A MÃO INVISÍVEL
No teatro da vida o destino encena dramas reais com enredos fascinantes. As peças em cartazes do cotidiano são representadas ao vivo nos palcos da existência.
No elenco, os protagonistas do texto constituem-se de seres humanos, mas os seus coadjuvantes, inúmeras vezes são interpretados por outras criaturas bem diferentes e inte-ressantes também. Por exemplo: um pássaro de bico recurvo ou apenas uma mão anônima, sem o braço. E, finalmente, uma cidade se destaca como fundo do cenário aos espetáculos.
1.ª PARTE
São Paulo, com mais de quinze milhões de habitantes, abriga em seus domínios uma formidável plateia que se mescla diariamente para assistir as suas múltiplas encenações, às vezes cômicas, outras bem românticas e algumas tantas, até bizarras.
Bem assim, direi que foi nesse colossal tablado da sobrevivência que representei o meu papel num melodrama social e urbano, típico de um cidadão metropolitano. Nele, sob os holofotes da providência e um público heterogêneo, tiveram inicio nessa apresentação as cenas do seu Primeiro Ato.
No palco, sobem as cortinas e as luzes da ribalta acendem.
Estávamos no final do Século XX. Numa típica tarde de verão, o sol, inclemente, abrasava a metrópole da garoa e impunha no ambiente um mormaço flagelante. A sensa-ção térmica extrapolava os 30ºC e a canícula até parecia fundir os ossos.
A silhueta da cidade fervilhava como nunca. Nas ruas e avenidas do centro, toneladas de veículos se engalfinhavam num trânsito malignífico. Nesse panorama urbano, barulhos desconexos, buzinas, alto-falantes, vozes, roncos de motores e o corre-corre de pedestres extravasavam-se em uníssono, num turbilhão de sons e estrépitos dinâmicos, os quais em-balavam os indivíduos numa convulsão frenética de ações. O calor, energia e vibrações impunham a esse burburinho louco um ritmo atemporal de movimentos.
Movido por uma espécie de idiossincrasia, isto é: o...
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No teatro da vida o destino encena dramas reais com enredos fascinantes. As peças em cartazes do cotidiano são representadas ao vivo nos palcos da existência.
No elenco, os protagonistas do texto constituem-se de seres humanos, mas os seus coadjuvantes, inúmeras vezes são interpretados por outras criaturas bem diferentes e inte-ressantes também. Por exemplo: um pássaro de bico recurvo ou apenas uma mão anônima, sem o braço. E, finalmente, uma cidade se destaca como fundo do cenário aos espetáculos.
1.ª PARTE
São Paulo, com mais de quinze milhões de habitantes, abriga em seus domínios uma formidável plateia que se mescla diariamente para assistir as suas múltiplas encenações, às vezes cômicas, outras bem românticas e algumas tantas, até bizarras.
Bem assim, direi que foi nesse colossal tablado da sobrevivência que representei o meu papel num melodrama social e urbano, típico de um cidadão metropolitano. Nele, sob os holofotes da providência e um público heterogêneo, tiveram inicio nessa apresentação as cenas do seu Primeiro Ato.
No palco, sobem as cortinas e as luzes da ribalta acendem.
Estávamos no final do Século XX. Numa típica tarde de verão, o sol, inclemente, abrasava a metrópole da garoa e impunha no ambiente um mormaço flagelante. A sensa-ção térmica extrapolava os 30ºC e a canícula até parecia fundir os ossos.
A silhueta da cidade fervilhava como nunca. Nas ruas e avenidas do centro, toneladas de veículos se engalfinhavam num trânsito malignífico. Nesse panorama urbano, barulhos desconexos, buzinas, alto-falantes, vozes, roncos de motores e o corre-corre de pedestres extravasavam-se em uníssono, num turbilhão de sons e estrépitos dinâmicos, os quais em-balavam os indivíduos numa convulsão frenética de ações. O calor, energia e vibrações impunham a esse burburinho louco um ritmo atemporal de movimentos.
Movido por uma espécie de idiossincrasia, isto é: o estado de espírito exteriorizado por uma competitividade sem tréguas – eu burilava prazeres e sofrimentos – para chorar sem lágrimas e não me afogar em risos.
Nesse dia de veranico o meu vulto caminhava a esmo pelas calçadas e portava a im-pressão de estar rolando dentro de uma betoneira, sendo triturado e compactado como um pedrisco misturado à massa humana. Direi que, na realidade, eu andarilhava ao sol, sem endereço certo, de um lugar a outro, derivando pelas ruas da cidade no encalço de uma oportunidade de trabalho ou um quebra-galho que me suavisasse as aflições.
Naquela época eu amargava uma grande provação, cuja extensão de quase três anos, me lançara em apuros. Segundo o alheio, encontrava-me em palpos de aranha: sem em-prego, sem dinheiro, sem crédito, bem endividado, e, acima de tudo, litigiava o divórcio do meu primeiro casamento. Talvez esse drama fosse uma espécie de bovarismo que atur-disse a minha razão, mas, na verdade, eu pressentia que uma máscara negra encobria os olhos das minhas perspectivas às esperanças vindouras. Naquela via crucis mortificante eu não enxergava a luz no fim do túnel. A minha cegueira inconformista fazia com que desa-creditasse do futuro e me plantasse semelhante um bocório fracassado no presente. Além de tudo, eu blasfemava:
...“Não é plausível que haja alguém nesta cidade que seja tão estigmatizado quanto eu! ...Deus certamente me desamparou! ...Sou um proscrito às bênçãos celestiais!”.
Assim me rebelava contra a existência, sem compreender a alquimia do destino. O efeito daquela situação não explicava a causa das minhas aflições.
Nesse meu perambular pelo centro da cidade, recordo-me de que atravessava a Praça da República, quando notei no seu interior os convidativos bancos de madeira aferrados ao chão. Ali, eu tive a intenção de sentar-me num deles para espraiar sob a sombra dos arvo-redos locais. Sob o bombardeio do sol abrasante aquele ambiente arborífero se apresentava suave e refrescante. Também no centro do aprazível logradouro estava o tradicional core-to, bem contemporâneo, já remodelado e todo repintado de branco, onde alguns pombos ali permaneciam pousados sobre seus beirais de cipreste.
Foi lá, defronte daquele palanque pitoresco que ouvi uma plangente harmonia, e cujo som percutia suave contra a porta sensorial da minha ofuscada percepção. Estanquei os passos, contudo, não me sentei. Em pé, os meus tímpanos absorviam aquela música estere-ofônica, afável e sensual, a qual fluía alegremente de uma caixa de madeira, contendo nela um engenho mecânico, melodioso e quase lúdico.
Aquela sonoridade agradável à audição parecia estar sendo entoada por um virtuoso concertista. Porém, tal mecanismo era movido pelo girar de uma manivela metálica, atra-vés da mão direita do seu executante singular, sendo este, um velhote simpático, de olhos zarcos vivazes e barbas bem alvas, quase proféticas. Observando-o de perto, notei que o mesmo estava com o braço esquerdo coberto por um tecido escuro, sobressaindo no seu busto gracioso, somente o cotovelo sempre semidobrado.
Foi assim que pude apreciar o formidável realejo ali na praça. Eu me apresentei a ele
embevecido por sua mágica melodia, mas foi de afáveis saudades que o mesmo embalou o meu tristonho coração às felizes reminiscências de outrora.
2.ª PARTE
No universo das prognosticações existem os jogos e suas previsões; probabilidades e matemáticas; vidências; profetismos; charlatanismos, além de diversas obscuridades que vão além das suas interpretações, e, às vezes, bem acima das nossas rudes compreensões.
O certo é que tais fatos interagem no cotidiano urbano com muitos personagens, os quais intensificam suas ações nas grandes cidades para a demonstração ao público. E não sem razão, tais exibicionistas e previdentes realizam inúmeras peripécias pelas praças, por servirem elas como palcos livres, propícios e agradáveis às suas atividades. Nesses locais apresentam-se diversos artistas anônimos, comediantes facetos, mambembes, funâmbulos, saltimbancos, ilusionistas e fantoches, entre tantos números sui generis.
Dessa forma, o Segundo Ato encenava no palco existencial o seu espetáculo.
Ao me deparar na Praça da República, ao pé do coreto, com o encantado realejo ento-ando sua deleitosa melodia, o que mais chamou a minha atenção naquele instrumento foi um pequeno pássaro, da ordem dos psittaciformes, ou seja: um mítico periquitinho verde já adestrado. Esse exemplar psitacídeo possuía manchas brancas no peito, pupilas verme-lhas redondas e um biquinho recurvo amarelado. Assim que o som da máquina musical vibrava, a alvissareira ave atuava. A mesma, com o seu corpúsculo emplumado, adentrava através de um pequeno orifício arredondado na caixa, recolhia dela um cartãozinho lacra-do e saía com ele no biquinho para entregar uma mensagem de sorte impressa, destinada a contemplar quem fosse o seu fortuito pressagiado.
Ao contemplá-los ali na praça, deveras, fiquei bastante surpreso quando o simpático velhote de barbas alvacentas convidou-me a pegar um daqueles prognósticos que o seu pe-riquitinho distribuía ao som da encantada caixa movida à manivela. Esta era articulada por sua mão direita. Como o seu braço esquerdo mantinha-se coberto por um pano escuro, ele me apontava piscando gestualmente com os olhos zarcos a boqueta da caixa, para que eu colhesse o bilhetinho do bico recurvo do pássaro sortílego.
Estava estipulada pelo cartão da sorte uma irrisória importância. Contudo, diante da situação em que me encontrava, eu lhe argui:
– Obrigado senhor, mas hoje estou sem dinheiro!
Olhando-me bem nos olhos, o velhote sorriu e falou com ênfase:
– Ora amigo, não se preocupe com isso! ...– Apanhe já a sorte lançada a teu favor no
bilhete! ...– E não precisa me pagar nada, pois essa é uma cortesia do Calipso, o carinato do bom destino.
Entusiasmado, aceitei o convite. Colhi então, discretamente, o cartãozinho que estava no bico do pássaro e fui lê-lo num dos bancos de madeira ali mesmo na praça. Abrindo-o, cerrei meus olhos e pensei com os meus botões:
“Eis mais um artifício que inventaram para ganhar dinheiro fácil!”.
Assim eu pude apreciar a indelével mensagem inserida no interior daquele cartãozi-nho amarelado, em cuja frase impressa, se predizia:
“Você entrou num inferno astral, mas sairá dele através da ‘sagrada mão’ da provi-dência, que nunca o desamparou... Confie nela e Boa Sorte! Calipso”.
Após ler aquele cartão premonitório, introduzi-o no bolso da minha camisa com a intenção de devolvê-lo ao velhote e agradecê-lo. No entanto, quando dei por fé, o mesmo havia se retirado do logradouro e não pude saber qual o rumo que ele havia tomado.
Esqueci-me do ocorrido e fui embora da praça. Os meus pés pareciam estar atolados numa espécie de areia movediça. Eu me movimentada devagar, quase rastejando os sapa-tos pelas calçadas, sem qualquer pressa e motivação para voltar à minha residência. A fé em algo positivo me abandonara por completo. Na verdade, eu me sentia down.
Confesso que dentro daquele cataclisma emocional eu não alimentava nenhum alento aos meus problemas. Talvez fossem os pensamentos negativos que me impediam de andar mais rápido. Assim, letargicamente, consegui cruzar o portão de casa naquele fim de tarde.
Todavia, a expectação sortílega não blefara comigo. Recostado à cama no interior do meu refúgio, saquei do bolso da camisa o cartãozinho venturoso que apanhara do biqui-nho da caturrita e o relia dezenas de vezes:
“Você entrou num inferno astral, mas sairá dele através da ‘sagrada mão da provi-dência, que nunca o desamparou... Confie nela e Boa Sorte! Calipso.”
Ali, no recôndito do meu aposento, como um monge enclausurado, eu meditava na-quelas palavras, cuja mensagem ia repondo as minhas forças e me dotando de novas ener-gias como se eu tivesse ingerido uma porção de espinafres do marinheiro Popeye.
Nisso, como num passe de mágica, aflorou em meu peito a esperança de reabrir uma nova vereda e caminhar por ela. Conforme eu ia rememorando as frases do bilhete, pude entender o sentido empregado nas palavras nele inseridas. Positivamente, fixei na minha percepção sensorial a mensagem que o periquito, aleatoriamente, recolhera para me entre-gar e acreditei nela. Resumindo: lancei-me aos braços da providência alada do destino.
Naquele instante tive a impressão de que uma torrente dulcificante espargia suas águas
águas sobre meu cérebro e apagava nele o fogo abrasador que até então queimara o meu discernimento. Sim, eu pressentia que algo refrigerava o meu ser, querendo puxar-me para fora daquele inferno astral vegetativo. Não obstante, eu ainda excursionava sem rumo, a vagar pelos túneis do meu inconsciente infeliz, sendo punido também por minha consci-ência um tanto recalcada e sofredora, a qual submergia minha razão ao fundo do abismo.
Faltava apenas uma forte mão para me arrancar daquele atoleiro. Eu não a via e nem imaginava que a mesma estivesse oculta em algum lugar. Apenas refletia mentalmente:
“Quem poderia estender a mão amiga para mim?”.
Nestas turvas divagações, sem que eu percebesse, uma espécie de letargia algemou o meu corpo com o seu manto tenebroso, a fim de imergir o meu espírito no lago sombrio de eterna escuridão.
3.ª PARTE
A noite desabrochara vertiginosamente no final daquele dia de veranico. Nos céus, o plenilúnio prateado abastecia a Terra, deixando à mostra os contornos do dragão de São Jorge. No firmamento estrelado, o Cruzeiro do Sul resplendia suas luzernas no hemisfério austral, e, no zênite, cúmulos planavam sonolentas, passivas e quase estáticas.
O Terceiro Ato tomava seu curso nesse enredo.
Em casa, após o banho e uma refeição frugal, o único alívio à minha turvada cabeça, foi recostar-me num travesseiro e adormecer de tristeza. As emoções do dia e o cansaço lançaram-me rapidamente aos braços de Morfeu. Ato contínuo, uma súbita visão incidia:
“No meio daquela noite, no interior de um clarão onírico eu pude contemplar que a porta do meu quarto abriu-se. ...Entravam por ela três potentes mãos, sem os braços, uma diferente da outra, as quais flutuavam no ar como se fossem vassouras mágicas. ...Os dedos de uma delas, semelhantes a tenazes, me alçaram para fora da cama. ...Em seguida, ataram os meus punhos com fortes algemas douradas e me colocaram dentro de uma caçamba es-férica. ...As outras duas mãos descerraram a tampa de um poço atro e lançaram a caçamba dentro dele. ...Essa era impulsionada por uma longa corda prateada, a qual submergia a um negro abismo. ...E quanto mais a caçamba descia, bem mais tépido o poço ia se tornando embaixo. ...O ar ficara rarefeito e a escuridão imperava absoluta no seu trono. ...Eu pas-mara totalmente. ...Logo após uma descida célere e vertiginosa, a caçamba desacelerou e lentamente foi parando, como se estivesse programada ao fluxo gradual de um elevador. ...A poucos metros acima de um tenebroso lago de enxofre e lavas ferventes, ela, final-mente estacionou”.
“...Eis que chegávamos subitamente ao limiar do inferno, cujo aspecto sinistro era por demais lôbrego. ...Tratava-se de um pavilhão assombroso, todo esfumaçado e incandesci-do, onde um fogo rubro e intrépido flamejava sem cessar. ...Labaredas frenéticas lambiam o dorso da caçamba e o calor apresentava-se terrificante. ...O fundo daquele orco tétrico permanecia iluminado pelas chamas abrasadoras do lago. ...Daquele pavoroso mar de la-vas escaldantes ecoavam uivos lancinantes de feras e gritos estertóricos, os quais ressoa-vam como um turbilhão no umbral. ...Hedionda aparição!”.
“...Assim que fixei os olhos naquele espelho ígneo, pude observar que no seu interior havia uma infinidade de espectros sombrios, semelhantes a vultos humanos, os quais grita-vam sem cessar e com as mãos para cima, se contorciam de dores. ...Os espectros deba-tiam-se em vão, pois não tinham como escaparem dali. ...Os sofrimentos daqueles vultos pareciam ser inexauríveis e as suas expressões de tormento eram sempre devoradas pelas chamas no interior da inclemente fornalha. ...Eu visualizava um espetáculo dantesco, de indescritível suplício de almas”.
“...Diante daquela virtual contemplação, fiquei aterrorizado, pois sentia que parte daquele fogo abrasava a minha mente. ...O meu corpo já suava em bicas quando então passei a clamar desesperado:
...Socorrei-me, oh Deus! ...Tirai-me daqui com tuas mãos! ...Já não aguento mais!”.
“...Minha expectação de não sair dali parecia suplantar as aflições que ardiam o meu espírito. ...Em seguida, uma força invisível puxava a corda e a caçamba para cima. ...Eu olhava para o alto e podia divisar bem distante uma tênue luz no diminuto bojo da cratera. ...Ali, por breves instantes, logrei avistar três mãos potentes, as quais, anteriormente, já ha-via distinguido no interior do meu quarto, mas que naquele momento apareciam nítidamen- te na borda do poço. ...Notei naquelas mãos, que duas delas estavam recobertas com penas coloridas e os seus dedos possuíam aspectos de garras áquilas, em cujas pontas apresenta-vam bicos recurvados semelhantes aos dos pássaros psitacídeos. ...Essas mãos enrolavam a corda através de uma manivela acoplada a um receptáculo metálico que havia no interior de uma estranha caixa retangular. ...A outra manopla, sozinha, completava a ação e puxa-va pela corda prateada a caçamba, a qual ia subindo devagar através do tenebroso túnel”.
“...Chegando à boca da cacimba, surgiu um aprazível clarão e as algemas douradas que me atavam à caçamba, abriram-se. ...Já fora da mesma eu clamava por água, pois o calor e a sede me deixaram torturado. ...Ato contínuo, eis que surgiu na ponta da corda prateada, já atado nela, um balde d’água refrescante, o qual ia sendo derramado em porções sobre mim, e banhava o meu corpo como se fosse ele uma batata fervente, sendo esfriada do imenso calor”.
...Naquele instante eu exclamava:
...Ufa, que alívio! ...Graças a Deus, posso enfim sair desse abismo!
“...Na sequência pude ouvir uma suave melodia que vibrava no espaço, no entanto, aqueles sons vertiam da caixa onde fora enrodilhada anteriormente a corda para elevar a caçamba. ...Logo, como se eu tivesse tocado num comutador elétrico, uma leve e imper-ceptível claridade batia em meus olhos e iluminava inteiramente o recinto do meu quarto”.
Sim, naquele momento eu despertava completamente encharcado de suores.
Olhei ao redor e consegui então deduzir que todas aquelas visões haviam sido um so-nho cruel e estarrecedor. Nesse pesadelo eu fora projetado ao inferno, contemplara o hor-ror e o suplício de almas, num espetáculo indescritível, sombrio e ignescente.
Eu não pude precisar exatamente o tempo em que ficara mergulhado naquele abismo escaldante, o qual me pareceu infinitamente longo se comparado com o período da dimen-são temporal terrena. No entanto, tudo se transcorreu no espaço de poucas horas enquanto eu dormia pesadamente.
Já bem desperto daquele horrendo torpor, regozijei ver que estava vivo e permanecia sentado sobre a minha cama, quando o pêndulo do relógio na parede do meu quarto tangia seis badaladas e anunciava que um novo dia chegava a galope.
O sol já estampava o seu rubro sorriso nos quadrantes do horizonte, e eu, naquele preciso momento, ponderei: “Vamos à luta que os pássaros já estão voando”.
“O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã.” (Salmos, 30:5).
EPÍLOGO
Chegara o outono. A natureza confraternizava com os seus hóspedes as bênçãos ce-lestiais. Os jardins floresciam e a relva recobria a Terra. Os pássaros modulavam os seus gorjeios numa exultante sinfonia. Havia alegria e regozijo nos ares. O sol hasteara a sua bandeira nos céus e seus raios invadiam os recantos da biosfera.
Novos rumos, novas aspirações e nova esperança. As luzes do teatro da vida ainda permaneciam iluminadas. Dentro dele, a última ária seria entoada pela magistral orquestra da Providência Divina. Sim, o espectro negativo que me rondara a mente já se despedia das minhas temíveis aflições. O médico prescreve e Deus cura. Esse era um prenúncio de portas abertas e libertação.
Decorridos alguns dias fui convocado a preencher uma vaga de emprego e em seguida encaminhado a exercer atividades numa editora. Esforcei-me com perseverança. Elaborei um bom planejamento, e meses depois, já saneava boa parte das minhas dívidas para reco-locar a casa em ordem. Rapidamente readquiri a confiança no futuro e passei a acreditar em mim como um grado vencedor.
Finalmente me divorciei e casei outra vez. Daí a paz incensou o meu espírito de felicidade. A alva irradiou sorridente em meus caminhos.
Posso afirmar que um drama infeliz também faz parte das grandes encenações e seus dilemas podem acabar num final feliz. Desejo salientar que diante de tais episódios, nada é previsível para os que passam por eles.
Enfim, compreendi que acabara de ensaiar o Quarto e último Ato no palco do des-tino. Já não me sentia mais um derrotado. Eu ganhara perspectivas. Nas minhas últimas representações o desalento desapareceu de vez.
Afinal, eu estava absolvido. Entendi que fora lançado e arrancado ao mesmo tempo do inferno astral por onde perambulei algemado, para então poder enxergar a luz no fim do túnel e assim conseguir vislumbrar novos horizontes.
A máscara negra que envolvia a minha percepção em névoas foi removida pela mão divina. Com os olhos do espírito olvidei observar que milhares de criaturas estavam sendo também purgadas num terrível inferno de dores e sem poder sair dos seus maus tormentos. Portanto, consegui entender que a Providência existe e jamais me abandonara. Eu é que pe-cara ao deixar vedar minha compreensão através da negatividade e do desânimo mental.
No entanto, nesse ato derradeiro, o que mais me perturbou foi o encantado periqui-tinho verde, com manchas brancas no peito, pupilas vermelhas redondas e o seu biquinho recurvo amarelado, a me entregar o ditoso cartãozinho da sorte, cuja mensagem, sem dúvi-da alguma consistiu na predição mais feliz que até hoje recebi na vida.
Calipso! ...Que alvíssaras dos céus?... Um real vaticínio divino tu me ofertaste?
Todavia, hoje, uma sombra ainda paira sobre mim. Não me saem da lembrança o ve-lhote de barbas bem alvas e o seu admirável realejo. Estão impressos em minha mente os seus olhos zarcos vivazes e sua imagem plácida a contemplar o meu semblante. Quando o mesmo movia a manivela de sua caixa sortílega, reparei que ele era maneta. Um dos seus braços – o esquerdo – oculto pelo pano escuro, não continha a mão nele. Fiquei por bom tempo a cismar:
“Onde fora parar A MÃO daquela criatura laboriosa? Ficara ela perdida num aci-dente ou estaria invisível aos olhos humanos? Seria, então, ela encontrada em uma praça qualquer de uma cidade grande a lançar sortes através do seu deleitável e misterioso realejo?”
Meu espírito então rejubilou.
Se eu pudesse lhe falar, óh pássaro dos céus! Iria lhe pedir um novo cartãozinho da sorte para ler. Tu deixarias que eu descortinasse essa MÃO INVISÍVEL e recoberta de penas, com suas garras recurvas, gravando a ventura do meu afortunado peregrinar?
Quiçá num doce acorde de inspiração eu possa compreender o final deste ato. Todavia, eu passo a indagar a minha própria consciência:
Porventura não foi essa mão profícua e poderosa, quem colocou sobre a minha per-cepção a venda perturbadora envolvendo o meu espírito em densa escuridão?
No entanto, o drama chegou ao seu epílogo para encerrar o espetáculo. Talvez alguém da plateia tenha aplaudido o show em cada ato representado por seus intérpretes casuais.
Os atores saem de cena. O periquitinho voa para o céu e o som do realejo estanca.
No derradeiro minuto, o velhote simpático de barbas brancas, quase proféticas, com seus olhos zarcos vivazes, respeitosamente acena ao público e sorri.
No palco, descem as cortinas e as luzes da ribalta apagam.
*****
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