P/1 – Dora, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?
R – É Dora Lerner. Local e data? São Paulo. Sete de março de 1937.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Não, eles vieram da Europa.
P/1 – Que lugar da Europa?
R – Minha mãe veio da Polônia, ela nasceu em Varsóvia. E o meu pai veio da Ucrânia. Hoje pertence à Ucrânia. Na época, dizia ele que pertencia aquela região à Polônia.
P/1 – E eles se conheceram no Brasil?
R – Se conheceram aqui em São Paulo.
P/1 – Por que que eles vieram para cá?
R – Meu pai que teve a ideia de vir toda a família dele, que era composta por vários irmãos, cujo número eu não sei. Eu mais ou menos sei que eram em torno de seis irmãos. E ele, com dezesseis anos, resolveu vir embora. Porque eles passavam, naturalmente, muita dificuldade lá, com muita gente para comer e, sei lá, para estudar, não havia oportunidades. E ele veio embora sozinho...
P/1 – Só ele?
R – Só ele. Na verdade, naquela época, existia algo que se chamava carta de chamada. Eles não podiam vir se não houvesse alguém que se responsabilizasse por eles. Então, ele tinha um amigo lá, na região que ele viveu, na cidade de Lutsk, na Ucrânia, e esse amigo tinha um parente próximo que já estava morando na Argentina, em Buenos Aires. E esse parente chamou o amigo e ele também foi chamado por esse parente porque o amigo convenceu de ir embora também. Então vieram os dois, num navio de última classe, sei lá qual classe. E realmente eles eram pessoas que não tinham nada. Vieram em torno de, assim, em busca de alguma coisa melhor, de uma oportunidade na vida, porque lá eles realmente estavam passando dificuldades. Foi na época entre guerras, né?
P/1 – Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial?
R – É, a Primeira e Segunda Mundial, e se ele tinha aproximadamente dezesseis anos, dezessete, ele...
Continuar leituraP/1 – Dora, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?
R – É Dora Lerner. Local e data? São Paulo. Sete de março de 1937.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Não, eles vieram da Europa.
P/1 – Que lugar da Europa?
R – Minha mãe veio da Polônia, ela nasceu em Varsóvia. E o meu pai veio da Ucrânia. Hoje pertence à Ucrânia. Na época, dizia ele que pertencia aquela região à Polônia.
P/1 – E eles se conheceram no Brasil?
R – Se conheceram aqui em São Paulo.
P/1 – Por que que eles vieram para cá?
R – Meu pai que teve a ideia de vir toda a família dele, que era composta por vários irmãos, cujo número eu não sei. Eu mais ou menos sei que eram em torno de seis irmãos. E ele, com dezesseis anos, resolveu vir embora. Porque eles passavam, naturalmente, muita dificuldade lá, com muita gente para comer e, sei lá, para estudar, não havia oportunidades. E ele veio embora sozinho...
P/1 – Só ele?
R – Só ele. Na verdade, naquela época, existia algo que se chamava carta de chamada. Eles não podiam vir se não houvesse alguém que se responsabilizasse por eles. Então, ele tinha um amigo lá, na região que ele viveu, na cidade de Lutsk, na Ucrânia, e esse amigo tinha um parente próximo que já estava morando na Argentina, em Buenos Aires. E esse parente chamou o amigo e ele também foi chamado por esse parente porque o amigo convenceu de ir embora também. Então vieram os dois, num navio de última classe, sei lá qual classe. E realmente eles eram pessoas que não tinham nada. Vieram em torno de, assim, em busca de alguma coisa melhor, de uma oportunidade na vida, porque lá eles realmente estavam passando dificuldades. Foi na época entre guerras, né?
P/1 – Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial?
R – É, a Primeira e Segunda Mundial, e se ele tinha aproximadamente dezesseis anos, dezessete, ele falou que naquela época ele teve até que mudar a data do documento porque não podia sair antes dos dezoito. E ele foi para a Argentina e trabalhou com o tio desse amigo. Esse trabalho que o tio fazia me parece que era uma fábrica de colchões, uma pequena fabriqueta de colchões, e eles fizeram isso durante algum tempo, até que meu pai começou a fazer o papel de caixeiro-viajante. Ele conta, ele pegava...
P/1 – Lá na Argentina? Em Buenos Aires?
R – Lá em Buenos Aires. Ele tinha conhecimento já com várias pessoas, ele pegava a mercadoria dessas pessoas que fabricavam isso, aquilo, aquilo outro, punha numa mala e saía para vender e depois fazia o acerto das contas. Que eu saiba da história era assim. E ele veio com a intenção primeira de trazer o restante da família, só que a ideia desses imigrantes era que o ouro aqui corria pela rua ou nascia nas árvores, né? Eles não tinham ideia de que não era tão fácil (risos). Aí, quando ele chegou, ele se deparou com uma situação realmente difícil.
P/1 – Mas ele quis sair da Argentina com esse...
R – Não, eu estou falando da Ucrânia.
P/1 – Lá da Ucrânia.
R – Quando ele saiu, ele deixou mãe viva com muitos irmãos e a família inteira. Ele foi o único sobrevivente.
P/1 – Mas ele queria levar a família para Buenos Aires ou já pensava no Brasil?
R – Não, o que ele pretendia, não sei para qual lugar, o que ele pretendia era tirá-los de lá.
P/1 – Daquela situação.
R – Daquela situação. Só que como ele se deparou com uma situação aqui também difícil, ele não conseguiu juntar nada para poder mandar trazer ninguém. Quer dizer, ele não tinha condição de bancar a viagem da família toda, ele sozinho. E ele veio com essa intenção, só que aí eles não sobreviveram à guerra, nenhum dos familiares dele, e ele ficou sendo o único sobrevivente da família dele. Porque ele não tava lá, ele tava aqui.
P/1 – Morreram todos na guerra?
R – Todos.
P/1 – Em que momento ele decidiu vir pro Brasil, você sabe?
R – Então, no momento que o amigo dele... ah, da Argentina?
P/1 – É.
R – Ele como caixeiro-viajante, vamos dizer, foi vendendo a mercadoria dele pelo interior da Argentina, até que ele chegou ao sul do Brasil, ele conheceu o Brasil todo através deste trabalho dele. Então ele entrou pelo Rio Grande do Sul, depois subiu para Santa Catarina, Paraná, veio parar em São Paulo, em São Paulo a cidade já era uma cidade maior, ele achou que aqui ele teria mais oportunidades e acabou ficando. E ele fazia o papel de caixeiro-viajante sempre. Ia com mercadoria pelo interior, viajava para Minas, interior de Minas, interior do Mato Grosso, interior de tudo quanto é lugar, voltava e tornava a ir. Era assim o trabalho dele. Foi aqui que ele conheceu a minha mãe. Como eu não sei.
P/1 – Você não sabe como eles se conheceram?
R – Não.
P/1 – Não tem nem ideia?
R – Nem tenho ideia.
P/1 – E a sua mãe como veio para cá, você sabe?
R – Sei. A minha mãe teve mais sorte no sentido de família, no sentido de sobrevivência da família, porque o meu avô materno, meus avós maternos eram de Varsóvia. E lá também eles estavam em grande dificuldade financeira. Eles tinham oito filhos e não tinham possibilidade, assim, de sustentar esses oito filhos. Eu me lembro que minha mãe dizia que a minha avó era vendedora de batatas na feira. Era feirante lá. E aquela dificuldade muito grande de sustentar oito filhos. E eles resolveram, como não sei, não sei através de quem. Do meu pai eu sei através de quem, da minha mãe não sei. Provavelmente, naquela época sempre tinha algum parente que vinha para América, que eles chamavam América tudo, né? América era América do Sul, América do Norte, tudo era América. Então eles vinham com a expressão: “Vou fazer a América”. “Vou fazer a América” significava para eles ganhar muito, ficar rico, trazer a família toda, quer dizer, era o sonho do imigrante pobre. E o meu avô materno deve ter ouvido alguém que já tinha “feito a América” e que aqui estava se dando bem, mas para ele a noção de América não era bem América do Norte ou América do Sul. Eles não tinham essa noção. E principalmente porque eles não tinham cultura, eles não tiveram escolaridade, eles eram pessoas muito simples, né? Quando ele veio para cá, ele veio com os dois filhos mais velhos. Os rapazes que ele tinha como filhos mais velhos e ele tinha uma escadinha, né? Então, esses rapazes, esses dois rapazes com ele trabalharam muito para juntar o dinheiro necessário para mandar chamar a minha avó, a esposa do meu avô, mais o resto dos filhos. Aí veio toda a tropa. Juntamente com essa vinda do meu avô, depois vieram os irmãos dele com as respectivas famílias que também eram numerosas. E todos eles se, vamos dizer assim, se identificaram com São Paulo e ficaram aqui.
P/1 – Ele foi trabalhar com o quê?
R – Meu avô era um barato. Quando eu me lembro dessa história eu morro de rir, mas morro de rir. Meu avô, ele não tinha, é, vamos dizer assim, conhecimento da língua: zero. Conhecimento dos costumes: zero. Ele não sabia nada, para você ter uma ideia ele nunca tinha visto uma pessoa negra. Não existia lá na Europa uma pessoa de cor, não tinha (risos). Nem uma pessoa de outra raça, mesmo oriental eles não conheciam. Aquilo para eles foi um espanto. Me lembro que ele contava essas histórias, que ele se assustou. Sabe, a princípio ele se assustou e ele não entendia. Isso, isso é uma coisa que eu vejo muitos imigrantes falando, né, que todos eles tiveram essa mesma sensação. Eu me lembro que o meu avô, quando ele veio, ele tinha alguns conhecidos já aqui, aquela história que eu te falei, que alguém veio fazer a América primeiro, né, e já estava trabalhando numa boa, então deram para ele uma mercadoria. Ele tinha um parente distante que deu uma mercadoria que esse parente tava fazendo aqui. Era gravata. Meu avô ficava no jardim da Luz, com o braço assim esticado, feito uma arara, e um monte de gravatas penduradas, e ele ficava vendendo ali. O pessoal que passava, que ia pegar o trem, que vinha de trem, sei lá, ele e os dois filhos, assim, o dia inteiro. Pegava uma maleta com gravatas e pendurava no braço. Ele não tinha como se expressar, ele não sabia falar o idioma, então ele ficava mostrando o que ele tinha. E ele falava os números, né, os valores. Era isso que ele sabia.
P/1 – Sensacional.
R – É, muito, muito maluco.
P/1 – Ele contava isso para você?
R – Ãhn?
P/1 – Ele que te contou?
R – Ele me contou isso quando... Porque meu avô sobreviveu muitos anos à minha avó. A minha avó faleceu quando eu tinha cinco anos, eu mal me lembro dela. O meu avô viveu com a gente muitos anos e ele morou, inclusive, na nossa casa. Então eu tenho uma lembrança muito mais próxima dele. E as histórias que ele contava eram muito interessantes, né? Ele mesmo falava isso. Uma expressão dele que eu nunca esqueci, ele já velhinho, né, já com bengala, ele teve um AVC, ficou mal, depois se recuperou, mas ele dizia assim: “A vida é um sonho”. (Pausa). Ele sempre dizia isso. Que mais que eu posso me lembrar do meu avô?
P/1 – E aí seu pai e sua mãe se conheceram e foram morar onde? Que bairro que seu avô morava?
R – Bom Retiro.
P/1 – E seu pai?
R – Que era a porta de todos os imigrantes, na verdade.
P/1 – E seu pai? Seu pai também morava no Bom Retiro?
R – O meu pai eu não sei onde morava, só sei que meus avós maternos moravam no Bom Retiro. Por isso que eu te falei, eu não sei como eles se conheceram, em algum evento qualquer, não sei. Não sei.
P/1 – E seu pai e sua mãe, quando casaram foram morar onde?
R – Também no Bom Retiro.
P/1 – E você nasceu no Bom Retiro?
R – No Bom Retiro, eu nunca saí de lá.
P/1 – Você lembra como era a sua casa de infância no Bom Retiro?
R – Eu tinha algumas delas, alguns endereços. Onde eles nasceram, onde eles moraram quando se casaram, foi na esquina da Correia de Mello com a Rua da Graça. Era uma casa antiga, aliás todas as casas lá eram bem antigas, né? Não havia prédio nenhum, nenhum, nenhum naquela época. Eram casas mesmo do começo do século vinte, fim do século dezenove. Que eu me lembro. E a minha casa não era melhor, era desse tipo (risos) também.
P/1 – Como é que era o Bom Retiro naquela época?
R – Eram só casas, a Rua José Paulino era uma rua... eram ruas tranquilas, principalmente porque eu peguei na minha infância o período da guerra, da Segunda Guerra Mundial. Sendo de 1937, a guerra começou em 1939, né? Então, a minha infância foi tranquila, porque as crianças brincavam na rua, não havia automóveis, não havia gasolina, né, pros automóveis. Os poucos automóveis que havia, essa gente muito, muito bem, vamos dizer assim, muito bem na vida, financeiramente falando, é que tinha automóveis. A gente tinha o automóvel com o chofer da CMTC, né? Era só esse.
P/1 – E como é que era na sua casa, você teve mais irmãos, irmãs?
R – Eu tenho dois irmãos e com uma diferença grande, eu sou treze anos mais velha que o meu irmão mais novo. E a infância da gente foi gostosa, porque, como eu te disse, não havia automóveis, a gente brincava na rua, no leito da rua, tudo era na rua. A molecada corria o dia inteiro, a gente voltava da escola não tinha tempo de nada, era só jogar a malinha dentro de casa e já saía na rua para brincar. E não tinha nenhum tipo de restrição, de medo, a porta da minha casa vivia aberta. Pra você ter uma ideia, pra minha mãe não ter que abrir toda hora que a gente tocava a campainha, o meu pai fez um furo através da madeira e no trinco de dentro ele passou um barbante que passava por esse furo, e do lado de fora o furo recebia o barbante e ficava pendurado aquele barbante. Então, toda vez que a gente queria entrar em casa para comer uma banana, ou para tomar água ou para ir ao banheiro, a gente puxava aquele barbante. Quer dizer, qualquer pessoa que passasse na rua podia entrar na minha casa, né? Era simples assim. Hoje não existe mais.
P/1 – Quem que exercia a autoridade lá, seu pai ou sua mãe?
R – Eu acho que o meu pai era mais calado. A minha mãe era mais matriarca. (Pausa) Era. Era mais comandante.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Que eu me lembre a primeira experiência que eu tive, e que não durou muito, eu tinha acho que uns quatro anos. Depois, logo logo terminou essa experiência, não sei por que motivo. Aí fui para uma outra escola, talvez com seis, porque aos sete anos foi o segundo ano que eu estava nessa escola, o primeiro ano foi o pré e o segundo foi o primário. Primeiro ano primário eu já tinha sete.
P/1 – Que escola que era, você lembra?
R – Escola era Renascença, Escola Israelita Brasileira Renascença. Era uma escola judaica, era bilíngue. Na época era o Hebraico, um período em Hebraico e outro período do dia em Português. De manhã a gente estudava Hebraico, das oito às onze, voltava para casa, almoçava, depois ia para escola de novo. Então da uma às cinco era o período das aulas comuns.
P/1 – E como é que foi? Descreve esse período da escola, que lembrança você tem desse período?
R – Ah, tantas, né?
P/1 – Alguma professora?
R – Ah, eu tive professoras maravilhosas. Eu lembro com muitas saudades, porque naquela época as professoras, que eram geralmente do sexo feminino, né, no primário eu não tive... Eu tive professores do sexo masculino só para o Hebraico, para o Português, pro currículo normal eu não tive professores masculinos, só mulheres. E elas eram muito mãezonas, muito meigas. É o que eu me lembro delas.
P/1 – Você lembra o nome de alguma?
R – Lembro. No primeiro ano foi a dona Enedina, não sei o sobrenome. No segundo ano foi a dona Sílvia; no terceiro, eu já não me lembro; e no quarto ano foi a dona Maria Luiza.
P/1 – E qual delas te marcou mais, que você lembra da fisionomia, de alguma coisa delas?
R – A dona Enedina, do primeiro ano primário.
P/1 – E por que você lembra dela?
R – Ah, porque sei lá, eu também não sei por que, eu sei que eu gostava dela. E dona Sílvia também, do segundo ano. Eram pessoas meigas, carinhosas, eram mais mãezonas, né, porque as crianças eram menores, acho que elas tinham que dar mais carinho, não sei. Elas eram muito chegadas às crianças, eu não vejo isso mais hoje. Não vi isso nem com meus filhos e nem com meus netos. É diferente.
P/1 – E você era boa aluna?
R – Não. Era um horror. E, apesar disso, não sei por que, eu devia ser querida por alguma razão, não sei. Mas eu não era boa aluna, não, eu só me tornei boa aula, assim, uma aluna consciente, naquilo que, naquela época a gente chamava de Ginásio e hoje se chama de Ensino Fundamental II, né? Então quando eu já estava no segundo ano ginasial, que hoje corresponde à sexta série, é que eu tomei, assim, uma certa consciência do estudo. Do que eu devia estudar, do que eu devia aprender, eu não tinha a mínima... Meu interesse era só brincar na rua, o dia inteiro.
P/1 – (Risos.)
R – É, até meu pai me fez uma boa uma vez. Eu jogava a mala, puxava o barbantinho da porta, jogava a mala dentro, nem entrava, já corria para brincar. Naquela época, a rua que eu morava era a Rua Prates. Tinha uma porção de vilas, vilas que não tinham saída, então essas vilas eram o cenário da minha infância. A gente brincava ali de tudo. Era mocinho e bandido, era lenço atrás, era roda, era sei lá o que, amarelinha, um monte de coisas da época. Que a gente não tinha, na época, brinquedo nenhum. Os pais não tinham condição de comprar uma boneca. Eu não me lembro de ter tido boneca na minha infância. Eu só tive os brinquedos que a gente, as crianças mesmo produziam, né? Se a gente brincava de teatrinho, a gente pegava uma caixa e fazia um buraco, assim, na caixa, punha bonequinhos de pano que a gente mesmo elaborava. As crianças faziam tudo isso, né? Bola era bola de meia. Não tinha brinquedo manufaturado, não tinha Estrela e também eles não tinham dinheiro, os pais não tinham dinheiro para oferecer isso pros filhos, né? Hoje eu vejo meus netos com um quarto que não dá nem para eles andarem de tanta coisa. E eles não têm, eles não têm, assim, aquela imaginação que a gente tinha na época, né? Que a gente brincava com os recursos que a gente tinha na mão. Era bolinha de gude, eram coisas pequenas, né?
P/1 – Dora, e você ia como para escola, a pé?
R – A pé e sozinha. Eu me lembro de uma coisa muito engraçada. A minha mãe me levando para a escola no dia da matrícula, ela falou: “Vem, vou te pôr na escola”. Chegou lá, eu me lembro do...
P/1 – Você tinha seis anos?
R – Seis anos. Eu me lembro do, daquele senhor, que era o diretor da escola, ele sentado no lado da escrivaninha, a minha mãe na frente, eu do lado ali de pé, a minha mãe dando os documentos, fazendo a entrevista lá com ele, ele fazendo as perguntas. E no dia seguinte ela falou: “Você lembra como você foi para a escola?”. Eu falei: “Lembro”. E eu fui. Agora me pergunta como eu cheguei lá.
P/1 – (Risos.)
R – É, minha mãe nunca me levou, nunca foi buscar, nunca perguntou quanto era, qual era a minha nota, não sabia se eu fazia ou não fazia a lição, tanto é que eu não fazia. Eu tenho consciência que eu era péssima aluna, as minhas notas eram baixas, mas minha mãe nunca se importou. Eu acho que a culpa não é dela, a culpa é que ela não conhecia o idioma. Ela não tinha como se comunicar. E eu me lembro que eu falava o português igualzinho ao dela, tudo errado. Do jeito que ela falava, eu falava.
P/1 – Dora, na sua casa tinha costumes judaicos, assim, de seguir a tradição?
R – Eles seguiam tradição, mas muito, muito levemente. Eram só as datas mais importantes. E o sábado que eles faziam, isso quando o meu avô veio morar com a gente... Ah, na verdade não foi o meu avô que veio morar com a gente. Quando a minha avó faleceu, nós fomos morar na casa dele. (Pausa) A casa era dele.
P/1 – Aí fazia o Shabat?
R – Hein?
P/1 – Aí no sábado...
R – Sexta-feira à noite, que era o famoso dia religioso, né, para o judeu. Assim como é para o muçulmano, né? Então havia aquele jantar especial, só. E as festas principais, como para o católico, o Natal. A Páscoa, para nós também a Páscoa. Assim, essas datas mais, vamos dizer assim, mais marcantes.
P/1 – Você via a diferença, assim, na sua educação com a dos seus amigos pelo fato de vocês serem judeus?
R – Muita. A gente era muito discriminado, principalmente pelo fato de ser época da guerra. Quando eu morava no bairro, Bom Retiro, que eu morei a vida toda lá, nessas vilas que eu estou te comentando, mesmo na Rua Prates, havia muitas famílias de todas as origens. Famílias que vieram de todos os lugares da Europa. Era a época da imigração mais ou menos em massa, né? Que vieram famílias italianas, os portugueses, os espanhóis, e várias outras regiões da Europa também, né? Da Polônia, da Rússia, da România. Sei lá, de um modo geral, assim, da Europa toda, porque a Europa estava em crise. Era o pós Primeira Guerra, né? E eu me lembro que quando eu era criança, eu posso dizer que eu devia ter, na época da guerra, seis anos, por aí, né? Eu era discriminada, as crianças de outras origens não deixavam a gente entrar nas brincadeiras deles. “Ah, sai daí que você é judia.” Eu não sabia nem o que era ser judia, não tinha noção.
P/1 – Quando você era pequena isso?
R – É, eu não sabia. Não sabia qual era a diferença. Para mim, eles estavam brincando, eu tinha que brincar também. Então mais ou menos, essas lembranças desagradáveis, né, que foram acontecendo muitas vezes durante a minha vida toda. Não foi só durante a infância.
P/1 – E as comidas, tinha comida típica?
R – As comidas europeias que a minha mãe fazia eram típicas da Europa mesmo, do lugar de origem dela, da Polônia, né, que eram comidas que eles chamavam de comida judaica. Não era comida judaica, era comida local de lá, né? De judaico só tinha que eles absorveram essas comidas, só isso. Agora depois minha mãe entrou bem no feijão e arroz, na macarronada, tudo isso tinha na minha casa, eu já criança. O lugar comum do brasileiro, um bife, quer dizer, já mudou um pouquinho aquela comida típica dela, né? Ela foi aprendendo.
P/1 – Ela trabalhava fora ou só trabalhava em casa?
R – Ela trabalhava em casa e ajudava meu pai no trabalho dele.
P/1 – Aí seu pai estava trabalhando do que, ele continuava com...
R – Não, aí ele parou com essa história de ser caixeiro-viajante (risos), que acho que ele cansou, não sei, ele resolveu começar a produzir alguma coisa por conta dele. E ele era muito criativo, muito. Então, ele começou a trabalhar com peças de couro. Naquela época os homens usavam suspensório para as calças, então ele fabricava suspensório.
P/1 – Ai, que lindo.
R – Ele cortava o couro, ele mesmo produzia, ele mesmo costurava na máquina, ele que fazia, e levava essa amostra pras pessoas que tinham firmas onde ele pudesse mostrar o produto que ele tinha feito e vender. Aí, de acordo com os pedidos, ele ficava fazendo mais, mais, mais, entendeu? E a coisa foi crescendo e ele acabou se transformando num mini-industrial da área. Ele começou a fazer carteiras de couro, além dos suspensórios, pulseiras de couro pro relógio, cintos de couro para homem. Essas coisas.
P/1 – Foi crescendo?
R – Foi crescendo. Ele se tornou um industrial, entre aspas, né? Então a minha mãe ajudava ele nesse trabalho. O trabalho dele era feito, com eles não tinham condição financeira de alugar um espaço, ele trabalhava no porão da casa. Aquelas casas antigas que tinham aquele porão enorme, né, embaixo, que era um espaço, vamos dizer assim, não ocupado, ele fazia lá.
P/1 – Na casa de vocês?
R – É, era um porão embaixo da casa. Ele tinha uma mesa grande, que eu me lembro, né? E lá ele cortava, ele seguia os moldes e cortava com aquela faquinha afiada feito um “bisturizinho”, né, cortava o couro, depois costurava, depois, sei lá, tinha a maquininha que era, que punha aquelas presilhinhas. Eu me lembro assim, era bem artesanal mesmo, né, de industrial não tinha nada, mas era o começo de alguma coisa.
P/1 – E a adolescência no Bom Retiro?
R – Ah, foi muito gostosa.
P/1 – O que você fazia?
R – Ah, a gente tinha um grupo de pessoas, de meninas e meninos, fazíamos bailinhos, a gente ia ao cinema em grupo. A gente nunca tinha condição de alguém levar ou trazer, a gente ia e voltava a pé. Os cinemas eram todos na Ipiranga com a São João, era tudo ali, né? O cine Ipiranga, o Marabá, você já viu aqueles cinemas da minha infância, né, Ritz, Broadway, tudo ali na São João e na Ipiranga. Então a gente ia em turma, atravessava o jardim da Luz, todos moravam no bairro, né? Atravessávamos o jardim da Luz, íamos através da Rua Conceição, que naquela época chamava-se Conceição, hoje é Cásper Líbero, entrávamos na Ipiranga, íamos a pé até o cinema. E, quando a gente saía, a gente ia comer salsicha com pão lá nos Três Porquinhos, que também era na Avenida São João. Era um ponto, assim, de referência. Ou tinha, depois, Saladinha Paulista, que também era assim, era a turma toda de meninos e meninas que iam e voltavam. A gente podia andar por ali a qualquer hora. Não havia nenhum tipo de problema, ninguém nos seguia, ninguém nos importunava, nós tínhamos, na época, o quê? Doze anos, onze anos, treze, por aí, era tudo uma turma de molecada ali que se reunia e era o programa da semana. Fora isso, antes disso, a gente ia aos cinemas do bairro.
P/1 – Que eram quais?
R – Os cinemas do bairro eram Marconi e Lux. Marconi na Correia de Mello e Lux na José Paulino. Eram os cinemas do bairro. Antes da gente se aventurar, quando eu saí pro Centro, a gente fazia esses lugares. Era muito engraçado, gente, quando eu lembro do Marconi... Eram, assim, sessões que começavam à uma da tarde e terminavam às seis, seis e meia. Passava. À uma da tarde… a gente ficava doido para acabar de almoçar, eu e meu irmão, amolando a minha mãe, porque já tava demorando muito esse almoço, não saía, não sei o quê. Para a gente, e eu, assim, me lembro que não pode perder. Então à uma hora passava o Jornal do Brasil, aquele famoso do primo, né? Como é que chamava aquele horário em que fazia o Jornal do Brasil? Não lembro, eu não lembro. Depois passava uma comédia.
P/1 – Carbonari?
R – (corte no áudio) que é dos “Três Patetas” e aquele outro, o Carlitos, Charles Chaplin, sempre tinha algum filme. Tinha um filme que era um romance depois. Depois tinha o intervalo. No intervalo, as mães iam levar lanche pras crianças lá no cinema. Então as crianças esperavam na porta. Ou quem tinha um pouco mais de dinheiro para dar pros filhos, dava, para eles comparem o lanchinho dentro lá de um barzinho que tinha no cinema. Aí nesse intervalo a gente ficava fazendo a maior farra, né, porque todo mundo sabia fazer, como é que chama? Aqueles aviõezinhos de papel ou então rolar garrafa. O cinema era em declive, a gente punha a garrafa lá em cima, no meio, e ela ia rolando, fazendo o maior barulho, e a gritaria, aviãozinho que caía na cabeça da gente e que a gente jogava na cabeça dos outros, era assim. E aí começava a segunda parte, né, do cinema, que era um filme faroeste, geralmente faroeste, e terminava com um seriado, tipo novela de hoje: “continua na semana seguinte”. Sempre era assim. A gente ficava naquele suspense a semana toda: “como ia ser a continuação daquele seriado?”. E aí acabava a sessão, seis da tarde, seis e meia. Era muito engraçado.
P/1 – E bailinho, vocês faziam bailinho?
R – Fazíamos.
P/1 – E como que eram esses bailinhos?
R – Então aí, com a idade de quinze, dezesseis, a gente já tava na fase dos bailinhos, né? A gente juntava o grupinho que tinha interesse no bailinho, um deles tinha sempre uma vitrola e aquelas bolachas, né, aqueles long play (risos), e a gente levava para pôr. Era sempre na casa de um, ou no quintal de outro, sempre alguém tinha espaço. E era assim. Nessa época eu já estava morando no primeiro apartamento que eu morei na minha vida.
P/1 – Quê que tocava nesses bailinhos?
R – Fox, bolero. Acho que só. Que eu me lembre dos ritmos, fox e bolero.
P/1 – Você já tinha tido namorado aí ou ainda não?
R – Não, a gente só falava dos meninos, mas namorar, ninguém namorava. Tudo era muito, era muito difícil. Não podia acontecer (risos).
P/1 – Com quantos anos você teve seu primeiro namorado?
R – Acho que com quinze.
P/1 – Como é que foi?
R – Ah, foi coisa boba. De criança mesmo. Troca de bilhetinho, tchauzinho, espera na esquina, aí a gente foge por outra esquina para não ver (risos). Era uma coisa muito louca. Sempre aquela vergonha de dizer que tinha namorado. Não era orgulho, era escondido. Engraçado, né? É, que eu me lembro era assim.
P/1 – E aí, enfim, tinha os bailinhos e você não precisava trabalhar. Com quantos anos você começou a trabalhar?
R – Na verdade, eu sempre ajudei meus pais.
P/1 – Você ajudava?
R – Ajudava. Fazia a parte de bancos, tudo aquilo que eles precisavam eu ajudava. E ajudei, com meu irmão menor, a minha mãe com o meu irmão menor, eu era temporã. E que eu me lembro, assim, oficialmente que eu comecei a trabalhar acho que eu devia ter uns dezessete anos.
P/1 – Você foi trabalhar onde?
R – Numa escola. Fui trabalhar na secretaria desta escola.
P/1 – Mas aí você saiu do Ginásio, você foi para o Científico, Clássico?
R – Eu fui para o técnico de contabilidade. Aí eu parei por aí porque a minha mãe achava que mulher não podia estudar muito. Não devia. A mulher tinha que se preparar pro casamento, só. A cabeça dela era assim. Então, eles não deixaram que eu fizesse o curso superior.
P/1 – Mas você queria fazer?
R – Queria.
P/1 – Você queria fazer curso do quê?
R – De línguas. Era o que eu queria na época.
P/1 – E aí essa escola técnica por que você escolheu Contabilidade?
R – Ah, eu não escolhi, não. Escolheram por mim. Eu não escolhi nada. O meu pai achou que eu tinha que estudar perto de casa. Foi lá, fez a matrícula e “Vai lá, que é lá que você vai estudar”. Não tinha muitas perguntas pros filhos, porque os filhos não contavam como opinião. Eu me lembro que quando eu era bem pequena eu não permanecia num lugar em que estivessem adultos. Se estavam ali os adultos, eu tinha que cair fora. Eles convidavam a gente para sair: “Aqui não é lugar para criança, aqui é lugar só pros adultos”. A gente não participava de nada, também não aprendia muito, né? Hoje eles aprendem com a gente.
P/1 – E como é que foi seu primeiro emprego? Quer um golinho de água, linda?
R – Hum?
P/1 – Quer água? Nós vamos trocar a fita, parar um pouquinho. Tá bom lembrar?
R – Tá bom.
P/1 – Tá gostando?
R – Eu não sei se tá tendo lógica.
P/1 – Tá ótimo. Claro que tem. Cada história bonita.
R – É engraçado.
P/1 – É engraçado lembrar, né? Vai passando um filme, né? Quer um cafezinho?
R – Não, obrigada. Eu tenho, tem muita coisa que ficou na minha memória. Muita, muita, muita.
P/1 – Vamos falando.
R – Ah, mais voltar tudo para trás?
P/1 – Pode voltar. O que que você lembrou?
R – Ah, eu lembrei de umas coisas da época do meu pai. Nossa, como meu pai era criativo, gente, não acredito.
P/1 – Vou voltar no seu pai. Vou pegar um pouquinho de água, a gente vai voltar.
R – Vai. Rô, se estiver ruim, fala.
P/1 – Tá ótimo, princesa. Rainha! Rainha linda.
R – Eu que tenho um príncipe lá. Meus netos. Um eu chamo de rei o outro é o príncipe.
P/1 – E você é a nossa rainha. Rainha-mãe.
R – Rainha é a Gabi.
P/1 – Você chama ela de rainha?
R – Ela não gosta.
P/1 – Dorinha, nós paramos na parte em que você foi trabalhar, mas te ocorreram coisas da sua infância, vamos voltar. Você estava falando da criatividade do seu pai.
R – É, o que eu lembro, que eu acho, assim, extraordinário, é o fato de ele ter vindo realmente sem nada, apenas com o desejo de ser alguém e ele conseguiu esse objetivo até uma certa fase da vida. Como eu te falei antes, ele começou criando peças em couro. Ele arrumava os moldes, ele mesmo criava, ele mesmo fazia, cortava, costurava, bom, enfim, ele produzia aquilo que ele estava pensando em fazer. Depois, houve um período pós-guerra em que as importações começaram a acontecer. O Brasil começou a importar, na época, coisas dos Estados Unidos, e eu não sei te dizer como ele ficou sabendo disso, mas ele teve um interesse por plástico, que aqui não existia. Não havia ainda uma indústria ligada ao plástico. Então, eu não sei quem trouxe essa ideia para ele, porque eu era muito pequena para entender, para saber, e eu devia ter o quê na época? Pós-guerra… Sete anos, oito anos, talvez. Ele começou a importar rolos e rolos de plástico em fitas. Elas vinham, assim, como que, numa fita de cinema, de filme, fita mesmo. Como seria, por exemplo, falando de uma pulseirinha de relógio, o plástico vinha assim. Ele vinha em rolos imensos, o meu pai fazia essa importação dos Estados Unidos e aqui ele produzia, aquilo que antes ele produzia em couro, ele passou a produzir em plástico. Então, cintos, suspensórios de calças, pulseiras para relógios e “n” peças que ele ficava criando e produzia com esse material. E foi aí que ele começou a crescer financeiramente. Vinha um lucro em cima dessas coisas. Ele passou a vender para toda a 25 de Março. O atacado dele ficou lá, sendo lá, os compradores dele eram de lá. Eu conheço, conheci muito da colônia lá por causa dele. Ele me levava para acompanhá-lo quando ele ia fazer um pedido com o mostruário dele, ou ele ia fazer uma entrega, então às vezes eu acompanhava. Então, eu me lembro dessas cenas, né, esse pessoal de lá, como ele era recebido, bem recebido, carinhosamente. Depois dessa fase do plástico em rolo, ele começou a importar plástico em espécie. Era aquele poliuretano, um negócio assim. Vinham barricas imensas, que atravessavam a minha casa inteira (risos) e desciam pela escada da cozinha para levar pro porão. Ele continuava no porão da casa. Aí ele começou a ter máquinas injetoras. E ele, praticamente, que eu saiba, foi a primeira pessoa em São Paulo, não sei se no Brasil também, a produzir peças em plástico. Brinquedos em plástico, bonequinhos. Isso que você vê na 25 hoje, que depois a Toll fez, ele fez antes. Aí ele tinha que arrumar um espaço porque debaixo da casa, naquele porão, não havia mais lugar. Ele arrumou um espaço bem grande, lá no Canindé, um galpão enorme, e ele foi para lá com essa fábrica. Ele fez couro, a fábrica era com peças de três coisas. Ele produzia as peças em couro, que ele sempre produziu; depois as de plástico, era a sessão dos plásticos; e tinha uma sessão de metalurgia que ele fazia para uso dele próprio, para fazer as fivelas, os botões de tudo aquilo que ele produzia. Ele criou uma sessão de metalurgia. Então, ele não comprava metalúrgica de ninguém, as peças que eram de metal, por exemplo, para uma pulseira de relógio tinha a fivelinha, né? Então ele produzia essas peças. E, pros brinquedos, tudo o que ele precisava ele produzia na metalurgia dele mesmo, na metalúrgica dele. Então, eu achei que aquilo foi o máximo, porque como que ele conseguiu idealizar tudo isso, criar todas essas ideias dentro de um, dentro de um imigrante, de um… (celular da entrevistada toca)
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