê? Tomava a pílula?
R – Tomava.
P/1 – E quem dava a pílula para a senhora?
R – O médico. Eu fiz exame médico, ele passou um remédio e eu tomava.
P/1 – E quando a senhora decidia que iria ter outro?
R – Quando estavam faltando dois meses para um fazer cinco anos, falei; "Agora já pode". Ah, não, criar muito filho? Tá doido! Lá em casa nós era um punhadão, era treze filhos, tá doido!
P/1 – Dona Lourdes, o que é que a senhora mais lembra da sua infância? Que a senhora lembra com saudade?
R – Ah, eu lembro de quando a gente é pequeno é bom. Porque da infância da gente, a gente não esquece. Pode brincar sossegado, passear, estudar o catecismo, estudar na escola… Depois a gente vai virando adulto, oh…
P/1 – E não ficou bom?
R – Vai ficando velho, tudo cheio de defeito. Eu não posso contar que eu tive infância, porque andar direito, passear, não aproveitei. Eu não vou em festa, não vou ao carnaval, não vou em nada disso. O que eu aproveitei foi só o que aprendi a fazer em casa: trabalhar.
P/1 – Mas a senhora não tinha, mesmo em casa, um momento em que a senhora estava ficava fazendo alguma coisa… escutando uma música, vendo uma televisão, cozinhando…
R – Ah, naquele tempo, nem televisão a gente tinha.
P/1 – Do que a senhora gostava? Que dava prazer de fazer?
R – Que gostava de fazer? Andar assim para o meio do mato, juntar os irmãos… A mamãe tinha aquelas cabritadas e a gente ia buscar aquelas cabritas lá do mato para tirar leite. Era isso, porque a gente morava mais para o mato, não morava assim na cidade. Na cidade era só quando em Barra Mansa e Bananal que nós morou, que a gente morava só em lugar que tinha modo de fazer carvão.
P/1 – E aqui em Mogol, o que era bom? Nos dias de festa, a senhora participava?
R – Aqui, sim. Aqui, como estava pertinho, eu ia. A festa, eu assisto aqui da janela.
P/1 – Qual é a festa que a senhora gosta mais daqui?
R – Ah, os leilões, o povo passeando na rua, arrematar alguma coisa no leilão…
P/1 – A senhora arremata alguma coisa aqui? Como é que a senhora faz para arrematar as coisas no leilão lá?
R – Uai, chego na janela, dou um sinal e arremato daqui mesmo. Se alguma coisa me agradar, eu peço para ir lá arrematar...
P/1 – Agora, o pessoal aqui do Mogol, dona Lourdes... A sua família é daqui também, não é?
R – É.
P/1 – É. Como é que são as famílias? O pessoal se dá bem ou se dá mal…? Como é que são as relações assim, entre as pessoas daqui?
R – Todo mundo se dá bem.
P/1 – Mas não tem muita briga, como essa da senhora com aquela família lá?
R – Não. Antigamente tinha muita briga aqui no Mogol, mas agora não.
P/1 – Antes tinha?
R – Antigamente tinha, porque o povo vinha para a festa e ficava aí brigando, um batendo no outro, machucavam uns aos outros… Agora não tem nada disso, não.
P/1 – Por que mudou?
R – Agora os mais novos não ficam brigando. Só quando eram os mais velhos que ficavam aí na rua…
P/1 – Entendi, mas por que mudou, dona Lourdes?
R – Mudou porque pararam de brigar, os mais velhos foram morrendo, tomando mais juízo… Agora ninguém fica mais brigando na rua não.
P/1 – Mas esse irmão que matou o outro, era da sua família ou não?
R – Nós é primo.
P/1 – É primo seu?
R – Mas não é assim, primo primeiro, não, primo mais longe.
P/1 – Sei. E como foi essa história? Todo mundo participou? O que aconteceu? Todo mundo sabia que ele ia matar? A senhora sabe da história?
R – Eu não sabia que um ia matar o outro não, porque… eles era vizinho um do outro, pertinho, então eu nem sabia. E também eu nunca tinha ouvido falar que um irmão matou o outro, o primeiro foi o Paulinho matar o Juca. Aquilo foi uma coisa incrível, todo mundo ficou assombrado com aquela morte, tá doido! Eu mesma fui lá na igreja e olhei assim: "Cruz credo!". Fiquei uma semana inteira sem dormir, com aquele defunto com a cabeça toda inchada daquele jeito. Cruz credo!
P/1 – Você ficou uma semana aqui?
R – Não, eu fiquei uma semana sem dormir, porque fui lá na igreja lá no dia do enterro dele, olhei e ele estava com aquele cabeção todo inchado. Porque ele deu tiro nele assim, racharam a cabeça dele pra modo de tirar os chumbos da cabeça dele. Aí ficou com a cabeça inchada.
P/1 – Mas como é que foi? E a mãe dele, como é que ficou?
R – A mãe dele morava ali naquela casa verde e nem na igreja ela foi. Ela sabia que o outro irmão ia matar o outro.
P/1 – Ah, é?
R – Ela sabia, mas a gente de fora, não sabia.
P/1 – Como que ela sabia?
R – Porque ela pegou, deu a terra para um e vendeu para o outro.
P/1 – Ela deu a terra para o que morreu?
R – É. Vendeu a terra para o que morreu e pegou a terra e deu para o outro, o que matou. Isso que fez o rolo, não é? Porque ela deu a terra para um e vendeu para outro.
P/1 – E o outro ficou com raiva?
R – Ficaram com raiva um do outro. O que adiantou um matar o outro, a troco de um brejo? Lá só tem brejo e areia.
P/1 – E depois disso, como é que ela ficou?
R – Ah, ela não sentiu muito não, porque ela gostava mais do outro mesmo, o que estava vivo.
P/1 – Todo mundo sabia disso?
R – Todo mundo sabia.
P/1 – E ela está viva ainda?
R – Não, já morreu.
P/1 – Pois se o irmão dela, que morava lá em Barra Mansa, estava trabalhando na casa dela e falou com ela, que ela era para ela ir atrás do morro porque o Paulinho ia matar o outro… Ela falou: "Ah, o que puder, engole o outro". Depois de dia não veio a notícia que um tinha matado o outro? Eu tenho dois filhos, mas eu não aceito eles brigarem assim, de se tampar na unha, não. Deus me livre! "Não quero bagunça, vocês é irmãos". Não aceito brigar. O que é isso? Uma mãe não pode atiçar briga de filho não. Ela tem que apaziguar. Não chegar e falar: "Fulano, bate aí no sicrano de uma vez". Não tem que fazer isso, fica muito feio.
P/1 – Dona Lourdes, como é que foi para a senhora ser mãe? Foi bom? Foi ruim? Deu muito trabalho…?
R – Não, não deu trabalho nenhum. Trabalho ruim é só quando a criança está andando para todo lado. Trabalho a gente passa é agora. Um sai de moto para um lado está demorando a chegar, e eu fico: "Ai meu Deus do Céu, nunca chega, meu Deus". E aí eu não sei se vou na janela da sala, se vou ver na janela da cozinha, não sei se vou na janela do meu quarto… Agora eles me dão mais trabalho de que pequenos.
P/1 – Eu concordo com a senhora (risos). Em cada janela é um filho? A senhora falou que quando olha para a janela de trás, é para a Janaína, não é isso?
R – É, mas quando vai vindo de Lima Duarte, da janela do meu quarto também eu vejo, porque eu vejo passar o claro da moto lá embaixo. E eu conheço o barulho das motos. Eu falo: "João Paulo agora já evem". Daqui a pouco ele chega aqui. Agora eles estão me dando mais trabalho do que quando eles eram pequenos, que estavam embaixo da minha asa (risos).
P/2 – Você falou que não podia brincar, não podia correr e tudo mais… Mas tinha uma coisa que você podia ter feito e eu acho que você deveria fazer agora também, porque você tem uma voz muito bonita.
R – Ah, cantar não é comigo, não (risos).
P/2 – Mas pensa bem comigo…
R – Esquece, esquece da música.
P/2 – É para quando eu for embora você começar a cantar dentro de casa, começar a ter esse prazer.
R – Não…
P/2 – Agora, a Karen vai ficar triste, porque você cantou para mim duas cantigas de roda. Canta para ela também.
R – Ah, não… Deixa essa cantiga para outro dia.
P/1 – Só canta para mim, então.
P/2 – Agora, canta ela toda, lógico.
R – Não, não vou cantar.
P/1 – Só um pedacinho, vai.
R – As que eu sabia, já cantei todas duas.
P/1 – Então, vai.
P/2 – Deixa eu lhe contar uma coisa: é porque depois nós vamos trazer para você essa filmagem de você cantando, para você guardar, mostrar para os seus netos para eles guardarem de lembrança vendo a avó cantando. Então, cante para a gente, para podermos lhe dar de presente isto.
R – Ah, não.
P/1 – Só uma então, vai.
R – Vocês me deixando assim… (risos).
P/1 – Essa música que a senhora cantou para ele, quem é que cantava? A sua mãe para a senhora ou a senhora cantava para os seus filhos?
R – Não, nós cantava na escola.
P/1 ‐ Ah, na escola? Quem ensinava a música?
R – A professora.
P/1 – Lá de Barra Mansa ou daqui?
R – Lá de Barra Mansa.
P/1 – Ah, ela ensinava música lá? A senhora depois cantou para os seus filhos?
R – Eu cantava para eles também.
P/1 – Ah, é? Então, vai. Só um pouquinho, só para eu entender o que a senhora cantava para eles.
R – Ah, não gente, pelo amor de Deus (risos)...
P/2 – Então, tá, não precisa cantar, não. Só mais uma coisa: eu vi que você tem o maior carinho pelos seus filhos.
R – Ah, tenho.
P/2 – Não é verdade?
R – Antes do sangue deles pingar, o meu escorre.
P/2 – Isso é muito bonito. Agora, você quando os fazia dormir, cantava alguma cantiga de ninar? Aí eu gostaria de saber, realmente, qual era essa cantiga.
R – Ah, gente, a cantiga todo mundo aprende.
P/1 – Como é que é? Minha mãe não cantava…
P/2 – É porque cada região tem um tipo de cantiga. Eu gostaria de conhecer qual era a cantiga dessa região.
R – Eu nem cantava para fazer eles dormirem, eu só batia no ombro deles (risos). Ah, vamos conversar e vamos esquecer da música.
P/1 – A senhora quando está sozinha canta?
R – De vez em quando.
P/1 – A senhora gosta de ouvir música?
R – Eu gosto.
P/1 – Qual é a música predileta?
R – Desde que seja sertanejo qualquer uma serve. Para isso eu comprei dois rádios pequenininhos assim, porque eu ponha uma pen drive neles, ponho em cima da mesa para cantar na hora do almoço.
P/1 – Enquanto a senhora faz o almoço?
R – É.
P/1 – Quer dizer então que ela cantou para você?
P/2 – Mas eu ainda vou insistir um pouquinho, para dar de presente aos seus netos e aos seus filhos. Qual é a música com a qual você fazia eles dormirem? Toda mãe que gosta tanto do filho assim e se preocupa com o filho, sempre cantava alguma coisinha.
R – Eu só punha eles lá dentro do berço e só batia no ombro deles para eles dormirem, para sair para o terreiro lavar roupa. Eu não cantava para eles, não.
P/2 – Nunca cantou?
R – Não.
P/2 – Ah, então tudo bem, se você nunca cantou…
R – Eu não cantava
P/2 – Agora, "o cravo cantava com a rosa"...
R – (risos), não.
P/2 – Se você fosse voltar ao passado para modificar alguma coisa na sua vida, para que época você iria e o que iria modificar?
R – Se pudesse modificar? Mas a gente não pode, não é?
P/1 – Mas, e se pudesse?
R – Ah, eu queria ter minha mãe e meu pai de volta, para modo de bater papo, conversar, apanhar mais um bocado (risos).
P/1 – A senhora tem saudade dessa época da infância?
R – Tenho.
P/2 – Tem alguma coisa que você gostaria de ter falado com a sua mãe ou com seu pai, que você não falou?
R – Ah, tem muitas coisas, não é?
P/1 – Tipo o quê, D. Lourdes, se a senhora pudesse falar?
R – Ah, se eu pudesse ver meu pai, eu o ajuda ele muito. Porque, coitado, trabalhou muito para tratar da gente. A gente tem que dar valor, porque mãe e pai é um só. Não adianta… você pode ser adotado e falar "é pai e mãe", mas não é a mesma coisa que o da gente.
P/2 – Qual foi a sensação que a senhora teve quando pegou no colo o seu primeiro filho? Que você viu ele assim, segurando no colo…
R – Foi muito bom, ele com saúde, bonitinho lá dentro do berço… A primeira foi a Janaína. Eu gostava de comprar roupa para ela toda branca. Mais o quê?
P/2 – E você tinha algum medo ou algum receio dos seus filhos terem uma doença ou passar por essa situação que você passou?
R – Eu tinha. Eu pedia a Deus, todos os dias, que nunca acontecesse o que aconteceu comigo, com os meus filhos. Esse Rafael mesmo teve ruim.
P/1 – O que ele teve, dona Lourdes?
R – Eu saí daqui com ele, ele nem chorava mais, nem mamar ele mamava mais…
P/1 – Aí o que a senhora foi fazer?
R ‐ Aí fui, fez a ficha para consultar com esse médico. Chegou na hora, o médico ligou dizendo que não vinha. Ainda ficou mais aquela noite… passei uma noite inteira com ele assim com esses dois dedos, não podia pegá-lo assim, e ele chorando. Só em dois dedos.
P/1 – Por que não podia pegá-lo assim?
R – Porque ele estava com pneumonia nos dois pulmões e não podia nem encostá-lo assim na gente. Ele não tinha nem um mês. Aí levou para a cidade no outro dia, chegamos de madrugada na Santa Casa. De madrugada, o médico chego e falou: "Ah, eu não vou dar vida a esse menino até 11 horas". Ele falou isso, eu só agarrei nele assim e saí doida, escorando o porrete com ele assim, aí a mulher do Joaquim, que tinha ido com nós catou ele do meu braço: "Deixa eu ver". Eu falei: "Não, não, tem vida até 11 horas, eu vou ficar com ele no colo, Nossa Senhora da Aparecida vai dar vida a ele". Eu tenho muita fé com Nossa Senhora da Aparecida. Ele não mamava mais, ele não chupava nem o bico, ele não aguentava nem segurar o bico na boca. Você tinha que pôr a ponta do dedo na boca dele para pôr o bico e segurar aqui e ele começava a chupar. Com a mamadeira, a mesma coisa, ele só mamava na chuquinha. Está aí, e o médico falou…
P/1 – Mas o médico não deu... A senhora rezou para Nossa Senhora da Aparecida, e como é que foi que a história se resolveu?
R – Graças a Deus ele está aí.
P/1 – Mas a senhora trouxe de volta ou levou em outro médico?
R – Não, eu fiquei com ele nove dias lá na Santa Casa, e o médico falava comigo: "Esse aí não tem vida, não. Ele está gelado já". E eu falava: "Nossa Senhora da Aparecida vai me ajudar, que ele vai sarar".
P/1 – Mas ele deu os remédios também, o médico, mesmo não acreditando?
R – Ele pôs só no soro. Nada parava no estômago dele. Eu fiquei com ele lá nove dias. Depois de nove dias, o médico falou que podia ter alta. Tinha missa aqui, pedi carona com o padre e vim embora com ele. No dia que fez oito dias que eu estava aqui, ele tornou a adoecer e lá fui eu de novo, fiquei mais oito dias. E aí, fortinho, está numa gordura danada, o médico não sabe é de nada. Falou que ele só tinha vida até 11 horas…
P/1 – O que a senhora sentiu quando ele falou isso?
R – Fiquei doida, eu nem sabia. Minha vontade era de sair doida com ele assim para algum lugar que não tinha nem barulho e ficar com ele sempre no colo. Eu ficava com o pé em cima dessa coisa aí. Ele no berço e eu com o meu pé enfiado assim nesse vãozinho do berço, a noite inteira olhando ele com medo de eu acordar e ele estar morto. Está aí, forte e sadio. Já pensou você estar com um filho doente e o médico falar: "Ele não tem vida até 11 horas"? Era de manhã cedo, eu fiquei foi doida. Fui lá para arriba fazer a ficha porque Zé Dica foi embora e não fez a ficha, daqui a pouco a enfermeira foi atrás de mim: "Está te chamando lá embaixo". Eu descendo a rampa e já caí sentada de uma vez na rampa. Falei: "Meu filho acabou de morrer?" Ela falou: "Não, é para a senhora tomar conta dele lá que eu vou dar remédio aos outros". Mas quando ela me gritou que era para mim descer correndo, eu pensei que ele tinha acabado de morrer. Eu já caí sentada de uma vez, meu coração parecia que estava batendo assim dentro dos miolos. Aí eu peguei, desci, cheguei e ele estava lá no berço. No meio de tanta roupa, tinha que vestir a roupa dele só num braço porque o soro estava no braço, né, aí tinha que ficar no braço direto, aí tinha que ficar com a manga enfiada só na camisinha que eles falam camisinha de pagão e paletozinho. O travesseiro, eu comprava um pacote de fralda e fazia de travesseiro para ele ficar com a cabeça mais alta.
P/2 – A senhora chegou a fazer alguma promessa?
R – Eu fiz. Mandei até uma foto dele com a roupa de batizado lá nos pés de Nossa Senhora da Aparecida.
P/2 – Aonde?
R – Lá em Aparecida do Norte.
P/1 – A senhora acha que foi a Nossa Senhora da Aparecida foi quem ajudou a…
R – Eu acho que foi ela, porque o médico mesmo só me desacorçoou.
P/1 – Agora, conte para mim... Por exemplo, o ‘seu’ Miguel é benzedor… A senhora tinha levado o Rafael lá ou a senhora não se dava bem com a…
R – Não, sempre o avô deles os benzia. O Miguel, naquele tempo, ainda não benzia não. Era só o pai dele.
P/1 – Mas aí não adiantou?
R – Não. Para mim não adiantou não, porque continuou doente. Mas eu fiz a promessa, de joelho no chão, para Nossa Senhora da Aparecida ajudar, que desse vida a ele, que eu pedi. Ia mandar o dinheiro para colocar lá para ela e mandar o retrato dele. Eu até pagava a carteirinha, e agora não estou pagando porque não tem… A mulher que levava, parou de levar as carteirinhas. Mas toda vez que vai gente lá, eu dou dinheiro para levar e por nos pés de Nossa Senhora. Eu tenho muita fé com ela, Graças a Deus. Eu acho que se não fosse ela, eu nem tinha o Rafael mais.
P/1 – O que a senhora quer para os seus filhos, dona Lourdes?
R – O que eu quero para eles? Quero que eles seja muito felizes, tenha muita vida e que aproveitar o que eles têm. Quero que não aconteça nada de ruim com eles. E se acontecer também, chegar e falar assim: "Aconteceu isso com o teu filho". É capaz se for morte, vai ser dois enterros. Porque eu não aguento, eu tenho a pressão alta, é acabar de falar, eu pifar de vez.
P/1 – Se acontecer alguma coisa com o seu filho, vai acontecer com a senhora também, não é?
R – Acontece comigo também, porque eu não aguento, não. Se um filho meu estiver doente, eu nem durmo.
P/2 – Então, minha pergunta vem um pouquinho daí. Em alguma época da sua vida você teve algum tipo de sonho que ele se repetia? Você se lembra de algum sonho que se repetia e que lhe acompanhou?
R – Sim.
P/2 – Como é que era?
R – Ah, tem muito sonho que é ruim e nem compensa ficar pensando nele mais. Esse negócio de sonho… sonha essa noite, passa alguns dias e repete aquele mesmo sonho, vai estar tudo errado.
P/1 – Por exemplo, quando o Rafael ficou doente, a senhora tinha sonhado?
R – Sonhei.
P/1 – O que a senhora sonhou?
R – Sonhei que ele estava doente.
P/1 – (risos) Antes?
R – É.
P/1 – E aí repetiu o sonho?
R – Repetiu. Na outra semana ele ficou doente.
P/1 – A senhora sonhou que ele iria ficar bom?
R – Isso eu não sonhei. Eu só pedia, todo santo dia, para que ele ficar bom.
P/2 – Então você acredita que o que você sonha, acontece? Se realiza?
R – Ah, tem sonho que sim.
P/1 – Só os ruins?
R – É…
P/1 – Só os ruins, os maus presságios?
R – É.
P/2 – E os bons?
R – Os bons são felicidade para nós. Se estiver sonhando um sonho bom, pode esperar que vai acontecer coisa boa.
P/1 – A senhora sonhou com a morte dos seus pais?
R – Sim. Eu criei uma menina aqui, gente, de nove meses criei até cinco anos. No dia em que ela morreu, ela esteve lá no meu quarto. Eu a vi direitinho.
P/1 – Como foi? A senhora pegou a menina aonde?
R – A mãe dela era minha sobrinha. Pareceu com essa criança. A menina chorava a noite inteira. Eu falei: "Miriam, essa menina está com fome". E ela: "Não, tia Quita, está com fome nada". A menina estava numa caroceira! Falei: "Leva essa menina para Sr. Denario benzer". "Não, isso é sarna de cachorro". Eu falei: "isso não é sarna de cachorro, a menina está com cobreiro". Ela morava numa casa desmazelada e a roupa que estava lá no meio do terreiro, vestia nas crianças. E aí a menina apareceu com aquela caroceira, mas era caroço para valer, até no meio do cabelo.
P/1 – E chorando?
R – A menina chorava a noite inteira e o dia inteiro. Esfregava assim os braços, as pernas… Aí eu falei: "Leva lá para o ‘seu’ Denaro benzer". Levou lá. O ‘seu’ Denaro benzeu e o corpo da menina ficou lisinho, aqueles caroços acabou tudo. A mãe dela deixava a menina de fora, preguiça de tratar a menina. Eu que comprava o leite para tratar da menina, e ela fazia o mingau para a menina beber, bebia. Falei: "Não, me dá essa menina, deixa eu pôr ela aqui para ver se ela vai dormir a noite inteira". Dei banho, coloquei ela no meu quarto, dormiu a noite inteira. Criei ela desde os nove meses até os cinco anos. Aí, um dia, eu fui com ela na cidade e a mãe dela falou: "Ah, Tia Quita, a senhora podia deixar a Rejane aqui comigo"? Eu peguei e falei com ela: "Não senhora, eu não vou deixar ela contigo, porque você vai dizer que eu vim aqui na cidade e lhe entreguei a menina no meio da rua. Eu não trouxe as roupas dela, nem nada". A menina chegou só com a roupa do corpo aqui mas depois quando ela foi embora, levou aquele sacolão de roupa que eu comprei para ela. Aí, a menina falou assim: "Mãe…" – ela me chamava de mãe, e a mãe dela ela chamava de Miriam. Ela falou: "Mãe, a senhora não deixa eu ir embora junto com a Míriam não porque eu vou morrer".
P/1 – Ela falou?
R – A menina falou assim comigo. Ela falou: "Só vou te levar porque o Conselho Tutelar vai lá em casa, depois eu te trago, no sábado". Tinha um baile aqui, “eu trago a menina no sábado”. Não trouxe mais nada. No dia em que fez três meses que ela tinha levado a menina, foi morar lá no Manejo, eu estava sentada aí nessa primeira escada fazendo uma colcha de crochê igual esse tapete aqui. Estava sentada aí, uma preta que trabalhava lá no posto me chamou: "Ô, Quita, está te chamando no telefone". Eu botei a colcha aí em cima da escada, novelo enrolado assim dentro da colcha, e fui lá. Chegou lá, era para falar com o Genildo descer que a Dorinha estava muito ruim e não queria morrer sem ver ele. Cheguei aqui e a Janaína estava com o rádio ligado, numa altura doida. Falei: "Janaína, desliga esse rádio". E ela: "Para quê, mãe? Estou lavando roupa, escutando umas músicas". Falei: "Não, desliga esse rádio porque a Dorinha da Tia Lote, está muito ruim e pedindo para o Genildo descer, porque não quer morrer sem o Genilson". Aí, a Janaína foi e desligou o rádio. Tinha uma moça sentada naquele banco lá… Foi e falou assim: "É para tu ir lá na Denina, atrás do Genildo". E ela falou: "Mãe, eu não vou lá sozinha". E a moça de Juiz de Fora falou: "Pode deixar, eu vou lá junto contigo, Janaína". A Janaína estava lavando as roupas de cama. Ali onde é que é a minha cozinha, era a varanda de lavar roupa e a cozinha era aqui. Eu falei, "Não, vou mudar essa cozinha porque está vindo muita fumaça para dentro de casa e esfumaçando as paredes. Não adianta comprar tinta e tingir a casa depois empretejar com essa fumaça". E aí fez o fogão lá… estava lavando aqui as roupas e falei: "Pode ir, Janaína, que eu vou lavar roupa". As crianças tinha aqueles coelhos da índia e eu estava arrancando uns carirus para jogar para os coelhos. O telefone na rua chamou de novo, a moça foi correndo lá, atendeu e entrou na casa da Tia Zolina, não foi falar nada comigo, porque sabia que eu tinha - e tenho - pressão alta e estava sozinha, não é? Eles não quis vir falar comigo que a menina tinha morrido. Elas falaram assim… A tia Zolina chegou e falou: "Comadre, a Regiane está passando mal". Falei: "Tia, fala que a menina morreu de uma vez". Pois se eu estava de manhã, quando eu desci da cama, ela estava com o vestido que comprei para ela, um vestido branco, que está até por aí, até hoje. A menina passou assim perto de mim assim e eu a vi direitinho passando perto de mim. Eu a encarei assim, ela olhando para o lado da sala e eu só vi a sombra saindo na porta da sala. Ela morreu naquele dia.
P/1 – Ela veio se despedir?
R – Veio se despedir de mim, não é? Porque ela morreu naquele dia. Quando Janaína chegou, eles chamaram na rua: "Janaína, a Regiane morreu, mas não contei para a Quita, porque a Quita estava sozinha, tem a pressão alta e podia passar mal lá". A Janaína veio e Janaína não guardava uma palha não. Chegou e... "Mãe, a senhora está passando mal? A senhora está com pressão boa?" Eu falei: "Estou, Janaína, não estou sentindo nada". "Olha, a Regiane morreu". "Não, Janaína, não acredito". "Não, ela morreu mesmo". Ela falou: "A senhora vai ao enterro dela" E eu falei: "Vou, não, de jeito nenhum, queria vê-la viva, mas morta não quero ver". Depois, o irmão dela – da menina que morreu –, falou que tinha sido a mãe dela que tinha dado umas cacetadas com cabo de vassoura na cabeça da menina, porque a menina pediu comida. Ele falava assim: "A mãe que matou a Regiane, ela deitou o cacete na cabeça da menina com o cabo de vassoura". Tomei raiva da mãe dela também. De vez em quando ela liga.
P/1 – Ela está por aqui?
R – Ela mora ali em Lima Duarte, aqui de cá da ponte. "Tia Quita está aí em casa? Fala com ela para conversar comigo". Eu falo: "Fala para ela que não estou em casa".
P/1 – Nunca mais a senhora falou com ela?
R – "Não vou atender"... Porque para tirar a menina da minha companhia para levar para matar, por que ela não deixou comigo? Eu estava cuidando direito da menina. Tem um retrato dela aí, a menina era bonitinha.
P/1 – Por que a menina, quando saiu, falou para a senhora que iria morrer?
R – Ah, não sei, acho que ela sabia. Ela falou: "Mãe, a senhora não deixa eu com a Miriam. Se eu for com a Miriam, eu vou morrer". E foi dito e feito. No dia que fez três meses que ela foi embora daqui, veio a notícia de que a menina estava morta.
P/1 – E quando ele perguntou se a senhora pudesse mudar algo na sua vida, a senhora se arrepende de ter dado a menina?
R – Me arrependo.
P/1 – A senhora pensa muito nisso?
R – Eu penso. Fiquei uns quatro meses sem comer nada, mas eu ficava assim… Era de uma janela a outra, só olhando para ver se ela voltava com a menina. Nunca mais vi a menina (choro). Me arrependo de ter deixado a menina ir embora acompanhar aquela cachorra, sem vergonha. Ela não tinha que ter tirado a menina da minha mão para matar não.
P/1 – A menina tinha pai?
R – Tinha pai, mas a mulher já tinha morado com 30 homens, minha filha de Deus, e ela não para com nenhum.
P/2 – Isso foi quando?
R – Deve ter uns dez anos já que a menina morreu. Quando ela saiu daqui da minha companhia, ela estava com cinco anos. Ah, não! Quando eu pego os retratos dela e olho, eu não acredito.
P/1 – A senhora gostava dela como filha?
R – Gostava. Tá doido. As crianças falava assim: "Pega outra criança para criar, mãe". E eu falava: "Não quero nem saber, nem que seja um neto meu. Pegar criança para criar? Não quero mais não". Porque o trabalho que eu passei para cuidar da menina, para depois a outra matá-la de graça? Não pego mais filho de ninguém para criar.
P/1 – E a senhora não foi na polícia para dizer que ela tinha matado a menina, não?!
R – Não, não fui.
P/1 – Por quê?
R – Não fui, porque se eu fosse lá na cidade e visse aquela menina, eu que iria ser presa ou eu iria avançar nela e nós iríamos morrer agarradas uma na outra. Então, eu evito de topar com aquela mulher, porque do jeito que ela fez… Eu fui outro dia na cidade com o João Paulo, e falei: "João Paulo, você vai olhando, se a Miriam aparecer na esquina você me fala que eu entro até debaixo de um carro para me esconder dela". Estou assim na cidade, daqui a pouco João Paulo falou: "Mãe, olha quem está chegando perto da senhora". Eu olhei assim e ela veio me agarrando. Eu falei: "Tira a mão de mim, não quero nem saber de tu mais. Tu é minha sobrinha, mas nunca mais eu te ponho uma benção, nunca mais eu quero nada de papo contigo. Rapa fora de mim mesmo". "Tia Quita, mas eu não fui culpada". Eu falei: "Foi, que se você não tivesse levado a menina para lá, a menina estava viva aí". Ela me acompanhava para todo lado. E ela ainda falou, no dia em que a Miriam foi buscá-la subindo ali e falou... Porque a Janaína era madrinha dela, eu era a madrinha de batizado e Joselito o padrinho – a Janaína de consagração. "Ô, madrinha, não chora não, que eu volto de novo". Voltou nada, coitada.
P/1 – E a senhora chegou a sonhar com isso antes? Que isso iria acontecer?
R – Eu falava assim: "Não quero que Miriam apareça e busque a menina, porque eu sei que ela vai levar e comer ela". E foi verdade.
P/1 – A senhora sabia…
R – Eu não devia ter deixado ela levar, não é? Mas ela era mãe e eu ainda não tinha registrado os papéis no meu nome e nem nada. Aí eu não podia falar: "Não leva". Porque senão, ela iria na Justiça dizendo que eu tinha tomado a menina dela à força. Mas arrependimento eu tenho. Se arrependimento matasse, eu já tinha morrido.
P/1 – Esse é o maior arrependimento que a senhora tem?
R – É, é o maior que eu tenho, porque a menina era bonita…
P/1 – A senhora pensa todo dia na menina?
R – Eu penso e eu nem gosto de mexer lá nas fotos dela. Tem muita foto dela, com o João Paulo retrato dela, tem com o Rafael, tem comigo e com Zé Dica, tem ela sozinha… Eu não gosto de ver muito, porque eu choro mesmo. Tá doido! Ela não tem amor aos filhos, não. Ela gosta dos filhos homens, mas das mulheres não. Filha mulher ela ganha e dá para um, dá para outro…
P/1 – Ela teve quantos?
R – Ela tem sete filhos. Que moram com ela, só dois.
P/1 – Ela deu os outros? E quantos homens?
R – Tem três. As meninas, ela deu todas para os outros.
P/2 – Ela teve com quantos homens?
R – Quantos…
P/2 – O pai é um só?
R – É ruim (risos). Não falei que ela tem uns trinta homens?
P/1 – Ela é filha de irmã sua, é isso?
R – É do meu irmão.
P/1 – E o seu irmão está vivo?
R – Não, não está vivo. Ele morava em Barra Mansa e aí foi passando assim na beira da rua, pulou na bicicleta porque estava parando o serviço e o ônibus bateu nele o arrastou e esbagaçou tudo. O enterro foi cheio de algodão e costurar.
P/1 – Nossa!
R – Cataram os pedaços dele, encheram de algodão e costurar para fazer… Para enterrar.
P/1 – Isso foi quando, quando ela era pequena?
R – Não, ela já estava grande, já tinha duas crianças.
P/2 – Nós vamos terminar. Você gostaria de falar mais alguma coisa?
R – Não, por enquanto chega.
P/1 – Eu tenho uma pergunta. Isso de lembrar um pouco da sua história, dos seus filhos, dos seus pais… Como a senhora se sentiu para contar um pouco da sua história?
R – Como é que me senti ao contar a história?
P/1 – A sua.
R – Eu me senti bem, não é? Foi bom conversar para desabafar.
P/1 – Essa história da menina, a senhora já contou para muita gente?
R – Ah, já, mas contar para gente de fora, os primeiros foram vocês mesmos, que estou contando agora. Mas todo mundo aqui sabe que ela fez essa malvadeza com a menina.
P/2 – Bom, vamos encerrar então? Se você quiser falar mais alguma coisa…
R – Deixa para outro dia. Fazer outro filme. Agora eu estou com um nó aqui, olha.
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