Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Lucia Willians Wapichana
Entrevistada por Márcia Mura
Entrevista concedida via Zoom (Porto Velho, RO), 30/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV017
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 − Puranga ara! Bom dia, minha parenta. É com muita satisfação que eu venho aqui fazer essa conversa entre parentes. E quero te deixar bem à vontade, porque é uma conversa entre uma parente Mura e uma parenta Wapichana. É um prazer muito grande te conhecer e espero que a gente possa ter uma ótima conversa. Então, para a gente começar, você poderia iniciar sua narrativa por onde você achar melhor.
R − Bom dia! _______________, como se fala “bom dia” na minha língua. Bom dia a todos, _______________ em Wapichana. Bom dia. Eu também estou muito feliz de estar participando aqui dessa entrevista e agradecer. E quero aqui dizer, sou Wapichana, tenho 29 anos. Minha mãe também é, minha família são os Wapichana e a gente costuma muito falar na nossa língua. A gente fala mais Wapichana do que português, porque português não é a nossa língua materna. A nossa língua materna é o Wapichana. Inclusive, a gente também fala inglês, mas fala mais Wapichana.
P/1 − Parenta poliglota. (risos) Fala a língua materna, fala o português e ainda fala o inglês. Muito bem, isso aí. Então a gente pode começar com as perguntas, né? A gente tem um roteiro aqui, aí a gente vai seguindo esse roteiro. Eu gostaria, parenta, que você me falasse seu nome, o nome indígena e o nome não indígena, e que você me dissesse como que foram escolhidos esses seus nomes... se você tiver o nome, os dois nomes, o indígena e não indígena. E como, e qual que é o significado deles.
R − Meu nome é Lúcia Williams, foi um padre que escolheu esse nome e me batizei com ele. E, em Wapichana, todo mundo me chama, minha mãe inclusive, não sei se vem ao caso, mas todo mundo me chama de Waro, significa...
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Entrevista de Lucia Willians Wapichana
Entrevistada por Márcia Mura
Entrevista concedida via Zoom (Porto Velho, RO), 30/11/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV017
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 − Puranga ara! Bom dia, minha parenta. É com muita satisfação que eu venho aqui fazer essa conversa entre parentes. E quero te deixar bem à vontade, porque é uma conversa entre uma parente Mura e uma parenta Wapichana. É um prazer muito grande te conhecer e espero que a gente possa ter uma ótima conversa. Então, para a gente começar, você poderia iniciar sua narrativa por onde você achar melhor.
R − Bom dia! _______________, como se fala “bom dia” na minha língua. Bom dia a todos, _______________ em Wapichana. Bom dia. Eu também estou muito feliz de estar participando aqui dessa entrevista e agradecer. E quero aqui dizer, sou Wapichana, tenho 29 anos. Minha mãe também é, minha família são os Wapichana e a gente costuma muito falar na nossa língua. A gente fala mais Wapichana do que português, porque português não é a nossa língua materna. A nossa língua materna é o Wapichana. Inclusive, a gente também fala inglês, mas fala mais Wapichana.
P/1 − Parenta poliglota. (risos) Fala a língua materna, fala o português e ainda fala o inglês. Muito bem, isso aí. Então a gente pode começar com as perguntas, né? A gente tem um roteiro aqui, aí a gente vai seguindo esse roteiro. Eu gostaria, parenta, que você me falasse seu nome, o nome indígena e o nome não indígena, e que você me dissesse como que foram escolhidos esses seus nomes... se você tiver o nome, os dois nomes, o indígena e não indígena. E como, e qual que é o significado deles.
R − Meu nome é Lúcia Williams, foi um padre que escolheu esse nome e me batizei com ele. E, em Wapichana, todo mundo me chama, minha mãe inclusive, não sei se vem ao caso, mas todo mundo me chama de Waro, significa papagaio, porque eu falo demais. Waro é papagaio na nossa língua. Porque aonde eu chego já vou falando, já vou debatendo, já não fico calada, eu já vou conversando com as pessoas, já vou me entrosando e já vou chegando ali já conversando com todo mundo. Aí a minha mãe me deu esse nome de papagaio e é Waro em Wapichano.
P/1 − Muito bem. Muito lindo esse seu nome na sua língua. Você já falou do seu povo, mas aí você poderia falar novamente para nós o nome do povo e onde você nasceu? E se te contaram como foi o dia do seu nascimento.
R − Sim. Eu nasci em 1993, dia 20 de fevereiro. Nasci à tarde e a minha mãe estava numa reunião, em que eles estavam brigando pelas terras naquela época e foi no Jacamim na beira do rio Tacutu, na fronteira com a Guiana e com o Brasil. Eu nasci lá entre essas duas fronteiras. Aí a minha mãe disse que, naquela época, não existia médico lá onde eles estavam, existiam as lideranças, tuxaua, essas coisas mais, onde eles ficavam conversando para poder fundar uma comunidade. Quando a mamãe foi para essa reunião, ela acabou se metendo lá nesse dia. Ela pensava que ainda não estava no mês, mas eu acabei nascendo. Nesse dia, quando eu nasci, praticamente eu nasci, eu não tinha fralda, como ela me conta, tiveram que colocar um pedaço de uma rede - isso aí eu não escondo para ninguém -, uma rede porque, para ela, não estava na época de eu nascer. Então, eu não fui embrulhada com fralda, eu fui embrulhada com pano de rede mesmo, porque nesse dia não tinha uma roupa de bebê para mim, era só essa fralda. E logo depois, depois que ela me teve, ela me ‘embolou’. Mas eu não nasci na maternidade, eu nasci no lavrado mesmo e no meio de uma assembleia.
P/1 − Já nasceu na luta, né, parenta? (risos)
R − É, a minha mãe praticamente... eles vieram com uma mistura muito grande para lá e para cá e ela teve vários filhos, minha mãe. Inclusive eu sou a última, a caçula.
P/1 − Tá certo. Qual é o nome da sua mãe e como você a descreveria? E se for possível, você poderia falar um pouco da origem da parte da sua família materna?
R − Sim. O nome da minha mãe é Alice Williams, uma Wapichana. É falante, a mamãe nunca aprendeu a falar língua portuguesa até hoje, ela só fala a língua materna dela, Wapichano, e, também, ela fala Inglês e um pouco de Ingarikó, um pouco misturado com - como que fala? - Aruak. Então mamãe tem essas quatro etnias e ela fala também em Inglês e o Wapichano, mas Aruak ela também sabe falar. E a minha mãe é uma grande guerreira, é uma pessoa muito lutadora. Ela teve dez filhos, esses dez filhos que ela teve houve muita luta para ela criar e, até hoje, ela está viva com a gente. E ela tem uma casa na cidade de Boa Vista, mas ela já lutou muito pelos direitos dos seus povos indígenas, se aplicou muito mais em assembleias. Mamãe tem setenta e poucos anos, vai fazer 80 anos, mas ela ainda está lúcida, está forte. Uma pessoa muito guerreira mesmo, que fazia sua roça. Quando a gente morava na comunidade, ela pegava machado e ia lá, trocar a roça com foice e ela ia derrubar a sua roça e depois queimava e plantava para poder plantar mamão, macaxeira, abóbora, plantar melancia, feijão, arroz. Naquela época, a gente não comia e nem comprava arroz, a gente plantava. Banana. Inclusive também, a gente que plantava cana. Açúcar, a gente não comprava açúcar, a minha mãe que fazia açúcar de cana. Então, feijão, essas coisas, tudo era a gente que produzia. A gente não comprava nada. Hoje que ela tá mais cansada, está morando aqui um pouco, onde não é o lugar dela, como ela fala, muitas pessoas foram embora, saíram com medo dos brancos e ela ficou aqui na terra no contexto urbano. E ela continuou porque ela já morava aqui e ela já ia voltar, já ajudava os parentes dela na luta e por isso ela continuou aqui no contexto urbano, né? Minha mãe, eu não sei descrever ela, mas eu a descrevo como se ela fosse uma heroína. Eu não tive pai, que me ajudasse e ajudasse ela. Eu não cheguei, naquela época, a conhecer meu pai, então foi tudo minha mãe: minha mãe que pescava, minha mãe que caçava, minha mãe saía cedo, pegava as flechas dela e ia matar um tatu, ia matar uma paca para ela poder sustentar os filhos. Naquela época, os filhos eram pequenos e foi tudo minha mãe que fez: farinha, beiju, caça era praticamente ela que matava. Às vezes, quando matava a caça, ela ia, saía de noite, pegava fogo e saía focando para poder achar o peixe para gente poder comer amanhã, para gente sempre sair cedo para ir para roça. Então a minha mãe ela é uma melhor amiga que eu tenho até hoje na minha vida, uma grande guerreira mesmo.
P/1 − Que lindo! É muito forte essa relação com a mãe guerreira. Como é mesmo o nome dela?
R − Alice Willians.
P/1 − Ah, que bom saber da Dona Alice.
R − Sim, ela... inclusive ela está aqui hoje comigo.
P/1 − Ah, que bom. Depois, no final da entrevista, a gente se conhece. Então vamos em frente. Você disse que não conheceu o seu pai. Você então não sabe o nome dele, sabe o nome dele? Sabe como descrever ele e alguma história da parte da família dele?
R − Inclusive... assim, eu cheguei depois a conhecer, depois de 22 anos, ele me procurou. Ele falava que ele tinha que estudar e não podia ficar ali, porque ele não era indígena. Mas aí eu não gosto muito assim, eu prefiro não falar nada dele. Eu acho que ele não tem... Eu respeito, admiro, não tenho raiva, eu quero que ele esteja sempre bem, mas não quero falar nada dele. Para mim, é mais a minha mãe mesmo.
P/1 − Tá certo, parenta. Mas aí você quer falar um pouco mais sobre a família da sua mãe, a origem da parte da sua família materna?
R − Sim, pode ser. A minha mãe, como eu falei, do meu pai, eu não falo nada, mas a minha mãe é filha de um branco misturado com indígena. Meu avô ele era daqui do Brasil e minha avó era de fronteira, a minha avó era Ingari... Ingarikó não. A minha avó era misturada e meu avô era misturado também. Como ele era daqui, não quis ensinar a minha avó a falar português, aí começou a falar só a língua. Então, meu avô era branco, ensinou a minha avó a falar português, só que ela não aprendia. Igual a minha mãe, até hoje ela não sabe falar português. Então, eles têm uma mistura ali muito grande um com outro ali; é tipo um querendo aprender falar a língua do outro, um querendo aprender a falar língua do outro. A minha avó, que veio para cá, que é para o Brasil, porque ela não era brasileira e meu avô era brasileiro, mas ele era indígena daqui, Wapichana. São dois tipos de Wapichana, porque tem o Wapichana da Guiana e tem o Wapichana daqui do Brasil. Aí meus avós eram daqui, por parte da minha mãe. E a parte da minha avó era de lá, era Wapichana de lá. Minha avó, eu esqueci de falar, minha avó era Aruak.
P/1 − Oi?
R − Minha avó era Aruak, porque eu tenho várias, ela tem bastante mistura ali. É uma coisa assim: vai rodando, vai rodando aí até chegar no Aruak. Ela é Aruak com Wapichana. Era aquela Aruak que tinha, assim, uma mistura com americano. Meu avô tinha uns olhos bem claros, azul, minha avó também. Aí depois nasceu essas misturas, mas só que a gente, minha avó, nunca esqueceu sua língua materna, ela foi ensinando a minha mãe e minha mãe foi ensinando a gente, até chegar em nós. Inclusive, hoje a minha mãe aqui ensina os netos a falar a língua inglesa e o wapichano. As minhas sobrinha todas falam. Pequenininha, grande. Eu tenho várias sobrinhas de cabelo cacheado, já filho de branco: tudo fala a sua língua materna. Inclusive, 2019 criaram uma associação... 2019 para 2020 teve uma aproximação da família, porque a gente estava muito aqui por causa da pandemia e a gente não podia ir lá para nossa aldeia, para não levar coronavírus, então a gente acabou ficando mais aqui. Desde aquele dia. Aí nós acabamos fundando uma associação da família, mas era para todos. Hoje inclusive a Associação Estadual Indígena Kamuu Kandan é uma associação indígena do estado de Roraima, está sendo bem conhecida, ajuda muitos povos indígenas também, não só os Wapichana, mas também os Patamona. Tem vários tipos de etnias aqui. - Qual é que é tua etnia? Patamona! - Aquela que estava sentada ela é a conselheira daqui da associação. Então a gente tira a registro, ajuda os nossos parentes, aqueles que você ainda não tem, porque aqui ainda tem muitos que não tem documentos, uma certidão de nascimento inclusive. Então a gente, a nossa associação acaba os ajudando. E a associação ela tá ficando bem reconhecida através disso, ajudando nossos parentes e nossos irmãos. Isso, quem foi, fundou, foi a nossa família: minha mãe, minhas tias, eu. Nós nos sentamos numa mesa: “Vamos criar?”, “Vamos”. Então, foi criado e onde o Edson Gamas, essas pessoas, os amigos que apoiaram a gente do Ministério Público, foram apoiando, a Universidade Federal de Roraima também. E foi assim. Então a gente aqui ensina, a Carmem ensina a língua dela, a gente ensina inglês para as crianças, a gente ensina o wapichano também e a gente acaba ensinando, em geral, as línguas, porque a gente quer manter essa tradição, essa cultura e no dia de sábado, dia de domingo, a gente come todo mundo junto, chama todo mundo onde são produzidos os artesanatos, as peneiras, os brincos, os colares, cocares. É tipo, a gente faz e ajuda ao outro. A gente sempre está em harmonia com nossos parentes. Se a gente não sabe, a gente vai lá e ensina. Se eles não sabem, a gente ensina. Se eles sabem, eles que ensinam a gente. Nós estamos aqui numa troca de saberes. Eu não sei falar a língua da Carmem, mas ela chega, começa a me ensinar e eu começo a entender a língua dela. E hoje inclusive eu estou aprendendo a falar Yanomami e, também, a Carmem está me ensinando a falar a língua dela. Então, tipo assim, se eu aprendi a falar português, por que não aprendo a falar a língua de um parente meu, de um irmão meu, que tem meu sangue, que tem um sangue de guerreiro, que tem o sangue originário do nosso povo, da nossa terra, da nossa casa, do nosso Brasil? É isso que eu quero aprender, entendeu? Então troca de saberes pra mim é muito importante, trocar com meus irmãos, meus parentes e com todos eles. Então é isso que eu tenho para lhe falar, e a gente quer manter isso sempre.
P/1 − Parabéns por esse trabalho lindo, maravilhoso, superimportante para manter viva a cultura. Tem mais (risos) várias perguntas aqui.
R − Tá, não tem problema.
P/1 − Você falou que sua mãe teve outros filhos, você é a caçula. Então você tem quantos irmãos? E como que é a relação de vocês?
R − Como eu te falei, eu sou filha de outra pessoa, não sou do mesmo pai que eles, sou filha de outro homem, não sou do pai deles. O pai deles já morreu. Inclusive, eu acho que eles são meus irmãos, eu considero, respeito, sempre eu busco ajudar, sempre eu estou lá no momento mais difíceis. Eu me dou bem com a minha família, com a minhas tias, minha tia Telma, minha tia Olga. Inclusive perdi uma tia minha agora, esses tempos. Antes de viajar para Brasília, eu tinha acabado de enterrar minha tia. Minhas primas também, converso com elas. Tudo parte da minha mãe. Meus irmãos já não querem muito saber das suas culturas, já são muito diferentes de mim, por mais que ele sejam tão indígenas quanto eu. Eu sou indígena. Por mais que eles falam, eles já não querem passar para os seus filhos, querem que a cultura morra ali, a sua língua, não querem ensine. Eu já penso diferente, e sempre falo para eles... às vezes, eles falam para mim: “Lucia, para com isso, esse negócio é passado. Isso já não pode mais existir no Brasil, é outra época, é outro tempo.” Eu falo: “Não, eu não vou deixar aí isso acontecer. “Enquanto eu viver, eu quero passar para os meus sobrinhos, para os meus parentes, para os meus amigos, pros filhos dos meus amigos.” Eu sempre falo. Então, inclusive eles não ensinam muito. Meus irmãos, né? Agora, minhas irmãs já ensinam as filhas delas, elas escrevem a nossa língua, sabem ler e tudinho. As minhas sobrinhas também. As minhas irmãs, todinhas, ensinam os filhos dela. Todas as minhas irmãs, parte das minhas irmãs, todinhas, sabem falar a língua materna. Agora, a parte dos meus irmãos, não sabe. Morreram três irmãos meu, ficou três, então nós somos sete, que estamos vivos, aí meus irmãos não ensinam os seus filhos. Agora, minhas irmãs já ensinam, por causa de mim, porque eu pego no pé das minhas irmãs mais velhas, eu sempre falo para elas: “tem que ensinar, tem que fazer isso, tem que fazer aquilo”. Eu que vou mais na cabeça das minhas irmãs. É porque eu não tenho filho, então eu acabo me apegando aos sobrinhos, eu quero ensinar, aí elas deixam. Fala assim: “Tá bom. Você é tia, vai lá e ensina. Faz bem para ela. Eu falei assim: “Olha, Maria - Minha irmã, o nome da minha irmã é Maria -, tua filha um dia vai fazer uma faculdade e ela vai precisar. Maria, tu tem que ensinar ela assim, você precisa fazer isso. Ela é indígena, ela não pode deixar a cultura dela morrer. Ela tem que ser igual a gente, ela tem que falar wapichano, ela tem que aprender a falar inglês, porque tudo isso, um dia ela vai precisar na universidade federal. Eu falo isso a elas e elas acabam dizendo “sim”.
P/1 − Muito bom, parenta. Eu também faço meio que esse papel também na minha família, mas só que eu sou a mais velha e você é a caçula. Que lindo isso. Parabéns! Você gostava de ouvir histórias e quem te contava as histórias?
R − Eu ouvia mais histórias de quando a gente morava numa comunidade. A minha mãe acordava a gente às três horas da manhã para fazer rede. A gente piava algodão cedo. Minha mãe sempre dizia assim: “Minha filha, aprenda para você não sofrer. Na rede de branco - ela dizia para mim - faz essa fibra e faça sua rede com algodão. Então a gente sempre ouvia a história mais de Jesus, de Nossa Senhora, a gente ouvia também história de sereia, que não podia entrar no rio naquela época quando a pessoa era uma mocinha, a gente ouvia umas histórias também, minha mãe que contava, sobre dragões, sobre luta, sobre os indígenas daquela época, como surgiu os indígenas, a gente já existia aqui, como fazia tinta, como pintavam uma caverna, era de sangue a tinta deles, era de sangue, era de carvão. É isso que minha mãe contava. E quando ela contava, ela não contava só por contar, fazia a gente trabalhar também, a gente enfiar o algodão para poder fazer essas redes aqui. Essa aqui é uma rede de algodão que é fabricada aqui também na associação e essa daqui, ela dura 10 anos, 15 anos, 20 anos, que a gente fabrica e minha mãe fabrica, também sei fabricar. Inclusive aqui é tudo natural, não tem nada pintado, não tem nada... nada. As plumas dela, tudo. Tudo é a gente que fabrica. E quando nós era pequeno, minha mãe contava história e era isso que a gente trabalhava. A gente não ficava só ouvindo a história... ficava ouvindo a história, mas também trabalhando porque a minha mãe ela pegava, ela acordava a gente às 3 horas da manhã para fiar o algodão. Não sei se vocês fazem aí. E a gente trabalhou muito. Inclusive é onde eu gosto de manter minha cultura, porque minha mãe ela me ensinou bem, eu creio que ela fez bem para mim, ela não fez mal. Tudo que minha mãe fez, eu creio que ela me preparou para o mundo.
P/1 − Muito bom, né, na nossa cultura essa coisa da gente tá trabalhando e ao mesmo tempo conversando, brincando, os mais velhos contando histórias. É muito legal isso. Você poderia contar uma história assim da cultura de vocês, que a sua mãe lhe contou quando você era criança?
R − Sim. A minha mãe contava uma história, é uma história engraçada, mas é uma história. Logo na época que... assim, a minha mãe, ainda existe aquele medo dela dos brancos, vamos se dizer dos brancos, né? Até hoje. Ela dizia que se a gente voltasse para cá, para Roraima, para a cidade, a gente seria escravizado ainda, porque, naquela época, quando os avós delas saíram daqui, fugindo, eles eram escravos, eles apanhavam. Ela contava mais essa parte. Eles sofreram muito, foram humilhados. Então, eles foram vendidos. Por mais que eles estavam na casa deles, eles passaram a sofrer. Então a minha mãe dizia assim: “Lucia, não vai para lá, não vai para a cidade grande, lá você vai ser escravizada, você vai ser vendida, você vai ser humilhada. Inclusive, você não se casa com Macuxi”, que ela falava, minha mãe. Porque aqui em Roraima é Macuxi e Wapichana e minha mãe ela tinha muito medo dos Macuxi, porque, naquela época, eles queriam se casar com os Wapichana. Tem uma rivalidade ali, algo, eu não sei, uma rixa entre eles, que eu não sei o que é, mas eles falam que, naquela época, minha mãe dizia que eles queriam se casar com os Wapichana. Tipo, eles tomavam a esposa dos Wapichana, então os indígenas sofriam muito na mão dos brancos. Então, eles pegavam uma mulher, que minha mãe dizia, amarravam ela e colocavam ela para ser escrava e, depois, tinham o filho dela e a matavam. Então, por isso a minha mãe não queria voltar para cá, com medo de tudo isso acontecer com a gente, não era, naquela época era meu irmão Marcelo, ele dizia: “Mãe, agora é outro momento”. A minha mãe ainda chegou a ver briga entre a Guiana, que são duas ali, pessoas estavam brigando lá. Era uma guerra lá na Guiana. Nessa época, eu ainda não tinha nascido. Nem eu, acho que, minha irmã mais velha, que tem 65 anos. Era época dela. Aí de lá que eles vieram, fugindo da fronteira, porque a mamãe ela nunca morou na Guiana mesmo, ela morava na fronteira do Brasil com a fronteira da Guiana. Ela tinha sempre um sitiozinho dela ali e morava lá cuidando dos animais dela. Então o maior medo dela era de atravessar para cá, de morar aqui em Roraima, que era onde os parentes dela eram escravizados. E a história dela, que ela ouvia, se ela voltasse para cá ela ia ser morta igual ao outros. O maior medo dela era esse, de ela ser morta e as filhas dela serem estupradas e as filhas dela serem humilhadas, as filhas dela serem vendidas, os netos. O medo dela era esse. Por mais que ela não tenha presenciado tudo aquilo, ela ouviu da avó, do avô dela, então o medo dela de voltar pro Brasil, para cá, para dentro mesmo, é esse. A história que ela ouvia era sobre os brancos matando os indígenas, onde existe até hoje. Não é uma história, né? Acontece até hoje com nossos parentes.
P/1 − É isso mesmo, minha parenta. Infelizmente, continua sendo essa violência. Há 520 anos a gente vem resistindo e existindo. E vamos continuar, né, existindo. Parenta, quais as lembranças que você tem do tempo de criança?
R – No tempo de criança, quando eu estava na roça, carregando mandioca, melancia para casa, para comer, tudo natural. Minhas pescarias, até hoje eu gosto de pescar. Eu vivo aqui, eu vivo ali. Eu nunca paro, né? Mas as minhas lembranças boas são essas, de caçar com minha mãe, pescar com minha mãe, ela ensinando como matar um peixe numa flecha, como ser uma mulher guerreira e como também fazer um remédio caseiro quando você tá no momento difícil e quando você está sentindo algo bom, alguma coisa. Assim, o que eu tenho é disso: trabalho na roça e, também, caçar com minha mãe, pescar com ela. São os meus momentos bons que eu convivi com ela. E na pescaria. Brincadeiras? Brincadeira era muito difícil. A gente não brincava muito, a gente trabalhava mais do que brincava. Naquela época era assim. E, também, eu lembro quando a minha mãe mandava me ferrar com aqueles formigão grande. Então tudo aquilo para mim é uma lembrança. Por mais que doesse, era bom. Era para eu aprender, era para eu ser alguém na vida e não esquecer de tudo aquilo. Então, isso são lembranças que eu tenho.
P/1 − Esse é um ritual da cultura de vocês, colocar a formiga para ferrar? Pode explicar um pouco melhor pra gente sobre isso?
R − Tá. Quando a gente completa uma idade em que já vai menstruar pela primeira vez, a gente é ferrada e é ferrada bastante! E a gente é suspendida, assim, três metros de altura numa rede, onde a gente não pode beber água, não pode comer açúcar, não pode olhar para homem, nem pode descer da rede. A mãe vai suspender e a mãe vai descer. No momento que você quer fazer sua necessidade, a sua mãe vai lhe acompanhar, vai lhe embrulhar. E depois que passa aquele ritual todinho, aí ela coloca de volta, para poder aí sim ela dizer se você já se tornou uma mulher ou não, porque a primeira menstruação... e ainda tem um segundo. O segundo é a mesma coisa: não pode comer nada, não pode comer açúcar, nem sal, nem... nada! Só se pode comer pimenta e, também, essas coisas aí, como eu lhe falei. Então, a gente também é ferrado quando tem preguiça, quando a criança dorme muito. Quando a criança tem preguiça, ela é ferrada. Quando a criança tá teimosa, coloca pimenta nos olhos, coloca pimenta lá no outro canto e faz tudo aquilo. Então os Wapichana eles são mais rígidos. Colocam tudo a base de pimenta: pimenta nos olhos, pimenta lá no negócio lá, que eu não posso falar. Então é uma coisa assim que tu procura água, que tu não achava naquele momento. E a mamãe fez várias vezes isso comigo. Eu pensava que ela me maltratava, mas não, era tipo um ritual, ritual deles, uma tradição deles e onde tem que tem que continuar.
P/1 − Cada povo tem sua cultura, né? Tem que respeitar. Vamos aqui então: você lembra da casa onde passou sua infância, como que ela era? E como é que era o lugar onde você vivia quando era criança?
R − Eu lembro. Morei um pouco no Jacamim, morei um pouco no Lusitânia, morei um pouco no Moscou. Moscou, a nossa casa era feita de palha e barro, as nossas redes eram todas feitas de algodão. E lá na Lusitânia, a minha infância ela foi boa também, porque eu morava com a minha irmã, Patrícia, quando a minha mãe me deixava lá com ela, às vezes, lá era tipo uma fazenda grande e tinha muito gado e, também, coalhada, queijo. E lá no Moscou, a gente cuidava das nossas galinhas, do nosso porcos e a nossa casa era uma casa grande, sempre foi grande a nossa casa, onde a gente era feliz. A gente em nenhum momento adoecia ali, a gente era muito feliz. A doença não pegava na gente, era, tipo assim, que não existia doença. Era bem difícil mesmo. Nós, crianças, nunca pegamos catapora, nem sarampo. Até hoje, eu nunca peguei catapora. Ó, vamos dizer do coronavírus: até hoje nem eu e nem minha família pegamos. Porque a minha mãe faz um remédio e taca na gente todo dia de manhã, e de manhã, de manhã, de manhã. Às vezes, a gente cansa de tomar o remédio dela, mas é para o nosso bem. E é isso, nossa casa, a nossa vida era tranquila.
P/1 − Esse lugar ficava onde?
R − Esse lugar ficava... a Lusitânia ficava na beira do Rio Urubu, que é aqui no Brasil também, é perto de Roraima. Moscou é uma comunidade onde a gente passou bastante tempo, a minha infância. É no Moscou. É uma comunidade indígena onde existem muitos Wapichanas, só Wapichana.
P/1 − Legal. Quando foi que você veio morar na cidade e por quê?
R − Na verdade, eu passo o tempo aqui, mas eu não... inclusive passo tempo também no interior. A minha vida, como eu lhe falei, é morar aqui, morar lá, morar aqui, mora lá. A minha mãe, como eu lhe falei, ela saiu da sua comunidade, ela veio para cá, para Roraima, para Boa Vista e quando ela chegou aqui ela comprou uma casa para ela, que é aqui no bairro São Bento, e aqui ela ficou, mas ela tem o acesso às comunidade dela, aos parentes delas. Inclusive as irmãs dela moram na comunidade. E, por causa da minha mãe, eu fiquei aqui, porque ela já está idosa. Fico mais com ela, ajudo ela a resolver as coisinhas dela, para levar ela para o médico, para acompanhar a saúde dela. Mas a mamãe não é doente, a mamãe tá bem. Mais fácil eu adoecer do que ela adoecer. E a gente ficou aqui por causa disso, porque no momento que a gente saiu da comunidade, os nossos parentes no momento que a gente queria voltar, de volta, os nossos parentes falaram que a gente não podia retornar, porque a gente já tinha saído da comunidade e a gente não era mais indígenas. Aquilo doeu na gente, inclusive em mim, onde eu nunca vou deixar de ser bendito. Eu acho isso muito errado que as pessoas fazem com as pessoas e até hoje, realmente, tá acontecendo isso, as pessoas não querem reconhecer os indígenas. Tipo, não querem reconhecer seus próprios parentes. Eu não sei por que isso acontece muito das vezes, aqui ou em outras comunidades. Acontece isso aqui em Roraima. Aí gente tentou voltar, não podia voltar para lá, porque disse que a gente não era mais indígena. Então, foi onde a mamãe ficou, ela veio para tratar de uma doença e quando ela pensou de voltar para lá, não podia mais retornar. E aí naquela época eu era pequena, eu não respondia por mim. Aí eu continuei aqui com a minha mãe, onde ela comprou a casa. Ficou aqui, onde ela tá aqui até hoje. Mas ela tem acesso a comunidade, ela vai lá, volta, mas para morar, ela não mora mais.
P/1 − Entendi. É importante que você tá aí com essa força toda, linda, maravilhosa e lutando pelos direitos do seu povo e de outros povos também. Muito bonito o seu trabalho. Parabéns! Qual que é o bairro e a cidade que vocês moram aí na cidade?
R − A gente mora aqui no bairro São Bento. Fica aqui perto do Raiar de Sol, do Araceli. E já tem, acho que, dez anos que estamos morando aqui, de anos aqui no mesmo bairro, a gente nunca trocou mais. Inclusive, a gente fundou a associação, aqui em casa mesmo. É aqui em casa que a gente recebe todo mundo, onde vem as pessoas. A gente já recebeu pessoas de fora também, italianos. Já levaram nossos trabalhos daqui para Itália. A gente tem nossas danças, nossa tradição, todas. Às vezes sábado, domingo... não sei o que vocês comem aí, mas a gente gosta, gosta muito de comer peixe com bastante pimenta, pimenta, pimenta, pimenta, pimenta. Inclusive quando vocês vierem aqui a gente vai receber com pimenta e beiju. E a gente tem farinha também, tem caxiri, não sei como é que chama por aí. Aqui é essa alegria. É caxiri na cuia, não sei se você já ouviu falar, é a nossa bebida tradicional e deixa a gente bêbado também. Às vezes, quando o índio é bravo, ele quer flechar outro. (risos)
P/1 − Já me deu até vontade de ir aí. Aqui onde eu estou, aqui também é na cidade e a gente chama de “maloca querida” e, também, a gente recebe os parentes que vêm das aldeias, os que vêm do espaço ribeirinhos, extrativistas. A gente recebe também pessoas que vem fazer algum trabalho nas comunidades, de outros estados, de outros países. É a nossa casa aqui, só que a gente transformou também no espaço coletivo e aí, às vezes, está cheio de gente, cheio de parente. E a gente gosta de comer peixe... no quente, peixe. A gente gosta de comer de caça também e a gente toma luar e a gente também faz esse trabalho de recuperação da memória do povo Mura aqui no Rio Madeira, que para o lado de Rondônia é muito invisibilizado o nosso povo. E aí a gente faz essa luta aqui. Quem sabe um dia tu vem aqui conhecer também e eu vou aí te conhecer, conhecer tua família, teu trabalho. (risos) Então... é, legal, vamos ver. Quem sabe não dá certo? Deixa eu te perguntar aqui, na sua infância, você teve contato com televisão, com rádio, essas coisas?
R − Inclusive... não, eu não tive contato com rádio. Até porque minha mãe não deixava também. Ela tá bem aqui sentada, não posso nem mentir. Ela não deixava, e não tinha televisão, não tinha rádio, não tinha nada disso. O que a gente ouvia era só na igreja mesmo, na Igreja Católica, e a gente frequentava muito da Igreja Católica e a música que a gente ouvia era aquela pessoa tocando violão. E era só isso, porque rádio, televisão, não tinha nada disso. Primeiro, acho que primeira música que eu ouvi, eu me lembro até hoje, acho que foi aquele Guaia Guaia. É música internacional. Foi a única coisa que eu lembro, eu acho treze anos, quatorze anos quando eu ouvi aquela música aí. Então a gente não tinha contato com rádio e nem televisão.
P/1 − Que bom, né? (risos) Deixa eu te perguntar: e tinha algum canto da cultura, na língua que você aprendeu, quando era criança? Se tiver algum e se você quiser cantar para gente, pode.
R − Pode. Vou começar, tá? (Canta em Wapichano)
P/1 − Ah, que bonito.
(som de chocalho)
P/1 − Muito lindo.
R − _____ a gente tem ________...
P/1 − Tem tradução isso que você cantou?
R − Mas se quiser que eu cante em português, eu canto também. Eu estou falando assim: “Eu tenho um amigo que me ama, o nome dele é Jesus. Você tem um amigo que te ama, o nome dele é Jesus. E cante o eterno amor”. É isso.
P/1 − Ah, tá. É uma musiquinha, né, na verdade. Musiquinha da igreja, né?
R − Sim.
P/1 − Tá bom então. Vamos nessa, vamos continuar então aqui. Tem alguma comida da infância que te marcou?
R − Damorida. Damorida é a comida que eu mais gosto. Tatu, tatu assado com pimenta. Eu gosto muito também de carne de capivara. Capivara, bota ela para salgar. Gosto muito de carne de capivara. Tatu, veado. Vocês tem veado aí? Carne de veado salgada, assada. Eu gosto de tudo que é tipo de comida, mas minha comida favorita é peixe assado na beira do rio com bastante pimenta e carne de jacaré.
P/1 − Eita, só coisa gostosa. Fala um pouco para gente como é que é a damorida.
R − Tá. Damorida é numa panela de barro. Não sei se você tem, com certeza, que tem cerâmica. Panela de barro, coloca peixe para assar. Depois do peixe assado, tora ele no meio, coloca tucupi, que a gente do tucupi mesmo, da mandioca, bota tucupi para cozinhar, deixa ele ficar bem preto. Aí quando você vai fazer Damorida, coloca dentro da água aquele tucupi, aí depois pega acho que milhões de pimenta, coloca ela pra cozinhar, aí pega a folha de pimenta, coloca bastante coisa de pimenta. Esse aqui que é tucupi. Aí ele coloca bastante malagueta, olho de peixe... vários tipos de pimenta. Então coloca três pedaços, quatro pedaços de peixe, o resto é tudo de pimenta com tucupi. É uma delícia!
P/1 − Nossa, já me deu água na boca já. (risos) Então, a gente vai passar pra um bloco de perguntas sobre a escola. Você estudou em escolas indígenas ou não?
R − Só estudei em escolas indígenas, eu não estudei aqui em Roraima. Agora que eu vou estudar. Aliás, agora que eu estou estudando aqui, porque como eu lhe falei, a minha mãe vivia mais para lá do que aqui. Então, quando eu conheci o movimento indígena, a minha mãe já estava no movimento, então a gente não parava. E a nossa escola era mais Wapichana do que a própria língua portuguesa, a gente não aprendia. A gente só aprendia mais wapichano. A gente não tinha acesso, inclusive. E agora, não, agora, como eu, essa daqui ó, a gente está estudando aqui no Brasil mesmo, porque a gente está morando aqui. Como eu te falei, eu não morava aqui. Agora que eu estou morando, estou estudando. Inclusive quero terminar meus estudos pra eu fazer Direito, porque a gente não tinha acesso.
P/1 − Tá tom. Tem alguma história que te marcou na escola em que você passou?
R − Uma história que marcou: porque a gente não podia aprender a língua portuguesa, porque eles brigavam muito com a gente. Também era muito medo dos nossos parentes de a gente ser morto. Uma coisa que eu sentia muito medo de aprender é português e onde eu tinha medo de até estudar, inclusive. Agora, logo depois, outra professora, ela dizia que não era daquela forma, era forma diferente, mas nossos parentes já tinham feito a nossa cabeça. Existia, já sentia aquele medo, aquele pavor. Então, depois a gente foi entender que não era mais daquele jeito, já era diferente e, hoje, inclusive, quero aprender português mais e mais.
P/1 − Mas assim, eles tinham um receio que vocês aprendessem coisas da cidade, no caso, né?
R − Sim, eles falavam que... a minha mãe inclusive dizia para a gente não ter contato também. Não ter contato com ninguém e não ter contato com os brancos, porque eles, como eu lhe falei, eles eram nossos inimigos, aí então não era para a gente ter aquele contato com os brancos ou aprender a falar a língua dele. Ainda existiu naquela época, para não aprender e nossos próprios parentes proibiam a gente de falar português, porque não era nossa língua. E era muito medo dos nossos avós brigarem com a gente. Então a gente só tinha que aprender é só a nossa língua mesmo, não podia aprender outra língua. Mas depois a gente foi entendendo de gente que não era daquela forma.
P/1 − Sim. Então, tinha alguma matéria da sua preferência na escola?
R − Tinha. Nossa preferência da escola indígena era só cantar, __________, flechar. Era mais cultural, sobre as culturas, não era nada do que é hoje. Assim, a gente brincava, aprendia a flechar, não tinha nada a ver com o branco, não. Os brancos já ensinam a gente diferente, de outras formas. Assim, mas tudo que eu mais gostava era de aprender com eles ali, falar mais a língua e, também, estar ali aprendendo e falando sobre os pajés. E era isso que a gente aprendia mais. A gente não aprendia a falar português.
P/1 − Vamos falar agora um pouco sobre a sua mocidade. Até já falou sobre a formação que você recebeu após sair da fase de criança e antes de se tornar adulta. No seu povo... você até já explicou também sobre essa passagem para mulher adulta. Mas se tiver mais alguma coisa que você queira falar, fica à vontade.
R − A gente, o Wapichana, não, muitas das vezes, não se casa cedo, se casa um pouco tarde. Para a pessoa estar preparada para se casar, vai ter que fazer uma farinha, um beiju, fazer caxiri, fazer _________, como você tá falando, saber fazer, cozinhar, saber caçar, saber pescar. Então, a mulher ela tem que se preparar primeiro para poder se casar, porque ela não pode casar criança ou nova, tem que se casar um pouco mais tarde. Na nossa cultura, a gente não se casa cedo, mas hoje não, hoje o povo tá liberal aí. Não sei. Estou falando daquela nossa época. Até hoje ainda não me casei, por causa disso, que minha mãe ela fala que não, que não, por causa disso, é errado, a pessoa não pode se casar nova, tem que conhecer uma pessoa e para casar, tem que casar com um Wapichana igual a gente, né? Ele tem que saber roçar, brocar. E se ele não comprar um machado novo, os velhos dão aquele machado velho, todo quebrado, para ele. Ele vai ter que derrubar a roça desse tamanho, uns pau. Se ele não conseguir derrubar, ele não pode se casar. Ele vai ter que flecha... ele vai ter que matar, tipo, veado, ele vai ter que caçar, Se ele não chegar com caça, também não tem direito de casar. Então, várias coisas ali, a mulher ela tem que acordar 4 horas da manhã, tem que tomar banho, tem que saber fazer essa rede, que é a mais difícil de todas, e tem que aprender a fazer tantas coisas, senão a pessoa não pode se casar. É uma coisa muito... hoje não, hoje tudo que você souber fazer, está bom demais.
P/1 − É, né? Você tem algum momento especial que você lembra desse teu tempo de mocidade? Que você ainda está nessa fase, né?
R − Eu gosto muito de curtir a minha família, eu gosto muito de me divertir. Eu sou totalmente alegre, gosto muito de estar junto, de estar brincando, de estar... às vezes, eu sou dengosa, fico dengando com a minha mãe, e eu gosto muito de ser eu, de pescar. Eu adoro pescar. Às vezes, eu pego o meu carro, eu vou me embora para ir pescar, às vezes, eu peço para alguém me levar, porque agora que eu estou aprendendo a dirigir, eu não sei dirigir direito. E, às vezes, eu pego peixe com a mão, eu amo pegar o peixe com a mão, meter, assim, minha mão no buraco pegando aquele peixe vivinho depois. Tirar o bichinho mesmo, pegar ele, botar ele pra assar fresco. A única coisa que eu gosto de fazer é pescar e lutar pelo meu povo. Eu luto, eu brigo, eu defendo. Pode ter certeza, se tiver um parente meu precisando da minha ajuda, eu estou lá por ele, por ela, pelas crianças, pelo adolescente, pelo adulto, pelos idosos. Eu estou ali pra brigar pelos direitos do meu povo, jamais eu quero ver meu povo sofrer. É isso que eu gosto de fazer.
P/1 − Então, parenta, você pode falar pra gente o que você gosta de fazer pra se divertir?
R − Gosto muito de fazer damorida para o meu povo comer, eu os vejo todos felizes, alegres. Gosto muito de estar na pescaria para me divertir. Eu acho assim, pescaria é uma diversão para mim.
P/1 − Você disse que gostava de dançar também, não foi?
R − Gosto muito de dançar Parixara.
P/1 − Isso.
R − Eu gosto muito de dançar Parixara e chamar meu povo para dançar. “Bora, meu povo, dançar!”, “Bora!” e a gente dança, a gente canta, a gente troca nossos saberes ali, fala sua língua, outro fala outro. Então a gente acaba se divertindo junto, não só eu, mas eles também. Cada um tem a oportunidade de falar, então cada tem direito de se divertir. Então gosto de ver todo mundo feliz. Onde eu vejo a pessoa triste, eu vou lá e falo: “O que que você tem? Vamos lá, vamos nos divertir, vamos animar. Levanta. Tem alguma coisa que está acontecendo?”, a gente tem que sempre saber se a outra pessoa está passando por um momento difícil. Se eu puder ajudar, sempre estou disposta a ajudar, mas se não, se eu não puder, também não vou atrapalhar um parente meu, uma companheira de luta. E é isso.
P/1 − Está certo. Você falou sobre os deslocamentos que vocês tiveram de território, você poderia dizer como é que foi esse caminho de deslocamento e qual foi sua primeira impressão quando você chegou no outro lugar, fora do seu território?
R − Muito estranho para mim. Quando eu cheguei aqui, tinha luz e lá onde eu morava era uma lamparina, e tinha muito carro e lá onde eu morava não tinha carro, era, tinha uma bicicleta e, também tinha também carro de boi, que a gente tinha boi para puxar, mandioca, para carregar lenha. Era carro de boi e aqui já era carro. E aqui falava muito português e eu não sabia falar, então era, assim, tudo era novo, tudo era diferente, tudo era novo e tudo que as pessoas falavam, eu não entendia. E até comida, eu tive um medo de comer a comida, eu não tinha muito assim, eu não gostava muito da comida, por causa que era diferente, tinha muito tempero. A gente temperava nossa comida, mas era com mais folha, o que a gente sabia e conheci. Tudo que a gente comia era tudo plantado, aqui era tudo comprado, então era muito diferente. E, também, como era tão diferente, aí a gente acabou mantendo outros tipos, eu e a minha irmã, já doente, com febre. Primeira vez que eu cheguei aqui para comer a comida, me deu muita febre porque eu não conseguia comer e engolir aquela comida, mas depois, com o tempo, eu fui me acostumando com a comida daqui. A gente comia mais beiju, farinha e carne de caça, né? E, também, um peixe que a gente pegava. E nada do peixe que a gente pegava, a gente colocava no gelo não. Ou a gente fazia logo ela, muquiado, ou peixe seco, ou peixe cozido, mas nada a gente colocava no gelo. Até carne também, a gente nunca tinha colocado no gelo. E aqui não, aqui tem geladeira, já tem o fogão, a gente não precisava mais carregar lenha. Era uma coisa, uma parte era fácil e outra parte para nós se tornava difícil porque a gente não era acostumado com esses tipos de coisas. Então, para mim, era tipo assim, um rebuliço muito grande e, também, ao mesmo tempo, era bom e era ruim. Ao mesmo tempo que eu queria voltar pra minha casa, eu falava: “Poxa, eu quero voltar para minha casa, porque aqui não é meu lugar. Eu não me sinto bem aqui”, não me sentia bem. As crianças, onde eu brincava com as crianças, assim, não era tão brincadeira, mas assim, com a minha irmã mesmo, a Maria, a gente saia assim para banhar no rio, a gente pulava. E aqui não era assim, era diferente. A gente só via o solzão quente ali e não podia fazer nada. E a gente, assim, brincava na chuva; quando chovia, a gente queria brincar e aqui não podia fazer nada disso. “Criança era imunda, criança era suja, criança era aquilo.” E aqui os brancos não colocam os filhos pra fora, que falam que vão ficar doente, que vão pegar gripe, vai pegar não sei o quê, vai pegar um monte de coisa. E a gente não era doente, a gente era saudável.
P/1 − Quantos anos você tinha quando vocês vieram pra cidade?
R − Eu tinha 13, 14 anos. Porque eu lembro que quando eu fiz aniversário, era 16 anos já aqui. Então acho eu tinha uns 15 anos, por aí. 14 pra 15 anos. Não lembro direito. Meu primeiro aniversário que eles fizeram, eu até me espantei porque lá fazia aniversário, mas era tipo, era comida, comida, não tinha nada de bolo. Assim, eu não tinha bolo lá. Inclusive eu não tinha bolo e lá era tudo carne: carne de caça, carne de veado, o que a gente comia na nossa época. E não tinha bolo. Então era caxiri, era pajuaru, ________. Mas não tinha bolo. E já chegando aqui, já tinha bolo. Os indígenas começaram a aprender a fazer bolo já com os brancos, quem estava trabalhando em casa de família já estava aprendendo. Então quando foi que eles decidiram fazer aniversário pra mim já com bolo. Então aquele primeiro bolo é como se eu estivesse experimentando algo muito gostoso, primeira vez. Bolo eu não comia, não tinha bolo, então o bolo de primeira vez, você já sabe, como se fosse o primeiro amor na vida.
P/1 − E tu lembra como que foi esse deslocamento, como foi que vocês vieram de lá do território pra cidade?
R − Lembro. Lembro que nós viemos foi num caminhão da feira. Minha mãe colocou os pratos, colocou as panelas dela, colocou as nossas redes, que a gente não tinha cama, nossas redes, nossas roupinhas, colocou tudo dentro do saco, das nossas sacolinhas e a gente veio embora pra cá, tudo dentro do caminhão. Mas também a gente trazia muita farinha com a gente, pra gente vender aqui.
P/1 − Quando você veio morar pra cá, você foi trabalhar em algum trabalho que não era da sua cultura?
R − Não. Como eu ainda era adolescente, minha mãe que, ela trabalhou já fazendo, lavando a roupa de outras pessoas, sem ser da cultura, mas depois ela voltou de novo pra feira do produtor e lá ela continuou vendendo a farinha dela. E os parentes dela traziam de lá, porque ela ainda tinha roça lá. Passou uns tempos, aí depois ela começou a comprar dos próprios parentes e vendia na feira abóbora, macaxeira, banana e eu ficava lá ajudando ela. Inclusive, a gente vendia também o caxiri, mas depois, com o tempo, ela parou e ela começou a ficar mais em casa. E depois ela se aposentou e eu fui trabalhar com o movimento indígena, fui já me entrosar. Quando eu completei meus 16, 17 anos, já estava no movimento. Aliás, desde quando eu era nova a gente participava já, mas depois eu fui no entrosando mais com outras organizações e onde a gente foi estar no movimento sempre.
P/1 − Vamos agora pra... bom, você já falou que não é casada, não tem filhos, mas tem algum tipo de relacionamento?
R − Na verdade, eu estou conhecendo uma pessoa, que é Taurepang e, também, a gente tem quatro anos já que se conhece e ele também vem de uma família liderança, a família dele mora em comunidades ainda e ele estuda na Universidade Federal e a família dele mora todinha na comunidade ainda. Ainda não... eles são diferentes da gente, não são Wapichana, eles são Taurepang. É outra etnia. Ele, a região dele é Amajari, a minha região é Serra da Lua e a família dele fica para lá, pai e mãe. E a gente está aí se conhecendo. A gente ainda não é casado, nem eu, nem ele, e estamos tentando se conhecer mais. Até onde der. Onde não der também, está bom demais.
P/1 − Tá bom então, parenta. Vamos para um bloco agora sobre a questão do Covid. Você já falou que vocês se cuidaram bastante, mas vou fazer algumas perguntas específicas, tá bom? A primeira pergunta é: como vocês fizeram para se proteger do coronavírus? Alguém chegou a falecer na sua família ou na sua comunidade?
R − Inclusive, falando em Covid, eu acho muito triste essa situação quando fala sobre Covid. A gente não chegou a pegar a Covid, porque a gente estava fazendo, como eu falei, remédio caseiro. De manhã, acho que 5 horas, minha mãe já estava na porta trazendo os remédios para nós, que fico com ela. “Toma, minha filha.” Mas morreu sim nossos parentes, morreram as pessoas do contexto urbano, morreram muita gente. Sofremos junto com aqueles parentes, com aqueles familiares também, que também eram indígenas. Onde perdi minha prima, perdi meu sobrinho. Foi um sofrimento muito grande pra gente. Então nós perdemos um dos nossos familiares. Quando eu falo nossos parentes, às vezes, não é irmão meu, mas é irmão nosso, através do sangue. Às vezes, as pessoas não se doem, mas nós temos que se doer. Nós que somos indígenas, nós precisamos nos unir. Quando machuca um, está machucando o outro. Então, onde a gente sempre se manteve unido nessa parte, pessoal da associação, sofremos muito através dos nossos parentescos que morreram aqui na cidade. Onde não tiveram acesso a injeção, a vacina. Os indígenas que moravam na aldeia foram vacinados e eles não, demorou a vacina. Quando eles pegaram, sofreram bastante. Outro inclusive, o pastor, acho que três semanas ainda sofrendo. E falando que não podia vacinar os indígenas que moravam aqui no contexto urbano, porque eles não tinham mais direito e a Funai não os reconhecia. É onde foi o meu sofrimento maior. Nós, nas organizações nos unimos com o Ministério Público, mas aí não teve jeito, a gente sofreu junto com nossos parentes. Mas morreram muitos. Morreram mais indígenas no contexto urbano do que morreram na comunidade. Onde a gente sofreu e viu aquela dor dos parentes, outros ficaram, não morreram, mas ficaram com sequelas. Hoje o outro não enxerga direito, hoje o outro não lembra das coisas. Então é uma coisa assim que, parentes do contexto urbano que mais sofreram durante a época da Covid. Para mim isso foi muito doloroso.
P/1 − Nós também passamos por muitos desafios aqui, mas estamos aqui resistindo, ainda muita luta para fazer. Deixa eu te perguntar, pensando assim nos aspectos culturais e profissionais e também na rotina, como que foi que o coronavírus impactou na vida de vocês? Além de todas essas perdas que a gente, que todos nós vivemos.
R − Eu não entendi direito.
P/1 − Assim, no aspecto... que de fato o Covid impactou drasticamente as nossas vidas, muitos dos nossos se foram, mas assim, além disso tudo, nos aspectos, assim, culturais e profissionais, na rotina, como foi que o coronavírus impactou a sua vida?
R − A gente era, como eu falei, a gente era acostumado a dançar aqui na associação com nossos parentes, então, como a gente não podia estar junto ali, a gente acabou já usando mais o celulares, através da conversa. A gente, tipo, não se aproximava, me aproximei mais da minha mãe, da minha família do que dos outros, porque eu não era muito assim. Eu era próxima sim da minha família, mas não convivia muito, porque eu viajava bastante e eu tinha sempre reunião. Isso pra mim. Mas aí, época do Covid, eu fiquei mais em casa com a minha mãe, fiquei mais em casa com minhas sobrinhas e com as minhas irmãs, então eu não tive muito acesso a outras pessoas, mas o meu trabalho continuou, como, estar ajudando outras pessoas e falava mais no celular. Então, e era isso, me aproximei mais da minha mãe e onde eu não me aproximava mais, já tinha um tempo que eu não ficava mais em casa. Através do Covid, fiquei mais.
P/1 − Isso mesmo, parenta. A gente já está se encaminhando para as perguntas conclusivas. O que você faz hoje?
R − Hoje eu sou uma artesã e, também, sou a presidente da associação, dessa que eu acabei de falar, e hoje trabalho com as vendas do artesanato do meu povo, dos meus parentes, da minha mãe também. Estudo também, estudo. E lutar pelo direito dos meus parentes. É isso que eu faço hoje. E estudo também, estudo. E é isso.
P/1 − Você tá fazendo faculdade?
R − Ainda não. Tô estudando ainda, como eu lhe falei.
P/1 − Ah, tá. Você está se preparando pra fazer então, pra entrar na universidade, é isso?
R − Sim. Quero fazer Direito para defender os meus parentes.
P/1 − Muito bom. Quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R − As coisas mais importantes para mim é minha família e lutar pelo direito do meu povo e não ver eles sendo humilhados, massacrados e quero ver, eu quero ver meu povo em geral bem, não queria que eles se corrompessem, eu queria que meu povo se mantivesse unido e se mexer, e se um branco prejudicasse um, que a gente saísse junto, na força, para poder lutar pelo direito dos nossos parentes, e também manter a cultura viva e sempre manter ela em, na frente, nas nossas tradições, na nossa língua, a nossa dança, para mostrar para nossos parentes. Isso que é importante para mim. E é importante para mim trocar saberes entre os meus parentes e onde eles estiverem, em qualquer lugar, que eles possam me ensinar e que eu possa aprender com eles e que eu possa ensinar a eles também. A gente sempre se manter unido e lutar pelo, por um objetivo, lutar pelos nossos direitos. Não falar que, pensar igual, porque ninguém pensa igual. Um pode pensar diferente, mas outro pode falar para o outro como dessa forma ajudar o nosso irmão. O importante é isso, se manter unidos. Só assim, através disso, a nossa união com a nossa população indígena do brasil, a gente vai se manter firme. Porque se a gente não se unir, tanto dos interiores, as comunidade, todos os contextos urbanos, a gente nunca vai pra frente. Onde o branco vai usar, terras indígenas foram divididas, onde a gente leva na cara. A gente não pode deixar isso acontecer. A gente sempre tem que se manter unido. Seja o que for, o indígena, não tem fronteira pra ele, o indígena é sem fronteira. Onde ele estiver, sempre vai ser índio e sempre ele vai estar na casa dele. Não existe o ex-indígena, sempre vai ser indígena onde ele estiver, em qualquer lugar do mundo, do Brasil ou do país, ele sempre vai ser índio.
P/1 − Isso aí, parenta. Muito bom. Quais os sonhos? O que você gostaria de deixar como legado?
R − O que eu quero dizer é que a nossa cultura sempre mantenha viva e que a gente nunca desista dos nossos sonhos e dos sonhos dos nossos filhos, dos nossos parentes, dos nossos irmãos. E quero aqui dizer: eu quero que a nossa cultura seja viva, a nossa tradição continue sempre viva. E falar: gostaria muito que um dia um indígena se tornasse um presidente do Brasil. Meu maior sonho, eu acho que mudaria tudo isso, mudaria o nosso sofrimento, mudaria muita coisa na nossa vida. Mas o que eu mais quero deixar é para os meus parentes indígenas, e dizer: a gente está aqui nesse mundo não é por acaso, cada um de nós temos objetivos e nosso objetivo é um só: lutar pelo nosso direito, trazer a união entre parentes e dizer que a nossa luta não começou agora e nem vai terminar agora. Pode ser que um dia nós descansemos, mas tem outro em nossa direção que vai estar preparado, que a gente prepare um indígena, os nossos guerreiros para estar no nosso lugar. A nossa luta não vai terminar. Mas eu quero aqui falar pra você, Márcia, e dizer: a nossa vida é feita um sopro, cada minuto, cada segundo as crianças nascem, vêm ao mundo e mais um minuto, a gente perdeu nossos parentes, guerreiros, entes queridos. E dizer: nós perdemos tantos, mas ganhamos muitos. Mas somos mais que vencedores; através de união, através de harmonia, nunca devemos parar de lutar pelo nosso direito e direito dos nossos parentes. Quero dizer: indígena Wapichana, indígenas que um dia vão ver esse vídeo, talvez um filho meu, uma irmã, sobrinha: nunca tenha vergonha da sua origem, porque nós indígenas temos que ter orgulho da gente, nós somos donos desse Brasil, somos donos dessa terra, então devemos dizer que nós estamos na nossa casa. E manter a nossa cultura viva e nunca deixar ela morrer. Pode passar bilhões de anos, mas o nosso sangue, a nossa força, a nossa tradição tem que se manter viva, ela tem que se manter forte para a gente resistir. Por mais que acabe, em geral, os indígenas, mas nunca vão acabar com a nossa alma. Eles podem nos matar, mas eles nunca vão arrancar a nossa raiz, onde ela sempre vai crescer e vai brotar. Por mais que eles nos matem, mas nossa alma eles nunca vão segurar. E a nossa força sempre, através de nós, que nós existimos, a gente vai existir naquela pessoa que vai se levantar para defender os parentes também. Por mais que a gente não tiver mais aqui, mas nossa força vai estar com aquelas pessoas que vão levantar para defender os nossos irmãos, os nossos filhos, nossos netos. E quero aqui dizer: nunca julgue um parente seu, nunca julgue uma mulher indígena, você está se julgando próprio, porque uma mulher indígena tem seus saberes, a mulher indígena tem sua beleza, uma mulher indígena é sábia e uma mulher indígena é você, somos mulheres guerreiras. Um forte abraço, que Deus abençoe e que Deus traga muita paz na nossa vida e na vida de cada um de vocês. Um abraço de Lucia para todos.
P/1 − Como é que fala Deus na cultura de vocês? Tu quer falar essa última parte na tua língua?
R − Pode ser. (falando em Wapichano).
(som de chocalho)
R − Eu posso falar uma coisa na minha língua?
P/1 − Pode! Fica à vontade. Pode ficar à vontade.
R − Tá. (falando em wapichano).
P/1 − Se você quiser dizer, explicar o que você falou. Se não, não tem problema.
R − Sim. Eu falei assim, que Deus vai nos cuidar, Deus vai nos ajudar no momento mais difícil da nossa vida, que Deus vai estar conosco quando as pessoas maldosas quiserem nos maltratar, Deus sempre vai nos proteger de todas as pessoas que queiram nos matar, acabar com a nossa raça. Mas Deus vai estar ali conosco.
P/1 − Muito bonito, muito forte. Aqui pra nós, Mura, nós chamamos... da parte daqui de onde eu sou, a gente chama, “Fala pra Deus” de Naamã Tuiki.
R − Naamã Tuiki? Legal.
P/1 − Isso. É o grande criador. Como foi pra você contar a sua história?
R − Foi um prazer, eu estou muito feliz de estar compartilhando a minha vida com você. Tem muitos algos que eu não compartilhei, porque, na verdade, eu já devia ter falado, mas eu creio que não era o momento ainda. Mas aí, eu estou muito, muito mesmo, feliz, satisfeita que você quis me propor a falar da minha vida, da minha infância, como viver aqui, é muito difícil, mas tem que se adaptar com tudo aquilo. Estou muito feliz também por ter conhecido vocês, por estar aqui conversando com outras pessoas. Quero mais isso, quero mais conhecer outros parentes, eu quero conviver com os meus parentes, eu quero sentir, quero abraçar enquanto eu estiver viva, quero lhe conhecer pessoalmente, quero lhe abraçar pessoalmente, quero aprender com você pessoalmente. Enquanto eu estou nesse mundo aqui, eu quero visitar os meus parentes, eu quero conhecê-los pessoalmente, eu quero saber o que eles comem, quero conviver um pouco, que eu tenho esse lado comigo, a minha mãe sempre diz: “Lucia, tu nasceu pra ser líder, minha filha”. Falei: “Mãe, eu amo, amo, amo o que eu faço e eu amo o meu povo”. Muitas pessoas me criticam por isso, meus próprios parentes, a Carmen, que está aqui do lado, sabe. Mas eu não consigo ser o que eu não sou, eu não consigo. Eu consigo ser assim: indígena, eu consigo chegar lá conversando, já tocando, já abraçando. Eu consigo ser assim, mas eu não consigo ser o que eu não sou. E estou muito feliz, ó. Conhecer você, conhecer as pessoas que me deram essa oportunidade. Quem sabe mais tarde aconteça de novo, quando eu estiver menos nervosa, que eu estou um pouco nervosa. E eu quero trocar os meus saberes com você, não quero que só, apenas através de vídeo, não, eu quero que isso seja sempre, seja todo dia, seja algo. Quando a gente fala sobre a gente, é fácil, mas ter amizade é outra coisa. Uma coisa muito importante na vida é ter amizade, estar bem com todo mundo, estar bem com aquelas pessoas. Pode ver ____________ vai superar. Sabe, eu sempre me mantive naquele... vem coisas terríveis pra mim, às vezes, eu choro, às vezes, eu falo: “Não Deus, você está comigo”, começo a rezar, rezo na minha língua. Às vezes, eu começo a cantar até em língua, ali, escrito tudinho na nossa língua. Aí naquele momento, me mantenho firme. Aí as pessoas já começam a mandar mensagens para mim, eu me mantenho forte através disso. Até hoje estou aqui em pé.
[Fim da Entrevista]
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