Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Maria Valdelice Amaral de Jesus (Jamapoty)
Entrevistada por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Ilhéus), 28/10/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV016
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 - Bom dia, parente! Eu agradeço pela tua vinda hoje aqui para conversar com a gente, essa linda história que a senhora vai deixar pro Museu da Pessoa, pro povo Tupinambá, vai deixar para as crianças, para os jovens e para todo povo brasileiro que vai assistir a senhora e também fora do Brasil, porque é um documento que vai ficar ali para valorizar a história das pessoas indígenas, então a da senhora vai estar ali. Gostaria que a senhora falasse o nome em português, o nome em indígena, pudesse se apresentar. Fica muito à vontade para contar um pouco da sua história, começando pelo nome.
R - _________! Bom dia! Eu sou a cacique Valdelice. Meu nome português é Maria Valdelice Amaral de Jesus. Meu nome indígena é Jamapoty, que na língua portuguesa quer dizer florescer. Sou Cacique, estou Cacique de quinze comunidades do Povo Tupinambá de Olivença, um total de 775 famílias hoje que eu lidero na aldeia Itapuã, que faz parte do território Tupinambá de Olivença. Mas eu nasci em Olivença, nasci, me criei a vida toda na beira mar, estive sempre em Olivença. Trabalhei e hoje fui a escolhida pelas 23 comunidades para representá-los em todas as esferas, estaduais, federais e municipais. Estou Cacique ainda.
P/1 - Em que ano a senhora nasceu? Quem escolheu esse nome para a senhora?
R - Eu nasci em 1962 em Olivença, na Estância Mineral de Olivença, é uma área de águas medicinais, águas ferruginosas, Olivença. A única estância que tinha no estado era Olivença, hoje tem o Balneário que faz parte da estância também. Esse meu nome foi escolhido num sonho, depois eu procurei ele para eu… eu sonhei, alguém me falou: “Seu nome vai ser… seu nome indígena hoje vai ser Jamapoty”....
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Entrevista de Maria Valdelice Amaral de Jesus (Jamapoty)
Entrevistada por Tiago Nhandewa
Entrevista concedida via Zoom (Curitiba/Ilhéus), 28/10/2022
Entrevista n.º: ARMIND_HV016
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 - Bom dia, parente! Eu agradeço pela tua vinda hoje aqui para conversar com a gente, essa linda história que a senhora vai deixar pro Museu da Pessoa, pro povo Tupinambá, vai deixar para as crianças, para os jovens e para todo povo brasileiro que vai assistir a senhora e também fora do Brasil, porque é um documento que vai ficar ali para valorizar a história das pessoas indígenas, então a da senhora vai estar ali. Gostaria que a senhora falasse o nome em português, o nome em indígena, pudesse se apresentar. Fica muito à vontade para contar um pouco da sua história, começando pelo nome.
R - _________! Bom dia! Eu sou a cacique Valdelice. Meu nome português é Maria Valdelice Amaral de Jesus. Meu nome indígena é Jamapoty, que na língua portuguesa quer dizer florescer. Sou Cacique, estou Cacique de quinze comunidades do Povo Tupinambá de Olivença, um total de 775 famílias hoje que eu lidero na aldeia Itapuã, que faz parte do território Tupinambá de Olivença. Mas eu nasci em Olivença, nasci, me criei a vida toda na beira mar, estive sempre em Olivença. Trabalhei e hoje fui a escolhida pelas 23 comunidades para representá-los em todas as esferas, estaduais, federais e municipais. Estou Cacique ainda.
P/1 - Em que ano a senhora nasceu? Quem escolheu esse nome para a senhora?
R - Eu nasci em 1962 em Olivença, na Estância Mineral de Olivença, é uma área de águas medicinais, águas ferruginosas, Olivença. A única estância que tinha no estado era Olivença, hoje tem o Balneário que faz parte da estância também. Esse meu nome foi escolhido num sonho, depois eu procurei ele para eu… eu sonhei, alguém me falou: “Seu nome vai ser… seu nome indígena hoje vai ser Jamapoty”. Eu falei, “Jamopoty?” “É!” E eu fui saber o que era, e ele ainda dizia: “Você vai florescer todo o território”. Como eu fui escolhida para ser a Cacique, eu não tinha nome de indígena, me chamavam pelo meu nome mesmo, de Valdelice. E eu fui homenageada por esse momento, que era o nome indígena. E assim, eu fiquei muito feliz, hoje as crianças me perguntam assim: “Vó…” As crianças aqui me chamam de vó. “Vó você vai sonhar o meu nome?” Eu falei: “Vou, mas na hora certa! Não me cobre, na hora certa a vó vai sonhar e vai lhe dar seu nome indígena”. Eles são muito empolgados, as crianças aqui em Itapuã. Eu nasci em 10 de maio de 1962.
P/1 - O dia do nascimento sempre é um dia muito especial para os pais, para a comunidade. Te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Porque assim, aqui sempre na roça eles fazem as bebidas, a bebida aqui e a bebida… meladinha que chama, que é uma cachaça misturada com todas as ervas, aí botam todas as ervas dentro, ela fica verdinha. E aí todo mundo que vai visitar, que vai lá vê quem nasceu, dá um gole nessa bebida. Aí disse que esse dia foi assim, foi uma festa, que meu pai também gostava de tomar um aperitivozinho, uma cachacinha, aí ele fez [com que] todo mundo que chegasse bebesse isso aí. E assim, eu fui uma das meninas quase caçula, somos dez, então eu sou a terceira das mulheres. E ela disse que foi muita alegria. Quando eu nasci não tinha hospital ainda, se tinha era muito caro para ir, então foi com a parteira. Eu nasci num lugar maravilhoso, que minha madrinha era minha mãe, ela que cortou meu umbigo, que era uma outra, aí quando a parteira chegou a outra já tava e aí foi muito feliz, porque eu tive duas parteiras, duas mães, duas madrinhas me acolhendo naquele momento da minha chegada.
P/1 - A senhora falou da tua madrinha, da tua mãe. Gostaria que você contasse um pouco da sua mãe? Um pouco dessa parte da família, se você pudesse falar um pouco da sua mãe.
R - Minha mãe chamava Nivalda Amaral de Jesus, ela nasceu em Olivença, a família dela é de Olivença, nativa de Olivença. Quando Olivença ainda morava só os indígenas, depois é que veio a invasão e entrou muita gente para dentro de Olivença. Mas quando ela morava as coisas não eram fáceis, ela era jovem, ela perdeu a mãe dela, a mãe dela tinha 39 anos, morreu de tuberculose, naquela época não tinha como cuidar. E ela foi criada com avó dela e a avó dela era minha bisa… foi criada ela é mais três irmãos, com toda dificuldade criou. A minha bisavó era tia de caboclo Marcelino, que era um líder também da história do Povo Tupinambá. E ela viveu ali naquele local, onde não tinha muita condição, mas ficou ali, já madura, já mãe, a juventude dela foi em Olivença. Depois casou com meu pai e viveu o tempo todo até ele falecer. Ela foi cuidar de criança da Pastoral da Criança, ela fez um trabalho belíssimo, por quinze anos ela trabalhou com a pastoral, é um trabalho voluntário, mas um trabalho de coração, de amor. Ela salvou muitas vidas com o apti mistura, muitas crianças desnutridas, que ela chegava nas casas e via os parentes. E isso ela foi fazendo um trabalho… as mães junto com as crianças e ela desenvolveu esse trabalho muito bom. Fez hortas dentro das comunidades, ensinou, fez muito xaropes, ensinou muitos remédios para cura. Ela benzia também! E aí ela começou esse trabalho de formiguinha que é juntar os parentes. E aí ela começou fazer o trabalho que talvez se fosse eu, eu não teria feito como ela fez, foi juntando os parentes, os parentes trabalhavam nas fazendas como sendo escravos, trabalhava, não tinha carteira assinada, não tinha nenhum direito garantido. E eles começaram a pressionar: “Olhe, você está indo para essas reuniões…” Mas ela fazia reuniões da Pastoral da Criança, juntava todo mundo e fazia o Dia de Vida, era um dia de sábado, um dia de domingo, era o Dia de Vida. Juntava todo mundo pela casa, naquele outro parente e fazia aquele sopão. E com isso ela foi vendo as necessidades da gente em recuperar o nosso território, já que nosso povo estava sendo escravizado. E aí eu já fui entrando também, fui trabalhar com Educação de Jovens e Adultos dentro das comunidades. Era uma coisa se ligando a outra. Nós tivemos apoio também, nos ajudou muito nesse momento, nesse momento com ela e a mãe de Núbia. E vários outros indígenas, indígenas mulheres que cooperaram com essa… e as índias da própria comunidade, que elas sempre foram as líderes das famílias. Dona Miguelina era líder da família dela, Dona Olga líder da família dela. Inclusive, elas foram no meu cacicado, quando me convidaram para ser a Cacique, elas eram minhas lideranças. Então, as líderes de família eram as lideranças, e isso ajudou também que mainha tivesse esse papel importante no território Tupinambá. Falar dela é emocionante para mim, entendeu? Porque ela ajudou muito o povo Tupinambá, na busca do seu reconhecimento.
P/1 - Eu quero retomar a pergunta a respeito do teu pai. Contar um pouco da história dele, quem era ele?
R - Você gravou do manto?
P/1 - Pode contar do início!
R - Dizer que Nivalda… ela reconheceu o manto Tupinambá lá no Museu na Dinamarca, e ela foi à São Paulo, pelo convite da Folha, do jornal Folha de São Paulo, para reconhecer. Ela nunca viu, a avó dela que contava que o mando estava num baú, que ele era usado pelo momento sagrado. Depois que levaram esse manto, nunca mais a aldeia foi a mesma, despedaçou, acabou, segundo o relato dela. Ela já sabia que ela era filha de Guara Vermelha e tal. Quando ela chegou em São Paulo, quando ela entrou, ela sentiu uma emoção muito grande, então ela foi andando, a emoção, os encantados, tudo acompanhou ela nesse momento. Que foi levar, levou ela no Manto Tupinambá, que tinham levado. Então esse é um registro que eu acho, acho não, tenho certeza que não pode deixar de estar esse registro dela com o Manto Tupinambá.
E falar de meu pai, é também um índio de Olivença, o avô dele era o Coronel Nonato do Amaral, que era índio, mas naquela época eles pegavam os mais sabidos para dar patente. “Você é o delegado, você é o Coronel”. Porque via neles que eles tinham um jeito de mandar. E ele ficou Olivença, Olivença só tinha indígenas, só morava indígenas. E ele nasceu em Olivença, a área que ele morava no campo São Pedro, acima de Olivença, mas depois eles vieram para a Vila, ficaram na Vila, conheceu minha mãe, ele gostava de tocar cavaquinho, gostava de samba, gostava de tocar… tudo que tivesse tocando ele gostava... do mastro, ele era um maestral, aquele que vai lá, que vê o mastro, que vai no outro dia cortar, na puxada do mastro em São Sebastião. E ele era festeiro, também gostava de fazer o festeiro da Bandeira Divino Espírito Santo que anda nas comunidades todas. Então ele se envolvia também com a comunidade, com esse trabalho. Depois ele adoeceu e aí ele veio a falecer. Mas ele, a vida dele toda foi em Olivença. Foi um bom pai, foi um bom marido também, ele cuidava da gente direitinho, castigava na hora certa, sinto saudades dos castigos, porque hoje nós não temos. Quem tem, tem que valorizar mais, seu pai, sua mãe, porque depois a gente não pode, depois é depois, depois não dá mais jeito em nada. Não é isso? Mas sempre presente ele.
P/1 - Para a família ficar completa, essa história aí, a senhora falou dos irmãos. Quantos irmãos a senhora tem? Quem são eles?
R - Dez! Nós temos dez irmãos. O mais velho se chama Luiz, encostado do mais velho, se chama Genilson, aí depois vem Maria Arli, depois vem Maria Goretti, depois vem Maria Valdelice, depois de Maria Valdelice, vem Paulo José, depois de Paulo vem Eduardo José, depois vem Gerson e depois vem Cristiane. Ainda tem outra, Gersonilda, tem Gersonilda, depois Cristiane. Cristiane é especial, é da família especial.
P/1 - A senhora tem uma lembrança de como foi a infância da senhora? Quando a senhora era criança. Se pudesse contar um pouco dessa história para a gente também.
R - De sessenta, voltar lá para os dez. Como eu morava perto da praia, morava ali onde hoje é um sítio, morava lá, tinha uma casinha, muitos coqueiros na praia, perto da praia de Ubatuba. Minha amiga era só uma prima que eu tinha, amiga assim de fora, uma prima chamada Marli, hoje ela mora em Vitória, mas era minha amiga, que eu saí de casa e ia para a casa dela, casa da minha tia, só isso aí. Mas Olivença, gostava de tudo de Olivença, ir para piscina, ir para a praia, mas eu gostava mais do que isso, gostava... não gostava muito de estudar. E aí, aquilo ali eu ia para escola, de manhã. Meio-dia… umas dez horas, quando era o recreio, eu falava: “Professora, deixa eu ir para casa!” Ela falava, assim: “Ir para casa? Dez horas, fazer o quê dez horas em casa?” Eu falei: “Eu quero ir para casa, porque eu quero tirar alguns cocos para vender, para ajudar a família". Aí ela ficava assim… quando eu falava assim para ela, era professora Hélia, ela falava assim: “Vá, mas faça o dever primeiro, depois me entregue, e vá.” Eu fazia o meu dever ligeiro para ir para casa. Quando chegava em casa... a situação nossa não era uma situação que tinha dinheiro, nada disso, era todo mundo fraco mesmo. Aí eu chegava com podão, tirava os cocos, botava no carrinho que painho fez de pau, e saía, fazia as bocas assim, porque não precisava vender gelado, nem nada. Hoje é gelado e tal. Não precisava nada disso, canudo também não precisava. Eu descascava o coco, vendia, depois eu saía, já ia para casa tirar mais, porque só um irmão meu mais velho sabe subir no pé de coco, só um, mais nenhum sabe, entendeu? Até eu nem aprendi, aprendi a atirar de podão, mas subi no pé de _________, só ele que sabe. Então a gente tem um pouco dessa vivência, mas era muito bom Olivença, onde a gente era livre, podia andar, subir, descer, sem ter que fazer nada. Não é isso?
P/1 - A senhora falou em trabalho, geralmente começa a trabalhar muito cedo para ajudar os pais. A senhora trabalha hoje… qual é a profissão da senhora hoje? A senhora lembra do primeiro trabalho?
R - Eu ia me casar, não me casei, o índio foi embora no dia do casamento, eu já estava grávida da minha primeira filha. E aí tudo isso aí já me deixou… aí eu comecei a trabalhar, assim que eu tive ela, comecei a trabalhar num supermercado, de arrumar, um pessoal arrumou para mim. E eu fui na minha inexperiência, ia fazer dezoito anos, mas eu precisava trabalhar para sustentar a menina que eu tinha. E aí a menina ficava com a minha mãe e eu ia trabalhar. Aí comecei a trabalhar lá na cidade de Ilhéus, ia e vinha todos os dias. Depois eu saí de lá e vim trabalhar em Olivença, num supermercado também, em Olivença. Aí já trabalhava no caixa, já tinham me ensinado, eu já aprendi, era muito inteligente para isso, para aprender as coisas. Aí eu fui, já comecei a trabalhar no caixa, no mercado de Olivença, aí trabalhei um tempo. Depois eu falei assim: “Ficar trabalhando para os outros não dá, eu preciso trabalhar para sustentar a mim e minha família e ter pelo menos um cantinho para morar. Que não dá certo você ficar morando na casa do seu pai a vida toda, você jovem pode morar lá, mas depois com filho, uma família, mesmo sem o pai, mas não tinha problema”. Aí sim, eu pedi para sair, pedi para sair e comecei, fui vender acarajé no Balneário, é muita gente, muito turista. Aí comecei a vender, depois botei uma barraquinha para vender, aí já tinha um menino, o menino já me ajudava também, as meninas já estavam maiores, aí já começaram a me ajudar também a preparar as coisas. E aí eu botei uma barraquinha também para vender Coquetel, era a noite. Depois eu comecei a fazer esse trabalho voluntário do _________, que era a Educação de Jovens e Adultos. Aí eu comecei a sair para dentro das comunidades, desses trabalhos todos, esse foi o que mais me enriqueceu, foi esse das comunidades, porque eu via as necessidades, eu via a fome, eu vi como as pessoas podiam viver com a semi escravidão.
P/1 - A senhora falou da luta, da luta da mãe da senhora, onde a senhora aprendeu, a inspiração da senhora, uma liderança frente ao território hoje continuando essa luta ancestral, vem lá de trás. Como está a questão do território hoje aí onde a senhora mora? A luta da senhora aí pela terra?
R - Quando a gente começou a fazer as retomadas, aí veio a preocupação, como única Cacique, tinha outras pessoas, outros parentes liderando algumas áreas, e se auto assumia Cacique nas comunidades que eles estavam. Em 2011 eu fui presa pelo juiz federal de Ilhéus, eu fiquei nove dias no presídio de Itabuna, fiquei presa 120 dias. Foi uma experiência também, pela luta da terra, porque a gente já tinha começado as retomadas, para a gente saber o valor do nosso trabalho, a gente precisa botar o pé na terra, e a gente não sabia ainda esse valor. Ia para as reuniões, participava de retomadas com os Pataxós, mas não tinha esse sabor do que é recuperar o que é seu. E aí a primeira retomada nós fizemos na Fazenda Limoeiro, e essa Fazenda… depois a gente teve reintegração de posse, saímos das áreas, voltamos de novo tudo para o seu canto. E lá vamos tentar de novo. E aí a gente vai começar a se organizar para tentar de novo, ver outras retomadas com outros Caciques também, mas essa foi a primeira e de um sabor meio amargo, porque com três meses nós tivemos que sair, o juiz decretou reintegração de posse, nós saímos, e logo o dono já fez porteira, fechou tudo, botou um segurança. E aí a gente ficou meio desanimado. Como é que a gente vai? A gente só tem arco e flecha e eles tem arma de fogo. E aí as coisas foram começando a acontecer, muitas mortes, muitos indígenas apareciam mortos, ninguém sabia de que, como foi que morreu. E aí a gente: “Vamos de novo, vamos de novo!” Porque o sabor só sabe se tiver com pé na terra, “mas então bora!” Aí veio a prisão, a prisão todo mundo ficou recuado. “A Cacique que foi presa, e agora?” Eu fiquei 120 dias presa, fiquei nove no presídio de Itabuna, mas quando a gente saiu, quando eu saí, saí mais recuperada. Foram 120 dias pensando, estratégia não, mas pensando que tudo tem que ter um porquê, um valor. Foi o que aconteceu. Aí eu procurei o procurador, falei: “Olha, hoje existem outros Caciques, eu não sou a única Cacique, eu sou a primeira Cacique do Povo Tupinambá, mas eu não sou a única, o que a gente vai fazer? Você precisa saber que existem outros Caciques, e quem está respondendo esses processos sou eu, eu não posso responder por todo mundo, eu só posso responder pelos atos que eu faço.” Aí ele entendeu a minha angústia, que eu tava, aí passou esses processos para os devidos Caciques que estavam naquelas localidades. Mas esse começo aí foi muito difícil, até porque a gente não tinha experiência de como ia fazer, como buscar os parentes para estar todo mundo junto, então foi muito… Mas valeu a pena, valeu a pena, sabe? Porque hoje quando você pensa… Hoje tem outros processos, tem alguns processos aí que já estão julgados, só pra eu cumprir, mas a gente tá dando, andamento aí para não cumprir e tal. Tem essas coisas todas, mas vale a pena, porque você luta por um coletivo. Certo? Nem Jesus agradou todo mundo. Mas muita gente me agradece hoje por estarem nas áreas retomadas, por estar morando lá, ter uma casinha, ter uma rocinha, ter uma vida totalmente diferente da que tinha antes.
P/1 - A senhora… que inspiração, eu aprendo muito. E a luta pela terra também é a luta pela vida. E a pergunta que eu quero fazer é mais recente. A gente luta sempre pela vida, desde muito tempo, quando é lutar pelo território e lutar pela vida. E como foi enfrentar o coronavírus, o Covid, chegou alguém da família falecer, ou da comunidade? Como foi lidar com esse vírus aí?
R - Nós estávamos em Brasília, quando nós chegamos, aí começou o surto, e aí todo mundo dizia que foi nós que viemos de Brasília que trouxemos, ainda teve isso. Nós perdemos sim, perdemos jovens, perdemos anciões, para o covid. E a gente sofreu muito, sabe? Porque quem vive da agricultura, mesmo aqueles que trabalham aqui… quem trabalha na escola, não pode ir para escola, quem trabalha no condomínio limpando as casas, não pode fazer. Quem não pode ir para roça… ia para roça, aí colhia, como é que ía vender? Então, tudo isso, todo mundo sofreu com essa covid. E assim, tivemos as nossas perdas dos nossos anciões, mas pelo total de indígenas Tupinambá, nós sofremos, lógico, porque quando você perde quatro, cinco pessoas, por uma coisa que a gente sabe que se o governo tivesse um olhar melhor, as populações, não é falar só por índio não, mas para a população mais carente do nosso país, as coisas seriam diferentes. Existem os recursos, mas como eu sempre falo, os recursos não chegam na ponta, a ponta que sofre. Então nós sofremos com o Covid, com o alagamento das chuvas, com estrada que não tem, tudo, tudo. O acesso até as comunidades é muito difícil, nós temos comunidades que dão até sessenta quilômetros daqui para dentro, da onde eu estou. E se você não tiver uma condição, tiver um carro, tiver uma ponte, não tiver nada disso para passar, você não passa. Se chover aqui alaga tudo. Então a gente sofre cada dia e a gente sabe que se a gente tiver um poder federal que olhe para as classes mais carentes… Primeiro a gente teria que ter a nossa demarcação de terra. As estradas a gente corre atrás mesmo, que você sabe que indígena não fica calado, não fica parado, ele sempre está em movimento. Quanto mais aqueles que ficam dentro de Brasília, de Salvador, que são as capitais nossas mesmo. Então eles têm mais um desenvolvimento para buscar, mas tem que olhar primeiro a ponta. Será que a ponta está se sentindo assim? O que a gente precisa fazer para que a gente ajude mais? Não é uma cesta básica que a gente precisa. O governo acha que mandar uma cesta básica para o povo, que o povo precisa de cesta básica, não é isso! Tem o momento da cesta básica, tem o momento da produção, tem o momento de tudo, da educação. Se der uma educação boa para os nossos jovens, nós amanhã temos doutores, temos professores, temos enfermeiro, técnico de enfermagem, temos todos eles capacitados para nos ajudar dentro da comunidade. Mas se não dá condição, como é que a gente vai ficar? Então tem que olhar. Acho que as pessoas, quem tiver no topo, precisa olhar para a ponta, não precisa olhar para o meio, olha para a ponta, que a ponta é o mais sofrido, que os recursos nunca chegam até aqui. Vamos falar dos nossos órgãos. A nossa FUNAI está desacreditada, tá defasada, está sem estrutura nenhuma. Se matarem um índio agora lá no meio, ele não pode nem ir lá, porque não tem carro, não tem combustível, não tem isso, não tem vontade, não tem amor pela causa. Mas para isso a gente precisa de pessoas que olhem para a gente com carinho, entendeu? Não é o índio brigão, não é o índio que fala, mas o índio que tem direitos, mas tem deveres também. Acho que o nosso direito está acima, está acima, mas a gente não consegue esse diálogo, entendeu? Esse diálogo não existe para a gente. Nossa terra ainda precisa ser demarcada, nós temos vários processos de reintegração de posse dentro do território, vários, vários. Se entra um malvado aí, reintegra tudo, todo mundo tem que sair. E aí vão morar onde as famílias que já constituíram a sua casinha, construíram sua roça, já tem ali o seu pomar, já tem ali o seu peixe na produção, já tem o mar perto. Mesmo que o mar não esteja perto, mas ele já tem a sua produção. E aí, vai fazer como? Vai deixar lá e vai começar do zero? Aonde? Já não tem mais idade. E tudo isso e um… Se você não começa, por exemplo, nós estamos esperando a demarcação… Nosso território já foi julgado no STF. Nós já ganhamos o direito de permanecer nele, só falta a assinatura da portaria, que esse só o próximo, esse aí não vai assinar mesmo. Assinatura da portaria. Por uma vez o ministro disse que assim que o documento chegasse ele assinava, o ministro não assinou. O presidente, é esse que tá aí, recebeu a gente com bomba, como é que ele vai assinar a portaria de terra, ele vai dizer que a gente é preguiçoso, só esperando cesta básica. A gente não quer a cesta básica do governo não, a gente quer dignidade, respeito a nossa causa, entendeu? Que nós sabemos plantar, nós sabemos cultivar, nós preservamos. Quem mais preserva? Os indígenas! Território que está preservado, onde é que tá? Nos indígenas. Por isso que eles estão destruindo a Amazônia. Por que eles estão destruindo? Porque eles querem avançar com a produção deles de gado, por isso que eles estão destruindo. Mas a gente quer preservar e vamos lutar até o final da nossa vida para preservar o nosso território, conservar nossas matas que estão aí, nossos pés de criação alternativa, nossos coqueiros nativos, não deixo derrubar um coqueiro nativo, ele é produtivo, ele tem cem anos, mas ele está produzindo. Não é porque ele está produzindo, é porque ele dá a melhor carne de coco que existe, o nativo. Então a gente vai preservar. Não é isso? A gente ainda é o povo da floresta, é o povo que luta.
P/1 - Bom, falando de toda essa luta, desde lá de trás até agora, eu gostaria também de perguntar, hoje, quais são as coisas mais importantes para a senhora? O que a senhora acha muito importante nesse momento para a senhora?
R - No qual sentido do muito importante?
P/1 - Assim, pensando nos sonhos. Que sonhos a senhora pensa, o que a senhora sonha para o futuro? Quer deixar alguma história, algum legado?
R - Eu ainda, porque assim, passei um tempo sem querer viajar. “Ah vai para viagem para onde?” Eu falei: “Olha, eu só posso ir para uma viagem que seja a viagem para demarcação do território.” Acho que não é um sonho, acho que eu como a primeira Cacique, eu com esses anos de luta, hoje eu tenho sessenta anos já, meu sonho é deixar essa terra demarcada, desentrosada. No nosso território já foi feito o levantamento fundiário, antes de assinar portaria, já tem um fundiário feito. Então nós precisamos demarcar o território. Porque o nosso território está sendo invadido. Invadido por grandes empresas internacionais, que vem aqui e: “Que belíssimas terras”. Eles acham que a gente não tem condições de ocupar a área do manguezal. A gente não quer ocupar o manguezal, porque ali tem vida, nós não vamos botar dejetos dentro do manguezal, porque tanto o mangue é vida, como a lama serve para pele, como as raízes servem para remédios, para banho, como todos os animais que estão lá servem para alimentar. Então para que a gente vai destruir? E eles querem vir colocar um grande hotel, querem vir fazer grandes pousadas dentro de um território em demarcação. Então a gente precisa lutar por esse território, cada dia eu vou denunciando. Meu sonho não para, meu sonho não para. Quando eu deito no travesseiro, eu durmo, não vou dizer que eu não durmo não, eu durmo, porque eu durmo com a minha consciência. Dizendo: “O meu trabalho eu estou fazendo, até o dia que Deus quiser. Na hora que ele dizer não é mais, que outro de continuidade”. Aí eu falo para as crianças o valor que tem o território, o valor que tem essa terra. “Ah, eu vou deixar minha terra aqui e vou morar em São Paulo”. Na viagem de São Paulo vai ser melhor, mas ele não tem estrutura nenhuma para morar em São Paulo, ele não tem um curso, ele não é formado, ele não tem um diploma para poder morar em São Paulo. E quem tem diploma lá em São Paulo também, não vai também ter uma boa vida, sabe? Então já está discriminado porque é índio, depois morou na roça, mesmo que estudou, tem uns técnicos aí, mas eles não conseguem arrumar uma coisa. Então é melhor você preservar o que é seu, conservar, fazer suas rotas e produzir, fazer a terra produtiva, produzir, quintal produtivo, fazer o que for, mas que você consiga sobreviver do seu próprio suor. Porque você valoriza. Então eles, eu falo sempre para eles, é preciso que eles fiquem no território. Não pense… se tiver dois, três que saiam, mas os demais fiquem no território para preservar essa luta. Porque às vezes os pais já estão velhinhos. Eles tão jovens, já dá para… Eles ficam iludidos, ir para Santa Catarina: “Ah, eu vou para Santa Catarina para ganhar dinheiro”. Chega lá não é a mesma coisa que morar na sua aldeia, na sua terra, na sua comunidade, você não tem vizinho, você não sabe nem quem é quem, entendeu? Se você cair lá, morreu lá, que ninguém quer saber, entendeu? Aqui não, se cair o outro acode, vem logo. Se um der uma dor, o outro tá ali para lhe dar um cházinho, alguma coisa. Mas você sempre tem um parceiro, porque essa é a vida do indígena. Quando ele sai, ele tem o pensamento de ajudar o seu povo e buscar coisas melhores para o seu povo. Mas eu ainda penso que se dois saírem, dez tem que ficar para sobrevivência do território. E o meu legado é esse, deixar terra demarcada.
P/1 - Muito bem! Vai dar certo! Eu tenho fé! Bom, eu acho que a senhora contou muito da história da senhora, talvez assim, alguma coisa que a senhora contou e talvez gostaria de acrescentar agora, para também deixar para a gente. Alguma coisa que não estava aqui nas perguntas, que a senhora acha importante também acrescentar. Se a senhora quiser, tem esse espaço também.
R - Eu queria, assim, que ficasse registrado, que vai ficar sempre na memória, vai ficar sempre… não, aquele vídeo que passou no YouTube, aquele, aquele livro, aquele, sei lá, aquelas palavras, mas eu queria dizer que a gente é muito aqui na nossa região, a gente é muito discriminado como índio Tupinambá. E aí eu digo que a gente, eles vieram aqui, destruíram tudo, cortaram toda árvore, tocaram até fogo, mas esqueceram que esse tronco tem uma raiz, e a raiz somos nós, que estamos aqui dizendo: “Nós somos”. Esse respeito tem que existir para sempre, esse respeito ao povo Tupinambá, o povo que nunca deixou seu território. Alguns foram expulsos, foram para Pau Brasil, outros foram para o extremo sul, foram expulsos, mas outros continuaram dentro desse território. Então esse território é nosso por herança, é nosso por direito, então nós vamos lutar para demarcar território, não queremos nada de ninguém, queremos que o governo faça valer o que está na lei, os direitos que está na lei, o território para seus povos originários, que nós somos povos originários desse território. Então essas são as minhas palavras para deixar como legado também.
P/1 - Bom, eu acho que está muito completa a história da senhora. E a última pergunta que eu gostaria de fazer é: Como foi contar a história da senhora?
R - Pra mim assim, é emocionante para mim, porque eu contar um pouco deu criança, contar minha adolescência, o meu percurso de trabalho. E depois a minha volta de novo para o território, para a luta do povo, que é essa que me engrandece, essa que me… talvez eu até pense, se eu pudesse eu nem tinha saído, eu tinha ficado. Mas eu precisava sair, tava escrito nas estrelas que eu precisava sair. E hoje tenho uma família belíssima, tem uma família grande, uma família Tupinambá, uma família que me considera, uma família que me respeita. Nós temos outros Caciques que também… quando eu falo: “Abaixa a cabeça”, tem esse respeito entre nós. E isso tem que ser falado para que as próximas gerações também tenham esse mesmo currículo de chegar, de saber respeitar, de saber entrar, de saber sair. Porque nós estamos lutando não por mim, estamos lutando por um povo, um povo muito massacrado, um povo que a gente lutou muito. E chegar onde chegamos, né! Hoje eu moro aqui na aldeia Itapoã, aqui era lixão e desova, hoje são 85 famílias que moram nesse local, onde têm suas casinhas, é de barro, mas umas já estão fazendo de bloco, mas continua a luta, continua a luta. Então esse é meu pensamento.
P/1 - Parente, eu gostaria de agradecer muito por esse momento de aprendizado, conhecer a história do povo Tupinambá. Eu nasci no estado do Paraná, me criei no estado de São Paulo, voltei para o Paraná, eu fiquei nesses dois estados. E fui ter mais contato com os parentes indígenas de todo o Brasil mais agora, depois de grande. Então toda vez que eu me encontro, gosto mais de encontrar pessoalmente do que através do celular, mas sempre é um momento especial. E essa história é especial e vai estar no Museu da Pessoa para todo mundo assistir no Brasil, fora do Brasil, para os Tupinambás e para todos os povos indígenas. Então eu agradeço pela oportunidade e assim que tiver tudo pronto a gente vai encaminhar. Agradeço muito, de coração! _________!
R - _________! Vamos se encontrar em Brasília aí! Se Deus quiser! No outro governo, num governo mais próximo da gente, onde a gente possa lutar pelos nossos direitos.
[Fim da Entrevista]
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